Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0492/18.1BELSB
Data do Acordão:06/23/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
UTILIDADE
INSTÂNCIA
Sumário:A utilidade do recurso de revista é sempre determinada e limitada pelo efeito que a decisão judicial a proferir nesta sede tem para o caso concreto. Ao não dispor de competência consultiva, o Supremo Tribunal Administrativo não pode pronunciar-se sobre questões que, mesmo dotadas de grande relevância social, acabem se revelar improdutivas no contexto do concreto litígio sub judice.
Nº Convencional:JSTA000P29625
Nº do Documento:SA1202206230492/18
Data de Entrada:03/18/2022
Recorrente:ESPAP - ENTIDADE DE SERVIÇOS PARTILHADOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, I.P.
Recorrido 1:A........, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – A………, LDA., com os sinais dos autos, propôs no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa), em 9 de Março de 2018, acção de contencioso pré-contratual, contra a Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, I.P. (ESPAP), igualmente com os sinais dos autos, na qual formulou o seguinte pedido: “[…] Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá,
A presente acção deve ser julgada totalmente procedente por provada, e consequentemente:
a) declarada a invalidade das normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do Programa de Concurso, e Cláusula 13.ª do Caderno de Encargos, pelas razões melhor indicadas acima, no presente articulado;
b) declarada a invalidade das decisões de exclusão de candidaturas e de qualificação, notificadas em 9 de Fevereiro de 2018, e de todos os actos que venham entretanto a ser praticados no procedimento, e de eventuais contratos que venham a ser celebrados. […]».

2 – Por sentença de 16 de Dezembro de 2018 foi a acção julgada procedente e declarada a invalidade das normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do Programa de Concurso, do artigo 13.º do Caderno de Encargos, do concurso limitado aberto pelo ESPAP, I.P. e anuladas as decisões subsequentes do referido procedimento.

3 – Inconformada, a Entidade Demandada recorreu daquela decisão para o TCA Sul, que, por acórdão de 18 de Novembro de 2021, negou provimento ao recurso.

4 – Inconformada com o acórdão, a Entidade Demandada interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 24 de Fevereiro de 2022, admitiu a revista.

5 – A Recorrente apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões:
«[…]

E) No âmbito de um acordo quadro, no Acórdão recorrido entendeu-se que a causa de suspensão do mesmo acordo quadro, constante do art.º 13.º do caderno de encargos não tinha correspondência com a suspensão prevista no art.º 297.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), nem com o regime estabelecido no art.º 298.º, também do CCP.

F) Mesmo que, por mera hipótese académica, o regime do acordo quadro fosse o mesmíssimo que é aplicável aos contratos administrativos regulados no CCP e que o artigo 297.º fosse especificamente dirigido ao contraente público, ainda assim, teria de concluir-se que a cláusula 13.ª do caderno de encargos não enferma de qualquer ilegalidade por negar um qualquer direito ao reequilíbrio económico-financeiro dos contratos ou a justa indemnização ou, ainda, violação do princípio da proporcionalidade.

G) A cláusula em questão é a seguinte “Suspensão do acordo quadro 1- Por motivos de interesse público a ESPAP pode suspender total ou parcialmente a execução do acordo quadro.

2- A suspensão produz os seus efeitos a contar do dia seguinte ao da notificação dos cocontratantes no acordo quadro, salvo se da referida notificação constar data posterior, e é efetuada através de carta registada com aviso de receção.

3- A ESPAP pode, a qualquer momento, levantar a suspensão da execução do acordo quadro.

4- Os cocontratantes não podem reclamar ou exigir qualquer compensação ou indemnização com base na suspensão total ou parcial do acordo quadro.

5- A suspensão do acordo quadro não determina a suspensão ou revogação dos procedimentos já lançados ao abrigo do mesmo, nem tem qualquer impacto nos contratos em execução”. Negrito nosso.

H) A redação do n.º 5 desta cláusula é suficientemente garantística para acautelar todos os interesses dos operadores económicos integrantes de um acordo quadro, ao aí prever-se que a “suspensão do acordo quadro não determina a suspensão ou revogação dos procedimentos já lançados ao abrigo do mesmo, nem tem qualquer impacto nos contratos em execução”.

I) Esta norma garantística assegura que uma eventual suspensão do acordo quadro não pode afetar as substantivas relações contratuais já em execução, protegendo ainda as legitimas expectativas que derivem, para os operadores económicos, dos procedimentos já abertos pelas entidades adjudicantes abrangidas pelo acordo quadro (vinculadas ou voluntárias).

J) Relativamente a contratos que ainda não se encontrem adjudicados e que, porventura, até podem nunca vir a ser celebrados ao abrigo do acordo quadro (tanto basta que as entidades adjudicantes decidam não lançar qualquer procedimento) e, por maioria de razão, para os casos em que as entidades adjudicantes do acordo quadro ainda não tenham aberto qualquer procedimento tendente à celebração de contratos, não se descortina quando, como e em que termos uma decisão de suspensão do acordo quadro pode violentar o princípio do equilíbrio económico-financeiro do contrato ou justa indemnização ou, ainda, o princípio da proporcionalidade.

K) A suspensão do acordo quadro afeta diretamente, e apenas, as entidades adjudicantes adquirentes, que deixam de poder recorrer a um procedimento mais expedito para a outorga de contratos com o objeto aí previsto.

L) É que é preciso ter em conta que o acordo-quadro é dinamizado pelas entidades adjudicantes que o integrem, que são entidades compradoras vinculadas ou voluntárias, de acordo com o artigo 3.º, n.ºs 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 37/2007, de 19 de fevereiro.

M) Nos casos em que essas entidades compradoras não dinamizem o acordo-quadro, não adjudicando contratos ao seu abrigo, este pode existir, mas não tem qualquer utilidade, ou seja, não permite aos cocontratantes do acordo-quadro a celebração de contratos nesse âmbito.

N) A entidade que promove o acordo-quadro não tem de indemnizar os cocontratantes por não celebrarem contratos ao seu abrigo.

O) O Acórdão recorrido, ao declarar, sem mais, a invalidade do artigo 13.º do Caderno de Encargos, estabelecendo, para o efeito, uma plena identidade de regime com o previsto para os contratos administrativos que têm por objeto direto e imediato a execução de prestações, incluindo os lugares paralelos do regime da modificação e do (re)equilíbrio económico-financeiro e de justa indemnização, sem que tenha tido em conta os aspetos definitórios e de regime particulares dos acordos quadro, comete um erro de direito por violação de lei substantiva que o inquina com nulidade.

P) E, isto, pressupondo-se que o regime do artigo 297º do CCP está - ou também está - intencionalmente concebido para as entidades adjudicantes, quando, na sua semântica, sugere que a sua imediata teleologia se dirige aos fundamentos que o cocontratante da Administração pode invocar para a suspensão do contrato.

Q) O artigo 297.º, pela sua própria semântica, ao dispor que “A execução das prestações que constituem o objeto do contrato pode ser, total ou parcialmente, suspensa com os seguintes fundamentos: a) A impossibilidade temporária de cumprimento do contrato, designadamente em virtude de mora do contraente público na entrega ou na disponibilização de meios ou bens necessários à respetiva execução; ou b) A exceção de não cumprimento.”, sugere estar a dirigir-se ao cocontratante ou às causas que este poderá invocar como legitimadoras da suspensão por si aduzida.

R) Como assiná-la a doutrina, “neste preceito (o artigo 297.º do CCP) estabelece-se o regime geral de suspensão pelo cocontratante da execução…”.

S) O Acórdão recorrido não considera as singularidades estruturais e funcionais do acordo quadro relativamente ao clássico contrato administrativo, na medida em que, por definição e por regime, os acordos quadro não garantem aos cocontratantes qualquer remuneração ou expectativa de remuneração, tudo dependendo da avaliação das entidades adjudicantes integrantes dos acordos quadro, podendo nunca celebrar qualquer contrato ao seu abrigo (cf. n.º 2 do artigo 255.º do Código dos Contratos Públicos).

T) Assim, não se descortina qualquer fundamento legal e doutrinal que permita ao Douto Acórdão recorrido concluir que a Recorrente, com a citada cláusula 13ª do caderno de encargos, viole o princípio da taxatividade das causas de suspensão do acordo quadro estabelecidas no artigo 297.º do CCP.

U) Há diplomas legais e regulamentares (e ao caderno de encargos é generalizadamente atribuída natureza regulamentar) que utilizam a cláusula geral do interesse público, conferindo aos órgãos públicos poderes discricionários para, em cada caso concreto, densificarem as circunstâncias de interesse públicos que legitimam a respetiva atuação.

V) E, nos termos em que se encontra definida, a suspensão do acordo quadro afeta diretamente, e apenas, as entidades adquirentes, que deixam de poder recorrer a um procedimento mais expedito para a outorga de contratos com o objeto aí previsto.

W) O acordo-quadro é construído para satisfazer necessidades públicas a cargo das entidades compradoras, vinculadas ou voluntárias, pelo que são estas que sofrem as consequências da suspensão de tal acordo e não os cocontratantes daquele.

X) O Douto Acórdão recorrido confunde manifestamente a figura do acordo quadro, enquanto e só contrato regulador de eventuais relações contratuais futuras, e a figura do contrato propriamente dito ou contrato stricto sensu, enquanto instrumento jurídico regulador – direta e imediatamente regulador - de relações materiais/substantivas, eivando de erro de direito e de erro de julgamento.

Y) Não pode concluir-se, como o Acórdão Recorrido fez, que se está em face de uma cláusula de irresponsabilidade da Recorrente, que teria como efeito de isentar de responsabilidade uma ação que por si mesma não gera responsabilidade.

Z) Na parte que tinha de ser acautelada cfr. n.º 5 da cláusula, a Recorrente preservou e garantiu os direitos e legitimas expectativas dos operadores económicos, quer nos contratos já em execução e celebrados ao abrigo do acordo quadro, quer, inclusivamente, quanto aos procedimentos já abertos ao abrigo do mesmo acordo quadro, não tendo em ambos qualquer impacto uma eventual suspensão do acordo quadro.

Nestes termos, deverá ser admitido o presente recurso de revista e, a final, ser julgado integralmente procedente.,

[…]».


6 A Recorrida A………. apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:
«[…]

2º Independentemente disso, e por cautela de patrocínio, diga-se também que não merece qualquer provimento o recurso interposto, nada havendo a apontar à decisão do Douto Acórdão sobre a referida questão.

3º Com efeito, a Recorrente não logra infirmar a bondade do Douto Acórdão na decisão sobre o artigo 13.º do Caderno de Encargos, que regula – de forma patentemente ilegal – a suspensão dos acordos quadro.

4º Desde logo, é inegável que os acordos quadro são contratos; são contratos administrativos; e estão sujeitos à parte III do CCP, o que o próprio Caderno de Encargos do concurso limitado que deu origem aos presentes autos assume, designadamente no seu artigo 27.º. São, pois, injustificadas as dúvidas e resistências da Recorrente a este respeito.

5º A Recorrente não consegue afastar o entendimento de que o artigo 13.º do CE, ao prever uma suspensão baseada num motivo de interesse público vago e genérico, desprovido de qualquer mínimo de densidade normativa, viola o artigo 297.º do CCP.

6º Assim como, sobretudo, não afasta a patente ilegalidade – e mesmo arbitrariedade – desse artigo 13.º, ao prever uma suspensão que a Recorrente pode decidir levantar ou não levantar, quando lhe aprouver; e, no que constitui sem dúvida o aspecto mais grave daquela cláusula, a evidente ilegalidade de negar qualquer indemnização ou compensação, quando o CCP inequivocamente reconhece sempre ao co-contratante o direito à indemnização em resultado de qualquer vicissitude determinada sobre o contrato por motivo de interesse público, no que, diga-se, apenas está a cumprir a garantia constitucional da propriedade.

7º Não convencem minimamente as alegações que a Recorrente vai repetindo, sobre pretensos “aspectos definitórios e de regime particulares dos acordos quadro”, numa alegada especificidade ou mesmo singularidade do acordo quadro, que nunca explica; e uma suposta falta de expectativa dos agentes económicos em obterem alguma receita com os acordos quadro; aspectos que supostamente explicariam a arbitrariedade do artigo 13.º do CE.

8º Contudo, como resulta das decisões das instâncias e acima se reiterou, como qualquer contrato que depende da procura de terceiros, o acordo quadro tem uma equação económica, e uma expectativa de ganho para o fornecedor, que no caso, é bastante elevada, atendendo aos valores expectáveis dos lotes e à óbvia probabilidade muito elevada de adjudicação de contratos.

9º Só que para que isto possa acontecer, uma condição básica é que o contrato continue a vigorar em pleno, e que os fornecedores possam responder a call-offs: se o contrato for suspenso, “por motivos de interesse público”, sine die, e sem direito a qualquer compensação, como pretenderia o artigo 13.º do CE, isso representaria um sacrifício arbitrário e ilegal da posição dos fornecedores, que ficariam impedidos de obter os benefícios que a execução normal do contrato lhes traria.

10º Foi isto, em suma, que o TAC de Lisboa decidiu, e que o TCA Sul confirmou, na decisão recorrida; e está, claramente, bem decidido, pelo que o recurso não deve merecer provimento.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso de revista ser rejeitado, por não se verificarem os pressupostos legais a que se refere o artigo 150.º, n.º 1, do CPTA; ou, em qualquer caso, e por cautela de patrocínio, deve o mesmo recurso ser julgado totalmente improcedente por não provado, mantendo-se inteiramente o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul proferido nos autos.

[…]».


7 – O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer em que concluiu o seguinte: “(…) O reconhecimento expresso, no juízo operado pelas Instâncias precedentes, da existência de causas legítimas de inexecução do julgado anulatório recomendaria a promoção oficiosa do acerto indemnizatório ao qual se reportam os artigos 45.º-A e 45º, ambos do CPTA, o que prejudicaria, por inutilidade, o conhecimento do objecto do presente recurso.
A não se entender assim,
Circunscrito à questão da conformidade legal do artigo 13.º do Caderno de Encargos, acompanho, sem compressões ou reservas, a Alegação da Entidade Recorrida e, com ela, defendo a [im]procedência do recurso (…)”.


8 – Foi assegurado à Recorrente e à Recorrida o contraditório face ao teor do parecer do MP.

9 – Por despacho da Relatora de 27.04.2022 foi suscitada a seguinte questão:
«[…]

O acórdão do TCA Sul que está na base do presente recurso de revista negou provimento ao recurso que para ele fora interposto da sentença proferida pelo TAC de Lisboa, confirmando-a expressamente. Na dita sentença julgou-se procedente a acção de contencioso pré-contratual, declarando-se a invalidade das normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do Programa de Concurso [concurso limitado aberto pela ESPAP, IP, para o fornecimento de refeições confeccionadas, publicitado através do anúncio n.º 6421/2017, publicado no Diário da República, 2.ª Série, N.º 143, parte L, de 26.07.2017, e através do anúncio n.º 2017/S 143-294721, publicado a 16.11.2013 no Jornal Oficial da União Europeia], declarou-se a invalidade do artigo 13.º do Caderno de Encargos respeitante ao mesmo concurso, declarou-se a invalidade do mesmo concurso por omissão das entidades adquirentes ao abrigo de acordo-quadro e determinou-se ainda a anulação subsequentemente das decisões de exclusão de candidaturas e de qualificação, notificadas a 09.02.2018, de adjudicação dos lotes do procedimento, aprovada pela deliberação de 24.05.2018, bem como de todos os demais actos praticados no procedimento e de eventuais contratos a celebrar.

No recurso de revista apenas vem impugnada a parte do acórdão proferido pelo TCA em que se julga inválido o artigo 13.º do Caderno de Encargos.

Ora, porque a declaração de invalidade das normas do procedimento concursal com fundamento na sua invalidade corresponde à anulação da base jurídica do procedimento concursal e de todos os actos subsequentes, cremos que se deve ter por irrelevante a validade ou invalidade de uma norma de uma peça do procedimento (no caso o Caderno de Encargos) quando não é impugnada no recurso – e, por isso, subsiste – a declaração de invalidade das normas do respectivo procedimento concursal. E, em conformidade com este entendimento, afigura-se-nos difícil atribuir um efeito útil a este recurso, uma vez que, independentemente do que nele se possa decidir quanto à validade da norma do caderno de encargos (o único aspecto que vem impugnado no recurso), a subsistência no plano jurídico deste documento procedimental parece estar prejudicada pela declaração de invalidade das normas do programa do concurso.
[…]».

10 – Em resposta ao despacho, a Recorrente alegou o seguinte:
«[…]
Salvo o devido respeito, a Recorrente ESPAP em caso algum poderá concordar com o fundamento e dispositivo do presente Despacho, e pelas razões fundamentais, que nos permitimos dispor nos termos e com os seguintes FUNDAMENTOS:
A) Em primeiro lugar, pelas alegações que justificaram a admissibilidade da Revista;
B) Em segundo lugar, pela função normativo-processual e substantiva do recurso de revista e pela nuclear essencialidade, no objecto de tudo quanto foi processado desde a 1.ª Instância e no recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), do disposto no mencionado artigo 13.º do Caderno de Encargos.

1) Efectivamente, quanto à primeira razão, alegou-se na admissibilidade do recurso de revista que, nos termos do n.º 1 do artigo 150º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), das “decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
2) Para efeitos da subsunção do thema decidendum à teleologia própria daquela citada norma processual alegou-se que está em causa a legalidade/ilegalidade de uma cláusula (cláusula 13.ª) aposta, pela Recorrente, no caderno de encargos de um acordo quadro, na qual se estabelece:
“Suspensão do acordo quadro
1- Por motivos de interesse público a ESPAP pode suspender total ou parcialmente a execução do acordo quadro.
2- A suspensão produz os seus efeitos a contar do dia seguinte ao da notificação dos cocontratantes no acordo quadro, salvo se da referida notificação constar data posterior, e é efetuada através de carta registada com aviso de receção.
3- A ESPAP pode, a qualquer momento, levantar a suspensão da execução do acordo quadro.
4- Os cocontratantes não podem reclamar ou exigir qualquer compensação ou indemnização com base na suspensão total ou parcial do acordo quadro.
5- A suspensão do acordo quadro não determina a suspensão ou revogação dos procedimentos já lançados ao abrigo do mesmo, nem tem qualquer impacto nos contratos em execução”.

3) Adiantando-se que é quanto a este segmento que se interpõe o recurso de revista, por (passamos a citar):

“2º
No Acórdão recorrido por se entender que a causa de suspensão subjacente ao citado art.º 13.º não tinha correspondência com a suspensão prevista no art.º 297.º do Código dos Contratos Públicos, nem como o regime estabelecido no art.º 298.º, também do CCP, sendo certo que não pode ser postergado, por um lado, o caráter taxativo da enumeração dos fundamentos de suspensão do contrato no art.º 297.º do CCP e, por outro lado, o princípio do equilíbrio entre as prestações das partes, o que conduz ao direito à reposição do equilíbrio financeiro em caso de modificação unilateral do contrato pelo contraente público e ao reconhecimento do direito à justa indemnização dos prejuízos causados pela resolução do contrato com o fundamento em interesse público.
Como imediatamente se deduz do mencionado segmento do Acórdão do TCA Sul, a questão que dele resulta suscita, no mínimo, as seguintes novidades e problemas:
a) Está em causa uma questão nova no domínio do Direito Administrativo geral e, especificamente, no domínio do Direito da Contratação Pública, que se traduz, em primeiro lugar, em saber se as causas de suspensão dos contratos públicos são apenas e só as taxativamente previstas no artigo 297º do CCP ou se, pelo contrário, a Administração Pública/contraentes públicos não poderá prever, nas peças do procedimento e ao abrigo da autonomia pública contratual, outras causas legitimadoras de suspensão dos contratos;
b) Em segundo lugar, e ainda como novidade, está em causa saber se esse mesmo regime, estritamente pensado e positivado enquanto regime do contrato administrativo clássico, é aplicável, nos mesmíssimos termos, a um contrato que, ainda que administrativo, se apresenta com uma estruturação e funcionalidade completamente diferentes: o acordo quadro, que, na concepção doutrinal e no regime legal, se apresenta estrutural e funcionalmente como um contrato regulador de eventuais relações contratuais futuras outorgadas ao seu abrigo;
c) Só estas duas razões já legitimariam a admissibilidade da revista, na mediada em que já se acharia preenchido o segmento final do citado n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, ao dizer-se que o recurso de revista é também de admitir “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”;
d) Em terceiro lugar, e no mesmo plano, está ainda em causa saber se a eventual suspensão do acordo quadro legitima, como consequência automática (como parece decorrer do Acórdão recorrido), que os eventuais operadores económicos seleccionados para integrarem esse mesmo acordo quadro - e, eventualmente, virem a celebrar contratos ao seu abrigo – tenham direito ao reequilíbrio económico- financeiro e a justa indemnização, pelo que uma tal cláusula de suspensão do acordo quadro, nos termos em que foi redigida, não só se mostra ilegal por violação do artigo 297º do CCP, mas também por violação do princípio do equilíbrio económico-financeiro do acordo quadro, da justa indemnização e do princípio da proporcionalidade;
e) Por último, está ainda em causa uma questão de, indubitavelmente, se reveste de importância fundamental, pela sua relevância jurídica ou social e também económica, bastando, para o efeito, observar o seu impacto não só no universo dos inúmeros acordos quadro lançados pela Recorrente, mas igualmente por outras entidades integrantes do Estado, como é o caso dos Serviços Partilhados do Ministérios da Saúde, IP, e as diversas Unidades Ministeriais de Compras, a que acrescem os já também inúmeros acordos quadro de âmbito municipal e intermunicipal, incluindo as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;
f) Tal significa igualmente dizer que a questão sub iudice é susceptível de ser replicada em possíveis e inúmeras situações futuras”.
4) Demostrando-se ao longo de todo o articulado subsequente das alegações de revista os erros de direito em que caía o Acórdão recorrido, por errada interpretação e aplicação de normas do Código dos Contratos Públicos (CCP) a um “instituto” disciplinado com um regime específico no Título V do mesmo Código, dedicado aos “ACORDOS QUADRO” (artigo 251º e segs.), a que se segue o regime também específico das “CENTRAIS DE COMPRAS” no Título VI daquele mesmo Código.
5) Passando à razão exposta em segundo lugar, cremos que é precisamente para a resolução de situações como as que constam da delimitação das alegações da revista que se justifica a função normativo-processual e substantiva do n.º 1 do artigo 150º do CPTA.

6) Efectivamente, em função da panóplia de razões alegadas para a admissibilidade da revista, salvo o devido respeito, não compreende a Recorrente como pode o STA concluir que “…em conformidade com este entendimento, afigura-se-nos difícil atribuir um efeito útil a este recurso, uma vez que, independentemente do que nele se possa decidir quanto à validade da norma do caderno de encargos (o único aspecto que vem impugnado no recurso), a subsistência no plano jurídico deste documento procedimental parece estar prejudicada pela declaração de invalidade das normas do programa do concurso” (sublinhado nosso).

7) Se bem entendemos, o douto Despacho do STA reduz a importância da revista à utilidade no caso concreto, quando o que está em causa é bem mais – muito, mas muito mais – do que isso, como lapidarmente cremos resultar das citadas alegações justificativas da admissibilidade da revista e que nos permitimos citar novamente:


“3º

Como imediatamente se deduz do mencionado segmento do Acórdão do TCA Sul, a questão que dele resulta suscita, no mínimo, as seguintes novidades e problemas:

g) Está em causa uma questão nova no domínio do Direito Administrativo geral e, especificamente, no domínio do Direito da Contratação Pública, que se traduz, em primeiro lugar, em saber se as causas de suspensão dos contratos públicos são apenas e só as taxativamente previstas no artigo 297º do CCP ou se, pelo contrário, a Administração Pública/contraentes públicos não poderá prever, nas peças do procedimento e ao abrigo da autonomia pública contratual, outras causas legitimadoras de suspensão dos contratos;

h) Em segundo lugar, e ainda como novidade, está em causa saber se esse mesmo regime, estritamente pensado e positivado enquanto regime do contrato administrativo clássico, é aplicável, nos mesmíssimos termos, a um contrato que, ainda que administrativo, se apresenta com uma estruturação e funcionalidade completamente diferentes: o acordo quadro, que, na concepção doutrinal e no regime legal, se apresenta estrutural e funcionalmente como um contrato regulador de eventuais relações contratuais futuras outorgadas ao seu abrigo;

i) Só estas duas razões já legitimariam a admissibilidade da revista, na medida em que já se acharia preenchido o segmento final do citado n.º 1 do artigo 150º do CPTA, ao dizer-se que o recurso de revista é também de admitir “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”;

j) Em terceiro lugar, e no mesmo plano, está ainda em causa saber se a eventual suspensão do acordo quadro legitima, como consequência automática (como parece decorrer do Acórdão recorrido), que os eventuais operadores económicos seleccionados para integrarem esse mesmo acordo quadro - e, eventualmente, virem a celebrar contratos ao seu abrigo – tenham direito ao reequilíbrio económico-financeiro e a justa indemnização, pelo que uma tal cláusula de suspensão do acordo quadro, nos termos em que foi redigida, não só se mostra ilegal por violação do artigo 297º do CCP, mas também por violação do princípio do equilíbrio económico-financeiro do acordo quadro, da justa indemnização e do princípio da proporcionalidade;

k) Por último, está ainda em causa uma questão de, indubitavelmente, se reveste de importância fundamental, pela sua relevância jurídica ou social e também económica, bastando, para o efeito, observar o seu impacto não só no universo dos inúmeros acordos quadro lançados pela Recorrente, mas igualmente por outras entidades integrantes do Estado, como é o caso dos Serviços Partilhados do Ministérios da Saúde, IP, e as diversas Unidades Ministeriais de Compras, a que acrescem os já também inúmeros acordos quadro de âmbito municipal e intermunicipal, incluindo as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;

l) Tal significa igualmente dizer que a questão sub iudice é susceptível de ser replicada em possíveis e inúmeras situações futuras”.

8) Ora, foi precisamente para a resolução de tais “novidades e problemas” que, justamente, o legislador instituiu na jurisdição administrativa, o recurso de revista, como resulta da reiterada jurisprudência do STA (que, aqui, nos dispensamos de citar por ser da autoria do próprio STA) e da generalizada doutrina processual administrativa.

9) Em todo o caso, sempre se adianta que essa jurisprudência decorre do próprio Acórdão do STA, de 28-2-2022, que, por unanimidade dos Exmos. Juízes Conselheiros, julgou procedente a revista, ao expressamente realçar que “Ora, como vem sublinhando esta «Formação», a admissão da revista fundada na clara necessidade de uma melhor aplicação do direito prende-se com situações respeitantes a matérias relevantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente, ou, até, de forma contraditória, a exigir a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como essencial para dissipar as dúvidas sobre o quadro legal que regula essa concreta situação, emergindo, destarte, a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objectivo.

No presente caso, ponderado o arrazoado jurídico das decisões das instâncias, e, bem assim, o teor das várias razões de discordância tecidas pela ora recorrente ESPAP nesta revista, e procedendo a uma «avaliação preliminar sumária» das mesmas, impõe-se concluir que estamos face a uma questão de relevância jurídica, e a necessitar de ser revista, isto porque suscitada no âmbito do complexo universo da contratação pública - com impacto não só no universo dos acordos quadro lançados pela recorrente, mas igualmente por outras entidades integrantes do Estado, como é o caso dos Serviços Partilhados do Ministérios da Saúde, IP, e as diversas Unidades Ministeriais de compras, a que acrescem os já também inúmeros acordos quadro de âmbito municipal e intermunicipal, incluindo as Regiões Autónomas dos Açores e Madeira -, e porque o acórdão recorrido não está imune as criticas que lhe são feitas pela recorrente, o que tudo aconselha que este STA sobre elas se debruce em busca de uma, porventura, melhor solução de direito”. (negrito nosso)

10) Esta jurisprudência está em consonância com a generalidade da doutrina. Recorrendo-nos a alguma das mais autorizada desta última, afirma JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE que o “recurso é admitido relativamente a questões de importância fundamental pela sua relevância jurídica ou social, ou então quando seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” (A Justiça Administrativa. Lições, 19ª Ed., Almedina, Coimbra, pág. 422.

11) De igual modo, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, subscrevendo a própria Exposição e Motivos do CPTA, reafirma que “num novo quadro de distribuição de competências em que o TCA passa a funcionar como instância normal de recurso de apelação, afigura-se útil que, em matérias de maior importância, o Supremo Tribunal Administrativo possa ter uma intervenção que, mais do que decidir directamente um grande número de casos, possa servir para orientar os tribunais inferiores, definindo o sentido que deve presidir à respectiva jurisprudência em questões que…considere mais importantes” (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4.ª Ed., Almedina, Coimbra, págs. 1145 e segs.).

12) O douto Despacho do STA, sobre o qual ora nos pronunciamos, ao reduzir a importância da revista à utilidade no caso concreto, tem um efeito prático-processual e substantivo revogatório do Acórdão do mesmo STA que admitiu a revista e, com isso, obstar o acesso a uma decisão de fundo, o que, em última análise, se consubstancia numa decisão denegatória do acesso ao Direito e à Justiça.

13) Ou seja, o douto Despacho, ao configurar-se com uma decisão revogatória do Acórdão do STA de admissão da revista tem como consequência uma radical inversão das normas processuais reguladoras do recurso de revista, o que só poderá comportar uma inevitável nulidade do Despacho por uma frontal violação dessas normas. Nulidade que aqui se alega para todos os efeitos legais, processuais e substantivos.

14) E, simultaneamente, o douto Despacho ao ter o efeito referido, obsta o acesso a uma decisão de fundo de Direito e de Justiça, isto é, obsta o acesso ao Direito e à Justiça. Consequentemente, ao interpretar e aplicar, no caso concreto, as normas processuais do recurso de revista nos termos e com os efeitos com que o faz, o Despacho inquina de inevitável inconstitucionalidade as normas processuais do artigo 150º do CPTA. Inconstitucionalidade que, aqui, igualmente se alega para todos os efeitos legais, processuais e substantivos.

15) Mas o douto Despacho do STA, ao reduzir a importância da revista à utilidade no caso concreto, também não está, quanto a este específico aspecto, salvo o devido respeito, minimamente assertivo.

16) Efectivamente, e como assinalou o Parecer do Exmo. Ministério Público e como decorre de tudo quanto foi processado desde a 1ª Instância, este preciso “caso concreto” pode envolver consequências indemnizatórias, precisamente à custa da citada cláusula do caderno de encargos, como abundantemente se articulou nas alegações do recurso de revista interposto e que o próprio Acórdão do STA que admitiu a revista não deixou igualmente de assinalar. Nem que seja, no mínimo e porventura, com invocação do “instituto da perda de chance”, sobre o qual também já existe abundante e rica jurisprudência do STA (e também – diga-se – do Tribunal de Justiça da União Europeia e, no plano civil, do Supremo Tribunal de Justiça).

17) Portanto, mesmo minimizando o efeito útil da revista ao “caso concreto”, como o faz o douto Despacho sobre o qual nos pronunciamos, sempre subsistirá a utilidade da revista, na medida em que da interpretação que venha a ser dada à “questão de direito” submetida à apreciação do STA, dela sempre dependerá, no e para o “caso concreto” (mas igualmente para todos os acordos quadros actuais e futuros, da Recorrente e de todas as entidades adjudicantes que utilizam esta figura da contratação pública), a resolução da questão indemnizatória, nem que seja, repetimos, por invocação da dita “perda de chance”.

18) Em síntese, mesmo nesta perspectiva processual redutora do recurso de revista, sempre teria e terá – manifestamente - de concluir-se pela utilidade de uma intervenção de “fundo” do STA, fixando a jurisprudência que, na sua perspectiva, seja a tida como a melhor segundo o Direito e a Justiça, para o dito “caso concreto” e, consequentemente, para todas as situações equivalentes, actuais e futuras, e existentes a nível nacional, local (administração autárquica e intermunicipal) e regional (Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira).

Nestes termos e fundamentos deve o recurso de revista proceder, tal como foi decidido pelo Acórdão do STA, que admitiu a revista, assim se permitindo o acesso ao Direito e à Justiça!

[…]».



Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. De Direito

Cumpre começar pela análise da questão suscitada oficiosamente a respeito da total improdutividade jurídica da presente lide que, nos termos do artigo 130.º do CPC (regra da ilicitude da prática de actos inúteis), aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA, determina a sua extinção por inutilidade. Vejamos.

2.1. O âmbito do recurso define-se pelas respectivas conclusões, são elas que identificam o respectivo objecto (as questões a decidir) e limitam os poderes de cognição do Tribunal ad quem (artigos 637.º e 639.º do CPC aplicáveis ex vi do artigo 1.º do CPTA).

No caso dos autos, a questão a decidir limita-se à conformidade legal ou não (validade) da cláusula 13.ª do Caderno de Encargos e à questão de saber se a mesma é juridicamente admissível, tendo em conta que, segundo a tese da Recorrente, não respeita o disposto nos artigos 297.º e 298.º do CCP.

A questão que foi suscitada oficiosamente prende-se com o efeito decorrente da anulação das cláusulas 9.º e 10.º do Programa do Concurso, ou seja, com a parte da decisão judicial não recorrida e que entretanto transitou em julgado.

Na sentença do TAC de Lisboa, de 16 de Dezembro de 2018, a acção de contencioso pré-contratual foi julgada procedente e, consequentemente, foram anuladas as normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do Programa de Concurso. Decidiu-se naquele aresto que os referidos artigos 9.º e 10.º do Programa de Concurso, que estabelecem, respectivamente, os requisitos mínimos de capacidade técnica e de capacidade financeira, violavam o art.º 165.º, n.º 1 do CCP, pela violação das partes I e II do anexo XII da Directiva n.º 2014/24/UE, para onde remete o seu artigo 58.º, e por violação do Anexo IV ao Código dos Contratos Públicos em vigor à data de lançamento do procedimento, bem como por erro sobre os pressupostos de facto e violação dos princípios da concorrência e transparência, da proporcionalidade e adequação, da prossecução do interesse público e da boa administração e da justiça.

Na apreciação, em sede de recurso desta decisão proferida na sentença de primeira instância, o TCA Sul concluiu que na “fundamentação espraiada no trecho da sentença recorrida (…) não se descortina qualquer incorreção, quer quanto ao raciocínio aí desenvolvido, quer quanto às consequências jurídicas estabelecidas”. Assim, o acórdão recorrido, confirmou o que havia sido decidido pela sentença do TAC de Lisboa, i. e. a anulação das normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do Programa de Concurso.

No recurso de revista que interpôs para este Supremo Tribunal Administrativo a Recorrente não impugnou esta parte da decisão, pelo que a mesma transitou em julgado.

O programa do procedimento ou programa do concurso é a peça processual que define os termos a que obedece a fase de formação do contrato até à sua celebração (artigo 41.º do CCP).

Ora, a anulação in casu das normas do Programa de Concurso que estabelecem, respectivamente, os requisitos mínimos de capacidade técnica e de capacidade financeira inviabiliza a possibilidade de celebração de qualquer contrato por aplicação das mesmas, o que, na prática, significa que fica inviabilizada a celebração de qualquer contrato até que aquele vício seja sanado, seja por expurgação ou substituição das normas anuladas, seja mediante a provação de um novo programa do concurso.

Isto significa que eventuais vícios do caderno de encargos, que é a peça do procedimento que contém as cláusulas a incluir no contrato a celebrar (artigo 42.º, n.º 1 do CCP), deixem de ser relevantes na economia do caso, uma vez que aquele concreto contrato, no âmbito daquele concreto procedimento deixa de poder ser celebrado, atento o facto de todo o procedimento ter sido anulado por consequência da anulação das normas do programa do procedimento.

Foi nesta sequência que se suscitou a questão da inutilidade do recurso, uma vez que os Tribunais só podem proferir decisões a respeito da e para a resolução de casos concretos, o que não é excepção no âmbito do recurso de revista excepcional.

A apreciação da conformidade jurídica ou não do decidido a respeito do artigo 13.º do Caderno de Encargos já não poderá produzir efeitos para a resolução do caso concreto, pois o teor daquela cláusula – seja ele conforme ou desconforme ao direito – deixou de ter relevância no âmbito do caso objecto dos autos, ou seja, no âmbito deste procedimento concursal, a partir do momento em que o mesmo é anulado por consequência da anulação das normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do Programa do Concurso.

No requerimento que apresentou, a Recorrente sustenta a utilidade do recurso em dois argumentos: i) numa pretensa força vinculativa da decisão que admite a revista; e ii) na utilidade da decisão judicial que nesta sede se venha a adoptar.

Mas não tem razão em nenhum destes argumentos. Vejamos.

No que contende com a alegada utilidade da revista, a Recorrente não tem razão quando afirma que não se pode “reduzir a importância da revista à utilidade no caso concreto”. É verdade que a revista, sendo um recurso excepcional, depende da verificação dos requisitos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA para que se possa conhecer do objecto do recurso. Porém, a decisão judicial a proferir nesta sede é uma decisão sobre o caso em recurso, porque do que se trata sempre é de decidir o caso concreto. Em outras palavras, a “necessidade de alterar a decisão do caso” não é suficiente, em sede de recurso de revista excepcional para justificar a admissibilidade do recurso e o seu julgamento, a lei exige que a formação especial (artigo 150.º, n.º 6 do CPTA) verifique se estão ou não preenchidos os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA para que o recurso seja admitido. Mas a inversa também é verdadeira, ou seja, não basta que aqueles pressupostos estejam verificados para que o recurso tenha de ser conhecido, é ainda necessário que a decisão a proferir se reporte à solução do caso, porque é disso que se trata. Se se concluir, como é o caso aqui, que a decisão que venha a ser proferida já não pode produzir efeitos no caso concreto a que respeitam os autos, porque se tornou inútil, então o Tribunal, ex vi do disposto no artigo 130.º do CPC (aplicável por remissão do artigo 1.º do CPTA), não conhece do objecto do recurso e declara extinta a instância por inutilidade da mesma. E a utilidade da instância, como a própria designação indica, afere-se para capacidade de produção de efeitos no caso dos autos e não em hipóteses futuras. As decisões proferidas pelos tribunais têm valor jurisdicional, ou seja, decidem o direito do concreto litígio que lhes é submetido, e não valor normativo ou consultivo, i. e. regulador ou orientador da resolução de litígios hipotéticos ou futuros.

Equivoca-se a Recorrente na interpretação que faz do âmbito do recurso de revista, pois se é verdade que a sua admissão – por isso é excepcional – depende da verificação dos requisitos legais do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, i. e., de estarmos perante uma questão dotada de relevância jurídica e social, de importância fundamental ou necessária para a melhor aplicação do direito, também é verdade que isso tem como pressuposto jurídico inarredável, que a mesma será proferida no âmbito do concreto caso em apreço. Aliás, isso é precisamente frisado pela doutrina que o Recorrente invoca, designadamente por Vieira de Andrade, que na nota 1118 das Lições “A Justiça Administrativa”, na 19.ª ed., na pág. 423, onde se realça, a propósito da interpretação do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, que o que está em causa é “sempre de decidir o caso concreto e não de fixar genericamente uma doutrina para essas questões de grande relevância social”.

E equivoca-se também a Recorrente quando considera que ao aplicar-se o artigo 130.º do CPC e declarar-se a inutilidade in casu do conhecimento do objecto do recurso se está a proceder à revogação do acórdão da formação que admitiu a revista. Não existe nesta decisão qualquer teor revogatório, uma vez que estão em causa objectos diversos.

No acórdão de 24 de Fevereiro de 2022, pelo qual se admitiu a revista, o Tribunal limitou-se a analisar e avaliar o preenchimento dos requisitos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA por parte da concreta pretensão formulada pelo Recorrente. E essa decisão, na qual se conclui que a questão formulada pelo Recorrente é dotada de “relevância jurídica” que justifica a quebra da excepcionalidade do recurso, em nada é afectada pela decisão que agora vamos proferir, pois não se questiona nem discute a relevância jurídica da questão que está subjacente à conformidade jurídica ou não do artigo 13.º do caderno de encargos, tal como a mesma é formulada nos autos pela Recorrente.

O que agora se conclui que é que, não obstante a relevância jurídica da questão recorrida, da qual, por essa razão, caberia conhecer em sede de revista, o seu conhecimento se encontra prejudicado pelo facto de que o que viesse a decidir sobre a mesma não poder ter qualquer efeito útil sobre o caso dos autos, uma vez que, ao terem sido anuladas as normas do programa de concurso e toda a tramitação posterior, o teor do caderno de encargos (e da respectiva cláusula 13.ª) deixa de poder produzir efeitos neste procedimento concursal, o que significa que não pode o tribunal pronunciar-se sobre o assunto, pois tal constituiria uma decisão inútil para a resolução do caso concreto.

Por último, a Recorrente sustenta a utilidade da lide recursiva nos potenciais efeitos indemnizatórios que podem decorrer da invalidade da cláusula 13.ª do caderno de encargos. E, novamente, não tem razão. Primeiro, porque a concreta lide em juízo não contempla qualquer questão sobre efeitos indemnizatórios ou qualquer pretensão indemnizatória. Segundo, porque eventuais efeitos indemnizatórios que possam decorrer do efeito anulatório que se produziu nos autos com o trânsito em julgado da parte do acórdão do TCA que não foi recorrido são reportados à causa invalidade do procedimento, que é, neste caso, a anulação das normas dos artigos 9.º e 10.º do programa do procedimento, que, como já explicámos, não integram o objecto do presente recurso. Terceiro, porque quaisquer efeitos indemnizatórios que possam surgir no futuro pela reiteração do teor de uma cláusula como a do artigo 13.º do caderno de encargos não dizem respeito à presente lide, a qual constitui – repete-se – o limite do objecto do presente recurso.

Assim, reiterando que o objecto último do recurso excepcional de revista é sempre a resolução do concreto caso sub judice e que a questão formulada no recurso não tem qualquer conteúdo útil, por se encontrar prejudicada pelo trânsito em julgado da anulação das normas constantes dos artigos 9.º e 10.º do programa do concurso, cumpre concluir pela inutilidade do mesmo.

III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em não tomar conhecimento do objecto do recurso, julgando extinta a instância recursiva com fundamento na respectiva inutilidade.
Custas nesta sede pela Recorrente.

Lisboa, 23 de junho de 2022. – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.