Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0753/11
Data do Acordão:09/21/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO DELGADO
Descritores:COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CADUCIDADE
GARANTIA
Sumário:I - O princípio da boa fé, na sua vertente de tutela da confiança, visa salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem.
II - No âmbito da actividade administrativa são pressupostos da tutela de confiança um comportamento gerador de confiança, a existência de uma situação de confiança, a efectivação de um investimento de confiança e a frustração da confiança por parte de quem a gerou.
III - A violação pela administração tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de actuação segundo as regras da boa fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei.
IV - Não padece de ilegalidade por violação do princípio da boa fé, na sua vertente da tutela da confiança, o acto de compensação da dívida exequenda operada pela Administração Tributária, ao abrigo do disposto no art. 89º do CPPT, na pendência de impugnação, após a garantia prestada ter caducado (mas sem que, tivesse anteriormente sido ordenada a notificação da recorrente para, querendo, prestar nova garantia), se, no caso, atentas as circunstâncias concretas, não se demonstrou a existência de uma actuação da administração tributária anterior ao próprio acto de compensação posto em crise e geradora de uma situação de confiança, nomeadamente da convicção por parte da reclamante de que teria que ser notificada para renovar a garantia no termo do respectivo prazo.
Nº Convencional:JSTA00067138
Nº do Documento:SA2201109210753
Data de Entrada:08/01/2011
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO DE 2011/06/16
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC FISC GRAC - COBRANÇA
Legislação Nacional:CONST97 ART266 N2
LGT98 ART59
CPPTRIB99 ART48 ART89 ART169 N1 N4 ART183-A N4
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1188/02 DE 2003/06/18
Referência a Doutrina:DIOGO LEITE DE CAMPOS E OUTROS LEI GERAL TRIBUTÁRIA COMENTADA E ANOTADA 3ED PAG248 PAG250 PAG278
JORGE MIRANDA E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ANOTADA TIII PAG575
MARCELO REBELO DE SOUSA E OUTRO DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL TI 3ED PAG221 PAG222 PAG223
JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO E COMENTADO VII 5ED PAG249 PAG250
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – Vem a Fazenda Pública recorrer para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 16 de Junho de 2011, proferida nos autos de reclamação apresentados nos termos dos artigos 276° e segs. do C.P.P.T., contra o acto de compensação de 06/07/2010, efectuado pela Administração Fiscal, do reembolso/crédito do IVA no valor de 12.680,17€ e operada no processo de execução fiscal nº 3506200601004654 e 3506200601005596, decisão essa que anulou o referido acto de compensação por entender ter sido violado o princípio da boa fé.
Termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
«A. Vem o presente recurso interposto da douta sentença que concedeu provimento à reclamação e anulou o acto de compensação de dívidas de tributos, por considerar tal acto de compensação ferido de ilegalidade por violação do princípio da boa fé, na medida em que é susceptível de trair a confiança da reclamante na actuação da Administração Tributária.
B. A compensação é uma forma de extinção de obrigações com base na circunstância de duas pessoas ou entidades serem simultânea e reciprocamente credor e devedor, prevista expressamente no art. 40°, n.° 2 da LGT para os créditos tributários.
C. Por sua vez, o art. 89° do CPPT determina que os créditos do executado resultantes de reembolso, revisão oficiosa, reclamação ou impugnação judicial de qualquer acto tributário, são obrigatoriamente aplicados na compensação das dívidas à Administração Tributária, excepto se estiver a correr prazo para interposição de meio gracioso ou judicial, ou se estiver pendente um destes meios, desde que a dívida se encontre garantida nos termos do art. 169° do CPPT.
D. No caso em concreto, só após a caducidade da garantia bancária anteriormente prestada, como prevista expressamente na mesma, é que a Administração Tributária operou a compensação reclamada, sufragando-se na correcta interpretação do disposto na al. b) do n.° 1 do art. 89° do CPPT, que "a contrario", obriga que a Administração Tributária efectue a aplicação de um crédito do executado na compensação das suas dívidas tributárias, desde que a dívida não se mostre garantida nos termos do art. 169° do CPPT, mesmo que esteja pendente processo judicial.
E. Entende a Fazenda Pública que o objecto da reclamação apresentada é tão só a conformidade do acto de compensação ao preceito aplicável - o art. 89° do CPPT, uma vez que a reclamante entendia que a garantia que havia prestado aquando da apresentação da reclamação graciosa se mantinha na pendência da impugnação, encontrando-se a dívida garantida.
F. A compensação efectuada é assim, legal, porque preencheu os requisitos exigidos por lei, designadamente no art. 89° do CPPT, aqui aplicável, porquanto, a dívida exequenda não se mostrava garantida nos termos do art. 169° do CPPT.
Aliás,
G. Assim o entendeu a Meritíssima Juiz de Direito, quando concluiu que não se encontravam "verificados os pressupostos legais que proíbem que a Administração Tributária proceda à compensação das dívidas - uma vez que, apesar de pender impugnação judicial, à data da compensação não existia garantia validamente prestada (por ter caducado anteriormente)" .
Todavia,
H. Decidiu o Tribunal a quo, que no caso em concreto, impunha-se à Administração Tributária, em ordem ao cumprimento do princípio da boa fé que notificasse a reclamante, para, querendo, prestar nova garantia antes de proceder à compensação. Não o tendo feito, violou este princípio, na medida em que é susceptível de ter traído a confiança da reclamante sem que tivesse previamente tido oportunidade de prestar nova garantia de modo a obstar à prática do acto reclamado.
Ora,
I. De facto, a Administração Tributária, deve, no exercício das suas funções, actuar com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, ponderando os valores fundamentais do direito, designadamente, a confiança suscitada pela sua actuação e o objectivo a alcançar.
J. No entanto, deve o princípio da boa fé ser conjugado com os restantes princípios norteadores da actividade administrativa tributária, designadamente com o da legalidade, pelo que, quando a Administração Tributária actua com poderes vinculados, o respectivo acto será legal ou ilegal consoante respeite ou não o quadro rigorosamente desenhado na lei, e este foi no caso em concreto respeitado.
K. Reunidos os pressupostos exigidos por lei para que a compensação operasse, e não reunidos os requisitos para que a mesma fosse proibida, impunha-se à Administração Tributária a obrigação de efectuar a compensação na dívida cuja execução não se encontrava garantida, apesar de se encontrar pendente impugnação judicial atinente à legalidade da dívida exequenda.
L. Entende a Fazenda Pública ser de afastar a resolução do litígio com fundamento no princípio da boa fé, pela alegada quebra da confiança do contribuinte, como se decidiu na douta sentença recorrida, porquanto, estamos perante um acto estritamente vinculado à lei, e a situação daquele que actua na convicção de proceder em conformidade com o Direito é jurídica e autonomamente protegida na ordem jurídica.
M. Como referido no Acórdão do STA de 30.04.2003 (Pleno), proferido no recurso nº 47275/02, cujo sumário em parte aqui nos permitimos citar: "O princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (art. 2° da C.R.P.), postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia razoavelmente contar."
N. O princípio da confiança implica assim um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando-se as afectações arbitrárias, com as quais não poderia a reclamante razoavelmente contar.
O. Como decorre dos autos, a garantia bancária prestada pela reclamante aquando da pendência da reclamação graciosa apresentada contra as liquidações em cobrança coerciva, previa expressamente que a mesma só era válida por 3 (três) anos, pelo que, caducou em 18.07.2009.
P. Decorrido o prazo de validade da garantia prestada, a mesma deixou de produzir os seus efeitos, determinando concomitantemente que fosse levantada a suspensão do processo de execução fiscal, por falta de reunião dos requisitos para a mesma.
Q. Nesta data, já havia sido decidida a reclamação graciosa oportunamente apresentada, de cuja decisão, por parcialmente deferida, recorreu hierarquicamente a reclamante, tendo sido notificada do despacho de indeferimento em 22.05.2009, do qual apresentou impugnação judicial em 01.09.2009, a qual corre os seus termos no Tribunal a quo..
Assim,
R. Desde a data em que ocorreu a caducidade da garantia apresentada - 19.07.2009 - que a dívida não se encontrava garantida, e desde essa data, não tendo sido apresentada qualquer outra garantia por parte da reclamante, que bem sabia ou tinha obrigação de saber que a mesma caducara, correu o processo de execução fiscal os seus devidos termos para cobrança da dívida em cobrança coerciva.
S. Ademais, não deu a reclamante sequer conhecimento aos autos de execução fiscal que após os meios graciosos apresentados (reclamação graciosa e recurso hierárquico), havia apresentado em 01.09.2009 impugnação judicial contra as liquidações em dívida, na sequência do indeferimento do recurso hierárquico,
T. pelo que, nada mais havia a fazer por parte da Administração Tributária senão proceder à compensação do crédito na dívida tributária, uma vez que se preenchiam todos os pressupostos exigidos legalmente, e a tal acto estava obrigada.
U. Não existiu qualquer violação do princípio da confiança da reclamante na actuação da Administração Tributária, porquanto, e ao contrário do que entende o Tribunal a quo, bem sabia a reclamante que a garantia bancária por si prestada havia caducado, por expressamente a mesma prever tal caducidade, e,
V. oportunidade de prestar nova garantia teve-a sempre ao seu dispor nos termos do art. 199º do CPPT a partir do momento em que apresentou impugnação judicial no Tribunal a quo, facto esse do qual não deu conhecimento à Administração Tributária no competente processo de execução fiscal.
Assim,
W. A Administração Tributária na prática do acto de compensação reclamado cumpriu o legalmente preceituado, não violando o princípio da boa fé, na medida em que não violou a confiança da reclamante na sua actuação,
X. pois, sabendo a reclamante que a garantia antes prestada havia caducado, poderia a qualquer momento ocorrer um facto extintivo da prestação tributária em dívida, como seja, a compensação efectuada.
Y. Neste segmento, entende a Fazenda Pública que o acto de compensação objecto da presente reclamação é legal e, assim, deve manter-se no ordenamento jurídico-tributário, pelo que, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento.»
A recorrida não contra-alegou.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, sufragando-se para tanto nos argumentos expendidos pela Fazenda Pública e pelo Ministério Público em primeira instância.
Em sede factual apurou-se na primeira instância a seguinte matéria de facto com relevo para a decisão da causa:
«A). Em 04/04/2006 foi instaurada execução fiscal nº 3506200601004654, contra a aqui reclamante, para pagamento de dívida IVA no valor de 13.920,42€, cf. fls. 4 dos autos.
B). Em 28/06/2006 a ora reclamante apresentou Reclamação Graciosa contra a liquidação que subjaz ao processo de execução fiscal referido em a).
C). Com data de 03/07/2006, foi emitido pelo Chefe do serviço de finanças da Maia 2 e dirigido ao mandatário da reclamante um ofício com o seguinte teor: Na sequência da reclamação graciosa deduzida por V. Ex. a, na qualidade de mandatário da firma A…, LDA: NIPC …, em 2006.06.29,contra a liquidação exigida nos autos supra identificados e, atento o preceituado no nº1 o artigo 169° do CPPT, que exista penhora que a execução será suspensa até à decisão do pleito, desde que seja prestada garantia ou exista penhora que garanta a dívida e o acrescido, fica por este meio V. Ex. a notificado(a) de que dos arts 169°, nº 2 e 199° nº 5 do CPPT, deverá apresentar garantia no prazo de 15 dias a contar da assinatura do aviso de recepção desta data, findos os quais preceder-se-á à penhora.
A referida garantia, no valor de € 18.711,06 (dezoito mil setecentos e onze euros e seis cêntimos), que consistirá em garantia bancária, caução, seguro caução ou qualquer outro meio idóneo, deverá ser prestada, pelo período de 3 anos, ou por depósito em operações Específicas do Tesouro, sob a rubrica "8949 OGCI- Serviços de Finanças- Fundos de 2003 e seguintes”, cf. fls. 43 dos autos.
D). Com data de 18/07/2006 o Banco BPI, emitiu um documento dirigido ao Serviço de Finanças da Maia 2 com o seguinte teor:
"Garantia 06/199/39303 (...) O Banco BPI (. ..) constitui-se pelo presente documento fiador e principal pagador de A…, LDA, contribuinte nº … (...) perante esse Serviço de Finanças até ao montante de 18.711,06€ (.. .) importância essa que possa vir a ser devida para pagamento da dívida exequenda e demais valores acrescidos e devidos. Esta garantia é prestada nos termos do artº 196º nº2, do CPP, para efeitos de suspensão do Processo de Execução Fiscal nº 3506200601004654, até resolução definitiva, (. ..)
O valor desta garantia é, pois, de Eur. 18.711,06 (...) e é valida pelo prazo de 3(três) anos (. ..), findos os quais será considerada nula e sem nenhum efeito, cf. fls. 46 dos autos.
E). Em 24/07/2006 o Chefe do Serviço de Finanças da Maia 2 proferiu o seguinte despacho: “Considerando que foi prestada garantia bancária nos termos do artº 199º do CPPT, determino a suspensão do processo até à decisão da reclamação graciosa de harmonia com o consignado no art. 169º nº 1 do CPPT (…) cf. fls. 47 dos autos.
F). Em 01/09/2009 a reclamante deduziu impugnação judicial tendo por objecto o acto de liquidação que está na base da dívida exequenda, correndo os seus termos neste TAF com o nº 2273/09.4BEPRT e encontrando-se ainda pendente, cf. fls. 97 a 109
dos autos.
G). Por ofício datado de 06/07/2010 o Serviço de Finanças da Maia procedeu à compensação nº 2010 0000000226741, no valor de 12.680,17€, conforme teor de fls. 93 a 95 dos autos cujo teor aqui se dá por reproduzido.
H). Em 26/07/2010 deu entrada no Serviço de Finanças da Maia a P.I. da presente reclamação, cf. fls. 83 e 84 dos autos.
I). Em 09/08/2010 o Serviço de Finanças da Maia emitiu "informação" com o seguinte teor: "g) A garantia prestada no âmbito do processo de reclamação graciosa, tem inscrita «... é válida pelo prazo de 3 (três) anos, ou seja até 18/07/2009, (destaque nosso) .. .findos os quais será considerada nula e sem nenhum efeito», não foi pelo contribuinte apresentada nova garantia, nem foi pela Administração Fiscal, notificado para o fazer em virtude de a mesma ter caducado (...)", cf. fls. 75 e 76 dos autos.
J). Em 14/12/2010, sobre a informação datada de 09/08/2010 foi proferido, pelo
Chefe do Serviço de Finanças da Maia, o seguinte despacho: "Em face do informado e dos demais elementos constantes dos autos proceda-se à notificação da executada para no prazo de 10 dias, apresentar nova garantia de acordo com o determinado no art. 169º do CPPT, sob pena de não o fazendo se tornar definitiva a aplicação da compensação", cf. fls. 76 dos autos.
J). Em 16/12/2010 foi assinado o aviso de recepção do ofício que notificou o mandatário da reclamante do teor do despacho supra referido, cf. fls. 77 dos autos.
K). Em 05/01/2011 o Chefe do Serviço de Finanças da Maia profere o seguinte despacho: "Em virtude de ter decorrido o prazo de 10 dias da notificação ao mandatário do executado, do despacho do Chefe de Finanças que recaiu sobre a sua Reclamação dos actos do órgão de execução fiscal, sem que nada trouxesse de novo aos autos, remeta-se o processo ao Tribunal em cumprimento com o determinado no art. 278º do CPPT", cf. fls. 79 dos autos.
L). Em 13/01/2011, deu entrada neste TAF a P.I. da presente reclamação, cf. fls.
89 dos autos.
Foram dispensados os vistos dos Exmos. Adjuntos, atento o carácter urgente do processo.
A questão objecto do presente recurso consiste em saber se o acto de compensação da dívida exequenda efectuado pela Administração Tributária na pendência de impugnação, e após a garantia prestada ter caducado, padece de ilegalidade por violação do princípio da boa fé.
Alega a recorrente que a Administração Tributária na prática do acto de compensação reclamado cumpriu o legalmente preceituado, não violando o princípio da boa fé na medida em que não violou a confiança da reclamante na sua actuação.
Pois sabendo a reclamante que a garantia antes prestada havia caducado, poderia a qualquer momento ocorrer um facto extintivo da prestação tributária em dívida, como seja a compensação efectuada.
Mais alega que quando a Administração Tributária actua com poderes vinculados o respectivo acto será legal ou ilegal consoante respeite ou não o quadro rigorosamente desenhado na lei, e este foi no caso em concreto respeitado.
II. Apreciando e decidindo:
O princípio da boa fé está consagrado no artº 59º, nº 2 da Lei Geral Tributária que pressupõe por parte da administração tributária um dever de actuação segundo a boa fé.
A presunção de actuação de boa fé é corolário daquele dever de actuação segundo o princípio da boa fé, que é constitucionalmente imposto a toda a Administração, no n.º 2 do art . 266.° da C.R.P (Dispõe este normativo que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.) .
Como referem Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, na sua Lei Geral Tributária Anotada, 3ª edição, pag. 278 esta exigência tem um conteúdo de carácter ético, impondo aos intervenientes no procedimento tributário que actuem com lealdade e sinceridade recíprocas no decurso do procedimento tributário, abstendo-se de actuações que possam enganar o outro interveniente, ou ocultando-lhe elementos que possam ter proveito para a defesa das suas posições (Sublinhado nosso.) .
Em sintonia com o preceituado no art. 59.° da Lei Geral Tributária o artº. 48 do
Código de Procedimento e Processo Tributário estabelece que a administração tributária esclarecerá os contribuintes e outros obrigados tributários sobre a necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições e a prática de quaisquer outros actos necessários ao exercício dos seus direitos, incluindo a correcção dos erros ou omissões manifestas que se observem.
Ora a violação pela administração tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de actuação segundo as regras da boa fé, pode consistir em vício autónomo de violação de lei.
Com efeito a relevância deste princípio não se esgota nos actos praticados no exercício de poderes discricionários, tendo vindo a ser colocada a da possibilidade da sua aplicação em caso de actos praticados no exercício de poderes vinculados.
É certo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, vinha, em geral, sustentando essa impossibilidade, com o argumento de que, quando estão em causa poderes vinculados, o princípio da legalidade se sobrepõe a quaisquer outros princípios, que, por isso, só poderão gerar vício autónomo de violação de lei no domínio do exercício de poderes discricionários. (Cf. ob. citada, págs. 249 e 250.)
E é nesse pendor que a recorrente Fazenda Pública argumenta que actuou com poderes vinculados e com respeito pelo princípio da legalidade.
Porém, sublinham Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada, 3ª edição, pag. 250 que «desde logo, terá de se constatar que o texto do art. 266.° da C.R.P. não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade».
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros referem na sua Constituição da República Anotada, tomo III pag. 575, que o princípio permite afastar soluções legais expressas que conduzam, em concreto, a uma violação da boa fé.
Mas será essa a hipótese que se verifica no caso em análise?
Entendemos que não como, aliás, demonstra a recorrente nas suas alegações.
Com efeito na densificação do referido princípio da actividade administrativa relevam sobretudo dois subprincípios concretizadores da boa fé: o princípio da primazia da materialidade subjacente e o princípio da tutela da confiança (vide, neste sentido, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição, pag. 221).
Dos dois subprincípios citados é o princípio da tutela da confiança, que adquire especial relevância no caso subjudice.
Visa o mesmo salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem (Sublinhado nosso.). É a isto que o artº 6º A, 2 a) do CPA se refere quando afirma que se deve ponderar «a confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa» - ob. citada, fls. 222.
Por outro lado a tutela da confiança pressupõe a verificação de diversas circunstâncias: «primeiro uma actuação de um sujeito de direito que crie a confiança, quer na manutenção de uma situação jurídica, quer na adopção de outra conduta; segunda, uma situação de confiança justificada do destinatário da actuação de outrem (…..); terceiro, a efectivação de um investimento de confiança, isto é, o desenvolvimento de acções ou omissões, que podem não ter tradução patrimonial, na base da situação de confiança; quarto o nexo de causalidade entre a actuação geradora de confiança e a situação de confiança, por um lado e entre a situação de confiança e o investimento de confiança, por outro; quinto a frustração da confiança por parte do sujeito jurídico que a criou»- cf. ob. citada, fls. 222 e 223.
É necessário que se verifiquem os pressupostos acima enunciados para que ocorra uma situação de tutela de confiança.
Ora são essas circunstâncias que se entende que, não se verificam, globalmente, no caso presente.
Como bem sublinha a recorrente a administração tributária não violou a confiança da reclamante na sua actuação.
Pois sabendo aquela que a garantia antes prestada havia caducado, saberia ou deveria saber que, a qualquer momento, poderia ocorrer um facto extintivo da prestação tributária em dívida, como seja a compensação efectuada.
Não há, com efeito, qualquer nexo de causalidade entre a actuação administrativa e a presumível situação de confiança – convicção por parte da reclamante de que teria que ser notificada para renovar a garantia no termo do respectivo prazo.
Convicção essa que não está, atentas as circunstâncias concretas do caso, devidamente demonstrada nos autos.
Não releva, por outro lado, o argumento de que o artº 183°-A do CPPT permitia ao interessado obter a declaração de caducidade de garantia, sem perder o efeito suspensivo da execução, se a reclamação graciosa em que fosse discutida a legalidade da liquidação não fosse decidida no prazo de um ano ou o processo de impugnação judicial em que fosse discutida essa legalidade não fosse decidido, em 1ª instância, no prazo de três anos, ou seja, «mesmo sem garantia o processo de execução fiscal continuaria suspenso até ao momento em que estaria se a garantia se mantivesse, que é, como se refere no art. 169º, n° 1, deste Código, o da «decisão do pleito» (cf. Jorge de Sousa, ob. cit., vol. II, anotação 3 ao art. 183º-A, pp. 249/250).
Em primeiro lugar porque, como resulta da matéria de facto apurada a garantia foi prestada em 18.07.2006, e era válida, apenas, até 18.07.2009.
A garantia não caducou, pois, em resultado da inércia da Administração Tributária na tramitação dos meios graciosos ou contenciosos, mas sim pelo decurso do prazo da sua validade, o que era do conhecimento da recorrida.
Depois porque o artº 183º-A do Código de Procedimento e Processo Tributário foi revogado pela Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro.
E, pese embora tenha sido aditado pela redacção da Lei 40/2008, que entrou em vigor em 01.01.2009, nesta última redacção previa-se, apenas, a caducidade da garantia no caso de a reclamação graciosa não estar decidida no prazo de um ano a contar da data da sua interposição, não se prevendo tal efeito em caso de demora na decisão de impugnação judicial, recurso judicial ou oposição.
Acresce que o próprio reconhecimento da caducidade, se ocorresse, que não ocorreu, não era oficioso e havia de ser requerido pelo interessado ao tribunal ou ao órgão com competência para decidir a reclamação (artº 183-A, nº 4 do Código de Procedimento e Processo Tributário na redacção da Lei nº 15/2001 e 183-A, nº 3, na redacção do artº 1º Lei n.º 40/2008, de 11/08).
Sendo também que resulta do artº 169º nº 4 do Código de Procedimento e Processo Tributário que o executado que não der conhecimento da existência de processo que justifique a suspensão da execução responderá pelas custas relativas ao processado posterior à penhora, o que inculca também um dever de cooperação do interessado para obter a suspensão da execução.
Irreleva, por outro lado, a circunstância de a Administração Fiscal ter ordenado, posteriormente (em 14.12.2010- cf. al. j) do probatório) a notificação da executada para no prazo de 10 dias, «apresentar nova garantia de acordo com o determinado no art. 169º do CPPT, sob pena de não o fazendo se tornar definitiva a aplicação da compensação»
Trata-se de um acto do Chefe do Serviço de Finanças, de duvidosa base legal (Como bem se sublinha na decisão recorrida não há compensações “definitivas” ou “provisórias”.), muito posterior à própria compensação (que já estava efectuada há quase seis meses - desde 06.07.2010, cf. ponto G do probatório), compensação essa que, por sua vez, foi efectuada, cerca de um ano depois de ter ocorrido o prazo de validade da garantia.
Não é, pois, da prática desse acto, muito posterior, que se pode concluir da existência de uma actuação da Administração Fiscal geradora de uma situação de confiança, no caso a convicção por parte da reclamante de que teria que ser notificada para renovar a garantia no termo do respectivo prazo.
Para que ocorresse o nexo de causalidade entre a actuação administrativa e a situação de confiança e, por outro lado a frustração da confiança, seria necessário que se demonstrasse a existência de uma actuação da administração tributária anterior ao próprio acto de compensação posto em crise e geradora de tal confiança.
Como se sublinha no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.06.2003, recurso 1188/02 (1ª Secção) para que se possa, válida e relevantemente, invocar o princípio da confiança é necessário «que o interessado em causa não o pretenda alicerçar apenas, na sua mera convicção psicológica, antes se impondo a enunciação de sinais exteriores produzidos pela Administração suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde seja razoável ancorar a invocada confiança».
Enunciação e demonstração essas que, como resulta do probatório, não foram efectuadas.
Daí que se entenda que o acto de compensação da dívida exequenda operada pela Administração Tributária, ao abrigo do disposto no art. 89º do CPPT, na pendência de impugnação, após a garantia prestada ter caducado (mas sem que, tivesse anteriormente sido ordenada a notificação da recorrente para, querendo, prestar nova garantia), não padece de ilegalidade por violação do princípio da boa fé, na sua vertente da tutela da confiança, pelo que procedem, em consequência, as conclusões do recurso.
DECISÃO
Nestes termos acorda-se em dar provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e julga-se improcedente a reclamação, com a consequente manutenção na ordem jurídica do acto de compensação efectuado.
Custas pela reclamante em 1ª instância.
Lisboa, 21 de Setembro de 2011. – Pedro Delgado (relator) – Ascensão LopesCasimiro Gonçalves (Vencido, nos termos da fundamentação que consta do Acórdão de 6 de Julho de 2011, no processo nº 589/11, do qual fui Relator.)