Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0645/17.0BELLE
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
NULIDADE INSUPRÍVEL
ARGUIDO
Sumário:I - O requisito de "descrição sumária dos factos" imposta pelo artº.79, nº.1, al. b), do RGIT deve ser interpretado à luz das garantias constitucionais do direito de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da CRP e julgar-se observado sempre que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima é suficiente para que o arguido compreenda os factos que lhe são imputados e, com base nessa percepção, seja capaz de adequadamente se defender.
II - Porque o mesmo requisito (referido em I.) tem que ser interpretado em correlação necessária com o tipo legal que prevê e pune a infracção imputada ao arguido, deve julgar-se o mesmo observado se da descrição sumária constam os factos essenciais que integram o tipo de ilícito em causa.
III - O facto típico e ilícito que preenche a previsão normativa constante do artigo 5, al. b), da Lei 25/2006, de 30/06, consiste na falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes, sujeitas àquele pagamento.
IV - O regime consagrado no artigo 10.º da Lei 25/2006, de 30-6 visa exclusivamente regular o procedimento nas situações de impossibilidade de identificação do condutor, pelo que, mesmo que não resulte da decisão de aplicação da coima que aquele regime foi observado, se o arguido no recurso da decisão se assume expressamente como proprietário e condutor do veículo na data da prática da infracções e nessa qualidade se defende da acusação que lhe é dirigida, não existe fundamento para que se aquela decisão seja julgada nula ao abrigo do preceituado no artigo 79.º do RGIT.
V - Nas situações em que a coima única foi fixada no mínimo legal, não há que relevar como nulidade insuprível da decisão administrativa de aplicação da coima o facto de não serem indicadas as coimas parcelares aplicadas a cada uma das infracções e as circunstâncias ponderadas na respectiva fixação, uma vez que, nessa situação, as referidas omissões são insusceptíveis de contender com o direito de defesa do arguido.
Nº Convencional:JSTA000P26484
Nº do Documento:SA2202010140645/17
Data de Entrada:07/08/2019
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé que julgou procedente o recurso de contra-ordenação deduzido por A……………….. - da decisão de aplicação da coima única no valor de no valor de €5.942,88, proferida no processo n.º 11472017060000007104, com fundamento na falta de pagamento de taxas de portagem -, recorre para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Admitido o recurso e apresentada a respectiva motivação, extraem-se desta as conclusões que aqui reproduzimos:

«I) Decidiu o Meritíssimo Juiz “a quo” pela procedência dos autos de Recurso, por considerar que para que se cumpra a descrição sumária dos factos na decisão de aplicação da coima terá de haver referência à qualidade do arguido que leva à sua configuração como agente da contraordenação: condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo;

II) O Mmº Juiz “a quo” considerou relevante que a infração imputada ao Arguido não se basta com uma pura omissão de um dever de agir (o pagamento da taxa de portagem), contendo na sua descrição típica, para além disso, um elemento adicional (a qualidade do responsável: condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo) que, ao constituir pressuposto da punição por ser um elemento objectivo do tipo, tem de estar suportado em factos descritos na decisão de aplicação da coima;

III) Salvo melhor e douta opinião, não pode a FP concordar com tal conclusão;

IV) Com efeito, afigura-se-nos que a sentença recorrida afirma um entendimento incorreto no que concerne à invocada nulidade insuprível por falta do requisito enunciado no art.º 79.º, n.º 1, al. b) do RGIT;

V) Desde logo, porque as exigências daquele preceito deverão considerar-se satisfeitas quando as referências feitas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa;

VI) E, depois, porque consideramos que a identificação do agente não é um fato essencial que integre o tipo de ilícito em causa;

VII) Na verdade, parece-nos que a contraordenação sub judice descreve um fato que pode ser levado a cabo por qualquer pessoa ou agente, não se tratando de um “delictum proprium” em que a lei exige a intervenção de pessoas de um certo círculo no dizer de Eduardo Correia;

VIII) Deste modo, observado o estabelecido no artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, está descrita nas decisões de aplicação de coima a factualidade das contraordenações imputadas à ora Arguida, em termos que lhe permitiram a cabal defesa dos seus direitos, entende-se que as mesmas não padecem de qualquer nulidade contrariamente ao julgado;

IX) Aliás, como em hipótese semelhante decidiu o STA (Proc. n.º 0207/17.1BEVIS0189/18,) através do seu Acórdão de 23/01/2019, que mandou baixar os autos para apuramento da autoria da contraordenação.

Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.».

1.3. O Recorrido contra-alegou defendendo a improcedência do recurso por ser nula a coima por falta dos requisitos essenciais quanto à qualidade do arguido.

1.4. O Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, notificado da interposição do recurso, veio aos autos defender a manutenção do julgado de 1ª instância tendo por referências as seguintes premissas:

«I. A questão a decidir é a de saber se a sentença de 29/04/2019 enferma de erro de julgamento por considerar que a decisão de fixação de coima proferida no processo de Contra-Ordenação nº 1147201706000007104 não contém a descrição sumária dos factos exigida pelo art. 79º nº 1 al. b) RGIT porque não imputou ao arguido o preenchimento do tipo legal ou seja, não refere a que título ou em que qualidade (art. 10º nº 3 da Lei 25/2006, 30/06) o arguido praticou a contra-ordenação prevista no nº 5 nº 1 al. a) Lei 25/06 já que a norma do nº 1 do art. 5º não contém todos os elementos do tipo contra-ordenacional, faltando-lhe a identificação do agente, isto é, da pessoa que adopta a conduta aí descrita, devendo este elemento objectivo do tipo ser encontrado no referido artigo 10º.

II. “Em qualquer tipo de ilícito objectivo é possível identificar os seguintes conjuntos de elementos: os que dizem respeito ao autor; os relativos à conduta; e os relativos ao bem jurídico” (Prof. Jorge Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág. 278 e 287, Coimbra Editora 2004);

III. No ilícito contra-ordenacional em causa os elementos típicos do autor estão previstos no art. 10º da Lei 25/2006, 30/06; os elementos respeitantes à conduta susceptível de consubstanciar o ilícito contraordenacional encontram-se no art. 5º da mesma Lei; e a punição ou coima aplicável é determinada de acordo com as regras constantes do art. 7º do mesmo diploma legal;

IV. Autor da conduta qualificada como contra-ordenação no art. 5º da Lei 25/2006, 30/06, tanto poderá ser o condutor do veículo, como o seu proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo;

V. Tudo depende do prévio e correcto cumprimento, por parte das concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas electrónicos de cobrança de portagens, consoante os casos, da notificação prevista no nº 1 do art. 10º da Lei 25/2006, 30/06;

VI. Mas esta notificação não integra a decisão que aplica a coima;

VII. A qualidade do agente é pois, quanto a nós, um elemento essencial do tipo.

VIII. A decisão que aplicou a coima é totalmente omissa quanto à identificação do agente da infracção, isto é, não contém uma referência ainda que sumária relativa aos elementos típicos do autor da prática da contra-ordenação tal como vem estabelecido no art. 10º nº 3 da Lei 25/2006, 30/06 e que constitui pressuposto da punição.

IX. A decisão baseia-se na presunção de que o arguido é o responsável pela prática das contra-ordenações mas omite os factos que fundamentam tal presunção.

X. Perante a inexistência de elementos factuais relativos à conduta humana que integrem o elemento objectivo das infracções cuja prática lhe é atribuída o arguido desconhece a que título lhe foi aplicada a coima e vê-se impedido de exercer cabalmente o seu direito de defesa, direito esse consagrado no art. 32º nº 10 CRP, já que não defender-se simultaneamente e de forma adequada na qualidade de condutor, de proprietário do veículo, de adquirente com reserva de propriedade, de usufrutuário, de locatário em regime de locação financeira ou de detentor do veículo.

XI. Em consequência, a decisão que aplicou a coima está ferida de nulidade insuprível, conforme decorre do regime dos arts. 79º nº 1 al. b) e 63º nº 1 al. d) RGIT.

XII. O acórdão proferido por esse Supremo Tribunal Administrativo no processo nº 0217/17.1BEVIS0189/18 salvo melhor opinião não se reporta a situação idêntica respeitando, outrossim, ao modo como o não pagamento se concretiza».

1.4 Apresentados os autos neste Supremo Tribunal Administrativo ao Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, em resumo, porque:

«A questão que vem suscitada no recurso é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao dar como verificada a nulidade insuprível da decisão de aplicação de coima, por falta de descrição sumária dos factos imputados à arguida, nos termos do artigo 79º, nº1, alínea b) do RGIT, em conjugação com o disposto no artigo 63º, nº1, alínea d), do RGIT.

Acompanha-se a resposta do Ministério Publico proferida em 1ª instância, que aqui se dá por reproduzida.

Importa ainda referir que sem prejuízo da aplicação, em concurso e cúmulo material, de uma coima única, impõe-se a especificação e discriminação das coimas parcelares aplicadas a cada uma das infrações imputadas ao arguido (decorre dos autos que inicialmente foi proferida uma decisão em cada um dos processos apensos e aplicadas coimas parcelares, mas tais decisões foram anuladas pelo tribunal “a quo”. Ainda que se nos afigure que tal facto não constitui fundamento para a anulação das decisões, mas quando muito a devolução dos autos à entidade administrativa para aplicação da coima única, certo que é no caso concreto tal decisão não foi objeto de impugnação, pelo que sempre se impõe que da nova decisão de aplicação de coima conste a aplicação das coimas parcelares e só depois a coima única).

Por último importa referir que a descrição sumária e sucinta dos factos se compadece com o que vem alegado nos artigos 6º e 8º das alegações de recurso da FP, mas certo é que esses factos não constam da decisão de aplicação de coima sindicada, que se limitou a fazer referência ao veículo, local de transposição da barreira de portagem e valor da taxa de portagem. Se estes elementos são bastantes para fundamentar a cobrança das taxas, já os mesmos são insuficientes para alicerçar a responsabilidade contraordenacional imputada ao arguido e fundamentar a aplicação de uma coima. Entendemos, assim, que se impõe a confirmação do despacho/sentença, julgando-se o recurso improcedente.

1.5. Cumpre, pois, decidir, o que desde já se faz em conferência.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Esta delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação da Recorrente que o objecto do presente recurso se circunscreve a uma única questão, qual seja, a de saber se, nos casos previstos e punidos pela Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, a “descrição sumária dos factos na decisão de aplicação da coima”, a que se reporta a al. b) do artigo 79.º do RGIT tem necessariamente que conter, por força das disposições conjugadas dos artigos 5.º, n.º 1, al. a) e 10.º, n.ºs 1 e 3, uma referência “à qualidade do arguido”.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. A sentença efectuou o julgamento da matéria de facto nos termos que ora nos limitamos a transcrever:

A) Em 16-10-2017, foram apensados os processos de Contra-ordenação n.ºs 11472014060000015760, 11472014060000015743, 11472014060000015719, 11472014060000015697, 11472014060000015670, 11472014060000015786, 11472014060000015646, 11472014060000015778, 11472014060000015751, 11472014060000015727, 11472014060000015689, 11472014060000015794, 11472014060000015735, 11472014060000015662, 11472014060000015700, 11472014060000015654, e criado o processo de Contra-ordenação n.º 11472017060000007104, em nome de A………………….. (cfr. fls. 10 a 11 dos autos no SITAF, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

B) Em 16-10-2017, foi proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Vila do Bispo, no âmbito do processo de Contra-ordenação n.º 11472017060000007104, decisão de aplicação de uma coima única ao arguido, ora Recorrente, no montante de €5.942,88, acrescida de €76,50 de custas processuais (cfr. fls. 17 a 20 dos autos no SITAF, ibidem);

C) Consta da decisão mencionada na alínea antecedente, a seguinte descrição sumária dos factos: “(…)

(…)”(cfr. fls. 17 a 20 dos autos no SITAF, ibidem);

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. A decisão recorrida julgou procedente o recurso de contra-ordenação interposto pelo ora Recorrido, declarando nula a decisão de aplicação da coima proferida pelo Chefe do Serviço de Finanças de Vila do Bispo no processo de contra-ordenação n.º 11472017060000007104.

O julgado tem por fundamento, em síntese nossa, o entendimento de que, se a descrição sumária dos actos não inclui uma referência “directa ou indirecta, expressa ou por remissão à qualidade do arguido” - condutor, proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade, locatário ou detentor do veículo -, “não pode ter-se como adequadamente cumprido, na decisão de aplicação da coima recorrida, o requisito da descrição sumária dos factos a que alude a alínea b), do n.º 1, do artigo 79.º do RGIT, enfermando a mesma, assim, da nulidade insuprível prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 63.º, do mesmo diploma legal”.

Como resulta das conclusões do recurso jurisdicional, a Fazenda Pública discorda do decidido, defendendo que a omissão da indicação da qualidade do responsável não constitui nulidade insuprível no processo e, bem assim, que o Tribunal a quo, ao julgar da forma descrita, violou o preceituado no artigo 79.º nº 1, al. b) do RGIT, invocando em abono da sua tese o decidido por este Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 23-1-2019, processo nº 0207/17.1BEVIS.

Quer o Recorrido e o Exmo. Magistrado do Ministério Público em 1ª instância, quer o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, defendem a improcedência do recurso.

Quanto aos dois primeiros não invocam nada de novo relativamente ao suporte jurídico vertido na sentença recorrida, identificando no entanto a dissemelhança da realidade fáctico-jurídica dos presentes autos relativamente à que é colocada no acórdão invocado nas alegações da Recorrente.

No parecer que emitiu, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, para além de subscrever integralmente a argumentação da Exma. Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, salientou outros dois aspectos que, em seu entender, também conduzem à manutenção do decidido: por um lado, no caso de concurso de contra-ordenações, da decisão de aplicação de uma coima única, têm sempre de constar as coimas parcelares aplicadas a cada infracção, o que não se verifica no caso; por outro, em conformidade com o preceituado no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, o arguido tem sempre de ser previamente notificado para identificar o condutor do veículo na data da infracção, o que também não acontece no caso concreto.

Vejamos, pois, o que nos oferece dizer.

A questão nuclear suscitada neste recurso – identificada no ponto 2 do presente acórdão – tem sido repetidamente apreciada por este Supremo Tribunal Administrativo. E se é verdade que a realidade factual apreciada no processo nº 207/17.1BEVIS, de 23-1-2019 se reporta, nas palavras da Exma. Magistrada do Ministério Público em 1ª instância, ao “modo como o não pagamento se concretiza”, e não à questão da “qualidade do arguido”, certo é que, quer nesse acórdão, quer nos demais que têm julgado a questão da nulidade das decisões de aplicação da coima por infracção ao artigo 5.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 25/2006, (e/ou artigo 6.º do mesmo diploma, de que são exemplo os acórdãos do STA de 17-10-2018, proc. n.º 1004/17.0BEPRT; de 5-5-2020, proc. n.º 1070/18.BEALM; de 16-9-2020, proc. n.º 470/18BEALM; de 14-12-2016, proc. n.º 1270/15 –in www.dgsi.pt), se elege sempre o mesmo enquadramento jurídico deste tipo legal de contra-ordenação. Ou seja, nesses acórdãos, o que importa sobremaneira registar, são uniformemente indicados os elementos que necessariamente devem constar da decisão de aplicação da coima enquanto elementos do tipo legal da concreta infracção.

Ora, é precisamente esse mesmo quadro legal, que, de resto, na sentença recorrida foi parcialmente convocado, ainda que por reporte a um acórdão relativo a outro tipo de infracção (acórdão proferido no processo n.º 593/09, de 18-11-2009), que nos determina a concluir que o julgado se não pode manter.

Explicitemos.

Nos termos do artigo 63.º, n.º 1 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante, RGIT) constitui nulidade insuprível do processo de contra-ordenação fiscal a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação de coima, nulidade esta que é de conhecimento oficioso. Sendo que, por força do preceituado no artigo 79.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, a decisão que aplica a coima deve conter “A descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas”.

Como ressalta da sentença recorrida, foram estes imperativos legais que determinaram a Meritíssima Juíza a quo, oficiosamente, a apreciar a decisão da coima sindicada nos autos e a concluir que dessa descrição não constavam todos os elementos do tipo, mais concretamente, que da descrição sumária não constava a qualidade em que a infracção era imputada ao arguido e, consequentemente, a anular a decisão administrativa.

Já o referimos antes, sem razão.

Como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 17-10-2018, proferido no processo n.º 1004/17.0BEPRT, para o que ora nos importa relevar, a «descrição sumária dos factos» imposta pela alínea b) do n.º 1 do art. 79.º do RGIT e, bem assim, os demais requisitos da decisão de aplicação da coima enumerados nesse número «devem ser entendidos como visando assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão» (JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, Áreas Editora, 2010, 4.ª edição, anotação 1 ao art. 79.º, pág. 517.). Por isso, essas exigências «deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos» (Ibidem.), assim assegurando o direito de defesa ao arguido [cfr. art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa].

Quanto à descrição sumária dos factos na decisão administrativa, disse GERMANO MARQUES DA SILVA, em intervenção no Centro de Estudos Judiciários: «em resposta à questão de «qual o limite para a descrição sumária dos factos enquanto garantia de defesa» a minha resposta é também sumária: deve descrever o facto nos seus elementos essenciais para que o destinatário possa saber o que lhe é imputado e de que é que tem de se defender sem necessidade de consultar outros elementos em posse da administração» (Cfr. Contra-ordenações Tributárias 2016 [Em linha], Centro de Estudos Judiciários, 2016, pág. 20, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_contraordenacoes_t_2016.pdf.).

(…)

Salvo o devido respeito, bastando-se a lei com uma descrição sumária dos factos, afigura-se-nos que esta exigência se há-de considerar satisfeita quando, como no caso sub judice, o elemento essencial do tipo – a falta de pagamento da taxa de portagem pela circulação de veículo automóvel em infra-estruturas rodoviárias, designadamente auto-estradas e pontes – está descrito na decisão administrativa; e está, não apenas por referência à norma que prevê a contra-ordenação, o que não seria suficiente, mas mediante a descrição detalhada do comportamento: falta de pagamento de taxas de portagem referente ao veículo identificado pela respectiva matrícula e com referência aos trajectos expressamente indicados, com indicação dos locais, datas e horas a que se verificaram as infracções e aos montantes das respectivas taxas (…)».

Contrariamente ao que foi decidido em 1ª instância, como este Supremo Tribunal Administrativo têm deixado vincado, os campos de aplicação e, consequentemente, as imposições emergentes dos artigos 5.º, 7.º e 10.º da Lei n.º 25/2006 são distintos: no artigo 5.º identifica-se o facto típico e ilícito consubstanciador das contra-ordenações em causa; no artigo 7.º estão estabelecidos os mecanismos de determinação da coima aplicável e das custas processuais; no artigo 10.º está previsto o regime jurídico aplicável às situações de impossibilidade de identificação do condutor do veículo no momento da prática da contra-ordenação, como linearmente resulta do n.º 1 desse mesmo normativo.

Em suma, a “qualidade do responsável” a quem é imputada a prática das contra-ordenações consagrada no artigo 10.º, n.º 3 da Lei 25/2006 - condutor, proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira ou detentor do veículo -, não constitui elemento objectivo do tipo legal da infracção em causa, tal como este está previsto no artigo 5.º do diploma citado.

E, nessa medida, a não indicação “directa, indirecta, expressa ou implícita (como se afirmou na sentença recorrida) dessa qualidade nas decisões de aplicação de coima não tem como consequência a nulidade insuprível da decisão, nos termos dos artigos 63, nº.1, al. d) e 79.º nº.1, al. b) do RGIT. Aliás, se bem atentarmos no teor integral do documento cuja transcrição parcial surge na alínea C) dos factos provados, facilmente concluímos que o preceituado no artigo 10.º da Lei n.º 25/2006 aí foi considerado, já que consta expressamente da decisão de aplicação da coima que a responsabilidade do arguido “deriva do Art. 10º da lei Nº 25/2006, de 30/6”. E se também atentarmos no teor da petição do recurso apresentado pelo ora Recorrido (arguido), também verificamos, porque ele confessa, que foi na dupla qualidade de proprietário e de condutor que voluntariamente se apresentou a pagar as coimas aplicadas.

Acresce que, como a sentença recorrida salientou e o acórdão deste Supremo que deixámos parcialmente transcrito realça firmemente, o que é essencial para aferir da nulidade de uma decisão administrativa de aplicação de coima como a que se aprecia, é o quadro ou amplitude de exercício do direito de defesa que essa decisão faculta ao arguido. Significa isto que se os factos que integram a descrição sumária permitem ao arguido defender-se cabalmente, então a sanção de nulidade, imposta pela conjugação dos artigos 63.º e 79.º al. b) do RGIT, deixa de fazer sentido, já que esse regime foi construído precisamente para assegurar essa defesa constitucionalmente garantida pelo n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

No caso concreto, para além de constar da decisão a descrição sumária dos factos que preenchem o tipo de ilícito em questão, basta ler o conteúdo dos documentos para que a factualidade apurada remete e, muito especialmente, o requerimento de interposição do recurso apresentado pelo arguido, para forçosamente concluirmos que este compreendeu bem porque está identificado na decisão recorrida como sendo o arguido e lhe está imputada a prática de infracções aí descritas.

Com efeito, nesse requerimento, o arguido reconhece expressamente ser verdade que no período de tempo em que ocorreram as infracções era já o proprietário do veículo, que efectivamente procedeu à passagem nas portagens sem proceder ao pagamento destas e que tudo se passara apenas por manifesto lapso quanto à manutenção do mecanismo de adesão ao pagamento por “via verde - que, alegadamente, o veículo já possuía no momento da transmissão da propriedade para o seu património (cfr., em especial, artigos 11.º a 25.º do requerimento de recurso da decisão de aplicação da coima). Mais frisa que, logo que se apercebeu desse lapso, procedeu voluntariamente ao pagamento do valor das portagens que não havia pago logo que para esse efeito foi notificado.

É neste contexto que devem ser identificadas as questões que o arguido coloca ao Tribunal e em que funda o seu inconformismo com a decisão de aplicação da coima, que se prendem, por um lado, com a invocação de nulidades do procedimento (falta de notificação para audição prévia e para apresentação de defesa – artigo 7.º da petição de recurso) e, por outro, com uma alegada falta de prova dos pressupostos do tipo, da ilicitude e da culpa e, ainda, com a ausência de justificação legal para a aplicação de coima no montante em que foi fixada.

Foi para ver apreciadas essas questões e tendo em vista a sua defesa que arrolou testemunhas e juntou documento aos autos.

Portanto, não podem restar dúvidas de que a descrição sumária dos factos que consta da decisão administrativa facultou ao arguido os elementos necessários à sua defesa, que bem compreendeu e exerceu.

Em conclusão, não se vislumbra qualquer razão para se divergir do entendimento reiterado por este Supremo Tribunal quer quanto aos elementos do tipo legal de infracção que devem constar da decisão administrativa, quer quanto aos elementos necessários que também deve conter para garantir o direito de defesa do arguido.

Assim sendo, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a decisão administrativa não padece da nulidade prevista no artigo 79.º, n.º 1, al. b) do RGIT.

3.2.2. Como supra deixámos relevado, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal também arguiu a nulidade da decisão administrativa por nela não constarem as coimas parcelares, o que, em seu entender, não podia deixar de ter sido observado, mesmo nas situações, como a presente, de a decisão de aplicação da coima única constituir o cumprimento ou execução de sentença anteriormente proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé.

Ou seja, para além de concordar com a sentença recorrida e pugnar pela sua manutenção na ordem jurídica pelos fundamentos aduzidos pela Exma. Magistrada do Ministério de 1ª instância, invoca ainda um segundo fundamento que, só por si, seria suficiente para suportar a anulação da decisão de aplicação da coima.

No parecer daquele Magistrado não é referida a norma legal cujo incumprimento ou omissão determina a anulação da decisão de aplicação de coima com aquele fundamento.

Afigura-se-nos, no entanto, que só poderia ancorar tal pretensão no artigo 63.º, n.º 1, al. d) conjugada com a alínea c) do artigo 79.º, ambos preceitos do RGIT, entendimento e enquadramento que repetidamente vem sustentado pelo Ministério Público neste Tribunal em processos quase idênticos e a que tem sido dada sistematicamente resposta negativa.

Na verdade, vem sendo repetidamente afirmado que nas situações, como a presente, em que na decisão administrativa não são indicadas as coimas parcelares respeitantes a cada uma das infracções praticadas, sendo a coima única fixada no mínimo legal, perde relevância jurídica a falta de indicação autónoma dos elementos considerados na fixação da coima, que, por essa razão, não é sancionada com nulidade, constituindo mera irregularidade nos termos dos artigos 118.º n.º 1 e 123.º do Código de Processo Penal, uma vez que este já não pode ver diminuído o montante da coima que lhe foi aplicada (cfr. neste sentido, os acórdãos de 12 de Dezembro de 2006, processo n.º 1045/06; de 6 de Novembro de 2008, processo n.º 619/08 e de 14 de Dezembro de 2016, processo n.º 1270/15, disponíveis in www.dgsi.pt).

Diga-se por fim que, independentemente da discussão jurídica que se pretenda desenvolver quanto à relevância daquela irregularidade, a resposta que demos à questão suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto é mesmo a única legalmente admissível no caso concreto. Quer porque, como bem salientou no seu parecer, a decisão de aplicação da coima única posta em crise constitui já a execução de anterior sentença transitada em julgado em que ficou exclusivamente decidido que as coimas que inicialmente haviam sido individualmente aplicadas eram ilegais e se ordenou que fosse realizado o cúmulo determinado pelo artigo 25.º do RGIT. Quer porque o arguido foi expressamente notificado das coimas parcelares aquando da notificação das 16 decisões que primitivamente lhe foram aplicadas, ou seja, ficou ciente do valor de cada uma das coimas aplicada a cada infracção.

Há, pois, que julgar procedente o recurso jurisdicional e ordenar a baixa dos autos à 1ª instância, para serem decididas as questões colocadas pelo arguido, se necessário, depois de realizadas as diligências de prova por si indicadas.

4. Decisão

Assim, os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, concedendo provimento ao recurso, acordam em revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, a fim de aí prosseguirem com o conhecimento das questões suscitadas no recurso, se a tal nada mais obstar.

Sem custas - artigos 94.º, n.º 3 e 4 do RGCO e 66.º do RGIT.

Registe e notifique.

Lisboa, 14 de Outubro de 2020. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Joaquim Manuel Charneca Condesso.