Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2033/22.7PFLSB.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: MEDIDAS DE CLEMÊNCIA
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA IGUALDADE E DA PROPORCIONALIDADE
APLICAÇÃO GERAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I- As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade.
II- Atualmente, a amnistia ou o perdão genérico não podem ser considerados um mero ato de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito.
III- Em face das circunstâncias que ditaram a emissão da amnistia (e perdão de penas) aqui em questão [a realização das JMJ], não podem considerar-se postos em causa os mencionados princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade: a norma aplica-se a todos os que se encontrem da situação visada (mostrando-se, por isso, de aplicação geral) e é, nos termos em que se deixou exposto, de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de restringir a aplicação das medidas de graça a um grupo ou categoria de destinatários, desde que para o efeito exista uma justificação racional atendível.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. Relatório
O arguido AA, filho de BB e de CC, nascido a ........1975, natural de ..., solteiro, desempregado, portador do cartão de cidadão n.º ..., residente na ..., em Lisboa, foi julgado no processo comum singular nº 2033/22.7PFLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 13, tendo sido condenado, por sentença datada de 28.09.2023, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01 e 121.º do Código da Estrada, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz o valor de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros).
Descontente com a decisão, dela veio o arguido interpor recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
“A- O arguido, foi condenado por ter praticado crime de condução sem habilitação legal, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, 121.º, n.º 1 do Código da Estrada, 14.º, n.º 1, e 26.º, primeira parte, todos do Código Penal, por factos praticados no dia 26/10/2022.
B- Uma vez que os factos foram praticados em data anterior a 19 de Junho de 2023, e o tipo legal de crime não se encontra excluído nos termos do artigo 4.º, da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, encontra-se o mesmo abrangido pela amnistia, uma vez que, no entender do ora Recorrente, a limitação em função da idade (30 anos), ínsita no artigo 2.º do referido diploma é materialmente constitucional, devendo, por isso ser desconsiderado o referido normativo, e aplicada a amnistia ao ora arguido/recorrente.
C- Nesse sentido, foi formalmente invocada a inconstitucionalidade material do artigo 2.º n.º 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, por clara violação do artigo 13.º da CRP.
D- Todavia, entendeu o Tribunal “aquo” que não poderia tomar posição sobre a inconstitucionalidade da norma, no que concerne à limitação da idade aos 30 anos, pois, nesse caso estaria a imiscuir-se no poder legislativo. Leia-se, a fundamentação plasmada na sentença recorrida: “pelo que tal alargamento poria em causa toda a intensão do legislador, levando o Tribunal a imiscuir-se no poder legislativo, algo que lhe está, claramente, vedado.” Cfr. Pág. 3 da Sentença recorrida.
E- Ora, entende o Recorrente que o Tribunal “aquopodia e deveria conhecer e declarar a inconstitucionalidade invocada, não o tendo feito, incorre a sentença proferida pelo Tribunal “aquo” em claro erro de julgamento, pois inexiste qualquer norma que impossibilite a apreciação da inconstitucionalidade da norma invocada.
F- Com efeito, e indo direto ao cerne da questão, o artigo 2.º n.º 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, ao impor uma limitação à aplicação da amnistia, em função da idade de um cidadão viola grosseiramente o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da CRP, conforme explicitado em sede de alegações.
G- Recorde-se, que estamos no âmbito do Direito Penal, onde os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos/arguidos, podem ser suspensos, em prol da realização da almejada justiça,
H- Pelo que, o argumento completamente absurdo, referente à idade de inscrição dum evento festivo, não poderá, NUNCA, descriminar cidadãos, com carácter automático, em função da sua idade.
I- Face ao supra exposto, e, com base a toda a matéria exposta em sede de alegações, requer-se seja declarada a inconstitucionalidade material do artigo 2.º n.º 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, por clara violação do artigo 13.º da CRP, no segmento, limitador da aplicação do regime da amnistia aos cidadãos com idade superior a 30 anos, devendo, nessa sequência, considerando que o recorrente é primário, proceder à aplicação da amnistia ao recorrente, tudo com as legais consequências.
Assim, farão, V. exas. a necessária justiça!!
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O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.
O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
“1 – O arguido recorre da douta sentença condenatória, que o condenou, além do mais, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01 e 121.º do Código da Estrada, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num valor total de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), alegando a inconstitucionalidade do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que restringe a aplicabilidade do regime da amnistia e do perdão aí estipulado a jovens entre os 16 e os 30 anos.
2 – Invoca o arguido o “erro de julgamento” da sentença por não ter apreciado a inconstitucionalidade da norma invocada, como “podia e deveria” ter feito.
3 – Todavia, atentando em fls. 2 e 3 da douta sentença, verificamos que assim não é pois que a Mmª Juiz pronunciou-se sobre a questão da inconstitucionalidade apontada em sede de alegações pelo arguido, decidindo pela improcedência do pedido de aplicabilidade ao arguido do regime da amnistia estipulado na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
4 – Cremos que assiste inteira razão ao Tribunal ao decidir como decidiu, acrescentando apenas que sendo a lei da amnistia uma medida que é excecional, de clemência e que não corresponde à efetivação de um direito, não nos parece que haja inconstitucionalidade ao estabelecer uma discriminação positiva, que permita que os jovens acusados (ou em cumprimento de pena por crimes menos graves - e apenas esses) - possam beneficiar desta medida, em detrimento de outros, que não cumpram os mesmos requisitos.
Como tal, julgando o recurso interposto totalmente improcedente V. Ex.as farão a costumada e habitual Justiça.”
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Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apresentou parecer, subscrevendo a posição expressa na 1ª instância, e aditando:
2. Posição do Ministério Público no TRL
Concordamos com o teor da decisão em crise e com a resposta ao recurso apresentada pelo nosso Colega.
Em abono da decisão citamos o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/11/2023, P. 39/07.5TELSB-H.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde podemos ler que “... a norma fundamental da hermenêutica jurídica radicada no art. 9º do Código Civil que incide sobre a interpretação da lei. “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.(...). Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.(...). Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
É nessa lógica que, também neste domínio, têm aplicabilidade as palavras de Manuel de Andrade Cfr. Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, pp. 21 e 26. quando afirmava que interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei.
Interpretar em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva. …
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regula a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos).
Compreende, ainda, o lugar sistemático que compete à norma interpretada no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico, por seu turno, compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito material da mesma ou de idêntica questão, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.
O elemento racional, ou teleológico, consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. …
Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. ... (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2015, relatado por Santos Cabral, no proc. 85/14.2YFLSB, in www.dgsi.pt).”
Aplicando estes parâmetros de interpretação ao caso em apreço e tendo em conta o teor literal das normas, a sua inserção sistemática e a exposição de motivos, …, concluímos que, em matéria criminal, o perdão de penas e a amnistia, previstos na L 38-A/2023, de 02/08, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19/06/2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos.
É o que resulta do teor das normas, uma vez que o art.º 1º/1, ao fixar o âmbito de aplicação da lei, para além dos limites temporais e de idade dos beneficiários, refere expressamente os art.º 3º e 4º, isto é, o perdão de penas e a amnistia de infracções penais.
(…)
II. entende o Recorrente, que, em qualquer dos casos, “... Se ... for entendido que o artº2º-1 se aplica quer a amnistias quer ao perdão de penas, resulta que essa norma é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade vertido no art.º 13º da CRP ...”.
Ora, a lei aqui em causa reveste carácter geral e abstracto, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.
Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável.
Não padece, por isso, da apontada inconstitucionalidade (como refere o despacho de sustentação, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional de normas que restringem o âmbito de aplicação de amnistias e perdões [Veja-se nesse sentido, por todos, o acórdão n.º 300/00, relatado por Guilherme da Fonseca].
Assim, sem necessidade de outros considerandos, afigura-se-nos não ter acolhimento o pretendido pelo recorrente.
Pelo exposto,
Somos de parecer que o recurso não merece provimento.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Proferido despacho liminar, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir é a de saber se o arguido se encontra, ou não, em condições de beneficiar da amnistia decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, tendo por referência o ilícito criminal apreciado nos autos.
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III. Da decisão recorrida
Com interesse para a decisão do recurso, consta da decisão recorrida:
“Em sede de alegações finais na audiência de discussão e julgamento, veio o ilustre mandatário do arguido invocar a inconstitucionalidade do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que restringe a aplicabilidade do regime da amnistia e do perdão aí estipulado a jovens entre os 16 e os 30 anos, por violação do princípio da igualdade, pedindo que o arguido, maior de 30 anos, seja abrangido por esta lei.
Dispõe o artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”.
Deste normativo resulta que qualquer Tribunal tem o dever de analisar se as normas relevantes para a decisão da questão submetida à sua apreciação estão ou não em conformidade com as normas e princípios constitucionais e, em caso de decisão de inconstitucionalidade da norma, afastar a sua aplicabilidade (“não podem os tribunais aplicar”), passando-se tudo como se ela não existisse.
Ora, “desaplicada a norma por motivo de inconstitucionalidade, o tribunal deve aplicar a norma que teria de aplicar na ausência da norma julgada inconstitucional – que tanto pode ser a norma que anteriormente regulava a matéria, uma norma subsidiariamente aplicável ao caso ou directamente uma norma constitucional –, podendo, porém, dar-se o caso de não subsistir qualquer norma uma vez afastada a norma julgada inconstitucional, devendo então a causa ser julgada em conformidade com os princípios hermenêuticos de integração-interpretação de normas jurídicas.” – cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Coimbra Editora, 4.ª Edição, p. 520.
In casu, afastada a norma do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, não subsiste qualquer norma, pelo que a causa seria julgada em conformidade com os princípios hermenêuticos de integração e interpretação de normas jurídicas.
No que respeita à interpretação de normas excecionais – como é o caso das normas que estabelecem o regime da amnistia e do perdão –, é pacífico e uniforme, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que estas não admitem interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que são redigidas. Desta forma, “a amnistia, na medida em que constitui providência de exceção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111.
Posto isto, entende-se que, qualquer que seja o entendimento deste Tribunal em relação à inconstitucionalidade invocada pelo arguido, a consequência nunca seria a por ele pretendida, isto é, a extensão da aplicação do regime da amnistia a todo e qualquer arguido, independentemente da idade, abarcando, desta forma, ele próprio.
Assim o-é, tanto porque, como referido, a interpretação extensiva deste tipo de normas está vedada ao julgador, como porque todo o diploma da Lei n.º 38-A/2023 tem como protagonistas os jovens até aos 30 anos – como é referido na própria proposta de lei: “Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ” –, pelo que tal alargamento poria em causa toda a intensão do legislador, levando o Tribunal a imiscuir-se no poder legislativo, algo que lhe está, claramente, vedado.
Desta forma, improcede o referido pedido de aplicabilidade ao arguido do regime da amnistia estipulado na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
(…)
II. Dos factos
i. Factos provados
Com relevância para a decisão da causa, encontram-se provados os seguintes factos:
1) No dia 26 de outubro de 2022, pelas 15:40h, na Rua …, em …, o arguido conduzia o ciclomotor da marca …, modelo ..., com a matrícula ..-CG-.., sem se encontrar habilitado com qualquer título que lhe permitisse conduzir tal veículo;
2) Contudo, não se coibiu de conduzir o referido veículo na via pública, bem sabendo que não se encontrava habilitado para tal;
3) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta, era proibida e punível por lei penal.
Mais se provou que:
4) O arguido confessou a prática dos factos;
5) O arguido atuou nos termos descritos em 1) para fazer entregas para um talho, uma vez que se encontrava desempregado e a necessitar de dinheiro;
6) Não tem averbada qualquer condenação no seu registo criminal;
7) Encontra-se desempregado, trabalhando ocasionalmente e auferindo entre 400 a 500€ por mês;
8) Vive numa casa arrendada, pagando 500€ de renda, e cerca de 36€ de despesas;
9) A irmã do arguido ajuda-o com as despesas, quando este necessita.
ii. Factos não provados
Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa.”
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IV. Fundamentação
Como acima se assinalou a questão trazida a este tribunal de recurso é a de saber se o crime cometido pelo arguido deve, ou não, considerar-se abrangido na amnistia decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto.
Vejamos, então.
Através da Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, foi estabelecido um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1º), abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (artigo 2º, nº 1).
Nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 348/20002, “Tradicionalmente, entendia-se que a amnistia era uma providência que «apaga» o crime, enquanto que o indulto é uma medida que extingue ou modifica a pena. Actualmente, entende-se que a amnistia é um pressuposto negativo da punição, com o mesmo regime jurídico (quanto ao efeito principal) do perdão genérico: pretende-se impedir que o agente sofra a sanção a que já foi (ou pode vir a ser) condenado, diferençando-se do indulto pelo carácter geral da amnistia e do perdão em contraposição com o carácter individual do indulto (veja-se, para maior pormenorização das diferenças e semelhanças, o Acórdão n.º 444/97, in "Diário da República", IIª Série, de 22 de Julho de 1997 e "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 37º Vol., pág. 289; Figueiredo Dias, "Direito Penal Português. As consequências Jurídicas do crime", Aequitas, 1993, pág.688/689).
A amnistia dirige-se à infracção enquanto tal, impedindo a sua punição ou extinguindo-a, determinando mesmo a extinção das penas já aplicadas; pelo seu lado, o perdão genérico atinge apenas a sanção aplicada, determinando a sua extinção total ou parcial.
6. - No acórdão n.º 444/97 (já citado), tal como no Acórdão n.º 510/98 (publicado no "Diário da República", IIª Série, de 20 de Outubro de 1998) analisaram-se detalhadamente as diferentes perspectivas da sindicabilidade das leis de amnistia e também a questão da eventual violação por tais leis do princípio da igualdade. Aí (Acórdão nº 444/97) se escreveu, depois de uma apreciação bastante completa dos diversos tipos de amnistia, o seguinte:
"Não é aqui possível, nem necessário para a decisão, discutir a constitucionalidade e, em particular, a conformidade com os princípios da igualdade de todos os tipos de amnistia atrás enunciados. Ela já foi afirmada, em princípio, pelo Acórdão n.º 301/97, da 2ª Secção (não publicado). Apenas se acentuará que a sua legitimação ou justa causa se mede em vista da totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito, e não se restringe aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante. Esses fins não se limitam à justiça, no sentido da realização do direito, valem também razões de conveniência pública e a razão de Estado (...)".
Actualmente, a amnistia ou o perdão genérico não podem ser considerados um mero acto de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito.
De facto, a jurisprudência do Tribunal tem admitido o princípio de que a igualdade em leis de amnistia e de perdão genérico «só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis (Acórdão n.º 42/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º Vol., 1995, pág. 283, e "Diário da República", IIª Série, de 13 de Abril de 1995; Acórdão n.º 152/95, in "Diário da República", IIª Série, de 20 de Junho de 1995).
Todavia, na amnistia e/ou no perdão genérico avulta a ampla margem de manobra do legislador quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência a tomar, margem de manobra que acresce àquela que à partida assiste ao Estado na opção por punir, não punir ou deixar de punir e, em consequência, por tipificar penalmente determinados ilícitos, com carácter de sistematicidade e de relativa permanência dos pressupostos da punibilidade. Será de censurar o arbítrio, em que não se vislumbra um mínimo de racionalidade mas, como se disse na transcrição a que acabou de se proceder, nestes domínios da amnistia e do perdão genérico, há que ter em conta a totalidade dos fins do Estado, para além dos fins específicos do aparelho sancionatório e de prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante. O quadro de fins mais genéricos é demasiado aberto, ao contrário do quadro de fins mais específicos referidos ao aparelho sancionatório, para que nele funcione com perfeita adequação um juízo de igualdade que faça apelo a raciocínios analógicos.”
No caso dos autos, os factos pelos quais o arguido foi condenado, foram praticados antes de 19.06.2023, e integram um crime punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias. Trata-se, pois, de infração abrangida na amnistia prevista no artigo 4º da Lei nº 38-A/2023.
Todavia, a Lei nº 38-A/2023, como acima se referiu, restringe a aplicação do perdão de penas e da amnistia pela mesma decretados às pessoas com idade entre 16 e 30 anos à data da prática do facto. O arguido/recorrente contava 47 anos à data da prática dos factos pelos quais foi julgado e condenado nos presentes autos, o que exclui, à partida, que tal medida de graça lhe possa ser aplicada.
Esgrimiu o recorrente a violação do princípio da igualdade, com a consequente inconstitucionalidade da disposição resultante do artigo 2º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, na medida em que restringe a respetiva aplicação apenas a pessoas com idade compreendida entre os 16 e os 30 anos de idade.
A decisão recorrida, embora declinando pronunciar-se expressamente sobre a questão suscitada pelo recorrente (ao que parece, em alegações finais), acabou por concluir pela inaplicabilidade da referida Lei nº 38-A/2023 ao caso dos autos, assim assumindo, ao menos tacitamente, a respetiva conformidade constitucional.
Apreciando agora a questão colocada perante este Tribunal ad quem, importa ter presente, como é generalizadamente reconhecido na jurisprudência e doutrina nacionais, que as medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade.
É vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional versando sobre o princípio da igualdade (cf. artigo 13º da Constituição da República Portuguesa), podendo ver-se a respeito, designadamente, o acórdão TC nº 232/20033, do qual citamos: “[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.
Adicionalmente, como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional nº 488/20084, a propósito do perdão genérico de penas, “[…] cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo.
Referindo-se à circunstância de as Leis n.ºs 23/91, de 4 de Julho, 15/94, de 11 de Maio e 29/99 não terem contemplado, nos perdões genéricos concedidos, a medida de segurança de internamento, disse-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
“Neste domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d’Etat”.
Mas essa discricionariedade normativo-constitutiva não é ilimitada: ela tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais.”
Não obstante, como também se adianta no mencionado aresto – e constitui jurisprudência reiterada do nosso Tribunal Constitucional – “Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão –, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.”
Assim, o referido princípio constitucional da igualdade não tem uma amplitude absoluta e ilimitada, no sentido de que não podem existir normas que abranjam somente certos grupos de cidadãos.
Como se escreveu, em lugar paralelo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.11.20235, “Efectivamente, a delimitação, pela negativa, dessa mesma amplitude encontra-se desenhada no n.º 2 do mesmo artigo 13.º ao estabelecer que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Trata-se, como resulta do seu teor, de uma norma de enunciação taxativa e não exemplificativa, pois que refere especificamente quais os aspectos que não podem ser considerados para a discriminação relativa entre pessoas.
Efetivamente, nessa norma não estão previstos, nem são admitidos, outros aspetos que podem distinguir as pessoas, como seja a idade.
A idade é, na realidade, um factor levado em conta em vários domínios das sociedades actuais, distinguindo o legislador, por essa via, grupos específicos de cidadãos, como seja, por exemplo, no acesso gratuito ou a menor custo a cuidados de saúde e a transportes públicos, bem como na atribuição de prestações e benefícios sociais e ainda em programas de tratamento e vacinação ou atendimento prioritário em serviços públicos, sendo também a idade um factor condicionante no acesso e candidatura a certas profissões e cargos públicos electivos.
A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspecto da regulação da vida em sociedade.
O que a Lei Fundamental na verdade impõe, ao estabelecer o princípio da igualdade, é que tenha igual tratamento o que é efectivamente igual e tratamento diferenciado o que é realmente diferente. É que só assim obtém efectiva concretização o princípio da igualdade.
O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre o âmbito do princípio da igualdade nesse sentido, sustentando que a constituição não veda a adopção de medidas que estabeleçam distinções, somente proibindo aquelas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, sublinhando, frequentemente, que igualdade não é, porém, igualitarismo.6
Como é sabido e resulta do seu artigo 1.º (acima transcrito), a referida Lei n.º 38-A/2023 foi elaborada no contexto da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, constando da respectiva Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, apresentada na Assembleia da República pela Senhora Ministra da Justiça, a sua exposição de motivos, que ajuda a perceber o seu alcance, dela constando o seguinte:
“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo.
Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.
Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. (…).».
Verifica-se, assim, que a justificação para a adopção de medidas de clemência destinadas a pessoas até aos 30 anos de idade tem a ver com a faixa etária dos destinatários centrais desse evento, ainda que outros, de diferentes idades, pudessem nelas participar. (…)
E como também resulta da transcrita exposição de motivos, nem sequer se tratou de uma novidade na limitação da aplicação da amnistia e perdão de penas aos “jovens”, pois que já em anteriores leis de amnistia isso mesmo tinha ocorrido, tendo-se, então, estabelecido um regime especial de clemência aplicável a “delinquentes com menos de 21 anos de idade, à data da prática do crime, ou com 70 ou mais anos”, conforme disposto no artigo 10.º da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, e no artigo 3.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
E não se tem conhecimento que alguma dessas normas haja sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional.
Importa também referir que, no nosso ordenamento jurídico, os jovens imputáveis são beneficiários de um regime penal especial, que foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, dando-se concretização ao enunciado no artigo 9.º do Código Penal, sendo considerado jovem para tal efeito “o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos de idade sem ter ainda atingido os 21 anos.” (art.º 1.º, n.º 2).
Conforme resulta do preâmbulo deste diploma, esse regime tem subjacente a ideia de que “o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado”, tendo-se instituído “um direito mais reeducador do que sancionador” (§§ 2. e 4.).
Neste contexto, a ideia subjacente à publicação da Lei n.º 38-A/2023, além de assinalar o evento histórico que constitui a realização das JMJ em Portugal, é reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.
As pessoas que podem beneficiar da amnistia e perdão encontram-se ainda numa fase de formação da personalidade e de desenvolvimento do carácter, podendo manifestar indecisão e vulnerabilidade na opção pro direito quando confrontados na dialéctica entre o comportamento lícito e o ilícito, residindo também em tal medida de clemência uma preocupação de ressocialização dos jovens, no caso entre os 16 e os 30 anos de idade.7
(…)
E na verdade, sendo a amnistia e perdão, uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.”
[Também neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.20238, do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.11.20239, deste Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.202310, e ainda a decisão singular proferida no Tribunal da Relação do Porto em 05.01.202411]
Subscrevemos a posição supra expressa, considerando, em face das circunstâncias que ditaram a emissão da amnistia (e perdão de penas) aqui em questão, que não podem considerar-se postos em causa os mencionados princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade: a norma aplica-se a todos os que se encontrem da situação visada (mostrando-se, por isso, de aplicação geral) e é, nos termos em que se deixou exposto, de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de restringir a aplicação das medidas de graça a um grupo ou categoria de destinatários, desde que para o efeito exista uma justificação racional atendível.
Tomando de empréstimo a fundamentação constante do já citado acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2023, a que aderimos, “A justificação apresentada pelo Legislador é a de beneficiar com as medidas de clemência os jovens a partir da maioridade penal e até perfazerem 30 anos, por serem os destinatários centrais do evento Jornada Mundial da Juventude (JMJ), sendo essa a idade limite do evento. As medidas de clemência surgem motivadas pela realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, “que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”. Sendo a iniciativa do Legislador motivada pela realização em Portugal do evento JMJ, as medidas de clemência focam-se na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Esta opção do Legislador trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições e, por outro lado, opera distinção que assenta num critério objetivo e materialmente fundado – as medidas de clemência são decretadas por ocasião da realização da JMJ e visam beneficiar os jovens. A pretensão de beneficiar os jovens surge como expressão da margem de discricionariedade do Legislador para delimitação do universo dos destinatários das medidas, surgindo essa delimitação em conformidade com critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de Direito.”
Em suma, não existe fundamento para afastar a aplicação do no 1 do artigo 2º da Lei nº 38-A/2023, com o sentido de que, tendo o arguido idade superior a 30 anos, não poderá beneficiar da amnistia e/ou do perdão de pena decretado pela referida Lei.
Nestes termos, embora com fundamentação diversa da que foi oferecida pela decisão recorrida, impõe-se negar provimento ao recurso.
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V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo a decisão recorrida, que recusou a aplicação da amnistia decretada pela Lei nº 38-A/2023, de 03 de agosto, ainda que com fundamentação diversa.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4UC.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Carla Francisco
Mafalda Sequinho dos Santos
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1. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.º, n.º 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2. De 04.07.2000, Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
3. Publicado no Diário da República I Série-A, de 17 de junho de 2003.
4. De 07.10.2008, Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
5. No processo nº 24/21.4PEPRT-B.P1, Relator: Desembargador Raul Cordeiro, acessível em ECLI:PT:TRP:2023:24.21.4PEPRT.B.P1.35/
6. Neste sentido podem ver-se, entre outros, os Acs. do TC n.ºs 39/1988, 437/2006, 546/2011, 362/2016 e 379/2021, in www.dgsi.pt.
7. O início nos 16 anos tem a ver, como é evidente, com o facto de os menores de 16 anos serem penalmente imputáveis (art. 19.º do C. Penal).
8. No processo nº 401/12.1TAFAR-E.E1, Relator: Desembargador Jorge Antunes, acessível em ECLI:PT:TRE:2023:401.12.1TAFAR.E.E1.14/
9. No processo nº 39/07.5TELSB-H.C1, Relator: Desembargador João Abrunhosa, acessível em ECLI:PT:TRC:2023:39.07.5TELSB.H.C1.1B/
10. No processo nº 170/23.0PBVFX.L1, Relatora: Desembargadora Maria Carlos Calheiros, não publicado, mas citado no ac. TRE de 18.12.2023, já referenciado.
11. No processo nº 30/21.9SFPRT-B.P1, Relator: Desembargador William Themudo Gilman, acessível em www.dgsi.pt.