Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1100/12.0TXLSB-N.L1-5
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: LICENÇA DE SAÍDA JURISDICIONAL
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE DO ART.º 123.º N.º 2 DO CPP
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INVÁLIDA A DECISÃO RECORRIDA
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I – A decisão de concessão de licença de Saída Jurisdicional está dependente da avaliação dos requisitos e critérios legais, previstos nos art.ºs 78º e 79º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), que deve resultar de forma expressa da respetiva decisão, nos termos do art.º 146º do mesmo diploma legal.
II - A fundamentação de um ato decisório deve estar devidamente exteriorizada no respetivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, designadamente os factos que acolheu e a interpretação do direito que perfilhou, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.
III - A violação deste dever de fundamentação constitui irregularidade, sujeita, em princípio, ao regime fixado no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, devendo considerar-se sanada se não for arguida nos moldes aí previstos.
IV – Porém, estando em causa a violação de norma que tenha subjacente a concretização no Processo Penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, como ocorre com a que consagra o dever de fundamentação das decisões e impedindo a falta de fundamentação da decisão recorrida o conhecimento do recurso, pode essa irregularidade ser decretada oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do disposto no art.º 123º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo 1100/12.0TXLSB-N que corre termos Juízo de Execução de Penas – Juiz 5, do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, a 19.10.2023 foi proferido o seguinte despacho [transcrição]:
“I - O recluso supra identificado requereu a concessão de uma licença de saída jurisdicional, nos termos do artigo 189.º n.ºs 1 e 2 do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade, de ora em diante designado CEPMPL.
O requerimento foi instruído com os elementos previstos no n.º 3 do referido preceito e dos mesmos não resulta a não verificação dos requisitos previstos no art.º 79.º do citado diploma.
Designou-se dia e hora para a reunião do conselho técnico e o despacho foi notificado ao ministério público e comunicado ao estabelecimento prisional e aos serviços de reinserção social (art.º 190.º do CEPMPL).
Realizou-se hoje a reunião do conselho técnico, onde foram prestados os esclarecimentos indispensáveis à apreciação do pedido.
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II – O tribunal é o competente.
O processo é o próprio e mostra-se isento de nulidades, exceções ou quaisquer questões prévias que obstem ao conhecimento do pedido formulado pelo requerente.
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III – Discutido o pedido no conselho técnico hoje realizado, foi por este emitido parecer:
Favorável, por maioria.
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IV – Assim, considerando o parecer do conselho técnico, os elementos dos autos, os esclarecimentos prestados e os requisitos e critérios legais (art.ºs 78.º e 79.º do CEPMPL), decide-se:
Conceder a licença de saída jurisdicional ao recluso pelo período de 3 (três) dias, a executar de uma só vez.
Esta licença fica subordinada às seguintes obrigações:
a) Ir residir, durante o período da licença jurisdicional, na morada que indicou no seu requerimento;
b) Regressar ao estabelecimento prisional dentro do prazo determinado;
c) Manter conduta social adequada, com observância dos padrões normativos vigentes, nomeadamente sem incorrer na prática de quaisquer crimes;
d) Não frequentar zonas ou locais conotados com atividades delituosas, nem acompanhar com pessoas relacionadas com tais atividades;
e) Não consumir estupefacientes e não ingerir bebidas alcoólicas em excesso;
f) Não sair, durante o tempo da concessão, da área do concelho onde se situa a morada indicada, salvo se for por motivo ponderoso e justificado.
A reinserção social deverá avisar o o.p.c. da área do gozo da licença de saída jurisdicional.
Notifique a presente decisão ao ministério público e ao recluso.
Após trânsito, passe mandado de saída.”
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I.II - Recurso
Inconformado com tal despacho o Mº Público interpôs dele recurso de onde extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“1- Analisados e ponderados todos estes elementos, à luz do disposto no art.° 78.º do CEPMPL. impõe-se concluir que é prematura a concessão de uma licença de saída ao recluso.
2- As licenças de saída (jurisdicionais ou outras) integram uma fase muito relevante da execução da própria medida privativa de liberdade e carecem de uma cuidada avaliação dos seus pressupostos para serem concedidas, pelo que a sua concessão têm de ser fundamentada nos requisitos e critérios legais antes referidos.
3- Ora, salvo o devido respeito e melhor opinião, no caso dos autos verifica-se que a decisão judicial ora recorrida não fez uma avaliação correta de tais requisitos e critérios legais, não se descortinando o motivo conducente a um voto de confiança ao recluso neste momento de execução da pena, quando afinal a gravidade da sua conduta criminosa se revela muito elevada, e dos autos não resultam elementos probatórios que revelam que tenha tido uma grande evolução ao nível da sua atitude face ao crime, e quando também as razões de prevenção geral se apresentam muito elevadas.
4- O recluso apesar de apresentar uma visão menos instrumentalizada das vítimas, ainda reflete, ainda assim, uma restrita capacidade de descentração e está ainda condicionado nas suas escolhas de comportamentos mais adequados no âmbito da sexualidade.
5- Identificaram-se como fragilidades pessoais o seu egocentrismo e falta de empatia, fatores que tendem a subsistir como elementos de risco de reincidência criminal.
6- Mais se apurou que, AA concluiu o programa de intervenção técnica direcionada para as suas necessidades criminógenas, conseguindo avaliar criticamente o seu comportamento criminal denotando uma evolução no desenvolvimento de recursos psicológicos que lhe poderão possibilitar a alteração desse comportamento, embora ainda subsistam fragilidades ao nível da capacidade de descentração e da empatia.
7- É verdade que o recluso, beneficia do apoio afetivo, económico e habitacional por parte do pai que se constitui como um elemento facilitador do seu processo de reintegração social, sendo que a licença foi concedida para ser gozada junto do pai em localidade rural onde presume a DGRSP, não existirá alarme social local.
8- Porém a compatibilidade da LSJ com a defesa da ordem e da paz social referida na al. b) do nº2 do art.º 61º C. Penal, não deve ser aferida apenas por referência ao meio social onde o crime foi cometido, ou onde vivia o agente, ou onde se prevê que o agente passe a viver ou, mesmo, onde vivia ou vive a vítima ou outras pessoas relacionadas com o crime.
9- Pois que a compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social, deve ter em linha de conta todo o tecido social, não se afastando o risco apenas pelo local do gozo da LSJ e tendo-se ainda em linha de conta que nesta fase de cumprimento de pena estão ainda marcadas as necessidades de prevenção geral.
10- A tudo acresce no caso vertente, ainda não atingidos os dois terços da pena, as necessidades de prevenção geral – positiva e negativa – que são atualmente elevadas, dada a verificação da persistente dificuldade da capacidade de descentração.
11- Ainda que o recluso beneficie de bom comportamento prisional e do apoio familiar, são muito elevadas as necessidades de prevenção geral e alarme social
12- Como referimos, as razões que subjazem à concessão desta licença de saída jurisdicional são, essencialmente, o comportamento adequado, sem registos disciplinares e o percurso prisional sem problemas conhecidos.
13- Porém apurou-se recentemente que, apesar de apresentar uma visão menos instrumentalizada das vítimas, ainda reflete, ainda assim, uma restrita capacidade de descentração e está ainda condicionado nas suas escolhas de comportamentos mais adequados no âmbito da sexualidade.
14- Identificaram-se como fragilidades pessoais o seu egocentrismo e falta de empatia, fatores que tendem a subsistir como elementos de risco de reincidência criminal.
15- Essas razões não bastam e é arriscada, e pode ser muito perigosa, a saída do recluso.... Pelo que o despacho recorrido viola o disposto nos artigos 76 º e 78 º do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade.
16- A decisão recorrida, ao conceder ao recluso uma licença de saída jurisdicional pelo período de 3 dias, incorreu em violação do disposto nos arts. 146.º, n.º 1 do CEPMPL e 78.º, 1 e 2 do CEPMPL, pelo que, não sendo declarada nula, deve ser revogada e substituída por outra que não conceda tal licença. (...)".
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Assim sendo revogada decisão ora recorrida farão Vª Exºs a costumada Justiça.
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Pelo despacho de 10.11.2023 foi o recurso admitido e fixado o respetivo regime de subida.
Foi ainda ordenada a extração e incorporação no presente processo de certidão do acórdão condenatório, do acórdão do Tribunal da Relação que o confirmou; da sentença proferida no apenso B, em 24.05.2023, que não concedeu ao recluso a liberdade condicional; do Relatório para Concessão de Liberdade Condicional, da ficha de Avaliação Programa Conter e da ficha biográfica atualizada do condenado juntos sob a referência 1811822 do apenso B; e do relatório elaborado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para o mesmo fim, junto sob a referência 1822391, do apenso B - o que foi efetuado.
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I.1. Resposta
A este recurso o arguido não respondeu.
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I.2 - Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos [transcrição]:
“1. Inexiste circunstância que obste ao conhecimento do Recurso, tempestivamente interposto por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito fixado nos autos e deve ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art.º 419.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
2. Delimitação do objecto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No essencial no recurso interposto pelo Ministério Público sustenta-se que a douta Decisão de 19/10/2023 do Juiz 5 do Juízo de Execução de Penas de Lisboa deve ser revogada e substituída por outra que não conceda a licença de saída jurisdicional pelo período de 3 dias.
Analisados os fundamentos do recurso, acompanhamos o recurso apresentado pela digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª instância, aderindo-se à argumentação oferecida, que se subscreve e aqui se dá por transcrita.
Com efeito, consideramos que o Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância, identificou corretamente o objeto do recurso, argumentou com clareza e correção jurídica, o que merece o nosso acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objeto do recurso em análise diz respeito.
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Pelo exposto, somos do parecer de que o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, a Decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que não conceda ao recluso AA a licença de saída jurisdicional pelo período de 3 dias.”
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Dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta pelo arguido.
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Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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II - FUNDAMENTAÇÃO
II.1 Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- A incorreta avaliação dos requisitos e critérios legais de concessão ao arguido de uma licença, com violação do disposto nos arts. 76º e 78º do Código de Execução de Penas e Medidas privativas da Liberdade (CEPMPL).
- Oficiosamente, apreciar se a decisão de concessão de Licença de Saída Jurisdicional padece de irregularidade por falta de fundamentação, art.º 123º do Código de Processo Penal e 146º do CEPMPL.
O conhecimento destas questões será efetuado pela sua ordem lógica e preclusiva.
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II. 1 Apreciação do recurso
Previamente ao conhecimento da questão suscitada em sede de recurso impõe-se, então, ponderar a questão da irregularidade da decisão recorrida, nomeadamente por insuficiente fundamentação das razões que levaram a concluir pela concessão de licença de saída jurisdicional.
Dispõe o art.º 205º da Constituição da República Portuguesa que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Por seu turno dispõe o art.º 146º do (Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade (de ora em diante CEPMPL), em consonância com o disposto no art.º 97º do Código de Processo Penal, que “Os actos decisórios do juiz de execução de penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
A fundamentação de um ato decisório deve estar devidamente exteriorizada no respetivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, designadamente os factos que acolheu e a interpretação do direito que perfilhou, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.
Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal", III Vol., p. 290 , escreve "É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se, apenas, em razão da autoridade de quem as profere, mas, antes, pela razão que lhes subjaz ou argumentos que a sustentam.
(...) A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite o controle da legalidade do acto, por uma parte e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é, ainda, um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso, como meio de autocontrole.
A ratio da exigência de fundamentação é a de submeter a decisão judicial a um maior controle por parte da colectividade e é, também, consequência da importância que assume no novo processo o direito à prova e à contraprova, nomeadamente o direito de defender-se, provando".
Importa, pois, que a fundamentação seja objetiva e clara, por forma a que se perceba o raciocínio seguido e o acerto da decisão tomada.
Como se refere no AC TRP de 21.06.2023, proferido no processo nº 764/12.9TXPRT-U.P1, (disponível in www.dgsi.pt): “Esta exigência de fundamentação das decisões judiciais cumpre, como é sabido, várias funções. Ela destina-se, desde logo, a comunicar aos demais sujeitos e intervenientes processuais as razões (de facto e de direito) pelas quais o Tribunal decidiu como decidiu, de modo a que possam ajustar correspondentemente a sua futura intervenção no processo, mas também a permitir aos Tribunais Superiores, em caso de recurso, verificar se a decisão tomada é fundada, tanto do ponto de vista fáctico como jurídico, nessa medida obrigando também o Tribunal que a profere a um exercício de autocontrolo sobre o teor e sentido da mesma; para além disso, a fundamentação da decisão pode ainda ser relevante para a ulterior atividade de outros Tribunais ou autoridades que a ela possam ter de se referir, designadamente no âmbito de um processo de revisão, ou no contexto do processo de execução do julgado (assim, Kirsten Graalmann-Scheerer, em Löwe/Rosenberg, Die Strafprozeßordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, 27. Aufl., § 34, n. m. 1, pág. 920, que fala, a este propósito, das funções de «definição», «controlo» e «informação», respetivamente)”. Analisando a decisão sob recurso vemos que esta remete para o parecer (favorável por maioria) do Conselho Técnico, constando da respetiva ata que existiram pareceres favoráveis do Serviço de Vigilância e Segurança; da Área de Tratamento Prisional e do Diretor do Estabelecimento Prisional, e desfavorável dos Serviços de Reinserção Social, desconhecendo-se, porém, o teor de qualquer um dos desses pareceres e respetivas razões; mas, sobretudo, as razões que levaram a Mmª Juiz a quo a decidir ser de conceder a aludida licença, apesar do parecer negativo dos Serviços de Reinserção social.
Acresce que o Tribunal a quo refere, na decisão em apreço, que teve em conta “os esclarecimentos prestados”, cujo teor se desconhece em absoluto e por esta não são igualmente indicados”.
Por outro lado, remete o Tribunal a quo para os elementos dos autos. Porém, perscrutando os elementos constantes do processo até então, vemos que apenas se encontrava disponível a ficha biográfica do arguido (junta com o respetivo requerimento), que apenas permite a conclusão do preenchimento de alguns dos requisitos de ordem formal (designadamente relativos ao tempo de pena já cumprido, e outros dados objetivos constantes daquela ficha, como sejam as sanções disciplinares e a (in)existência de outros processo crime pendentes ou as decisões sobre anteriores pedidos de saída jurisdicional).
Por fim, no despacho em apreço refere-se terem sido considerados os critérios e requisitos legais (art.ºs 78º e 79º do CEPMPL) sem que, todavia, se exare na decisão em causa qualquer consideração sobre o respetivo preenchimento, podendo apenas retirar-se dos autos os (já mencionados) dados objetivos da ficha biográfica.
Designadamente, nada se refere na decisão em apreço quanto “à fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”, “à compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social” e “fundada expectativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade” [al.s. a) b) e c) do nº 1 do art.º 78º do CEPMPL] ou ainda nos termos do nº 2 do mesmo artigo a ponderação, tendo em conta as finalidades da licença de saída, da “evolução da execução da pena ou medida privativa da liberdade”, “das necessidades de proteção da vítima” “do ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar; “das circunstâncias do caso” e “dos antecedentes conhecidos da vida do recluso”. (Neste sentido o AC TRL de 11.12.2019, proferido no processo nº 2002/16.6TXLSB-I.L1-9, disponível in www.dgsi.pt)
Dir-se-á que, à posteriori, entendeu o tribunal a quo instruir os presentes autos (para além da decisão condenatória em 1ª instância e decisão proferida em recurso que a confirmou), com certidão extraída do apenso de concessão de liberdade condicional. Porém, tais elementos, não constituem aqueles em que se fundou a decisão (até porque ali existiu um parecer desfavorável por unanimidade relativamente à concessão da liberdade condicional (diferentemente do que ocorreu no Conselho Técnico havido nestes autos) e não configuram qualquer parecer relativamente à concessão de uma licença de saída jurisdicional.
Na concessão de licença de saída jurisdicional esta ponderação dos critérios e requisitos dos art.ºs 78º e 79º do CEPMPL tem de resultar da decisão, não podendo o Juiz deixar de nela expressar estes juízos “de índole valorativa” e, no caso concreto, as razões que levaram a que se considerassem prevalentes os elementos constantes dos pareceres positivos e, porventura, irrelevantes os constantes do parecer negativo da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, sendo de realçar que a situação presente diz respeito a uma pena de 22 anos de prisão e a natureza dos crimes pelos quais foi condenado o arguido impõem ainda um dever acrescido de fundamentação.
Ora, na decisão de que se recorre nada se deixou expresso acerca de qualquer um destes aspetos, limitando-se a afirmar que “foram considerados os requisitos e critérios legais (art.ºs 78º e 79º do CEPMPL)”, desconhecendo-se que ponderação deles efetuou o tribunal a quo.
Como se refere no supracitado acórdão do TRP de 21.06.2023 “(…) em rigor, esta Relação só pode presumir que, ao menos implicitamente, o Tribunal recorrido terá considerado que os aludidos requisitos se verificam no caso concreto, uma vez que a licença de saída impetrada foi concedida, desconhecendo-se, no entanto, as razões que sustentam tal apodítica conclusão, e, portanto, se ela se mostra ou não efetivamente fundada”.
E, de facto, na situação em apreço também assim ocorre, pois que tendo sido concedida a aludida licença é de presumir que foi entendido que estavam verificados os referidos critérios e requisitos, mas não tendo exarado o Tribunal a quo as razões dessa opção e perante pelo menos um parecer desfavorável, mostra-se impossível sindicar a bondade e justeza da decisão tomada.
Deste modo, impõe-se concluir que a fundamentação da decisão em apreço é insuficiente, não permite exercer a referida função de controlo e, portanto, padece a decisão de uma irregularidade prevista no art.º 123º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.º 154º do CEPMPL.
Como se escreve no acórdão do TRP de 17.05.2023, proferido no processo nº 233/20.3T9MTS.P1 (disponível in www.dgsi.pt): “O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art.º 123º n.º 1).
Ressalva-se no seu n.º 2, a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição”.
No caso, como acima já referimos, a exigência da fundamentação, para além, de outras funções, visa o controlo crítico, por via de recurso, da lógica e transparência da decisão, constituindo fator de legitimação do poder jurisdicional e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, obstando a decisões arbitrárias e, como tal, esta irregularidade que se evidencia do texto da decisão recorrida, atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, e, por isso, deve a mesma ser declarada oficiosamente por este tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art.123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes.
Não se mostra, pois, cumprido, sob esta perspetiva, o dever de fundamentação previsto no art.º 146º nº 1 do CEPMPL, art.º 97º do Código de Processo Penal e 205º da Constituição da República Portuguesa, estando assim, a decisão recorrida ferida de irregularidade, cuja reparação pode e deve ser ordenada, a todo o tempo e oficiosamente, uma vez que afeta o valor do ato praticado (art.123º , nº 2 do Código de Processo Penal).
Mostra-se, pois, prejudicada a análise do recurso interposto.
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III - Decisório:
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar verificada a irregularidade do art.º 123º, nº 2 do Código de Processo Penal, por omissão dos concretos fundamentos da decisão de conceder licença de saída jurisdicional ao arguido, e, em consequência, declara-se inválida a decisão recorrida e determina-se a descida dos autos à 1ª instância, devendo aquela decisão ser substituída por outra a elaborar de acordo com o aqui decidido.
Sem custas.
Notifique.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
Sandra Ferreira
Luísa Oliveira Alvoeiro
João Ferreira