Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
832/23.1YRLSB-9
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: ESCUSA
CLUBE DE FUTEBOL
JUIZ SÓCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA
Decisão: INDEFERIDO
Sumário: Não constitui fundamento de escusa para tramitar e julgar processo de impugnação judicial de decisão de contraordenação em que é arguido um clube de futebol o conjunto de circunstâncias de a requerente ser sócia há cerca de duas décadas do dito clube, com quotas pagas, e atualmente titular de ... (bilhete de época) para jogos nacionais, e ainda ser casada com magistrado judicial que, além de reunir características semelhantes, é titular de ações da respetiva SAD, mesmo estando em causa nos autos a aplicação de sanção acessória de realização de espetáculos desportivos à porta fechada na modalidade de futebol.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A Exma. Sr.ª Juiz de Direito A, a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz ..., vem, ao abrigo do disposto no art.º 43º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, deduzir pedido de escusa de intervenção no Proc. n.º ....
Funda a sua pretensão no seguinte:
- é sócia há cerca de duas décadas do clube arguido(a) B, com quotas pagas;
- é actualmente titular de ... (bilhete de época) para jogos nacionais;
- é casada com Juiz Desembargador que, além de reunir características semelhantes, é titular de acções da respectiva SAD;
- em causa nos autos está também a aplicação de sanção acessória de realização de espectáculos desportivos à porta fechada na modalidade de futebol, sanção que, a ser aplicada, é susceptível de - em abstracto - poder vir a afectar pessoalmente a signatária e família possuidores do aludido ... pré-comprado para esses jogos; e
- trata-se de processo com possível interesse mediático.
Afirma ainda a Exma. Sr.ª Juiz requerente que, pese embora entenda que, em consciência, as ditas circunstâncias não a impediriam de julgar com imparcialidade, só por si, parecem-lhe suficientemente relevantes para se enquadrar no âmbito da previsão do invocado normativo, esclarecendo que o processo aguarda despacho de recebimento da acusação e de marcação de julgamento.

Mais resulta dos autos que o processo em causa consiste num recurso de uma decisão proferida por uma entidade administrativa num processo de contraordenação, a qual condenou o ora recorrente B, no pagamento da coima única de €80.000,00, e na sanção acessória de realização de espetáculo desportivo da modalidade futebol à porta fechada, por um período de 2 espetáculos desportivos.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A Constituição da República Portuguesa prevê que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão (…) mediante processo equitativo – cfr. art.º 20.º, n.º 4.

Por outro lado, o art.º 32.º, n.º 9, do diploma fundamental estatui que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior, estabelecendo assim o chamado princípio do juiz natural, com o qual se pretende reforçar a já conatural e estatutária imparcialidade dos juízes.

Todavia, como sabemos, existem situações absolutamente excecionais e graves que permitem contrariar o dito preceito constitucional, mas sempre com o fito de reforçar as aludidas garantias de imparcialidade do julgador.

Tais situações estão previstas, para o que aqui interessa, no Código de Processo Penal, que a este respeito contém as seguintes normas:

Artigo 43.º
Recusas e escusas
1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º
3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.
5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.

Artigo 44.º
Prazos
O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.

Assim, podemos desde já afirmar que o pedido que ora se analisa é tempestivo, uma vez que os autos aguardam o despacho de recebimento da acusação e de marcação de julgamento, o tribunal a que foi dirigido é o competente, e a requerente tem legitimidade para apresentar o pedido.

Por outro lado, constatamos que, segundo a norma acima transcrita, as causas de recusa e de escusa são as mesmas: existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

A imparcialidade pode ser encarada numa perspetiva subjetiva ou objetiva: “ (…) a quebra da imparcialidade subjetiva, que depende de motivos pessoais e do foro íntimo do juiz, requer uma forte exigência e prudência na análise dos fatores exteriores e pessoais, mas objetiváveis, que possam ou sejam suscetíveis de determinar a recusa; sendo as condições da imparcialidade subjetiva do foro íntimo do juiz, só manifestações pessoais sérias, anteriores ou contemporâneas, em relação a algum interessado ou algum interesse discutido no processo, podem justificar a recusa: a imparcialidade subjetiva presume-se, e só pode ser posta em causa em circunstâncias certamente excecionais. Na imparcialidade objetiva a questão apresenta-se numa perspetiva substancialmente diversa. Trata-se de fundamentos que, embora referidos ao juiz, são objetivos, e que, por isso, não afetam nem coloca pessoalmente em causa o juiz; apenas constituem circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência da ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa: opiniões antecipadas do juiz; posições anteriormente tomadas no processo; declarações públicas que veiculem uma opinião concreta sobre o caso, circunstâncias ou contingência de relação (amizade ou inimizade) com algum dos interessados, são fatores que, dependendo da intensidade, têm justificado a recusa com fundamento na afetação da imparcialidade objetiva” – cfr. Conselheiro Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 146/147.

Não se verifica, evidentemente, qualquer situação que possa envolver o risco de fazer perigar a  imparcialidade subjetiva, sendo ainda certo que a própria requerente declara a sua firme certeza de que se encontra em condições de julgar a causa com total imparcialidade. Note-se que o pedido que ora se aprecia constitui, portanto, comportamento especialmente escrupuloso e cuidadoso da Exma. Sr.ª Juiz requerente.
Quanto às questões relativas à imparcialidade objetiva, recordemos o que está em causa:
- a requerente é sócia há cerca de duas décadas do clube arguido(a) B, com quotas pagas;
- é actualmente titular de ... (bilhete de época) para jogos nacionais;
- é casada com Juiz Desembargador que, além de reunir características semelhantes, é titular de acções da respectiva SAD;
- em causa nos autos está também a aplicação de sanção acessória de realização de espectáculos desportivos à porta fechada na modalidade de futebol, sanção que, a ser aplicada, é susceptível de - em abstracto - poder vir a afectar pessoalmente a signatária e família possuidores do aludido ... pré-comprado para esses jogos; e
- trata-se de processo com possível interesse mediático.

Estamos, portanto, essencialmente, no âmbito das “circunstâncias ou contingências de relação” com o interessado (arguido) B, do qual a requerente é adepta, podendo ainda vislumbrar-se um interesse pessoal remoto, muito remoto mesmo, pela titularidade, por parte do cônjuge da requerente, de ações representativas do capital social da SAD arguida, bem como pela qualidade de associada do arguido e de titularidade do referido ... – tenha-se, contudo, presente que não é referido o concreto número de ações de que o cônjuge é titular, o que permite presumir que não será, certamente, significativo.

Antes de mais, devemos afirmar com clareza e de forma assertiva que as prosaicas e comezinhas paixões do “ludopédio” (que também assaltam o ora relator, reconhece-se) não se alcandoram, nem podem alcandorar, ao elevado patamar da consciência ética em que se insere a decisão jurisdicional – isso mesmo reconhece a Exma. Sr.ª Juiz requerente, quando afirma a sua inteira capacidade para decidir com imparcialidade, não obstante o seu “...ismo”.

Além disso, se esta inclinação afetiva clubística tivesse a potencialidade de abalar a primordial imagem de imparcialidade de que goza o julgador perante os intervenientes no processo e perante a comunidade em geral, então, também a preferência afetiva clubística rival em relação aos intervenientes no processo levaria ao mesmo desfecho: ou seja, até um simpatizante (nem necessita de ser sócio) do C ou do D, por exemplo, não teria condições objetivas de imparcialidade para julgar os autos em que se deduziu o incidente, no qual o arguido é o B, uma vez que, muito provavelmente, nutre forte antipatia pelo clube rival. E sendo o gosto pelo futebol e a paixão clubística algo de tão disseminado entre nós, mesmo entre os juízes, seria, provavelmente, difícil encontrar um julgador futebolisticamente assético. Igualmente, se assim fosse, um juiz que perfilhe uma ideologia política de direita não estaria em condições de julgar uma causa em que interviesse, um partido do quadrante político de esquerda, ou um outro que fosse cristão católico não estaria em condições de julgar um conflito entre a igreja de Roma e a comunidade muçulmana ou entre aquela igreja e um particular ateu.

Muito menos alguém pensará que um juiz não aplicará uma sanção acessória como a que está em causa nos autos, só porque quer ir ao estádio ver um ou dois jogos de futebol, fazendo assim render o seu investimento num bilhete anual, ou que reduzirá a coima a aplicar para não desvalorizar as ações de que o seu cônjuge é titular, ou só porque gosta muito daquele clube   – ao contrário do que se tem propalado por vários meios e modos, temos para nós que os portugueses em geral têm em muito boa conta a imparcialidade e seriedade dos seus juízes, e que só a questionam quando ocorrem motivos absolutamente ponderosos, não sendo esse o caso presente.

E, repare-se, se a titularidade de ações representativas do capital social de uma sociedade fosse motivo válido de escusa, um juiz que tivesse as suas poupanças aplicadas num razoável portefólio destes títulos, poderia pedir escusa sempre que uma das empresas em causa interviesse num processo que lhe tenha sido distribuído (p.ex., julgar um acidente de viação em que interviesse uma seguradora de cujo capital detém ações) – diferente poderia ser se o capital representado pelas ações fosse de elevada dimensão e se a decisão do processo tivesse relevantes consequências sobre a empresa e o valor dos títulos, o que não é o caso, ou pelo menos, porque se não conhece o valor das ações de que é proprietário o cônjuge da requerente,  será seguro dizer que o valor da coima e a dimensão da sanção acessória em causa serão quase irrelevantes no equilíbrio global de um clube de futebol com a dimensão do B. A isto acresce que as ditas ações nem sequer são pertença da requerente.

Compreende-se o pedido da Exma. Sr.ª Juiz requerente, se tivermos presente o recente alarido por causa de um processo também mediático, que envolveu o B, e que alguém, pessoa individual, quis dar a entender que a filiação clubística do julgador influenciou a sua decisão – isso não poderá, todavia, condicionar, nem condiciona, estamos certos, quem tem a elevada responsabilidade de decidir os processos em causa e de apreciar os pedidos de escusa.

Em relação à seriedade e gravidade do motivo que pode levar ao deferimento da recusa/escusa, diz-se no Acórdão do STJ de 13 de Fevereiro de 2013, processo nº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, in www.dgsi.pt, que «A seriedade e gravidade do motivo resultam de um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), formulado com base na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo daquele facto concreto na imparcialidade do julgador

Como já dissemos, em nosso entender, nenhuma das circunstâncias referidas podem aportar desconfiança sobre a imparcialidade da Exma. Sr.ª Juiz requerente, porque não assumem a gravidade ou seriedade exigidas para tal.

Assim sendo, indefere-se o pedido de escusa apresentado pela Exma. Sr.ª Juiz de Direito A, a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no Juízo Local Criminal de Lisboa, Juiz ..., de intervenção no Proc. n. º ....

Sem tributação.

Lisboa, 27 de abril de 2023
António Bráulio Alves Martins
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Manuela Barroco Esteves Machado