Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1143/23.8T8LRS.L2-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO RODOVIÁRIA
PERDA DE PONTOS
CASSAÇÃO DE CARTA DE CONDUÇÃO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I- O processo administrativo, autónomo, de cassação da carta de condução previsto no art. 148º do Cód. da Estrada, não se confunde com um procedimento por contraordenação rodoviária punível com coima e/ou sanção acessória de proibição de conduzir, pelo que não se aplica ao processo de cassação o disposto no art. 188º, nº 1, do Cód. da Estrada.
II. Ainda que se entenda que o procedimento para cassação do título de condução está sujeito ao prazo de 2 anos previsto para o procedimento por contraordenação rodoviária (art. 188º, nº 1 do Cód. da Estrada), o prazo em questão nunca se poderia contar a partir da data da última infração que determinou a perda de pontos, ou sequer do momento em que a perda de pontos se tornou definitiva. Com efeito, porque neste caso a perda total de pontos derivou da não frequência de acção de formação obrigatória, o prazo só poderia contar-se a partir do último dia do prazo concedido para a inscrição na formação obrigatória: 10 dias úteis após a notificação para o efeito ocorrida em 24.06.2020, ou seja, 9.07.2020.
III- Estando ainda o procedimento por contraordenação rodoviária sujeito ao regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, interrompendo-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória (art. 188º, nº 2 do Cód. da Estrada).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório

No âmbito do Recurso de Contra-ordenação nº 1143/23.8T8LRS que corre termos no Juiz 1 do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, e em que é arguido AA, foi decidido julgar improcedente a impugnação judicial e, em consequência, foi mantida a decisão administrativa proferida, em 7.01.2022, pelo Sr. Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação do respectivo título de condução, nos termos do disposto no nº 8, do art. 148º, do Cód. Estrada.
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Sem se conformar com a decisão, o arguido interpôs o presente recurso onde pede que seja declarada a nulidade do presente processo contraordencional, com a consequente extinção dos presentes autos ou, caso assim não se entenda, que seja o processo extinto por prescrição.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
A. O arguido, ora recorrente, foi notificado da decisão proferida pelo Tribunal a quo mediante a qual foi confirmada a sanção de cassação do seu título de condução, nos termos do art.º 148.º, n.º 8 do C.E., bem como foi condenado a pagar custas fixadas pelo seu mínimo legal.
B. De acordo com o n.º 2 do art.º 73.º do RGCO a Relação poderá, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência (sublinhado e negrito nossos).
C. No que concerne à matéria em apreciação aos presentes autos, o recurso da decisão proferida em primeira instância afigura-se manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito.
D. Sucedeu que o Douto Tribunal a quo propôs quer ao Ministério Público, quer ao próprio arguido, que a decisão fosse proferida por simples despacho, sem estar, contudo, devidamente munido de todos os elementos necessários e indispensáveis ao proferimento da decisão,
E. Induzindo, assim, o arguido em erro em virtude de ter criado no mesmo a convicção de que tal decisão seria proferida na posse de todos os elementos probatórios necessários à descoberta da verdade e à justa composição do litígio, o que não se veio a verificar.
F. Entendeu o Douto Tribunal a quo dar como não provados factos alegados pelo arguido sem que os mesmos tenham sido verificados no âmbito dos poderes de investigação de que o mesmo se encontra munido, nada tendo cuidado para proceder ao seu apuramento, designadamente que:
· O decretamento da cassação teria gravosas consequências para a vida profissional e familiar do arguido porquanto este exerce actividade por conta própria, organizando e realizando eventos em feiras, mercados, exposições, concertos e outros acontecimentos pelo país fora, pelo que, necessita de conduzir de forma a assegurar o seu sustento e o da sua família.
· O arguido é pai de três menores, que se encontram a frequentar a escola e a creche, estabelecimentos estes que se encontram em sítios distintos (... e ...) e com horários distintos, precisando de conduzir para ir buscar os filhos e evitar que os mesmos fiquem sozinhos à sua espera.
· O arguido nunca esteve envolvido em qualquer acidente de viação.
· A conduta do arguido é sempre pautada pelo cuidado, atenção e cumprimento das normas de segurança estradal.
G. Ora, tal como consta da douta decisão recorrida, o arguido arrolou três testemunhas, as quais sempre poderiam ter comprovado os factos por si alegados, contudo, fazendo tábua rasa do seu direito de defesa, e sem estar munido de todos os elementos que lhe permitissem apreciar toda a factualidade relevante para a boa decisão da causa, o Douto Tribunal propôs que a decisão fosse realizada por mero despacho, criando, assim, no arguido, a convicção de que estaria apto a pronunciar-se sobre todos os aludidos factos, o que se verifica agora não ter sucedido.
H. Tal decisão violou o direito de defesa do arguido, bem sabendo que a sua aplicação sem o devido apuramento dos factos se afiguraria altamente prejudicial para o arguido e a sua família.
I. Sem prescindir, sempre se dirá que, a apreciação feita pelo Douto tribunal a quo relativamente ao vício de falta de fundamentação da decisão administrativa é merecedora de censura.
J. O carácter definitivo de uma medida de cassação de título de condução, com os reflexos que tal acarreta na vida de um cidadão, não se compadece com “o carácter simplificado” ou “menor solenidade” mencionado na decisão recorrenda.
K. Pese embora esteja em causa um processo de natureza contraordenacional, impunha-se à entidade administrativa respeitar os requisitos legais do art.º 283 do C.P.P..
L. Qualquer decisão administrativa, incluindo quando proferida no âmbito de um procedimento contraordenacional, deve ser devidamente fundamentada mediante a enunciação concreta de factos susceptíveis de integrar os normativos alegadamente violados.
M. Na senda do disposto no n.º 1 do art.º 181.º do Código da Estrada e no art.º 58.º do RGCO, a decisão condenatória deve conter a descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão e a indicação das normas violadas.
N. Sucede que, no caso concreto, a decisão administrativa impugnada não indicou quaisquer meios de prova utilizados, nem explicitou as razões pelas quais se atribuiu valor probatório aos mesmos, nem sequer deu conta dos fundamentos, quer de facto, quer de direito, que conduziram à aplicação da medida de cassação.
O. Embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no âmbito do processo de contraordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que concerne à enunciação dos factos provados, com indicação expressa das provas obtidas.
P. Daqui resulta que a autoridade administrativa, ao aplicar uma decisão definitiva de cassação, goza das mesmas prorrogativas e está submetida aos mesmos deveres da entidade judicial competente para o processo criminal, pelo que está sujeita ao dever de fundamentação da decisão enquanto pressuposto essencial de garantia de defesa dos respectivos destinatários.
Q. Ora, ao abrigo do n.º 13 do art.º 148.º do Código da Estrada, em conjugação com o art.º 132.º do Código da Estrada, segundo o qual as contraordenações rodoviárias são reguladas pelo disposto no presente diploma, pela legislação rodoviária complementar ou especial que as preveja e, subsidiariamente, pelo regime geral das contraordenações, é subsidiariamente aplicável in casu o regime do ilícito de mera contraordenação social e, por sua, vez, as normas do Código Penal e do Código de Processo Penal, nos termos dos art.ºs 32.º e 41.º do RGCO.
R. De acordo com a lei processual aplicável ao presente caso, a omissão de fundamentação da decisão administrativa deve ser equiparada à falta de fundamentação de sentença, o que configura uma nulidade, nos termos do art.º 379.º do C.P.P.,
S. Sendo nula a decisão administrativa que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, a exposição dos motivos de facto e de Direito que fundamentam a decisão e a indicação das provas que serviram para formar a sua convicção.
T. A decisão administrativa impugnada é omissa quanto a factos essenciais à defesa do impugnante, concretamente aqueles que, alegadamente, delimitam o elemento subjectivo, sendo que a mesma nem sequer indica os meios de prova que foram tidos em consideração!
U. A autoridade administrativa limitou-se a transcrever, de forma muito parca e insuficiente, um excerto de um processo de contraordenação que nada influencia o desfecho dos presentes autos, e a mencionar que o impugnante foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez no âmbito de um processo crime, sem, jamais, indicar em que elementos se baseou e como coligiu a informação que serviu de suporte à sua decisão,
V. O que é tanto mais relevante quando a medida aplicada ao impugnante não assenta numa actuação objectiva, mas em conceitos indeterminados, que necessitam de ser adequadamente preenchidos com factos concretos, sob pena de inviabilização do acesso a uma defesa cabal, justa e equitativa.
W. O arrazoado de transcrições e remissões efectuado pela autoridade administrativa não tem qualquer valor probatório.
X. Os pressupostos de aplicação da medida de cassação de carta são vários e a sua verificação tem de ser minuciosa e adequadamente demonstrada e fundamentada, deveres estes que a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária não cumpriu, sendo notória a massificação e automatismo dos seus procedimentos, que se socorrem de fórmulas abstractas, vagas e incaracterísticas e estão pejados de erros técnico-jurídicos inaceitáveis e geradores da nulidade de todo o processo, tal como é o caso da decisão sub iudice.
Y. A decisão que se quer em crise constitui indubitavelmente uma mera descrição “formatada” e ininteligível que não satisfaz minimamente os objectivos e os propósitos que o legislador pretendeu alcançar em matéria de contraordenações rodoviárias, sendo perceptível que se limitou a substituir uma verdadeira descrição dos factos por meras fórmulas-tipo e pela pura e simples remissão para uma qualquer norma, impossibilitando a respectiva compreensão por um leitor/intérprete não qualificado, diante de expressões excessivamente técnicas e complexas, que contribuiu decisivamente para uma interpretação errónea do seu teor.
Z. O impugnante nos presentes autos contraordenacionais é alheio à ininteligibilidade dos mesmos.
AA. A autoridade administrativa, ao não cumprir o dever de fundamentação a que se encontra vinculada, não apresentando quaisquer elementos de facto ou de Direito para aplicar a medida de cassação ao impugnante, agrediu o direito de defesa e exercício do contraditório daquele, direito este que assume tal relevância no nosso ordenamento jurídico que foi consagrado na nossa Lei Fundamental enquanto garantia, cf. consta do n.º 10 do art.º 32 da Constituição da República Portuguesa, sendo que o art.º 161, n.º 2, al. d) do Código de Procedimento Administrativo considera nulo qualquer acto administrativo que ofenda o conteúdo essencial de um direito fundamental.
BB. O invocado vício de falta de fundamentação e a preterição do direito fundamental do impugnante à sua defesa inquinou todo o procedimento em apreço de nulidade, a qual é insanável.
CC. Está em causa uma decisão sustentada numa verdadeira acusação que não contém a narração, ainda que sintética, dos factos, nem das disposições legais aplicáveis, violando o art.º 283.º, n.º 3, als. b) e c) do Código de Processo Penal.
DD. Acresce que a aplicação de uma medida de segurança como a cassação do título de condução (que, embora seja não privativa da liberdade, tem consequências sérias na vida do condutor) tem de ponderar, avaliar e ter em conta os factos em concreto, com valoração e avaliação do perigo efectivo ou abstracto que constituem, o que não sucedeu nos presentes autos.
EE. Sendo nula qualquer decisão que viole um direito constitucionalmente consagrado, os presentes autos têm, forçosamente, de ser declarados nulos.
FF. Acresce que o arguido pagou integralmente a coima que lhe foi aplicada, assim como cumpriu rigorosamente a sanção acessória de inibição de condução nos termos determinados pelo Doutro Tribunal que o condenou, factos estes que o Douto tribunal a quo não considerou.
GG. Ficou ainda por apurar o motivo pelo qual o arguido não frequentou a acção de formação que alegadamente lhe foi notificada e, se o foi, por que razão não justificou a sua falta.
HH. Malogradamente, o arguido nunca percebeu que teria de frequentar a acção de formação a que foi, supostamente, obrigado, facto este de que não teve qualquer consciência.
II. Compulsados os autos, verifica-se que nenhuma prova foi junta aos mesmos de que o arguido tenha sido efectivamente notificado para tanto.
JJ. Não obstante, sem prescindir, sempre se dirá, cautelarmente, que, ainda que o tenha sido, este certamente não foi capaz de interpretar essa notificação de forma adequada, sendo evidente, pela aplicação das regras da experiência comum, que o mesmo não compreendeu o alcance da decisão em causa e as suas consequências (nomeadamente que teria de frequentar uma formação específica sob pena de ficar sem carta de condução).
KK. Se tivesse tido tal noção tudo teria feito para impedir os enormes e irreparáveis prejuízos advindos da cassação da sua carta.
LL. Está, pois, em causa a eventual falta de capacidade de compreensão do alcance de uma medida injuntiva alegadamente imposta ao arguido, que sempre lhe deveria ter sido comunicada de forma clara, explícita e em linguagem acessível a qualquer cidadão colocado na mesma situação (aferição que deve ser feita em função de um padrão de homem médio, colocado nas condições do arguido, com as suas características, o seu grau de cultura e formação, sem perder de vista o agente em concreto).
MM. Sem jamais conceder, sempre se dirá que o presente procedimento se encontra prescrito:
NN. A última condenação aplicada ao arguido transitou em julgado a 28 de Janeiro de 2020.
OO. A decisão recorrenda foi preferida a 23.11.2023.
PP. Estatui o art.º 188.º, n.º 1 do Código da Estrada que o procedimento por contraordenação rodoviária se extingue por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos,
QQ. Determinando o n.º 3 do art.º 28.º do RGCO que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
RR. Tal significa que, tendo em conta que o prazo de prescrição, acrescido de metade, totaliza 3 (três) anos, o presente procedimento se extinguiu por efeito da prescrição no passado dia 28 de Janeiro de 2023, o que desde já aqui se invoca.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância pugnou pela improcedência do recurso e a confirmação da sentença, apresentando as seguintes conclusões:
1. Inconformado, veio o arguido interpor recurso da sentença proferida em 23-11-2023, alegando, em síntese: .i) que, “fazendo tábua rasa do direito de defesa do arguido, e sem estar munido de todos os elementos que lhe permitissem apreciar toda a factualidade relevante para a boa decisão da causa, o Douto Tribunal propôs que a decisão fosse realizada por mero despacho, criando, assim, no arguido, a convicção de que estaria apto a pronunciar-se sobre todos os aludidos factos, o que se verifica agora não ter sucedido” (relevando a não inquirição das testemunhas arroladas e os factos não provados, vertidos em 1. a 4.); .ii) que, “[p]ese embora esteja em causa um processo de natureza contraordenacional, impunha-se à entidade administrativa cumprir os requisitos legais ínsitos no art.º 283.º do C.P.P.”, pelo que a omissão de fundamentação da decisão administrativa advogada deverá ser equiparada à falta de fundamentação de sentença, assim configurando nulidade daquela; .iii) que “a aplicação de uma medida de segurança como a cassação do título de condução (…) tem de ponderar, avaliar e ter em conta os factos em concreto, com valoração e avaliação do perigo efectivo ou abstracto que constituem, o que não sucedeu nos presentes autos”; .iv) que não se logrou provar que o arguido haja sido notificado para frequentar a acção de formação prevista pelo artigo 148.º, n.º 4, al. a) do Código da Estrada; e, finalmente, .v) que “o presente procedimento se extinguiu por efeito da prescrição no passado dia 28 de Janeiro de 2023”.
2. Com o devido respeito, a douta Sentença recorrida fez, no entendimento do Ministério Público, uma correcta avaliação e decisão da matéria de facto, à qual aplicou o adequado Direito.
3. Da decisão proferida por mero despacho judicial, por remissão aos requisitos prescritos pelo artigo 148.º do Código da Estrada, impõe-se salientar, por um lado, que, ainda que tais factos não provados houvessem sido tidos como provados, os mesmos sempre se constatariam irrelevantes para o sentido da decisão, porquanto não se trata a cassação do título de condução em causa de uma sanção acessória ou de uma medida de segurança penal, cuja aplicação dependeria, in concreto, da verificação de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, para a condução, conforme previsto no artigo 101.º do Código Penal, antes se tratando de uma medida administrativa, que se prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, que tem na sua base a finalidade de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas rodoviárias, contraordenacionais ou criminais, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como sejam a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores um tal tipo de condutas comportam, e que ocorre como efeito automático e necessário da perda total de pontos.
4. E, por outro lado, que o Recorrente manifestou, de forma expressa e por requerimento subscrito por Il. Defensora, a sua não oposição a que a decisão recorrida fosse proferida por mero despacho judicial, prescindindo da realização de audiência de julgamento, e, por maioria de razão, da inquirição das três testemunhas que havia arrolado.
5. Como tal, em face da irrelevância da prova testemunhal arrolada (atenta a natureza da medida administrativa aqui em causa) e da posição expressamente manifestada pelo arguido, impõe-se reconhecer que se encontram plenamente preenchidos os requisitos prescritos pelo n.º 2 do artigo 64.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, pelo que sempre se manteve integralmente assegurado o direito de defesa daquele – o qual, diga-se, ora actua em evidente venire contra factum proprium.
6. Da alegada nulidade da decisão administrativa por falta de fundamentação, a decisão revidenda, que antecipadamente sobre estes argumentos se pronunciou, apresenta-se plenamente autodemonstrativa, autossustentável, autoexplicativa e autossuficiente, deitando por terra o esforço, inconseguido, do Recorrente em fazer confundir os institutos da cassação previsto pelo artigo 101.º do Código Penal (medida de segurança) e previsto pelo artigo 148.º do Código da Estrada (medida administrativa).
7. Decisão aquela de onde se lê que, “cotejando a decisão recorrida, que da mesma constam os mesmos elementos acima enunciados (…). (…) [Q]uanto à imputação dos factos ao recorrente a mesma decorre do conteúdo das decisões proferidas no âmbito de processo contraordenação e processo crime, as quais se encontram devidamente identificadas na decisão administrativa (…). Dos autos constam ainda elementos documentais atinentes quer ao processo de contraordenação (…), cuja decisão se tornou definitiva por não ter sido impugnada, bem como, ao processo crime (…), que transitou em julgado, tendo sido averbadas no Registo Individual do Condutor do recorrente (…).
Assim, entende-se que a decisão final, proferida em 07.01.2022, se encontra devidamente fundamentada, uma vez que respeitou o disposto no nº 1 do artigo 181º do Código da Estrada e no nº 1 artigo 58º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, já que, que através da decisão administrativa, é possível discernir as razões pelas quais, atentos os factos descritos e as normas violadas, é aplicada a cassação ao recorrente”.
8. Assim sendo, como bem decidiu o Tribunal a quo – sem desconsiderar a natureza do instituto aqui em causa e, por isso, os elementos probatórios de que depende a legitimidade e a validade da sua aplicação (sobremaneira, das decisões proferidas nos processos contraordenacional e penal em que o Recorrente fora condenado) –, impõe-se reconhecer a suficiente e adequada fundamentação da decisão administrativa recorrida, pelo que nenhuma nulidade se logra identificar.
9. Da não valoração e avaliação do perigo efectivo ou abstrato na decisão administrativa, de forma liminar, não é o ora alegado minimamente transponível para o caso dos autos (em que, repete-se, se encontra em causa a pragmatização da medida administrativa prescrita pelo artigo 148.º do Código da Estrada), sobremaneira, reitera-se, porquanto “a cassação de título de condução ocorre como efeito automático e necessário da perda total de pontos” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-01-2023, (José António Rodrigues da Cunha)).
10. E isso mesmo resulta do texto da decisão recorrida, directamente, da argumentária ali expendida e, querendo-se, no sentido e nos exactos termos do já posto em 3., supra.
11. Mas mais resulta, concorda-se,inexiste qualquer obrigação de indagação em concreto do grau de ilicitude ou culpa do recorrente no cometimento dos factos, pois tais circunstâncias já decorrem da prática de factos ilícitos típicos e censuráveis no âmbito do processo contraordenacional e processo crime em que o mesmo foi condenado.
Acresce que, a consequência prevista neste âmbito – cassação da carta de condução – não é graduável em função da situação pessoal, económica e financeira do recorrente ou da sua reabilitação pessoal. Tal factualidade é irrelevante para a decisão sobre a cassação do título de condução”.
12. Em resultado, como bem decidiu o Tribunal a quo, impõe-se reconhecer, também nesta parte, a suficiente e adequada fundamentação da decisão administrativa recorrida, sopesados que nela foram todos os requisitos prescritos pelo artigo 148.º do Código da Estrada, os quais se esforça o Recorrente por confundir e fazer confundir com os prescritos pelo artigo 101.º do Código Penal.
13. Da não frequência da acção de formação prevista pelo artigo 148.º, n.º 4, al. a) do Código da Estrada, importa sinalizar que o Tribunal a quo teve por provado que “o arguido foi notificado em 24.06.2020 para frequentar a acção de formação prevista na alínea a), do nº 4 do artigo 148º do Código da Estrada” (facto provado vertido em 3.) e que “o arguido não frequentou a acção de formação e nem justificou a sua falta” (facto provado vertido em 4.), e que, nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, se o contrário não resultar daquele diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de Direito, assim que a pretensão do Recorrente de obter, em processo contraordenacional, uma segunda reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação ultrapassa o âmbito de tutela do direito ao recurso.
14. Em face do exposto, e sem mais, sendo essa a pretensão do Recorrente nesta parte, impõe-se reconhecer que a matéria de facto tida por provada e não provada pelo Tribunal a quo deve manter-se inalterada.
15. Finalmente, da alegada prescrição do procedimento de cassação, por aplicação do disposto nos artigos 188.º, n.º 1 do Código da Estrada e 28.º, n.º 3 do Regime Geral das Contra-Ordenações, em causa está a cassação do título de condução como medida administrativa, consequência do estabelecimento de um sistema de pontos, da subtração de pontos ao condutor pela prática de contraordenações estradais e quando se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor, prevista pelo artigo 148.º do Código da Estrada, que é coisa diversa do procedimento por contraordenação rodoviária ou de qualquer coima ou sanção acessória.
16. Assim que, na jurisprudência, “[a] perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, não lhe sendo aplicável os artigos 188.º e 189.º do Código da Estrada” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-10-2021 (Jorge Gonçalves)).
17. Pelo mesmo, também o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-03-2021 (Berguete Coelho): “A cassação da carta nos termos do artº 148º, nºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada (cassação da carta por virtude de condenações em pena acessória de proibição de conduzir) não se trata de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição de dois anos previsto no artº 188º, nº 1, do mesmo Código.”.
18. E, portanto, impõe-se que se considere que não ocorreu prescrição do procedimento ou da medida administrativa da cassação do título de condução.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto apôs “visto”.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. AA, titular da carta de condução nº L-1834689, apresenta um total de quatro pontos, em virtude de do registo de infrações de condutor do arguido, constarem, os seguintes averbamentos:
a) no âmbito do processo de contraordenação n.º ... o arguido foi condenado pela prática de uma contraordenação classificada como grave, por infracção ao disposto no artigo 28º, nº 1, alínea b) do Código da Estrada (o condutor circulava fora da localidade pelo menos à velocidade de 101 km/h, correspondente à velocidade registada de 107 km/h, deduzida a margem de erro legalmente prevista, sendo o limite máximo de velocidade permitido no local de 70 km/h), praticada em 29.08.2017, por decisão administrativa proferida em 02.11.2019, notificada em 07.01.2020, a qual se tornou definitiva em 28.01.2020;
b) no âmbito do processo de contraordenação n.º 408/18.5PGLRS, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, praticado em 19.05.2018, por sentença proferida em 21.05.2018 e transitada em julgado em 20.06.2018.
2. A condenação pela prática das infracções referidas em 1. dos factos provados, determinaram a subtração de dois e seis pontos, repectivamente, ao total de doze pontos detidos pelo arguido.
3. O arguido foi notificado em 24.06.2020 para frequentar a acção de formação prevista na alínea a), do nº 4 do artigo 148º do Código da Estrada.
4. O arguido não frequentou a acção de formação e nem justificou a sua falta.
5. O arguido foi notificado, nos termos do artigo 50º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, para vir ao processo pronunciar-se quanto à proposta de decisão de cassação da sua carta de condução, não tendo apresentado defesa.
6. Há mais de três anos desde a última condenação, em 28.01.2020, não existe qualquer registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções do impugnante.
E deram-se como provados os seguintes factos:
1. O decretamento da cassação teria gravosas consequências para a vida profissional e familiar do arguido porquanto este exerce actividade por conta própria, organizando e realizando eventos em feiras, mercados, exposições, concertos e outros acontecimentos pelo país fora, pelo que, necessita de conduzir de forma a assegurar o seu sustento e o da sua família.
2. O arguido é pai de três menores, que se encontram a frequentar a escola e a creche, estabelecimentos estes que se encontram em sítios distintos (... e ...) e com horários distintos, precisando de conduzir para ir buscar os filhos e evitar que os mesmos fiquem sozinhos à sua espera.
3. O arguido nunca esteve envolvido em qualquer acidente de viação.
4. A conduta do arguido é sempre pautada pelo cuidado, atenção e cumprimento das normas de segurança estradal.
E o Tribunal recorrido fundamentou como segue a decisão de direito:
Dispõe o artigo 1º do Decreto-Lei nº 433/82 de 17 de Outubro, actualizado pelo Decreto Lei nº 244/95, de 14 de Setembro e nº 109/2001, de 24 de Dezembro (RGCO), que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
O direito de mera ordenação social tem consagração constitucional nos termos do artigo 165º, nº 1, alínea d) da Constituição da República Portuguesa, regendo-se pelos princípios da legalidade e da tipicidade (cfr. artigo 32º, nº 1 do mesmo diploma e artigo 1º do RGCO).
As contra-ordenações integram a categoria de direito penal secundário, ou seja, de ilícito de mera ordenação social, com o qual se visa a protecção de bens administrativos, sem ressonância ético-social, daí que caiba às autoridades administrativas, e já não ao poder judicial, a competência para decidir quem pratica tais factos e para aplicar a sanção que lhes corresponde.
Nas palavras de Figueiredo Dias (in Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, pág. 146), “(...) no caso das contra-ordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituido apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.”
De facto, segundo o mesmo Autor (in Direito e Justiça, Volume IV, 1989/1990, pág. 26), “o que no direito de ordenação é axiologicamente neutral não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal – sem prejuízo de, uma vez conexionada com esta, ela passar a constituir substrato idóneo do desvalor ético-social.
Com a entrada em vigor da Lei n.º 116/2015, de 28.08, o legislador estabeleceu um sistema de “carta por pontos”, atribuindo, ab initio, a cada condutor 12 pontos, fixando igualmente um conjunto de circunstâncias que determinam a adição ou perda de pontos e estabelecendo as respetivas consequências, nos termos conjugados dos artigos 121º-A e 148º, ambos do Código da Estrada. O objetivo do legislador com a introdução deste sistema de pontos pode ser indagado da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 336/XII, que deu origem à mencionada lei, que refere “A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública”.
São assim razões de natureza preventiva, de controlo e sinalização da perigosidade dos condutores e de índole pedagógica que estão na origem da criação deste regime, comum em vários países da europa. De forma sucinta, mas bastante assertiva, com a qual se concorda e sem necessidade de maiores considerações, conclui o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 260/2020, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que, “O regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.”
Ora, o recorrente foi sancionado com a cassação do seu título de condução, nos termos do artigo 148º do Código da Estrada.
Estabelece tal normativo legal, na parte que ora importa:
“1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
(…)
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
(…)
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
(…)
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
(…)
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.”
Resulta da materialidade dada como provada que no registo individual do condutor do recorrente se encontra averbada uma decisão administrativa definitiva, proferida pela ANSR, em que o mesmo foi condenado pelo cometimento de uma contraordenação grave, encontrando-se ainda averbada a condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, pela qual foi condenado em pena acessória.
Decorre ainda que tais condenações conduziram, a primeira, à perda pelo recorrente de dois pontos, nos termos do artigo 148º, nº 1, alínea a) do Código da Estrada, e a segunda, à perda de seis pontos, nos termos do artigo 148º, nº 2 do Código da Estrada.
Quer a definitividade das decisões condenatórias, quer os factos que lhes subjazem, ocorreram na vigência da Lei nº 116/2015, de 28 de Agosto, que deu nova redação ao artigo 148º do Código da Estrada. Considerando que o artigo 121º-A, do Código da Estrada, igualmente introduzido pela Lei nº 116/2015, de 28 de Agosto, estabelece que a cada condutor são atribuídos doze pontos, conclui-se, como na decisão administrativa, que as referidas condenações tiveram por efeito, a perda de oito dos doze pontos do recorrente.
Uma vez que ao artigo restaram quatro pontos, ficou também obrigado, tendo em conta o disposto no nº 4, alínea a) do artigo 148º do Código da Estrada, a frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
Sucede que, embora tenha sido regularmente notificado para o efeito, o arguido não frequentou a dita acção de formação, pelo que, confirmando-se a verificação dos pressupostos legais previstos no artigo 148º, nº 8 do Código da Estrada, determinou a aplicação da respetiva sanção de cassação da carta de condução do recorrente.
Por seu turno, inexiste qualquer obrigação de indagação em concreto do grau de ilicitude ou culpa do recorrente no cometimento dos factos, pois tais circunstâncias já decorrem da prática de factos ilícitos típicos e censuráveis no âmbito do processo contraordenacional e processo crime em que o mesmo foi condenado. Acresce que, a consequência prevista neste âmbito – cassação da carta de condução – não é graduável em função da situação pessoal, económica e financeira do recorrente ou da sua reabilitação pessoal. Tal factualidade é irrelevante para a decisão sobre a cassação do título de condução. Conforme decorre do acima esmiuçado, a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos não constitui uma sanção acessória e nem sequer pode ser configurada como uma medida de segurança penal, mas um efeito da sanção acessória de proibição de conduzir, determinada pela segurança rodoviária. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2021, processo n.º 477/20.8T9ALM.L1 -3, disponível em www.dgsi.pt). Não estando em causa uma pena acessória pela prática de crime ou medida de segurança, mas sim uma sanção administrativa e automática, tendo em consideração a ocorrência de determinadas circunstâncias objetivas – perda de pontos – não há que ter em ponderação quaisquer considerações sobre a personalidade ou condições de vida do agente.
Em conclusão, o procedimento administrativo de cassação da carta de condução, é um processo administrativo, legal e conforme a constituição, que decorre da necessidade de regular a atividade da condução, visando proteger interesses superiores como a segurança rodoviária e a integridade física dos seus utentes, utilizando para o efeito um sistema de pontos objetivo, assente na prática de infrações rodoviárias com gravidade, graduado de forma proporcional, consistindo num sistema de adição e subtração, consoante a conduta idónea ou não do condutor.
À data da decisão administrativa – sem prejuízo dos pontos entretanto obtidos pelo arguido no final de um período de três anos após a última condenação, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações - o arguido tinha apenas quatro pontos na sua carta de condução e após ter sido notificado para frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, não o fez sem que tenha apresentado qualquer motivo para tal, motivo por que a cassação haveria de ser, como foi, determinada.
Nestes termos, subsumindo a materialidade dada como assente ao direito aplicável, resulta que da mesma decorre que deverá ser confirmada a sanção de cassação do título de condução do recorrente, nos termos do artigo 148º, nº 8 do Código da Estrada.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Ainda, nos termos do art. 75º do D.L. 433/82 de 27.10, na redacção introduzida pelo D.L. 244/95 de 14.09 (RGCO), o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida, sem prejuízo do princípio da proibição de reformatio in pejus, e podendo anulá-la e devolver o processo ao Tribunal recorrido.
Assim, o recorrente alega que:
- a decisão, por despacho, violou o direito de defesa do arguido;
- a decisão administrativa é nula por falta de fundamentação;
- existe erro de julgamento;
- o procedimento contra-ordenacional está prescrito.
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Da violação do direito de defesa ao decidir por despacho
Alega o recorrente que o Tribunal a quo propôs que a decisão fosse proferida por simples despacho, sem estar munido de todos os elementos necessários e indispensáveis ao proferimento da decisão, induzindo o arguido em erro em virtude de ter criado no mesmo a convicção de que tal decisão seria proferida na posse de todos os elementos probatórios necessários à descoberta da verdade e à justa composição do litígio, o que não se veio a verificar, pois que o Tribunal deu como não provados factos alegados pelo arguido e que não foram verificados, a saber: o decretamento da cassação teria gravosas consequências para a vida profissional e familiar do arguido porquanto este exerce actividade por conta própria, organizando e realizando eventos em feiras, mercados, exposições, concertos e outros acontecimentos pelo país fora, necessitando de conduzir de forma a assegurar o seu sustento e o da sua família; o arguido é pai de três menores, que se encontram a frequentar a escola e a creche, precisando de conduzir para ir buscar os filhos e evitar que os mesmos fiquem sozinhos à sua espera; o arguido nunca esteve envolvido em qualquer acidente de viação e é condutor cuidadoso, atento e cumpridor das normas de segurança estradal.
Por tudo, entende ter ficado violado o seu direito de defesa.
Compulsados os autos verifica-se que, recebidos os autos em Juízo, foi proferido despacho onde se declarou:
«Atento o âmbito decidendo do presente recurso, fixado pelas conclusões apresentadas pelo(a) recorrente, considerando ainda a natureza das questões suscitadas - que se prendem com a omissão de fundamentação da decisão administrativa, inconstitucionalidade da competência do Presidente da ANSR para proferir decisão e falta de notificação do arguido para frequência de acção de formação - e atento os elementos de prova juntos aos autos, entendemos não haver necessidade de realização de audiência de julgamento podendo as mesmas ser decididas através de simples despacho.
*
Notifique o(a) recorrente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 64º, nº 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro - uma vez que o Ministério Público já se pronunciou aquando da apresentação dos presentes autos - para, no prazo de 10 dias, vir dizer se se opõe à decisão por simples despacho, com a advertência de que, nada dizendo, o seu silêncio será interpretado como não oposição.»
Após a notificação, a ilustre Defensora do ora recorrente veio expressamente informar que não se opunha à decisão por despacho (cfr. fls. 130).
Pelo que mal se entende a alegação agora apresentada.
Todavia, sempre se dirá que as condições pessoais do arguido (que este pretenderia provar através do depoimento de testemunhas) eram completamente irrelevantes para o objecto da decisão, pois que a cassação do título de condução do arguido/recorrente, nos termos previstos no art. 148º do Cód. da Estrada (agora em causa) prescinde por completo da análise das condições pessoais do titular da licença a cassar.
Não houve, assim, qualquer violação dos direitos de defesa do recorrente.
Da nulidade da decisão administrativa por falta de fundamentação
Alega o recorrente que a entidade administrativa não respeitou os requisitos legais do art. 283º do Cód. Proc. Penal, não tendo enunciado factos concretos susceptíveis de integrar os normativos alegadamente violados.
E alega que a decisão condenatória também não continha, em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 181º do Cód. da Estrada e no art. 58º do RGCO, a descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão e a indicação das normas violadas, não indicando quaisquer meios de prova utilizados, nem explicitando as razões pelas quais atribuiu valor probatório aos mesmos, ou sequer dando conta dos fundamentos, quer de facto, quer de direito, que conduziram à aplicação da medida de cassação. Conclui que, por isso, a decisão não está fundamentada e que a omissão de fundamentação da decisão administrativa deve ser equiparada à falta de fundamentação de sentença, o que configura uma nulidade, nos termos do art. 379º do Cód. Proc. Penal.
Diz ainda que a autoridade administrativa, ao não cumprir o dever de fundamentação a que se encontra vinculada, ofendeu o direito de defesa e o exercício do contraditório do recorrente, violando o nº 10 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Dá-se aqui por reproduzida a decisão da autoridade administrativa que consta dos autos a fls. 25 ss.
Cremos que a referência, feita pelo recorrente, ao art. 283º do Cód. Proc. Penal, prende-se com o disposto no nº 1 do art. 62º do RGCO, mas ao contrário do que alega o recorrente, enunciou os factos concretos imputados e os normativos violados, encontrando-se apta a valer como acusação.
Quanto à nulidade da decisão administrativa por falta de fundamentação, pronunciou-se desta forma a sentença recorrida:
«A decisão administrativa deve conter os elementos essenciais para, caso haja impugnação, valer como acusação e, caso não haja, valer como decisão condenatória.
Nos termos do artigo 58º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, a decisão que aplica uma coima e sanções acessórias deve conter:
a) a identificação do recorrente;
b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) a indicação das normas segundo as quais pune e a fundamentação da decisão;
d) a coima e as sanções acessórias.
Estando em causa uma decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, pela prática de uma contraordenação rodoviária (tal como vem definida no artigo 131º do Código da Estrada) importa, ainda, ter em atenção o que estabelece o artigo 181º, nº 1 do referido Código da Estrada.
De acordo com o citado preceito, a decisão que aplica a coima ou a sanção acessória deve conter:
- a identificação do infrator;
- a descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão;
- a indicação das normas violadas;
- a coima e a sanção acessória;
- a condenação em custas.
Em face do teor do aludido normativo legal, deverá, pois, concluir-se, que a decisão condenatória da autoridade administrativa deve conter os supra aludidos elementos (podendo a fundamentação, caso o arguido não tenha exercido o direito de defesa, ser feita por simples remissão para o auto de notícia) de modo a assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, o que só é possível com um conhecimento dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram, da respetiva fundamentação e da coima e sanções aplicadas.
Por sua vez, estabelece o artigo 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas que são aplicáveis ao processo contraordenacional os preceitos reguladores do processo penal.
Como é evidente, o direito de mera ordenação social e o respectivo processo têm um carácter simplificado em relacção ao processo penal e, portanto, o grau de exigência de fundamentação é necessariamente menor.
Contudo, em face do disposto no supra referido artigo 58º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, da decisão administrativa devem constar todos os requisitos e especificações que a lei exige que deva conter.
Ora, conforme referem Simas Santos e Lopes de Sousa (in Contra-ordenações - anotações ao regime geral, 4.ª Edição, Fevereiro de 2007, Vislis, página 418), “(...) os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória do processo contra-ordenacional devem ser entendidos como visando assegurar ao recorrente a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso, as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao recorrente o exercício desses direitos”.
Acrescentam ainda tais Autores que “a “descrição sumária” referida na alínea b), não exige a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, que é exigida pelo artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal para as sentenças proferidos em processo criminal. Trata-se, no artigo 58º, nº 1, alínea b), de estabelecer um regime de menor solenidade para as decisões de aplicação de coimas comparativamente com as sentenças criminais, regime esse justificável pela menor gravidade das sanções contraordenacionais.
Ora, no mesmo sentido, pronuncia-se o Acórdão da Relação do Porto de 9 de Fevereiro de 2011, (disponível em www.dgsi.pt), referindo que “o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contra-ordenacional, transcreva a respectiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e das normas imputadas.”
Tendo em consideração o enquadramento legal e jurisprudencial precedentemente referido e revertendo-o ao caso em apreço importa assinalar, cotejando a decisão recorrida, que da mesma constam os mesmos elementos acima enunciados (cfr. fls. 25 e 26).
Note-se que, quanto à imputação dos factos ao recorrente a mesma decorre do conteúdo das decisões proferidas no âmbito de processo contraordenação e processo crime, as quais se encontram devidamente identificadas na decisão administrativa, designadamente a fls. 25 dos autos.
Dos autos constam ainda elementos documentais atinentes quer ao processo de contraordenação (cfr. fls. 5 a 10), cuja decisão se tornou definitiva por não ter sido impugnada, bem como, ao processo crime (cfr. fls. 11 e 12), que transitou em julgado, tendo sido averbadas no Registo Individual do Condutor do recorrente (cfr. fls. 1 e 2).
Assim, entende-se que a decisão final, proferida em 07.01.2022, se encontra devidamente fundamentada, uma vez que respeitou o disposto no nº 1 do artigo 181º do Código da Estrada e no nº 1 artigo 58º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas., já que, que através da decisão administrativa, é possível discernir as razões pelas quais, atentos os factos descritos e as normas violadas, é aplicada a cassação ao recorrente.
Em conclusão, verifica-se que a decisão administrativa não padece de falta de fundamentação, pelo que, cumpre indeferir a nulidade suscitada neste âmbito
Subscrevemos.
É entendimento generalizado de que não se pode exigir que as decisões administrativas tenham o mesmo grau de rigor e exigência de uma sentença penal, nos termos do nº 2 do art. 374º do Cód. Proc. Penal, já que no processo de contra-ordenação não existe a possibilidade de aplicação de sanções privativas da liberdade, não existindo portanto o mesmo grau de agressão dos bens jurídicos fundamentais do cidadão que se verifica no processo penal e, por outro lado, as infracções punidas pelo direito contra-ordenacional são frequentemente cometidas em massa, por centenas ou mesmo milhares de cidadãos, impondo às entidades administrativas, para o seu sancionamento em tempo útil, a adopção de procedimentos céleres e simplificados, sob pena de tais condutas ficarem impunes.
Assim, para que se considere suficiente a fundamentação de uma decisão administrativa bastará que da sua leitura fiquem patentes, para uma pessoa de são e normal entendimento, as razões pelas quais o arguido foi sancionado, de modo a possibilitar a sua impugnação no caso de serem desconformes às normas legais aplicáveis (vide neste sentido o acórdão da Relação de Coimbra de 2.3.2011, Proc. nº 583/09.0T2CBR.C1, in www.dgsi.pt).
Ora a decisão em questão contém a identificação do infractor; a descrição sumária dos factos, das provas e das circunstâncias relevantes para a decisão; a indicação das normas violadas; a decisão condenatória; e a condenação em custas.
Estando em causa apenas prova documental, a decisão da autoridade administrativa identifica os autos de contra-ordenação e o processo crime, referindo quais as respectivas decisões, data da prática dos factos e data de trânsito, indicando ainda quantos os pontos subtraídos e que, restando 4 pontos ao condutor, foi o mesmo notificado em 24.06.2020 para a obrigatoriedade de frequentar a acção de formação prevista na alínea a), do nº 4 do artigo 148º do Cód. da Estrada sem que ele o tivesse feito ou justificado a sua falta.
A decisão em questão indica as normas violadas e conclui com decisão condenatória e condenação em custas.
Repare-se ainda que nem o art. 181º do Cód. da Estrada, nem o art. 58º do RGCO, prevêem expressamente, a análise crítica das provas, limitando-se a prescrever a sua indicação, sendo de concluir que o exame crítico apenas será necessário quando o mero conhecimento pelo arguido dos factos que lhe são imputados e das normas legais que sancionam a conduta, não lhe permita exercer de uma forma efectiva os seus direitos de defesa (apenas na medida em que não o habilite a reconstituir o processo lógico de formação da convicção da entidade administrativa que esteve subjacente à condenação).
Deve assim a fundamentação ser tanto mais pormenorizada quanto mais complexa for a questão a decidir, sendo que quando esta se reveste de extrema simplicidade não existe qualquer necessidade de se efectuar uma análise crítica da prova, por ser patente para qualquer pessoa em face dos factos imputados e das respectivas provas, acrescidos das respectivas normas sancionadoras, as razões da condenação (vide neste sentido o acórdão da Relação de Guimarães, de 24.09.2007, Proc. nº 1403/07-1, in www.dgsi.pt).
Tal é, precisamente, o caso dos autos, considerando que a prova a analisar é apenas documental.
Compulsando a decisão da autoridade administrativa, verificamos que ao arguido foram fornecidas as razões de facto (e de direito) básicas que conduziram à sua condenação, tendo, por consequência, sido facultada a possibilidade daquele fazer um juízo de oportunidade sobre a viabilidade da sua impugnação judicial, tendo ainda, e além do mais, sido possível ao Tribunal conhecer e controlar o processo de formação da convicção da entidade administrativa.
Não ocorre, pois, a nulidade alegada, nem se mostram violados os direitos de defesa e o exercício do contraditório do recorrente consagrados na Constituição da República Portuguesa.
Do erro de julgamento
Alega o recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração que pagou integralmente a coima aplicada e que cumpriu rigorosamente a sanção acessória de inibição de condução; que nenhuma prova foi junta aos autos de que tenha sido efectivamente notificado para frequentar acção de formação e por que razão não o fez nem justificou a sua falta, pois nunca percebeu que teria de frequentar obrigatoriamente a acção de formação.
Cumprirá recordar que, nos termos do art. 75º do D.L. 433/82 de 27.10, na redacção introduzida pelo D.L. 244/95 de 14.09 (RGCO), o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, considerando-se fixada a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido (mas sempre diremos que a cassação do título de condução prevista no art. 148º do Cód. da Estrada não é por qualquer forma influenciada pelo pagamento da coima/pena ou pelo cumprimento da sanção/pena acessória respeitante às infracções que determinaram a subtracção de pontos do condutor; e que a prova da notificação ao recorrente para frequentar a acção de formação e da sua obrigatoriedade constam dos autos de fls. 15 a 17, sendo que tal notificação é perfeitamente clara para qualquer homem médio quanto à necessidade de frequentar a acção do formação e consequências do não cumprimento).
Da prescrição do procedimento contra-ordenacional
Alega o recorrente que o procedimento se encontra prescrito, considerando que a última condenação que sofreu transitou em julgado a 28.01.2020 e nos termos do art. 188º, nº 1 do Cód. da Estrada o procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos, determinando o nº 3 do art. 28º do RGCO que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade.
A cassação do título de condução em análise é uma medida administrativa, consequência do estabelecimento de um sistema de pontos, em vigor desde 1.06.2016, data da entrada em vigor da Lei 116/2015 de 28 de Agosto que procedeu à alteração do Código da Estrada (cfr. o art. 121º-A do Cód. da Estrada), e é aplicável após a subtração de todos os pontos ao condutor pela prática de contraordenações estradais em conformidade com o disposto no art. 148º do Cód. da Estrada. Este sistema tem na sua génese o entendimento que o direito ao exercício da condução não é um direito inato e absoluto: está sujeito a regulação e regulamentação; só pode ser exercido por quem se encontra habilitado para o efeito; e a conservação do título fica sujeita à adopção de um bom comportamento estradal. Verificando-se a perda de pontos, o presidente da ANSR actua sem qualquer discricionariedade na emissão de declaração de cassação, uma vez que tal perda operada em consequência das condenações sofridas sinaliza o condutor em causa, como detentor de um grau de perigosidade tal que o impede de continuar a conduzir.
É precisamente a sucessão de condenações que justifica o processo administrativo, autónomo, de cassação da carta de condução previsto no citado art. 148º.
Trata-se, assim, de um processo que não se confunde com um procedimento por contraordenação rodoviária punível com coima e/ou sanção acessória de proibição de conduzir, pelo que não se aplica ao processo de cassação o disposto no art. 188º, nº 1, do Cód. da Estrada.
No sentido de que “[a] perda de pontos não é uma coima, nem uma sanção acessória, não lhe sendo aplicável os artigos 188.º e 189.º do Código da Estrada”, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.10.2021 (Proc. 326/20.7Y5LSB,L1-5); e no sentido de que “A cassação da carta nos termos do artº 148º, nºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada (cassação da carta por virtude de condenações em pena acessória de proibição de conduzir) não se trata de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição de dois anos previsto no artº 188º, nº 1, do mesmo Código”, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.03.2021 (Proc. 38/20.1T8ODM.E1) – ambos citados pelo Ministério Público na resposta.
Mas ainda que se entenda que o procedimento para cassação do título de condução, que é um processo autónomo, está sujeito ao prazo de 2 anos previsto para o procedimento por contraordenação rodoviária (art. 188º, nº 1 do Cód. da Estrada), temos que, no caso concreto, o prazo em questão nunca se poderia contar a partir da data da última infração que determinou a perda de pontos, ou sequer do momento em que a perda de pontos se tornou definitiva. Com efeito, porque neste caso a perda total de pontos derivou da não frequência de acção de formação obrigatória, o prazo só poderia contar-se a partir do último dia do prazo concedido para a inscrição na formação obrigatória: 10 dias úteis após a notificação para o efeito ocorrida em 24.06.2020, ou seja, 9.07.2020.
Porém, o nº 2 do citado art. 188º preceitua que o procedimento por contraordenação rodoviária está sujeito ao regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, interrompendo-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória.
Ora, nos termos do nº 1 do art. 28º do Regime Geral das Contra-ordenações, “a prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se: a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou qualquer notificação; b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa; c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito; d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima”.
No caso, verificaram-se várias causas de interrupção do prazo em curso:
- a 3.08.2021, quando o arguido foi notificado para exercer a defesa;
- a 7.01.2022, com a decisão da autoridade administrativa;
- a 7.02.2022, quando o arguido foi notificado da decisão da autoridade administrativa;
- a 17.10.2023, quando o arguido foi notificado do despacho que procedeu ao exame preliminar da impugnação judicial.
Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição (cfr. o nº 2 do art. 121º do Cód. Penal), mas sem esquecer que, nos termos do nº 3 do art. 28º do Regime Geral das Contra-ordenações, “a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescida de metade”, no caso, 2 anos + 1 ano.
Acontece que, para além da interrupção, o prazo de prescrição suspendeu-se, em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 27º-A do Diploma que se tem vindo a citar, nos termos do qual a prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
“b) estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do art. 40º;
c) estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso”.
Porém, conforme preceitua o nº 2 do art. 27º-A citado, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.
Tudo verificado, temos que o prazo prescricional teria ocorrido em 9.01.2024 (2 anos + 1 ano + 6 meses).
Todavia, o referido prazo também se suspendeu durante o período em que vigorou o estado de emergência, por força da pandemia da doença COVID-19 (entre 22.01.2021 e 5.04.2021, num total de 74 dias – cfr. art. 4º, da Lei 4-B/2021, de 1.02 e art. 7º, da Lei 13-B/2021, de 5.04), pelo que o prazo prescricional só ocorreria em 23.03.2024.
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Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.

Lisboa, 20.02.2024
Alda Tomé Casimiro
Mafalda Sequinho dos Santos
Luísa Oliveira Alvoeiro