Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4/20.7GDMFR.L1-5
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
CAUSAS DE SUSPENSÃO LEIS COVID
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I - Nos termos do disposto no art.º 120º, nº 1 al. b) do Código Penal, a prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação, ou seja até ao trânsito em julgado da decisão final, suspensão esta que não pode, porém, ultrapassar 3 anos (art.º 120º, nº2, do Código Penal).
II – Nesta causa se suspensão da prescrição a intenção do legislador foi fixar um período razoável para a conclusão do processo, e tal intenção encontra respaldo na letra da lei pois foi definido que a suspensão se mantém após a notificação da acusação e enquanto o procedimento criminal “estiver pendente”.
III – A consagração das causas de suspensão da prescrição introduzidas pelo art.º 7º, nº 3 da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março e pelo art.º 6º-B nº 3 e 4 da Lei nº 4-B/2021 de 1 de fevereiro, não decorreu de um qualquer objetivo de politica criminal, mas antes de uma situação de emergência sanitária que originou a quase total paragem da atividade judiciária e a que se impunha responder para salvaguarda de todos, incluindo os arguidos.
IV – Surgindo, pois, em tal contexto e com tal objetivo inexiste qualquer violação do princípio da confiança dos cidadãos e da comunidade e das expectativas eventualmente criadas, já que a situação absolutamente excecional que levou à sua consagração legal, era imprevisível à data da prática dos factos, e a resposta dada pela Assembleia da República, através das mencionadas normas visou, precisamente, reagir a tal gravidade e excecionalidade.
V – Neste contexto, as causas de suspensão da prescrição estabelecidas no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e no art.º 6º-B, nº 3 e 4 da Lei 4-B/2021 de 1 de fevereiro apenas se encontrariam aptas a cumprir tal função se pudessem aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência e durante o período temporal durante o qual se verificou o referido condicionamento da atividade nos tribunais, como efetivamente ocorreu.
VI – Deste modo, estas causas de suspensão da prescrição não se encontram abrangidas, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes, como já decidido pelo Tribunal Constitucional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito dos autos de instrução n.º 4/20.7GDMFR que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Sintra – Juiz 2 foi proferido a 21.03.2023, o seguinte despacho [transcrição]:
“Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra AA, a quem imputou a prática, em autoria material e sob a forma consumada, um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º do Cód. Penal (na pessoa do ofendido BB) e um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1 a) e n.º 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. e) parte final, todos do Código Penal (na pessoa do ofendido CC);
AA e DD, em coautoria material, sob a forma consumada e em concurso efetivo (quanto a AA), um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1 a) e n.º 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. e) parte final e h), primeira parte, todos do Código Penal (na pessoa do ofendido EE).
Previamente à dedução da acusação pública foi dado cumprimento ao disposto no artigo 285.º n.ºs 1 e 2 do CPP e, na sequência desta deduzida acusação particular por FF contra EE a quem imputou a prática de um crime de injúria, p e p pelo artigo 181.º do C. Penal, acusação que o Ministério Público veio a acompanhar.
Por não se conformar com a acusação contra si deduzida veio o arguido EE requerer a abertura da fase de instrução.
Cumpriria neste momento apreciar o requerimento de abertura da fase de instrução. Acontece, porém, que existe uma questão prévia que o tribunal irá conhecer de imediato a fim de evitar a prática de atos inúteis.
Da prescrição do procedimento criminal relativamente ao crime de injúria, p e p pelo artigo 181.º do C. Penal.
A factualidade que respeita ao crime imputado ao arguido EE ocorreu na noite de 28 para 29 de fevereiro de 2020.
Atenta a moldura penal que ao crime corresponde, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de dois anos (artigo 118º al. d) do Código Penal).
O prazo de prescrição corre desde o dia em que o facto se tiver consumado – artigo 119.º n.º 1 do C. Penal.
Nos termos do disposto no artigo 121º n.º 3 do Código Penal, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
Inexistindo motivo de suspensão do procedimento, a prescrição terá lugar decorridos que sejam três anos sobre a prática dos factos.
Considerando que os factos foram praticados na noite de 28 de fevereiro de 2020, do mero confronto de datas resulta evidente que, não obstante a interrupção verificada com a constituição como arguido, em 14 de Setembro de 2021, mostram-se decorridos desde 28 de fevereiro de 2023, 3 anos sobre a data da prática dos factos, pelo que, à data em que os autos foram distribuídos para instrução já se encontrava prescrito o procedimento criminal.
Destarte declara-se extinto, por prescrição o procedimento criminal pelo crime de injúria imputado a EE - (artigos 118º al d), 119º n.º 1 e 121º n.º 3, todos do C.Penal).
Notifique e comunique superiormente.
Não é devida tributação.
Após trânsito, remeta os autos à distribuição para julgamento.”
*
I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Mº Público, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“III. CONCLUSÕES
1. Por decisão proferida a 21.03.2023 decidiu a Mm.a JIC declarar extinto, por prescrição do procedimento criminal, o crime de injúria imputado a EE, apelando ao disposto nos arts. 118º al d), 119º n.º l e 121º n.º 3, todos do Código Penal.
2. A Mm.º Juiz de Instrução Criminal considerou, então, que “A factualidade que respeita ao crime imputado ao arguido EE ocorreu na noite de 28 para 29 de fevereiro de 2020. Atenta a moldura penal que ao crime corresponde, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de dois anos (artigo 118o al. d) do Código Penal). O prazo de prescrição corre desde o dia em que o facto se tiver consumado — artigo 119.º n.º 1 do C. Penal. Nos termos do disposto no artigo 121º n.º 3 do Código Penal, a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Inexistindo motivo de suspensão do procedimento, a prescrição terá lugar decorridos que sejam três anos sobre a prática dos factos. Considerando que os factos foram praticados na noite de 28 de fevereiro de 2020, do mero confronto de datas resulta evidente que, não obstante a interrupção verificada com a constituição como arguido, em 14 de setembro de 2021, mostram-se decorridos desde 28 de fevereiro de 2023, 3 anos sobre a data da prática dos factos, pelo que, à data em que os autos foram distribuídos para instrução já se encontrava prescrito o procedimento criminal. Destarte declara-se extinto. por prescrição o procedimento criminal pelo crime de injúria imputado a EE - (artigos 118º al d), 119º n. 7 e 121ºn.º3, todos do C.Penal).”
3. Decisão da qual não podemos, de todo, concordar.
4. Analisados os autos vemos que, no âmbito do nuipc 392/20.5 T9MFR, ao presente incorporado, FF queixou-se de EE, alegando, entre mais, que este no dia 28.02.2020, pelas 23h00, junto ao restaurante “...” na ..., o terá insultado, chamando-o “filho da puta, cabrão”. Factos que, a provarem-se, são suscetíveis de configurar o crime de injúria, previsto no art.º 181.º do Cód. Penal e punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
5. No que à prescrição do procedimento criminal diz respeito, dispõe o art.º 118º, n.º 1, al. d) do C.P, que nos crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for inferior a 1 ano de prisão o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime, tiverem decorrido 2 anos.
6. Neste caso, é, pois, de 2 anos, o prazo de prescrição aplicável, correndo o mesmo desde o dia em que o facto se tiver consumado (art.º 119.º, n.º 1 do CP).
7. Acontece que, sobre tal prazo ocorreram não só causas de interrupção como causas de suspensão dessa prescrição do procedimento criminal.
8. A primeira das causas de interrupção ocorridas verificou-se aquando a constituição de arguido de EE, como tal, operada a 14.09.2021 - art.º 121.º/1 a) do CP. Depois desta interrupção começou a correr novo prazo de prescrição (n.º 2 do citado preceito), sendo que, por força do preceituado no n.º 3, aquela, teria sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tivesse decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade (no caso, 3 anos).
9. Assim, até aqui, caso nenhuma outra causa de suspensão ou interrupção tivesse ocorrido, a prescrição do procedimento criminal ocorreria a 28.02.2023.
10. Acontece que, ocorreu uma nova interrupção da prescrição do procedimento criminal (art.º 121.º/1 b) do CP), a qual também constitui também causa de suspensão (art.º 120.º/1 b) do C.P), a 08.02.2023. com a notificação da acusação particular deduzida pelo assistente FF e respetivo acompanhamento por parte do Ministério Público ao arguido EE.
11. Sabemos, pois, que na interrupção, o tempo decorrido antes da verificação da sua causa fica sem efeito, começando a correr novo prazo de prescrição depois de cada interrupção, enquanto que na suspensão, o tempo decorrido antes da verificação da sua causa conta para a prescrição, juntando-se com o tempo decorrido após a mesma ter desaparecido.
12. Dispõe, a al. b) do n.º 1 do art.º 120º do CP, este epigrafado de "Suspensão da prescrição", que: “A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo”.
13. Referindo os n.ºs 2 e 3 de tal normativo que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar 3 anos sendo que “A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão”.
14. Ou seja, a prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão, não podendo, contudo, esta ultrapassar três anos quando respeitar à notificação da acusação.
15. Ora, desde o mencionado dia 28.02.2020 e, se não houvesse, como há, a causa de suspensão da prescrição, poder-se-ia defender uma eventual prescrição do procedimento criminal, tal como fez a Mm.ª JIC, porquanto, tendo em conta que desde o mencionado dia, já teria decorrido, em relação ao mesmo, o prazo normal de prescrição acrescido de metade (3 anos) - art.º 121.ºnº3, do C. Penal.
16. Porém, a Mm.º JIC não teve em consideração que a notificação da acusação efetuada ao arguido EE, ocorrida a 08.02.2023 constitui também causa de suspensão da prescrição, voltando esta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão, que no caso não pode ultrapassar três anos.
17. Com efeito, na contagem do prazo de prescrição há que considerar o mencionado período de três anos subsequente à notificação da acusação, conforme, aliás, defende a maioria da doutrina e jurisprudência.
18. Veja-se a titulo meramente exemplificativo o acórdão proferido pelo STJ, proc. n.º 263/06.8JFLSB.L1.S1TRG, de 20.01.2012 e um excerto do sumário do acórdão proferido pelo TRG, proc. n.º 570/09.8TAVNF-G.G1, de 29.04.2019, que se reproduz: “I) De acordo com a alínea b), do nº1, do art.º 120, a prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação, suspensão esta que não pode, porém, ultrapassar 3 anos, cfr. resulta do nº2, do citado art.º 120º. (...) III) Nesta específica causa de suspensão a intenção do legislador foi fixar um período razoável e adequado para a conclusão do processo: o legislador, ciente de que com a dedução de acusação se abre uma nova fase do processo penal (instrução ou julgamento), com o consequente diferimento/protelamento do terminus do processo, quis levar em conta esse facto na contagem do prazo de prescrição, tendo em conta o interesse da eficácia penal. Mas não quis permitir o protelamento indefinido da suspensão, como sucedia no domínio do C. Penal de 1886, pelo que, ponderando o interesse da celeridade, limitou esse período a três anos. IV) Tal intenção foi clara e vem-se mantendo: a suspensão mantém-se após a notificação da acusação e enquanto estiver pendente” o procedimento criminal, independentemente das vicissitudes pelas quais o procedimento se mantenha pendente - sejam elas decorrentes da tramitação do processo e imputáveis ao tribunal, sejam elas devidas ao comportamento dos sujeitos processuais - sendo que este se mantém pendente desde que se inicia até que termina (…).
19. Em suma, considerando as ditas causas de interrupção da prescrição do procedimento criminal e mencionada causa de suspensão, no presente caso, desde a consumação do crime (28.02.2023), não decorreu o prazo normal de prescrição de 2 anos acrescido de metade (ou seja 3 anos).pois há que descontar neste o prazo de suspensão de 3 anos, contados a partir da notificação da acusação efetuada ao arguido, ocorrida a 08.02.2023. Logo, e ao invés do decidido, não se mostra extinto o procedimento criminal pelo crime de injúria imputado a EE.
20. Ademais, a par desta causa de suspensão da prescrição, não podemos deixar de referir ainda, a suspensão operada por força dos regimes excecionais de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais relativos à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19.
21. Por força da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, n.ºs 3 e 4 do art.º 7.º, vigorou um primeiro prazo de suspensão desse procedimento, entre o dia 09 de março de 2020 até ao dia 03 de junho de 2020, num total de 87 dias (cfr. art.º 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e arts. 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29 de maio).
22. Posteriormente, voltou a vigorar um novo regime de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais introduzido pelo n.º 3 do art.º 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que vigorou entre 22 de janeiro de 2021 até ao dia 5 de abril de 2021, num total de 74 dias (cfr. art.º 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e art.º 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril).
23. Pese embora exista alguma divergência jurisprudencial quanto à aplicação deste regime de suspensão de prazos de prescrição quanto a factos praticados anteriormente à vigência da sua suspensão, defendemos aqui aquela que assim o considera.
24. E isto porque note-se, desde logo, que os factos aqui em causa, apesar de terem ocorrido antes da entrada em vigor de tais regimes, ocorreram a 28.02.2020, ou seja, poucos dias antes dessa publicação.
25. Aliás, e fazendo jus aos argumentos a favor da sua aplicação, naquele período vivia-se uma situação absolutamente anormal, com a maioria do país (e do mundo) confinado, como que “congelado”, não podendo as pessoas saírem livremente de casa, para trabalhar, irem às compras e/ou viver em sociedade, com tudo o que implicou, em especial e também ao nível judicial.
26. Nessa altura razões de superior interesse público se sobrepuseram ao andamento dos prazos processuais, implicando a publicação de leis e diplomas, com a aplicação de medidas destinadas a conter o risco de contágio e propagação de doenças excecionais, como foi a da suspensão temporária dos prazos de prescrição do procedimento criminal. Realce-se que durante tal tempo o Estado foi inerte ou incapaz de realizar a aplicação do Direito, a qual foi afetada pela pandemia.
27. Assim, não se aplicar aqui tal regime excecional de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento criminal, é ir contra a razão de ser da sua publicação e a intenção do legislador, prejudicando, em grande medida, os direitos das vítimas.
28. Portanto e por fim, ao considerar, no presente caso, também aplicável este regime excecional, não ocorreu de todo qualquer prescrição do procedimento criminal do referido crime de injúria.
29. Termos em que, deverá o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, ser o despacho recorrido, que considerou extinto, por prescrição o procedimento criminal pelo crime de injúria imputado a EE, objeto de revogação, e substituído por outro, o qual passará pela prolação de despacho de abertura de instrução para comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, no que ao dito crime diz respeito.
Em conformidade, propugna-se pela procedência do presente Recurso,
assim decidindo Vossas Excelências farão a costumada Justiça!”
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O recurso não foi admitido.
Foi deduzida reclamação nos termos do disposto no art.º 405º do Código de Processo Penal, que foi deferida por decisão da Exma. Senhora Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa.
*
Foi então proferido despacho de admissão a 14.11.2023.
*
I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, veio o arguido responder ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“III. CONCLUSÕES
I.
Primeiras palavras
1) Tendo sido requerida a Abertura da Instrução por parte do EE quanto ao crime de Injúria por que vinha acusado, em 21.03.2023 foi proferida Decisão Instrutória através da qual foi declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal, em conformidade com o prescrito no artigo 121.º, n.º 3, do CP.
2) Inconformado com a Decisão Instrutória proferida, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, com fundamento da existência de causas de interrupção e suspensão do prazo prescricional que não foram devidamente tidas em consideração pelo Tribunal a quo.
3) Não assiste qualquer razão ao Ministério Público, não devendo ser o aduzido na respetiva Motivação de Recurso considerado procedente (devendo, ao invés, confirmar-se o decidido pelo Tribunal a quo).
II.
Da prescrição do procedimento criminal quanto ao crime de injúria
Da aplicação do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal nos presentes autos: do tempo de suspensão a considerar para efeitos de contabilização do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal
4) Entende o Ministério Público, que, em decorrência da verificação da causa de suspensão do prazo da prescrição do procedimento criminal prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do CP, a saber a notificação da Acusação Particular ao EE, o Tribunal a quo, na contagem do prazo prescricional, deveria ter ressalvado o tempo de suspensão de 3 (três anos), tendo em consideração do disposto no n.º 2 do artigo 120.º do CP.
5) Conforme aduzido na jurisprudência, decorre da interpretação conjugada do normativado no n.º 1 alínea b) e n.º 2 do artigo 120.º do CP, que a suspensão da prescrição do procedimento criminal apenas ocorre quando têm lugar determinados eventos que excluem a possibilidade do procedimento se iniciar ou continuar - cessando a mesma quando se esfumam tais causas impeditivas do normal andamento dos autos.
6) Deve ser considerado que o procedimento criminal apenas se encontra “pendente” e, nessa medida, suspenso, se alguma causa vigorar, desde a dedução do libelo acusatório, que impeça o seu normal prosseguimento, mas só nestes casos.
7) A norma que resulta do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Penal, na interpretação segundo a qual, o prazo de prescrição do procedimento criminal, não obstante não existir qualquer circunstância impeditiva do seu normal andamento, fica suspenso, caso a última decisão a proferir não transite em julgado em momento anterior, por um período máximo de 3 (anos) após a notificação do despacho de acusação, é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1 e 2 da CRP — inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa desde já arguida.
8) No caso dos presentes autos, não existiu qualquer obstáculo ao normal andamento do processo-crime, que determine a aplicação da causa de suspensão prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do CP, devendo, por isso, ser mentida a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
9) Ainda que assim não se entenda (no que não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona), a causa de suspensão em apreço sempre teria cessado com a apresentação do Requerimento para Abertura da Instrução por parte do Arguido - cenário em que apenas se deveria acrescer o período de suspensão de 20 (vinte) dias, encontrando-se o presente procedimento criminal prescrito desde 20.03.2023 -; ou, caso assim também não se entenda (no que também não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona), a causa de suspensão em apreço cessou com a prolação da Decisão Instrutória - cenário em que apenas se deveria acrescer o período de suspensão de 41 (quarenta e um) dias, encontrando-se o presente procedimento criminal prescrito desde 10.04.2023.
10) Ainda que seja de conceder parcial provimento ao Recurso apresentado pelo Ministério Público, no que respeita à ocorrência de uma causa de suspensão não considerada pelo Tribunal a quo, deve ser, por este Tribunal ad quem, mantida a decisão de declaração de extinção do procedimento criminal no que respeita ao crime de injúria por que vinha o EE acusado, procedendo-se à mera correção da data de extinção do procedimento criminal por efeito de prescrição.
B)
Da inaplicabilidade dos regimes excecionais processos-crime por factos ocorridos antes da sua vigência
11) Na sua Motivação de Recurso, o Ministério Público veio, ainda, sustentar que não foi devidamente contabilizado pelo Tribunal a quo a causa de suspensão estatuída nos regimes excecionais constantes da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, relativas à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19.
12) Conforme resulta de diversa jurisprudência, a causa de suspensão prevista em tais regimes excecionais não é aplicável processos-crime relativos a factos anteriores à sua vigência, devendo, assim, ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
13) A norma que resulta do artigo 7.º, n.ºs 2, 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, do artigo 6.º-B, n.º 3, da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e do artigo 2.º do Código Penal, na interpretação segundo a qual é aplicável uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal a factos anteriores à sua vigência, ou seja é aplicável retroativamente (i.é. aplicação de uma causa de suspensão do procedimento criminal a factos praticados em momento anterior à entrada em vigor do respetivo regime jurídico que a consagrou), é, nessa interpretação, materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, 19.º n.ºs 2 a 8 (em especial o n.º 6), 20.º, n.º 4, e 29.º, da CRP - inconstitucionalidade que, para todos os efeitos legais, se deixa desde já arguida.
14) Em todo o caso, ainda que fosse de aplicar o disposto na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e na Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro quanto à suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal o procedimento criminal quanto ao crime de injúria por que vinha o Arguido acusado sempre se encontraria já prescrito desde 07.08.2023, ou desde 27.08.2023 ou, no limite, desde 17.09.2023.”
*
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmª Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos [transcrição]:
“PARECER (art.º 416º,1, CPP)
Vem interposto pelo MºPº Recurso, relativamente ao douto Despacho de 21.03.23, que declarou prescrito o procedimento criminal pelo crime de injúrias, p. e p. pelo art.º 181º, CP, e, consequentemente, extinta a responsabilidade criminal, nesse segmento acusatório, por força do decurso do prazo máximo legal (art.ºs 118º, 1, d), e 121º, 3, CP), tendo em conta a mera interrupção da prescrição (art.º 121º, a), CP), em 14.09.21, sem a virtualidade, porém, de ser obstativa da ocorrência daquele prazo limite (art.º 121º,3, “ a contrario”, CP).
Sustenta a Exmª PR recorrente que a Mmª Juíza “a quo” olvidou que emergiu nos autos outra causa interruptiva (art.º 121º, 1, b), CP) simultaneamente suspensiva do normal decurso do prazo prescricional (art.º 120º, 1, b), CP), aquela sem interferir no normal decurso do prazo máximo prescricional (art.º 121º, 3, CP), mas a última já operante e produtora da paragem dessa contagem, e pelo período máximo de 3 anos (art.ºs 120º, 2 e 6, e 121º, 3, CP).
Propendemos a aderir à tese recursória e pretensão/consequência que lhe vem associada, ou seja, a de ser declarada aberta a Instrução oportunamente requerida a seu respeito, declarando-se válido o procedimento criminal.
A contra-argumentação do arguido respondente, pese a valiosa e meritória argumentação, não logra remover a consistente fundamentação suscitada pela Srª Magistrada recorrente, quer no plano da suspensão “ordinária” prevista no CP, quer no tocante à excepcional e temporária decorrente da fase pandémica que o Mundo e a humanidade vivenciaram.
O instituto da prescrição, de cariz substantivo ou misto, é regulado pelo legislador em termos de gizar o justo equilíbrio entre a intenção e interesse do exercício do “jus puniendi” pelo Estado e a razoável exigência de que ele ocorra em tempo útil, ainda capaz de ser comunitariamente reconhecido como necessário, imperativo e reparador da lesão de bens jurídicos essenciais à convivência e à paz sociais.
Ora, nesse contexto, é o sistema de Justiça que fica inibido de agir quando ultrapassados prazos insusceptíveis de assegurar a concretização daqueles desígnios, períodos que são legalmente fixados (art.ºs 118º, CP), mas com a prudente volatilidade, para prevenir circunstancialismos específicos capazes de prorrogar esses horizontes temporais (art.ºs 120º e 121º, CP), regime que tem paralelo com as próprias penas (art.º 122º, 125º e 126º, CP), por identidade de razões.
“In casu”, com a notificação da Acusação (particular, acompanhada pelo MºPº), reacendeu-se o interesse na prossecução penal, dado que ao pretenso agente da infracção foi dado conhecimento actual desse propósito, prevenindo-o da existência e pendência duma consolidada imputação criminal sobre si, o qual não pode deixar de estar ciente da acção penal em curso.
Por isso, o legislador ergueu a comunicação com essa virtualidade de renovar a vontade de proceder a Julgamento, embora sinalizando limite temporal inultrapassável (art.º 120º, 2 e 4, CP), vinculando o sistema de Justiça, equilibradamente, a dinamizar o processado para esse fim indeclinável, sob pena de sobrevir, irreversivelmente, então, a renúncia estatal ao exercício do direito de punir (art.º 121º,3, CP).
Apesar da tese respondente, arrimada em doutrina e jurisprudência citadas, não vemos que o requerimento de abertura de instrução ou a subsequente Decisão Instrutória logrem funcionar como causas de cessação da suspensão em curso, após a notificação da Acusação, inoperando-a e obstando ao aproveitamento do prazo limite de 3 anos (art.º 120º, 2, CP), porquanto esse condicionamento não flui, salvaguardado outro entendimento, do texto e regime legais convocáveis, que antes relevou aquele marco processual,
Já quanto ao regime excepcional de suspensão das Leis 1-A/20 , 19.03, e 4-B/21, 1.02, diremos que, sendo controverso, por razões de (in) constitucionalidade (focadas na Resposta) , que gravitam em torno da irretroactividade da lei penal (dada a natureza material do instituto da prescrição), igualmente não podemos negligenciar a completa e prolongada estagnação judiciária inimputável ao Estado, circunstância inibidora do normal desenvolvimento processual, mesmo quanto a processos e factos anteriores à sua vigência, sendo legítimo a ponderação da sua aplicabilidade.
Donde que se propugne pela manutenção da validade do procedimento criminal, neste particular, atenta a data da consumação do ilícito (art.º 119º,1, CP), em 28.02.20 e a correspondente à notificação da Acusação (8.02.23)”.
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I.5. Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio o arguido apresentar resposta ao sobredito parecer, reiterando a posição já manifestada nos autos.
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I.6. Concluído o exame preliminar, onde foi apreciada a admissibilidade e efeitos do recurso, nos termos do disposto no art.º 417º, nº 1 e 7 do Código de Processo Penal, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal2.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
• Da verificação da prescrição do procedimento criminal pelo imputado crime de injúria.
II.2 – Com relevo para as questões a conhecer importa ainda o teor em conta as seguintes decisões e tramitação processual.
- O denunciado EE foi constituído na qualidade de arguido a 14.09.2021 (refª citius 19516410).
- A 30.01.2023 foi deduzida acusação particular por FF contra EE imputando-lhe a prática de um crime de injúria previsto e punível pelo art.º 181 do Código Penal, por factos alegadamente praticados na noite de 28 de fevereiro de 2020.
- A 31.01.2023 o Mº Público, para além de deduzir acusação pública contra outros arguidos, proferiu o seguinte despacho: “IV. Do acompanhamento da acusação particular nos termos e para efeitos do disposto no art.º 285.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, o Ministério Público acompanha a acusação deduzida pelo assistente EE, para julgamento em processo comum e com a intervenção do Tribunal Singular, contra o arguido:
EE, nascido a ........2003, filho de GG e de HH, residente na ... (TIR fls. 105 do nuipc 392/20.5 T9MFR),
Pelos factos ai descritos no art.º 1.º na parte “no dia 28.02.2020, pelas 23h00, junto ao restaurante “...” na ...”, no art.º 3.º na parte “o arguido (…) EE insulta (…) o assistente chamando-o “filho da puta, cabrão” e no art.º 6.º na parte “o arguido (…) continuou a chamar nomes, insultando o assistente de “filho da puta”, “cabrão” (entendendo-se que a demais factualidade elencada não é suscetível de integrar a tutela penal da honra e consideração prevista do art.º 181.º do Cód. Penal, mas eventualmente de outro, como seja o previsto no art.º 153.º do mesmo diploma legal e pelo qual o Ministério Público já se pronunciou no despacho de arquivamento proferido nos autos ou respeita a meios de prova e considerações conclusivas e não a descrição factual) os quais constituem a prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria, p. e p. pelo artº 181.º do Cód. Penal”.
- A acusação particular foi notificada ao arguido EE a 08.02.2023 (cf. refª citius 142342422 e refª 22746537 - verificando-se que a respetiva correspondência foi depositada a 03.02.2023).
- Foi requerida a abertura de instrução por parte do arguido EE a 28.02.2023.
- A título de questão prévia conheceu o Tribunal a quo a 21.03.2023 da questão da prescrição, proferindo o despacho recorrido.
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II.3- Apreciação do recurso
II.3.1 - Da prescrição do procedimento criminal:
Como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, p. 699) “a prescrição justifica-se desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva. É obvio que o mero decurso do tempo sobre a prática de um facto não constitui motivo para que tudo se passe como se ele não tivesse ocorrido; considera-se, porém, que uma tal circunstância é, sob certas condições, razão bastante para que o Direito penal se abstenha de intervir ou de efetivar a sua reação”.
E assim a prescrição do procedimento criminal diretamente relacionada com o decurso do tempo depende da consideração de momentos temporais e atos processuais que vão exercer influência na contagem dos respetivos prazos e consequentemente na sua ocorrência.
Deste modo, prevê o art.º 119º do CP que:
1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;
c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
3 - No caso de cumplicidade atende-se sempre, para efeitos deste artigo, ao facto do autor.
4 - Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.
Define o art.º 120º do Código Penal as causas de suspensão da prescrição, prevendo que:
1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a. (…)
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
(…)
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
(…)
6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.”
Por outro lado, sob a epígrafe “Interrupção da Prescrição”, estabelece o art.º 121 do CP que:
“1- A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
(…)
2 - Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.
No caso da interrupção, quando se verifique uma das causas elencadas no artigo 121.º, n.º 1, do Código Penal, começa a correr novo prazo de prescrição, sendo que, nesses casos, o legislador estipula um prazo máximo que corresponde ao prazo normal, acrescido de metade, ressalvado o período de suspensão (artigo 121.º, n.º 3, do Código Penal).
No caso da suspensão, o prazo suspende-se durante os períodos máximos estabelecidos nos n.ºs 3, 4 e 5 do artigo 120.º do Código Penal, reiniciando-se após a sua cessação (artigo 120.º, n.º 6, do Código Penal).
Tal como acima já referimos, na situação presente foi deduzida acusação particular imputando ao arguido/recorrente a prática de um crime de injúria previsto e punível pelo art.º 181 do Código Penal, com uma pena de prisão até 3 meses ou multa até 120 dias, acusação essa que foi acompanhada nos termos acima expostos pelo Mº Público.
Tendo em conta a moldura penal abstrata referida, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 2 anos [alínea d) do nº 1 do artigo 118.º do Código Penal].
Tal prazo, nos termos do disposto no artigo 119º, nº 1, do Código Penal, iniciou-se em 28.02.2020.
Vejamos, então se o prazo máximo de prescrição já decorreu ou se ainda se mostra em curso, por força das causas interrupção e de suspensão da prescrição e muito concretamente da prevista no art.º 120º, nº 1, al. b) do Código Penal, como sustenta o recorrente.
A constituição do denunciado como arguido ocorreu a 14.09.2021 - antes de ter decorrido o prazo de dois anos sobre a prática dos factos - e constitui uma causa de interrupção da prescrição. A notificação da acusação particular deduzida contra o arguido (que o MP acompanhou) ocorreu a 08.02.2023, não tendo decorrido igualmente dois anos entre estas duas causas de interrupção.
Não ocorrendo qualquer causa de suspensão teríamos de concluir que à data em que foi proferido o despacho recorrido já haviam decorrido 3 anos sobre a data da prática dos factos.
Porém, a notificação da acusação constitui também causa de suspensão da prescrição, que vigora por um período máximo de 3 anos enquanto o procedimento criminal estiver pendente [art.º 120º, nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal].
Defende o arguido na resposta apresentada que a suspensão em causa só opera quando alguma circunstância impeça os autos de prosseguirem os seus termos e no caso presente quanto muito tal ocorreu entre a data da notificação da acusação (08.02.2023) e a data em que foi apresentado o requerimento para abertura de instrução (28.02.2023). Isto é, que o requerimento de abertura de instrução faz cessar a causa de suspensão que ocorre por virtude da notificação da acusação deduzida nos autos, alegando para o efeito que deverão ser considerados apenas os referidos 20 dias.
Debruçando-se sobre a matéria em apreço encontramos o acórdão do TRG de 03.06.20133 sumariado da seguinte forma: “I - A prescrição do procedimento criminal deve ser suscitada até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, sob pena de ficar precludido o direito de a suscitar em virtude do caso julgado entretanto constituído. Para o efeito releva o momento da arguição em juízo, não o da interposição de recurso do despacho proferido na sequência da arguição.
II – A suspensão da prescrição do procedimento criminal que ocorre a partir da notificação da acusação (art.º 120 nº 1 al. b) do Cod. Penal), não termina com a abertura da instrução ou com a notificação do despacho que designa dia para julgamento, mas perdura até ao trânsito em julgado da decisão final, salvo se este ocorrer mais de três anos depois daquela notificação”.
Neste aresto, e em sustentação da interpretação preconizada faz-se, entre outras uma interpretação sistemática e histórica do preceito em análise para concluir que a expressão «durante o tempo em que o procedimento criminal estiver pendente» aponta no sentido preconizado, com a qual concordamos.
Ali se escreve “O entendimento aqui sufragado mostra-se conforme ao compromisso entre a perseguição criminal e a necessária prescritibilidade do procedimento criminal: as apontadas razões de natureza jurídico-penal e de carácter substantivo-processual que justificam a prescrição não se mostram postergadas pela apontada suspensão de três anos. Pelo contrário, com a fixação daquele prazo de três anos, pretende-se «evitar uma excessiva morosidade no julgamento dos feitos penais» Cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, edição de 1999, página 403. --- e, pois, de modo razoável, permitir a perseguição criminal, que o mesmo é dizer, dentro de uma lapso de tempo que não contenda com a natureza prescritível do procedimento criminal e as razões que a justificam” e percorrendo as redações precedentes do Código Penal de 1886, os trabalhos preparatórios do Código Penal de 1982 e a redação inicial do artigo 119.º, n.º 2, daquele Código conclui justificar-se igualmente o entendimento exposto.
Também neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido a 20.01.2012, sumariado da seguinte forma:
I - O crime de corrupção ativa para ato lícito a titulares de cargos políticos, p. e p. pelo art.º 18.º, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na redação da Lei 108/2001 de 28/11, vigente ao tempo dos factos, é punível com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.
II - O procedimento criminal por crime punível com pena inferior a um ano de prisão extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido dois anos (art.º 118.º, n.º 1, al. d, do CPP).
III - Nos termos do art.º 119.º, n.ºs 1 e 2, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, sendo que o prazo de prescrição só corre, nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação.
IV - Porém, de acordo com o art.º 121.º, a prescrição do procedimento criminal interrompe-se, nos casos que ora nos interessam, com a constituição de arguido e com a notificação da acusação. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição. A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
V - O arguido nestes autos foi constituído como tal em 17/02/2006 (fls. 159, 1º. volume) e foi notificado da acusação por via postal simples remetida em 10/01/2007, o distribuidor do serviço postal depositou a carta no dia imediato e, portanto, a notificação considera-se efetuada em 16/01/2007 (terça-feira) – cf. art.º 113.º, n.º 3, do CPP. Em qualquer dessa datas se interrompeu, portanto, a contagem do prazo da prescrição.
VI - Mas, a notificação da acusação, simultaneamente, suspendeu a contagem do prazo, pelo prazo máximo de 3 anos (art.º 120.º, n.ºs 1, al. b e 2, do CPP).
VII - Relativamente a este último prazo máximo de 3 anos de suspensão da contagem da prescrição, a lei não estabelece qual o seu termo, ao contrário do que sucede nos casos das outras alíneas do n.º 1 do art.º 120.º, cujo termo será o “dia em que cessar a causa da suspensão” (n.º 3), isto é, quando houver autorização legal, ou for proferida sentença no estrangeiro, ou findar a contumácia, etc.
VIII - Com efeito, a “notificação da acusação”, como causa de suspensão, esgota-se no próprio ato e, portanto, não se pode ficar à espera de “cessar a causa da suspensão”, nos termos do n.º 3. Por isso, o único entendimento possível é o de que a suspensão da contagem do prazo da prescrição do procedimento criminal, por força da notificação da acusação ao arguido, destina-se a permitir que, num prazo razoável, contado pelo máximo de 3 anos, se efetue o julgamento e se processem os recursos das decisões que entretanto venham a ser proferidas. Por isso, o prazo de suspensão, nesse caso, é de 3 anos e só será menor se transitar até lá a decisão final que decidir a causa. Na realidade, é o que a própria alínea b) do n.º 1 do art.º 120.º refere: «- A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: (…) b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação…».
X - Da conjugação de todas estas normas resulta que a prescrição do procedimento criminal só ocorre, no caso dos autos, no prazo de seis anos contados ou desde a consumação do crime, portanto em 27-01-2012 ou 30-01-2012 (consoante se considere que o crime é ou não de atividade), ou em 17-02-2012, seis anos depois da constituição de arguido, como é opinião de alguma Doutrina.
Neste mesmo sentido ainda o acórdão do TRG de 29.04.2019 (igualmente disponível in www.dgsi.pt) sumariado da seguinte forma:
“I) De acordo com a alínea b), do nº1, do art.º 120, a prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação, suspensão esta que não pode, porém, ultrapassar 3 anos, cfr. resulta do nº2, do citado art.120º.
II) Ou seja, o prazo prescricional em apreço não corre a partir do dia em que o arguido foi notificado da acusação e até ao trânsito em julgado da decisão final, salvo se este suceder mais de três anos depois daquela notificação, pois então volta a correr decorridos que sejam esses três anos.
III) No sentido de que na contagem do prazo de prescrição há que considerar o mencionado período de três anos subsequente à notificação da acusação, propende a maioria da doutrina e jurisprudência.
III) Nesta específica causa de suspensão a intenção do legislador foi fixar um período razoável e adequado para a conclusão do processo: o legislador, ciente de que com a dedução de acusação se abre uma nova fase do processo penal (instrução ou julgamento), com o consequente diferimento/protelamento do terminus do processo, quis levar em conta esse facto na contagem do prazo de prescrição, tendo em conta o interesse da eficácia penal. Mas não quis permitir o protelamento indefinido da suspensão, como sucedia no domínio do C.Penal de 1886, pelo que, ponderando o interesse da celeridade, limitou esse período a três anos.
IV) Tal intenção foi clara e vem-se mantendo: a suspensão mantém-se após a notificação da acusação e enquanto “estiver pendente” o procedimento criminal, independentemente das vicissitudes pelas quais o procedimento se mantenha pendente - sejam elas decorrentes da tramitação do processo e imputáveis ao tribunal, sejam elas devidas ao comportamento dos sujeitos processuais - sendo que este se mantém pendente desde que se inicia até que termina.
V) A única restrição fê-la o legislador e traduziu-se em estatuir que a suspensão, com o fundamento em apreço, não pode ultrapassar os três anos.
VI) Nesta matéria existe uma ampla liberdade de conformação do legislador, que teve que ponderar entre o interesse da celeridade e o interesse da eficácia na realização da justiça, quanto a este último aspecto procurando obviar às bem conhecidas manobras dilatórias com vista a eternizar a duração dos processos, obstando por meios processuais que os mesmos atinjam o seu termo com o trânsito em julgado das decisões finais.”
Concordamos com esta posição e entendemos, pois, que a causa de suspensão da prescrição resultante da notificação da acusação opera e não cessa com o requerimento de abertura de instrução, mas perdurará até ao trânsito em julgado da decisão final, desde que esta seja proferida no prazo máximo de 3 anos.
E esta interpretação porque fundada no elemento literal, histórico e sistemático do preceito constante do Código Penal que a consagra, não constitui qualquer violação do aceso ao Direito e aos Tribunais, ou das Garantias de Defesa do arguido, consagrados respetivamente no art.º 20º, e 32º da Constituição da República Portuguesa.
E assim, considerando que o arguido foi notificado da acusação 08.02.2023, o prazo máximo da prescrição nos termos do disposto no art.º 121º, nº 3 do Código de Processo Penal, apenas ocorrerá a 28.02.2026, porquanto terá que ser ressalvado o prazo de 3 anos de suspensão previsto no art.º 120º, nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal.
No entanto, haverá ainda que considerar o contexto legal resultante da atividade legislativa levada a cabo para conter a Pandemia de COVID 19.
Na verdade, decorre do disposto no art.º 7º, nº 3 da Lei nº 1-A/2020 de 19 de março, que: “A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos”. Acrescentando-se no nº 4 do mesmo diploma legal que “o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional”.
Sendo ainda de considerar o disposto na Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que no art.º 6º -B, n.ºs 3 e 4, determinou que são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
Criaram-se, pois por via da entrada em vigor de tais leis, resultantes da atividade legislativa da Assembleia da República, novos prazos de suspensão da prescrição colocando-se a questão, debatida jurisprudencialmente, da possibilidade de aplicação destes prazos de suspensão a processos pendentes por factos praticados antes da sua entrada em vigor, em face do disposto no art.º 29º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Existindo divergência na jurisprudência, é ainda prevalente a corrente que defende a sua não aplicação (entre outros os Acórdãos do TRL de 24.07.2020 (processo nº 1286/16.5XSLB.L1-5, relatado pelo Sr. Desembargador Jorge Gonçalves e de 15.12.2022, processo nº 804/03.2PCALM-A.L1-9, relatado pela Sra. Desembargadora Paula Penha)4.
Porém, em sentido diverso encontramos também o Acórdão do TRL de 11.02.2021, proferido no processo nº 89/10.4PTAMD-A.l1-9, relatado pelo Sr. Desembargador Almeida Cabral5, onde se escreve: “A suspensão do prazo de prescrição previsto no art.º 7.º, n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020 não se traduz numa decisão mais gravosa para o arguido, pois o prazo de prescrição da pena mantém-se rigorosamente o mesmo, antes e depois da vigência da citada lei. A única diferença é que, esta, por razões de superior interesse público, suspendeu-o temporariamente, para voltar, depois, a correr.”
E ainda o recente Acórdão do TRL de 23.01.2024, proferido no processo nº 143/17.1GLSLB.L1,6 desta 5ª Secção, relatado pela Sra. Desembargadora Sara Reis Marques onde se escreve: “Estamos efetivamente perante uma causa de suspensão do prazo de prescrição inserida no Ordenamento Jurídico por lei posterior à data dos factos mas, tendo em conta o carácter totalmente imprevisível dos acontecimentos que a determinaram, não se pode afirmar que a sua aplicação aos procedimentos pendentes coloque em causa expectativas legítimas do agente do ilícito contemporâneas da prática do facto, que frustre a exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal a que responde a proibição da retroatividade in pejus. Trata-se, pois, de uma situação de retroactividade de segundo grau (artigo 12º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil), "retroactividade inautêntica" ou "retrospectividade”. O princípio da confiança não reclama que se materialize a possibilidade de serem conhecidas todas as causas de suspensão do prazo de prescrição no momento da consumação do crime. Se assim não fosse, estaria retirado ao Estado a possibilidade de reagir em emergência perante situação física portadora de particular gravidade e, obviamente, imprevisível no momento dessa consumação.
Assim, a aplicação da nova causa de suspensão não viola o art.º 29º da CRP, pois não ultrapassou a necessidade gerada pela situação de crise sanitária que se viveu nem houve excesso nem desproporção na definição do tempo da suspensão do prazo prescricional”.
E assim o entendeu também o Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária nº 256/20237, onde se concluiu:
“ a) Não julgar inconstitucional a norma extraível do artigo 7.º, n.ºs 2, 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, vigorando até ao termo da situação excecional de infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e doença COVID-19; e, em consequência,
b) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo negativo de inconstitucionalidade”.
Nesta Decisão Sumária convoca-se o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 500/20218 onde se escreveu: “A medida constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 — já o notámos — insere-se no âmbito de legislação temporária e de emergência, aprovada pela Assembleia da República para dar resposta à crise sanitária originada pela pandemia associada ao coronavírus SARS-CoV-2 e à doença COVID-19.
No cumprimento do seu dever de proteção da vida e da integridade física dos cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da Constituição, respetivamente), o Estado adotou um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e de disseminação da doença, baseado na implementação de um novo modelo de interação social, caracterizado pelo distanciamento físico e pela diminuição dos contactos presenciais.
No âmbito da administração da justiça — vimo-lo também —, o cumprimento desse dever de proteção conduziu à excecional contração da atividade dos tribunais, concretizada através da sujeição dos atos e diligências processuais ao regime das férias judiciais referido no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, e, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-A/2020, à regra da suspensão, pura e simples, de todos os prazos processuais previstos para aquele efeito. Para os processos urgentes, começou por estabelecer-se um regime especial de suspensão dos prazos para a prática de atos, ainda que com exceções (artigo 7.º, n.º 5, da Lei n.º 1-A/2020), que a Lei n.º 4-A/2020 acabou por modificar, impondo a sua normal tramitação desde que fosse possível assegurar a prática de atos ou a realização de diligências com observância das regras de distanciamento físico.
Por força desta paralisação da atividade judiciária, que se estendeu à justiça penal, os atos processuais interruptivos e suspensivos da prescrição deixaram de poder praticar-se no âmbito dos procedimentos em curso, pelo menos nas condições em que antes o podiam ser. Relativamente aos procedimentos criminais, assim sucedeu com a dedução da acusação, a prolação da decisão instrutória e a apresentação do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo (artigos 120.º, n.º 1, alínea b), e 121.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal), a declaração de contumácia (artigos 120.º, n.º 1, alínea c), e 121.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal) e a constituição de arguido (121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal). Já no âmbito dos procedimentos contraordenacionais, o mesmo se verificou, pelo menos, com a prolação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima (artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), e 28.º do RGCO), a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou qualquer notificação (artigo 28.º, n.º 1, alínea a), do RGCO), a realização de quaisquer diligências de prova (artigo 28.º, n.º 1, alínea b), do RGCO) e a prolação da decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima (artigo 28.º, n.º 1, alínea d), do RGCO).
É este particular e especialíssimo contexto que está subjacente à fixação, por lei parlamentar, de uma causa de suspensão da prescrição que não somente é transitória, como se destinou a vigorar apenas e só durante o período em que se mantivesse — se manteve — o condicionamento à atividade dos tribunais determinado pela situação excecional de emergência sanitária e pelo concomitante imperativo de proteção da vida e da saúde dos operadores e utentes do sistema judiciário: suspendeu-se o decurso do prazo de prescrição porque se suspenderam os prazos previstos para a prática dos atos suscetíveis de obstar à sua verificação; suspenderam-se os prazos previstos para a prática desses (e de outros) atos processuais porque se suspendeu a atividade normal dos tribunais de modo a prevenir e conter o risco de infeção dos intervenientes no sistema de administração da justiça, incluindo dos próprios arguidos.
(…)
Não é demais sublinhar que se trata de uma suspensão, e não de uma interrupção, do prazo prescricional: o tempo de prescrição já decorrido desde a data da consumação do ilícito típico não é inutilizado; apenas o seu decurso é paralisado pelo tempo correspondente à paralisação do normal processamento dos termos ulteriores dos processos em curso.
Neste contexto, é evidente que a causa de suspensão da prescrição estabelecida no n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 apenas se encontraria apta a cumprir aquela função se pudesse aplicar-se aos procedimentos pendentes por factos anteriores ao início da sua vigência. [negrito e sublinhado nosso]. (…)
A suspensão é forçada: não é imputável a ninguém e não há razão para que beneficie quem quer que seja.
Esta última afirmação é especialmente relevante: conforme se verá em seguida, ela sintetiza, na verdade, as duas razões que explicam a impossibilidade de reconduzir a causa de suspensão prevista no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, à ratio da proibição da retroatividade in pejus, consagrada no artigo 29. º, n.ºs 1, 3 e 4, da Constituição.
(…)
A suspensão do decurso do prazo de prescrição dos procedimentos sancionatórios pendentes durante o período em que vigoraram as medidas de emergência adotadas na Lei n.º 1-A/2020 não se destinou a permitir que o Estado corrigisse ou reparasse os efeitos da sua inércia pretérita no âmbito do exercício do poder punitivo de que é titular. Destinou-se apenas e tão só a responder aos efeitos de uma superveniente e não evitável paralisação do sistema de administração da justiça penal, imposta pela necessidade de controlar e conter a disseminação de um vírus potencialmente letal. Tratando-se de uma causa de suspensão e não de interrupção do prazo de prescrição, cuja vigência não excedeu o lapso temporal durante o qual se verificou a afetação ou condicionamento da atividade dos tribunais, nem conduziu — reticus, não tinha sequer a virtualidade de conduzir — à reabertura dos prazos prescricionais já integralmente decorridos, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não exprime qualquer excesso, arbítrio ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus: ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade.
Prosseguindo afirma-se: “Não é diferente a conclusão a que se chega se encararmos a proibição da retroatividade in pejus a partir da proteção da confiança, como fez o Tribunal recorrido.
Se tal proibição visa garantir ao destinatário uma previsibilidade razoável das consequências com que se deparará ao violar o preceito penal, é relativamente evidente, quando se trate de estender o respetivo âmbito de incidência para além dos limites traçados pela letra dos n.ºs 1, 3 e 4, do artigo 29.º, que a sua invocação deixará de ter fundamento se o evento em causa se situar no mais elevado grau daquilo que não é por natureza antecipável, como sucede com a paralisação do sistema de administração da justiça penal ditada pelo súbito e inesperado surgimento de uma pandemia à escala global.
(…)
Em suma: para além de absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, a norma extraída dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, interpretados no sentido de que a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento aí prevista é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência, não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as ações e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes. [negrito nosso].
Deste modo, porque a consagração destas causas de suspensão da prescrição não decorreu de um qualquer objetivo de política criminal, mas antes de uma situação de emergência sanitária que originou a quase total paragem da atividade judiciária e a que se impunha responder para salvaguarda de todos, incluindo os arguidos, entendemos que inexiste qualquer violação do princípio da confiança dos cidadãos e da comunidade e das expectativas eventualmente criadas (designadamente nos sujeitos processuais neles se incluindo o arguido); a situação absolutamente excecional que levou à sua consagração legal, era imprevisível à data da prática dos factos, e a resposta dada pela Assembleia da República, através das mencionadas normas visou, precisamente, reagir a tal gravidade e excecionalidade.
Por outro lado, a sua vigência não excedeu o período temporal durante o qual se verificou o referido condicionamento da atividade nos tribunais e assim, a sua aplicação aos procedimentos pendentes não se traduz num qualquer excesso ou abuso por parte do Estado contra o qual faça sentido invocar as garantias inerentes à proibição da retroatividade in pejus.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 798/20219: “ao determinar a aplicação a procedimentos pendentes da suspensão da prescrição em razão da pandemia então em curso, a solução adotada limita-se, na verdade, a assegurar «a produção do efeito útil da norma de emergência» (idem, p. 313), não ingressando no âmbito da esfera defensiva que é assegurada pelo princípio da legalidade”.
Deste modo, concluímos que a aplicação destas causas de suspensão não viola o art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, pois não ultrapassou a necessidade gerada pela situação de crise sanitária que se viveu, nem houve excesso nem desproporção na definição do tempo da suspensão do prazo prescricional, e também inexiste qualquer violação do art.º 19º da Constituição da República Portuguesa em particular do seu nº 6, na medida em que estas causas de suspensão da prescrição foram introduzidas no Ordenamento Jurídico através de normas constantes de Lei aprovada pela Assembleia da República, no exercício da sua normal competência legislativa, e não através de normas emitidas pelo Governo em execução da Declaração de Estado de Emergência constante do Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, ou das suas posteriores renovações (cf. neste sentido o já citado Acórdão do Tribunal constitucional nº 500/2021 e a também referida Decisão sumária nº 256/2023 do mesmo Tribunal Constitucional).
Em suma, concluímos que a suspensão da prescrição prevista nas referidas leis é aplicável aos processos crime em que estejam em causa alegados factos ilícitos praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes, como é o presente, e, consequentemente, que esta interpretação, fundada, aliás, em jurisprudência do Tribunal Constitucional não é violadora dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, 19.º n.ºs 2 a 8 (em especial o n.º 6), 20.º, n.º 4, e 29.º, da Constituição da República Portuguesa.
Deste modo, haverá que aplicar-se a suspensão dos prazos de prescrição desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro de 2021 e 6 de abril de 2021, isto é, 2 meses e 25 dias e 2 meses e 15 dias.
Assim, partindo de 28.02.2026 e acrescentando os referidos períodos atingimos 07.08.2026.
Em face de todo o exposto, concluímos que o recurso interposto pelo Mº Público merece provimento e em consequência deve ser revogado o despacho recorrido que considerou prescrito o procedimento criminal, que deverá ser substituído por outro que aprecie o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos.
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III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revogar o despacho recorrido que declarou prescrito o procedimento criminal, que deverá ser substituído por outro que aprecie o requerimento de abertura da fase de instrução apresentado.
Sem custas
Notifique.
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Lisboa 20 de fevereiro de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
Os Juízes Desembargadores
Sandra Ferreira
Luísa Oliveira Alvoeiro
Alda Casimiro (Voto de vencido)

Voto de vencido:
Vencida no que concerne à suspensão da prescrição do procedimento criminal em virtude das Leis Covid supra referidas, em processo crime (que não contra-ordenacional), por força da previsão ínsita na primeira parte do nº 4 do art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, que proíbe a aplicação retroactiva de leis penais mais gravosas para os arguidos – nos termos do nº 4 do art.º 29º da Constituição da República Portuguesa: “ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.
Ora independentemente de estarmos perante uma lei temporária, parece claro que à luz do referido preceito constitucional, essa lei não pode afectar os prazos de natureza substantiva ou material em curso, designadamente, os prazos de prescrição do procedimento criminal e da pena, alargando-os (repare-se ainda que o nº 6 do art.º 19º da Constituição da República Portuguesa expressamente consagra que a “declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar (...)a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos (...)”.
Todavia, o nº 4 do art.º 7º da Lei 1-A/2020, de 19.03 prescreve, claramente, que “o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional”.
Como compatibilizar, então, o disposto no nºs 3 e 4 do art.º 7º da Lei 1-A/2020, de 19.03, com os princípios constitucionalmente consagrados no nº 4 do art.º 29º e no nº 6 do art.º 19º da Constituição da República Portuguesa?
Cremos que a resposta é simples: a previsão do nº 3 do referido art.º 7º, enquanto referente a prazos de prescrição, só pode vigorar para o futuro, ou seja, para factos praticados durante a sua vigência.
Neste sentido pode ler-se no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24.07.2020 (disponível em www.dgsi.pt, Relator Ex.mo Senhor Desembargador Jorge Gonçalves).
Alda Casimiro
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1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
3. In www.dgsi.pt, No mesmo sentido o acórdão do STJ, proferido no processo n.º 1099/07.4GAVNF-A.S1 - 5.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Santos Carvalho, in www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios.
4. Ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
5. Disponível in www.dgsi.pt.
6. Disponível in www.dgsi.pt.
7. Disponível in
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/20230256.html.
8. Disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
9. Disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.