Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1245/22.8PLSNT.L1-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: GRAVAÇÃO DAS DECLARAÇÕES DA MEMÓRIA FUTURA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade da relatora)
I- Apesar de a obrigatoriedade da documentação das declarações prestadas em audiência se mostrar instrumental à garantia da efetiva possibilidade de recurso em matéria de facto, a respetiva falta não constitui um vício da decisão, mas antes um vício do procedimento. Por isso, não são aplicáveis, no caso, as regras relativas às nulidades da sentença (que são apenas as previstas no artigo 379º do Código de Processo Penal), mas sim as regras gerais fixadas nos artigos 118º e ss. do Código de Processo Penal.
II- Tendo a gravação [das declarações para memória futura] sido reproduzida na audiência, com a presença de todos os sujeitos processuais, maxime, o arguido e a sua defensora, não é crível que ninguém se apercebesse, caso tais declarações não fossem percetíveis. E, se tal fosse o caso, a nulidade decorrente de semelhante deficiência da gravação teria de ser arguida imediatamente, ou, no limite, nos 10 dias seguintes.
III- A reapreciação da prova em sede de recurso só determinará uma alteração à matéria de facto provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão. Tal não é o caso quando o recorrente nem sequer discute o raciocínio probatório exposto na decisão.
IV- O recurso a prova indireta para apurar factos do foro íntimo do agente – na ausência de confissão expressa – é perfeitamente admissível (e admitido, na nossa doutrina e jurisprudência) e suportado em juízos de inferência que não suscitam qualquer dúvida, completando de forma adequada o silogismo judiciário.
V- É de subscrever a consideração que releva o número de pancadas e golpes desferidos, os  instrumentos utilizados e as zonas corporais visadas, para concluir que outra não podia ser a intenção do arguido, que não a de tirar a vida à sua companheira – inferência que resulta ainda sublinhada pela circunstância de apenas ter suspendido a agressão quando esta última se encontrava imóvel e sem reação, ou seja, aparentando ter sido alcançado o resultado visado (a sua morte).
VI- No que se reporta ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, ao qual é abstratamente aplicável uma moldura penal, especialmente atenuada, de 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão a 16 anos e 8 meses de prisão, não podendo deixar de relevar-se o modo especialmente censurável da atuação do arguido, ao atacar a vítima com diferentes objetos cortocontundentes, atingindo-a repetidamente, e ainda as graves consequências que de tal atuação advieram para a vítima, que ficou desfigurada e com limitações graves da sua capacidade de trabalho, nenhuma censura nos merece a fixação da pena pela prática de tal crime em 9 anos e 6 meses de prisão, como foi decidido na 1ª instância – não tendo sido indicado pelo recorrente qualquer motivo válido para que a mencionada pena fosse fixada em patamar inferior.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
I. Relatório
1. No processo comum coletivo nº 1245/22.8PLSNT do Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 3), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi julgado o arguido AA, nascido em ........1987, solteiro, filho de BB e de CC, natural de ..., de nacionalidade cabo-verdiana, residente na ..., tendo sido condenado, após comunicação de alteração não substancial de factos e de qualificação jurídica, por acórdão datado de 16.10.2023, “i. pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica (na pessoa da Assistente DD), p. e p. pelo art.º 152º, n.ºs 1, als. b) e c), 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) de prisão; ii. pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada (na pessoa da Assistente DD), p. e p. pelos art.ºs 22º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23º, 73º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão; iii. pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica (na pessoa de EE), p. e p. nos termos do art.º 152º, n.ºs 1, als. d) e e), e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses; iv. pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado (na pessoa de FF), p. e p. pelos art.ºs 171º, n.º 1, e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão”. Mais se decidiu: “Em cúmulo jurídico das penas parcelares descritas em i. a iv., nos termos do art.º 77º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, condenar o Arguido na pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão”.
O arguido foi, ainda, condenado nas penas acessórias de “proibição de contacto com a Assistente DD pelo período de 5 (cinco) anos, a fiscalizar por meios técnicos de controlo à distancia, quando ocorrer a respetiva libertação, nos termos do disposto no art.º 152º, n.º 4 e 5, do Código Penal”; “proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 7 (sete) anos”; e “proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 (sete) anos”.
E, finalmente, foi condenado “no pagamento de indemnização no montante de €50.000,00 (cinquenta mil Euros) à Assistente DD, a título de reparação pelos prejuízos sofridos; (…) no pagamento de indemnização no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) a FF, a título de reparação pelos prejuízos sofridos; (…) no pagamento de indemnização no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) a EE, a título de reparação pelos prejuízos sofridos”.
2. Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:
“Artigo 1º - Deve ser revogada a condenação do arguido pelo crime de homicídio na forma tentada e, em substituição, ser o mesmo condenado pelo crime de ofensas à integridade física previsto e punido pelo artigo 144º, alínea d), qualificado pelo artigo 145º nº 1 alínea b), ambos do Código Penal.
Decidindo como decidiu, o tribunal violou, por erro de interpretação e aplicação, estes artigos e, ainda, os artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal.
Artigo 2º - Se assim se não entender, deve, então, a pena parcelar concretamente aplicada ao crime de homicídio na forma tentada ser reduzida para uma pena de prisão não superior a 8 anos, pois que, fixando-a em 9 anos e 6 meses, o tribunal não respeitou os critérios dos nºs 1 e 2 do artigo 71º do Código Penal.
Artigo 3º - Devem ser eliminados dos factos provados os pontos 11), 12), 13), 14), 15), 16), 36) e 37) (págs. 4 e 7 do acórdão).
Isto porque devem ser declaradas inexistentes as declarações para memória futura prestadas pela menor FF, por não terem ficado gravadas em parte, em outra parte não ser perceptível o que ficou gravado e em outra parte só muito difícil e deficientemente se percebe o que foi dito.
Declarada a inexistência das declarações, e porque nelas assentam a prova daqueles pontos da matéria de facto, impõe-se que sejam dados como não provados.
Artigo 4º - Porque a condenação do arguido pelos crimes de abuso sexual de crianças na pessoa da menor FF e de violência doméstica na pessoa do menor EE não têm suporte noutros factos provados que não sejam os identificados no primeiro parágrafo do artigo anterior, se os mesmos forem declarados – como se espera – não provados, impõe-se, então, que estas condenações sejam revogadas.
Artigo 5º - Caso se opte pela não revogação destas condenações, devem as penas parcelares nelas aplicadas ser reduzidas para os respectivos mínimos da moldura penal abstractamente aplicável, pois que as penas parcelares aplicadas também elas não respeitam os critérios dos nºs 1 e 2 do artigo 71º do Código Penal.
Artigo 6º - Idem, mutatis mutandis, no que concerne à pena de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada ao crime de violência doméstica na pessoa da assistente DD.
Artigo 7º - O cúmulo jurídico haverá de ser refeito em função do que for decidido nas matérias a que se referem os artigos anteriores.
Mas, se nada for alterado – o que decididamente se não espera – então, deve a pena única aplicada em cúmulo jurídico – 12 anos e 3 meses de prisão –, porque injustificadamente elevada e desrespeitadora dos critérios dos nºs 1 e 2 do artigo 77º do Código Penal, ser reduzida, quedando-se mais próxima do mínimo da respectiva moldura, que no caso é de 9 anos e 6 meses.
Artigo 8º - Se caírem, como se espera, as condenações pelos crimes de abuso sexual na pessoa da menor FF e de violência doméstica na pessoa do menor EE, deve, então, revogar-se a decisão de pagamento de indemnização a estes menores (€ 2.500,00 a cada um deles).
E a indemnização fixada a favor de DD deve também ser reduzida, se reduzidas forem as penas aplicadas aos crimes de que foi vítima.”
3. O recurso foi admitido, por legal e tempestivo, com subida nos autos e efeito suspensivo.
4. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência. Extraiu as seguintes conclusões:
“1.O Arguido/Recorrente AA foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso real, de:
● 1 (um) crime de violência doméstica (na pessoa da Assistente DD), p. e p. pelo art.º 152º, n.ºs 1, als. b) e c), 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) de prisão;
● 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada (na pessoa da Assistente DD), p. e p. pelos art.ºs 22º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23º, 73º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão;
● 1 (um) crime de violência doméstica (na pessoa de EE), p. e p. nos termos do art.º 152º, n.ºs 1, als. d) e e), e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses;
● 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado (na pessoa de FF), p. e p. pelos art.ºs 171º, n.º 1, e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão.
E, ainda,
● na pena acessória de proibição de contacto com a Assistente DD pelo período de 5 (cinco) anos, a fiscalizar por meios técnicos de controlo à distância, quando ocorrer a respetiva libertação, nos termos do disposto no art.º 152º, n.º 4 e 5, do Código Penal;
● na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 7 (sete) anos;
● na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 7 (sete) anos;
● no pagamento de indemnização no montante de €50.000,00 (cinquenta mil Euros) à Assistente DD, a título de reparação pelos prejuízos sofridos;
● no pagamento de indemnização no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) a FF, a título de reparação pelos prejuízos sofridos;
● no pagamento de indemnização no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos Euros) a EE, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.
2. No vertente caso não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, porquanto foi dado como provado que, pretendendo que a vitima DD se deitasse com ele para descansar e face à sua recusa, o Recorrente dirigindo-se à mesma disse “sou eu que vou-te matar se não ficares comigo” (factualidade dada como provada no ponto 23).
3. Após ter dito a FF para sair, muniu-se de um ferro, tipo enxada, com cerca de 60 cm de comprimento (factualidade dada como provada no ponto 25) e, quando a vitima/Assistente ia a sair do quarto, sem se aperceber da sua presença, o Arguido desferiu-lhe uma primeira pancada com a enxada, na cabeça (factualidade dada como provada no ponto 26).
4. Já com a Assistente prostrada no chão, empunhando a enxada, começou a tentar desferir outras pancadas na cabeça e cara da vítima, conseguindo esta evitar, algumas delas, colocando ambas as mãos em frente à sua face, sendo, no entanto, atingida com a enxada nas mãos e braços (factualidade dada como provada no ponto 27).
5. Posteriormente, o Arguido munido de uma faca de cozinha, com 14 cm de comprimento, colocou a ponta da faca, nas costas da vítima e, como se estivesse a martelar, espetou a faca, várias vezes, nas costas da Assistente (factualidade dada como provada no ponto 28).
6. O Arguido bem sabia que as zonas do corpo onde atingiu a Assistente, designadamente, a cabeça, se trata de uma zona vital para a vida, agindo com o propósito firmado de tirar a vida à mesma, sua companheira e mãe dos seus filhos, o que não sobreveio devido à rápida intervenção da assistência médica (factualidade dada como provada no ponto 38). Ou seja, actuou com dolo directo.
7. Morte essa que não se veio a verificar porque o seu filho EE tentou impedi-lo de prosseguir com tal conduta (factualidade dada como provada no ponto 29), sendo que, após o Recorrente se ter ausentado de casa, o mesmo menor pediu auxilio para a mãe (factualidade dada como provada no ponto 30).
8. Pelo que incorreu na prática de um crime de homicídio, na forma tentada.
9. De facto, a sua intenção não era apenas atingir a sua integridade física da vítima, mas sim tirar-lhes a vida, tal como anunciou momentos antes, aquando da recusa da Assistente se deitar consigo – “sou eu que vou-te matar se não ficares comigo”.
10. Face ao exposto, verifica-se que, ao contrário do alegado pelo Recorrente, foi dado como provado o dolo específico do crime, na modalidade de dolo directo.
11. Pelo que bem andou o tribunal a quo ao condenar o Recorrente pelo crime de homicídio, na forma tentada.
12. No que respeita à gravação das declarações para memória futura prestadas pela menor ofendida FF, em 03.11.2022, constantes do sistema Citius, embora estas não sejam totalmente compreensíveis, o certo é que nessas passagens, o que foi dito por aquela foi repetido pelo Mmo Juiz de Instrução, pelo que se consegue compreender, na totalidade, aquilo que foi referido.
13. Porém, na gravação constante do CD junto a fls. 258 dos autos – registo de imagem e áudio – já são perceptíveis as suas declarações.
14. Mas, também ao contrário do alegado pelo Recorrente, aqueles factos não foram dados como provados exclusivamente em tais declarações.
15. Efectivamente, tais declarações foram corroboradas pelas declarações para memória futura igualmente prestadas em 03.11.2022, pela Assistente DD, nas quais referiu que o Recorrente dava “umas porradas” no menor EE.
16. Embora a Assistente tenha desvalorizado essa conduta (porradas), justificando que também foram educados dessa maneira, o certo é que referiu que o Recorrente o fazia de vez em quando, quando ele/s se portava/m mal.
17. Assim como relatou que a menor FF lhe contara que o Recorrente tinha ido ao seu quarto e dissera que “um dia ia casar com ela”. Mas que estava bêbado sempre que lá ia. E que quando ia lá ao quarto metia a mão na perna, ao pé do joelho e dizia “um dia, se a tua mãe morrer, podemos ser namorados”.
18. Por tal motivo chamou-o, bem com a FF, e confrontou-o com tais factos. Nessa altura ele pôs-se de joelhos no chão, a chorar.
19. Face ao exposto, deverá ser confirmada a factualidade dada como provada e ora impugnada.
20. E, assim, bem andou o tribunal a quo ao condená-lo por estes tipos de crime.
21.
- O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal é punível com pena de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão, sendo de dois a cinco anos de prisão a pena aplicável agravada, por força do disposto no n.º 2 do mesmo preceito legal.
- O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do Código Penal, é punível com pena de prisão de 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses.
- O crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal, é punido com pena de 1 (um) a 8 (oito) anos de prisão, e, por força da agravação prevista no art.º 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, com pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão.
22. Na determinação da medida da pena há que ter em consideração:
- a pluralidade de crimes cometidos pelo Recorrente;
- o dolo, directo e muito intenso;
- o grau de ilicitude dos factos que é extremamente elevado no crime de homicídio tentado e violência doméstica, atentos os bens jurídicos violados e o modo de execução do primeiro – com recurso a uma enxada e a uma faca -, colocando a Assistente numa situação de impossibilidade de resistir, o que demonstra indiferença pela vida humana, bem como é considerável no crime de abuso sexual de crianças, tendo em consideração que atuou com o propósito de satisfazer os seus desejos libidinosos, não se coibindo de o fazer com quem lhe era próximo (filha da Companheira), e que se esperava que gozasse da sua proteção, tendo os factos ocorrido no local onde o Arguido residia com a vítima, e onde esta deveria gozar de segurança e proteção;
- a motivação do arguido: querer tirar a vida, desde logo, à Assistente;
- as necessidades de prevenção geral, que são muito elevadas nos tipos criminais em causa;
- as necessidades de prevenção especial atentos os actos que cometeu e a personalidade que revela quem assim procede;
- que já regista antecedentes criminais, não obstante por crime diferente;
- que não confessou os factos relativos aos crimes de violência doméstica e de abuso sexual de criança e tentou arranjar justificação para o crime de homicídio tentada, designadamente “feitiços”, desresponsabilizando a sua conduta, logo, não revelou arrependimento;
- a sua inserção social e familiar.
23. Tudo ponderado, entendeu o tribunal a quo por adequada a aplicação da pena de:
- 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, al. b) e c), 2, 4 e 5, do Código Penal (na pessoa da Assistente DD);
- 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.ºs 1, als. d) e e), e 2, al. a), do Código Penal (na pessoa de EE);
- 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs. 22º, 23º, 73º, 131º, n.º 1, e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal (na pessoa da Assistente DD); e
- 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º, n.º 1, e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal (na pessoa de FF).
24. E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, entendeu o tribunal a quo condenar o Recorrente na pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão.
25. Tendo em consideração que a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes é de 17 anos e 9 meses de prisão e que o limite mínimo é de 9 anos e 6 meses de prisão, a pena única aplicada de 12 anos e 3 meses mostra-se justa e adequada.
26. Mantendo-se as respectivas condenações e penas parcelares, deverão os montantes das indemnizações serem mantidos. Isto mesmo é pugnado, a contrario, pelo próprio Recorrente, que apenas faz depender o seu quantum na verificação da condenação e das penas aplicadas.
27. De notar, ainda, que os montantes fixados se revelam justos face aos motivos expostos no acórdão, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, por se concordar, na integra, com os mesmos.
28. Face ao exposto, concorda-se inteiramente com o veredicto condenatório, por se entender que foi feita justiça e o direito bem aplicado;
29. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito,
No entanto, Vossas Excelências decidirão fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA”
*
5. Neste Tribunal, a Exma Procuradora-Geral Adjunta apresentou o seu parecer, aderindo à resposta apresentada na 1ª instância.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso1.
Atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o acórdão proferido nos autos – as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- deficiência da gravação das declarações para memória futura, e potenciais consequências da mesma na matéria de facto dada como provada;
- enquadramento jurídico dos factos, designadamente, no crime de homicídio qualificado tentado ou no crime de ofensa à integridade física qualificada;
- dosimetria das penas parcelares e da pena única;
- em função do que se decidir quanto à matéria criminal, eventual redução dos montantes indemnizatórios fixados.
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III. Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto
Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:
3. Fundamentação
3.1. Matéria de facto provada
Realizado o julgamento, mostram-se exclusivamente provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
ADa Acusação:
1) O AA e DD viveram em comunhão de leito, mesa e habitação, desde 17 de outubro de 2011, fixando, por último, residência na ...;
2) De tal relacionamento amoroso nasceu, em ........2014, EE e, em ........2018, GG;
3) Na mencionada habitação residia, ainda, FF, nascida em ........2008, filha da Assistente DD;
4) O Arguido é consumidor de bebidas alcoólicas e estupefacientes e, sob o seu efeito, torna-se agressivo para com a sua família;
5) O Arguido foi condenado, no âmbito do processo comum coletivo n.º 19/14.4PJSNT, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses, pela prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, tendo iniciado o cumprimento de pena em janeiro de 2014 e saído em liberdade condicional em novembro de 2017;
6) Desde que saiu em liberdade condicional, o Arguido começou a nutrir sentimentos de ciúmes exacerbados para com a Assistente;
7) Sendo recorrente, no interior da habitação e na presença dos seus filhos, menores, apodá-la de “puta”, “vaca”;
8) E, rebaixava-a, dizendo-lhe “não prestas para nada”, “andas com outros homens”;
9) No decurso dessas discussões, não raras vezes, o Arguido, dirigia-se-lhe, dizia “se não ficares comigo não ficas com mais ninguém”;
10) Referindo que quando a matasse a seguir mataria a FF, que é igual à Assistente;
11) Em ocasiões não concretamente apuradas, situadas entre o ano de 2018 e 2021, ou seja desde os 10 anos até aos 13 anos de idade de FF, já etilizado ou sob o efeito de estupefacientes, o Arguido dirigia-se ao quarto de FF, estando esta deitada, com os olhos fechados e sentava-se ao seu lado, mantendo-se a criança quieta, com receio do que o Arguido lhe pudesse fazer;
12) Nessas ocasiões, o Arguido destapava a FF e começa a acariciar-lhe as pernas, por cima do pijama, somente parando quando a FF se mexia e simulava estar a acordar, saindo, então, o Arguido do quarto e dirigindo-se para a casa-de-banho;
13) Numa ocasião, o Arguido tentou retirar-lhe as calças do pijama, mas a FF não deixou, mexendo-se, parando, então, o Arguido a sua conduta;
14) Desde cedo que FF se apercebeu que tais investidas do Arguido tinham intenções libidinosas, relatando-as à sua progenitora;
15) Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre 2019 e 2022, por motivos não concretamente apurados, o Arguido bateu no seu filho EE;
16) Numa ocasião, o Arguido, muniu-se de um ferro e, noutra, de uma trela de canídeo e, por vezes, com um chinelo, desferindo com aqueles objetos pancadas pelo corpo do seu filho EE, ficando a criança com dores nas zonas atingidas;
17) Desde que a Assistente DD adquiriu um estabelecimento comercial de restauração, em meados de janeiro de 2022, o Arguido iniciou, com maior frequência, discussões com a mesma;
18) Não raras vezes, o Arguido iniciava discussões porque a vítima estava a falar com os clientes do estabelecimento, exigindo que não o fizesse;
19) Desde o início de agosto de 2022, o Arguido começou a anunciar que matava a Assistente;
20) O Arguido guardava uma faca na gaveta do quarto;
21) No dia 24.08.2022, durante a manhã, o Arguido disse à Assistente que queria falar com ela, na habitação, que se situa no andar de cima do estabelecimento comercial;
22) Ali chegada, o Arguido disse para se deitarem e descansarem, tendo a vítima negado a sua pretensão, porque tinha bastante trabalho;
23) Nesse instante, irado, o Arguido disse à vítima “sou eu que vou-te matar se não ficares comigo”;
24) Depois, dirigindo-se a FF, disse-lhe para sair, porque pretendia conversar com a sua mãe, o que esta acatou, permanecendo na habitação os filhos do Arguido e da Assistente;
25) Seguidamente, muniu-se de um ferro, tipo enxada, com cerca de 60 cm de comprimento;
26) Quando a Assistente ia a sair do quarto, sem se aperceber da sua presença, o Arguido desferiu-lhe uma primeira pancada com a enxada, na cabeça;
27) Já com a Assistente prostrada no chão, empunhando a enxada, começou a tentar desferir outras pancadas na cabeça e cara da vítima, conseguindo esta evitar, algumas delas, colocando ambas as mãos em frente à sua face, sendo, no entanto, atingida com a enxada nas mãos e braços;
28) Posteriormente, o Arguido munido de uma faca de cozinha, com 14 cm de comprimento, colocou a ponta da faca, nas costas da vítima e, como se estivesse a martelar, espetou a faca, várias vezes, nas costas da Assistente;
29) Nesse momento, o seu filho EE tentou impedi-lo de prosseguir com tal conduta, porém, de imediato, este disse “se não calas a boca, corto o teu pescoço”;
30) Após, o Arguido saiu de casa e dirigiu-se à PSP, momento em que o seu filho EE, com 8 (oito) anos de idade, em desespero e aflição, se dirigiu ao café a pedir por socorro, ali ficando a GG, de 4 (quatro) anos de idade, a chorar, junto à sua progenitora;
31) Como consequência dessas pancadas, a Assistente apresentava feridas inciso-contusas complexas na região frontal, parietal bilateral e occipital, com dimensões entre 5-15 cm, calote craniana com solução de continuidades nas regiões occiptal e parietal direita, na zona da ráquis, várias feridas incisas profundas no dorso superior à direita, região interescapular e paramedianas lombares com dimensões entre 3-6 cm, com profundidades superiores a 4cm, na ferida dorsal superior, na face apresenta complexos cicatriciais rosados na região frontal, dolorosos à apalpação, com distrofia e adrentes aos planos profundos e muito aparentes, feridas incisa hipotenar com 3cm, fratura diafisária do cúbito direito (com imobilização com tala gessada), fraturas expostas grau I diáfise proximal de MC2 mediodiafisária de MC3 e fractura fechada de F1 e D4 da mão esquerda (imobilizadas com tala gessada), duas feridas incisas na face dorsal da mão. Membro superior direito com imobilização gessada antebraquial e membro superior esquerdo com imobilização gessada antebraquial incluindo dedos e polegar;
32) A data da consolidação médico-legal foi de 365 dias, fixada em 24.08.2023;
33) As cicatrizes da cabeça, tronco e membros superiores desfiguram a Assistente de forma grave;
34) A rigidez do punho direito e rigidez de D1 a D4 da mão esquerda afetam de forma grave a possibilidade da Assistente usar o corpo e a sua capacidade de trabalho;
35) Com as condutas descritas contra a Assistente, o Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, quis e conseguiu molestar a saúde psíquica da sua companheira, bem sabendo que as expressões que contra ela proferia eram atentatórias da sua honra e consideração e que tinha o dever de a tratar com dignidade, bem como visou provocar-lhe receio e temor, intimidando-a como os constantes anúncios de morte, não se coibindo de o fazer, no recesso do lar e na presença dos seus filhos menores e da FF;
36) Ao atuar da forma descrita em 11) a 14), acariciando-lhe as pernas, por cima do pijama e tentando retirar-lhe as calças do pijama, quando esta se encontrava deitada, o Arguido agiu livre, voluntária e consciente, sabendo que constrangia a sua enteada a contacto de natureza sexual contra a sua vontade, o que fez para satisfazer os seus desejos libidinosos, aproveitando-se da circunstância desta estar ao seu cuidado;
37) Ao atuar da forma descrita em 16) o Arguido agiu livre, voluntária e consciente, consecutivamente, com o propósito de castigar física e psicologicamente o seu filho, atentando contra a sua dignidade humana e pondo em causa o equilíbrio emocional e afetivo, o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e, efetivamente, provocando-lhe dores, suscetíveis de condicionarem o seu desenvolvimento, bem sabendo que se tratava de menor, seu filho e que consigo coabitava;
38) O Arguido bem sabia que as zonas do corpo onde atingiu a Assistente, designadamente, a cabeça, se trata de uma zona vital para a vida, agindo com o propósito firmado de tirar a vida à mesma, sua companheira e mãe dos seus filhos, o que não sobreveio devido à rápida intervenção da assistência médica;
39) O Arguido agiu livre, voluntária e consciente, visando usar aquela faca e enxada, como usou, como instrumento de agressão, bem sabendo que lhe estava vedada tal conduta;
40) O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos, atuando da forma supra descrita;
BMais se provou:
41) O Arguido utilizava o ferro, tipo enxada, supra descrito, na horta que cultiva, guardando-o, habitualmente, após a sua utilização, na residência descrita em 1);
CDas Condições Pessoais do Arguido:
42) O Arguido, natural de ..., viu o seu processo de desenvolvimento decorrer num contexto de precariedade socioeconómica, no seio de um agregado familiar constituído pelos progenitores e 10 descendentes, que se dedicavam à agricultura e pastorícia;
43) Aos 13 (treze) anos de idade, AA abandonou a frequência escolar, com a conclusão do 6º ano de escolaridade e com registo de uma reprovação, por imposição da necessidade de contribuir para a economia familiar;
44) Nesse contexto, iniciou o seu percurso laboral no ramo da construção civil, junto do cunhado e da irmã, que residiam na cidade da ...;
45) Aos fins-de-semana regressava a casa dos pais, ocupando-se em atividades ligadas à agricultura e pastorícia;
46) Em ... emigrou para Portugal, em busca de melhores condições de vida, fixando-se em..., junto do agregado familiar do irmão mais velho;
47) Integrou-se profissionalmente na área da construção civil;
48) Em termos afetivos, o Arguido tem 3 (três) filhos em ..., de 2 (dois) relacionamentos diferentes, com 16 (dezasseis), 14 (catorze) e 12 (doze) anos de idade;
49) Em Portugal manteve relacionamento com a Assistente, com quem coabitou;
50) Em 24 de agosto de 2022 AA residia com a Companheira e os dois filhos em comum, na ..., aí igualmente se encontrando a filha da Companheira, à data institucionalizada, mas que havia fugido da instituição onde havia sido acolhida;
51) Em termos profissionais, encontrava-se a desempenhar funções na área da construção civil, com um tio em ...;
52) Em termos de enquadramento sociofamiliar, o Arguido beneficia de suporte, principalmente por parte do agregado familiar do irmão, HH;
53) O Arguido pretende regressar a ... e aí se fixar, junto de familiares (mãe, irmã, filhos);
54) Em termos laborais, perspetiva integração na área da construção civil naquele país;
55) No Estabelecimento Prisional da Carregueira, onde se encontra em situação de prisão preventiva, o Arguido apresenta um registo disciplinar de acordo com o normativo instituído;
56) O Arguido foi condenado por decisão de 27.03.2015, transitada em julgado em 19.05.2016, proferida no âmbito do Proc. n.º 19/14.4PJSNT, do Juiz 3 do Juízo Central Criminal de Sintra, pela prática, em 07.03.2013, de factos consubstanciadores da prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22.01, por referência às tabelas I-A e I-B anexas a tal diploma, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, pena esta declarada extinta em 02.12.2019.
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3.2. Matéria de facto não provada
a) Que nas situações descritas no ponto 9) dos Factos Provados, o Arguido tenha dito à Assistente “se não fores minha não és de mais ninguém”;
b) Que o Arguido, dirigindo-se a FF, lhe tenha dito “quando a matar a ela, vais tu a seguir”, “és igual à tua mãe”;
c) Que na ocasião descrita no ponto 24) dos Factos Provados, com um sorriso irónico, o Arguido tenha exigido a FF que saísse de casa;
d) Que FF tenha saído para ir buscar o telemóvel;
e) Que na ocasião descrita no ponto 28) dos Factos Provados o Arguido tenha utilizado um martelo;
f) Que na ocasião descrita no ponto 29) dos Factos Provados EE tenha empurrado o Arguido;
g) Que o Arguido tenha atuado com o propósito de castigar psiquicamente a sua enteada, provocando-lhe continuamente desespero e medo de aquele concretizar o anúncio da sua morte e da sua mãe;
h) Que o Arguido tenha decidido matar a Assistente no início de agosto de 2022 e se tenha munido desde então de uma faca para o efeito;
i) Que o Arguido se tenha munido de uma barra de ferro, tipo enxada e com uma faca de cozinha com o propósito firmado de, com estes objetos, vir a tirar mais tarde a vida à Assistente.
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De resto, não se logrou provar quaisquer outros factos relevantes, alegados ou não, resultantes da discussão da causa, e/ou que estivessem em oposição com os factos atrás referidos, sempre se salientando que não selecionámos matéria conclusiva ou de direito constante do libelo acusatório proferido nos autos.
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3.3. Motivação da decisão de facto
Serviram de base para formar a convicção do Tribunal a análise critica e conjugada dos vários elementos probatórios abaixo discriminados, apreciados segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal:
- no teor dos assentos de nascimento juntos a fls. 165 (referente a GG), 165, verso (respeitante a EE) e 397 dos presentes autos (atinente a FF), cruciais para prova da data de nascimento e filiação dos menores GG, EE e FF, os primeiros dois filhos do Arguido e da Assistente e a última da Assistente e seu anterior Companheiro.
- nas declarações para memória futura prestadas pela Assistente DD (captadas com registo de imagem e áudio, constantes de CD junto a fls. 258 dos presentes autos), em que esta de forma que nos pareceu sincera, consistente e emotiva, descreveu a forma como decorreu o relacionamento amoroso que manteve com o Arguido, com quem começou a viver em outubro de 2011 (no dia a seguir ao aniversário da FF), e que se tornou muito ciumento relativamente à mesma, quando saiu da prisão, sobretudo nos meses antecedentes aos factos dos autos, com a abertura do restaurante, o que motivava que fizesse tudo quanto o Arguido queria para não discutirem.
Relatou que neste último período o Arguido passou a dizer-lhe “não prestas para nada”, “se não ficares comigo não ficas com mais ninguém”, que andava com outros homens e a apelidá-la de “vaca” e na última semana a ameaçar matá-la.
Referiu que o Arguido dizia que a FF era igual a si, que saiu à mesma.
Reconheceu que o Arguido molestava o EE, desvalorizando aquilo que apelidou de “umas porradinhas”, com chinelo “e tal”.
Relatou que a FF lhe contou que o Arguido, estando bêbado, lhe disse que ia casar consigo e lhe passou a mão pela zona do joelho, o que fez com que o seguisse numa das ocasiões em que o viu dirigir-se ao quarto da FF e onde presenciou o Arguido a tapar a FF. Tendo a FF voltado a relatar-lhe as abordagens do Arguido confrontou ambos com o sucedido, ocasião em que o Arguido se colocou de joelhos e pediu desculpa à FF.
Narrou os factos que antecederam a agressão de que foi alvo por parte do Arguido, mencionando que este lhe transmitiu que com esta queria falar, tendo-se deslocado à residência de ambos para o efeito, ocasião em que o Arguido mandou a FF embora e, após pediu à Assistente para se deitarem, o que esta recusou, por ter trabalho para executar.
Relatou que quando ia a abandonar o quarto o Arguido, afirmando que a ia matar se com ele não ficasse, a atingiu com uma enxada na cabeça, comportamento que reiterou com a mesma prostrada no chão, procurando esta defender-se, com as mãos, que colocava a proteger a cabeça.
Contou que o Arguido ainda lhe espetou uma faca nas costas, procurando martelá-la para o interior das costas da Assistente.
Salientou que o filho EE ainda a procurou auxiliar, ocasião em que ouviu o Arguido dizer-lhe “se não calas a boca, corto o teu pescoço”.
Frisou que o Arguido só parou quando esta ficou imóvel, opção que tomou para que o Arguido pensasse que estava morta e parasse de a molestar;
- nas declarações para memória futura prestadas por FF, que, de forma tímida, emocionada e coerente com a idade que tem, descreveu a forma como decorreu o relacionamento amoroso que a mãe (aqui Assistente) manteve com o Arguido, que descreveu num primeiro período (antes da prisão do Arguido) como calmo e harmonioso, e num segundo período (após a saída do Arguido da prisão) como conflituoso, agressivo e ciumento, o que fazia com que a mãe não andasse bem e chorasse no quarto.
Relatou que o Arguido apelidava a mãe de puta, a acusava de dar conversa aos clientes e ameaçava matá-la, bem como à Declarante.
Descreveu o circunstancialismo em que o Arguido se introduziu no seu quarto, a destapou, a acariciou nas pernas (por cima do pijama) e lhe tentou tirar o pijama e comportamento por si adotado para evitar que o Arguido prosseguisse com os seus intentos (mexendo-se, por forma a que este pensasse que estava a acordar e abandonasse o quarto).
Frisou ter contado o sucedido à mãe, que, com isso, confrontou o Arguido. Salientou que isto sucedia quando o Arguido estava bêbado ou “fumava”.
Narrou que antes de atingir a mãe com a enxada (o que não presenciou, sabendo apenas o que quanto a tal lhe foi relatado pelo irmão EE, e as marcas com que visualizou quando, a solicitação do irmão, voltou a casa, e encontrou a mãe prostrada no chão, cheia de sangue) o Arguido disse que queria falar com a mãe e mandou a Declarante sair do quarto.
Contou a forma como o Arguido tratava o filho EE, a quem batia, segundo a mesma, por coisas mínimas, com um ferro, corrente do cão e chinelo e que lhe provocavam lesões.
FF revelou, ao longo do seu testemunho (captado com registo de imagem e áudio, constante de CD junto a fls. 258 dos presentes autos), pela coerência do que relatou com as suas expressões faciais e atitude corporal e com o que se extrai das regras da experiência e da lógica, que os factos por esta relatados ocorreram nos termos pela mesma descritos, não havendo por parte desta, contrariamente àquilo que o Arguido afirmou, uma vontade de vingança para com o Arguido, cujas atitudes para com a mesma procurou, inclusive, justificar com o facto do Arguido se encontrar alcoolizado ou ter consumido estupefacientes;
- nas declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de julgamento, em que este assumiu ter atingido a Assistente com a enxada e faca, o que justificou com um pretenso feitiço de que se diz alvo, verbalizando estar arrependido do sucedido.
Confrontado com o teor de fls. 316 dos presentes autos assumiu tratar-se da faca que utilizou para molestar a Assistente. Reconheceu igualmente que a enxada constante das fotografias de fls. 317 e 318 dos presentes é a que foi por si utilizada na prática dos factos objeto destes autos.
Quanto ao mais que lhe é imputado negou a sua prática, referindo que o EE é um seu grande amigo e que a FF só o está acusar agora, por ódio, não o tendo feito anteriormente;
- no testemunho prestado por II, que, de forma clara e coerente, descreveu o cenário que encontrou quando, a solicitação do EE, se deslocou a casa do Arguido e da Assistente e onde encontrou a Assistente caída no chão, sangue pelo chão, uma faca partida e uma enxada. Frisou ter chamado a ambulância e ter falado com a Assistente, que estava consciente, e lhe pediu água. Precisou que a GG também estava em casa.
Questionada relativamente a se tinha conhecimento de FF faltasse à verdade, foi categórica ao afirmar nunca ter tido conhecimento que esta o fizesse.
As declarações da Ofendida, que nos mereceram total credibilidade, concatenadas com as declarações prestadas pelo Arguido (em que este assumiu ter molestado a Assistente com a enxada e faca), com as declarações prestadas para memória futura por parte de FF (que, pelas razões infra expressas igualmente nos mereceram total credibilidade), testemunho prestado por II (que descreveu o cenário que encontrou quando, após a agressão de que a Assistente foi vítima, se deslocou a casa desta), o auto de notícia por detenção de fls. 4 a 8 (determinantes para prova do dia e local onde o Arguido molestou fisicamente a Assistente), o teor dos assentos de nascimento juntos a fls. 165 (referente a GG), 165, verso (respeitante a EE) e 397 (atinente a FF), o auto de apreensão constante de fls. 221 (entre outras coisas, ao cabo da faca, lâmina da faca e objeto em ferro tipo enxada), fotografias constantes de fls. 54 (ao Arguido, onde são visíveis vestígios de sangue na roupa e ténis) e 212 a 215, 311 a 312, 315 a 318 (onde são visíveis marcas de sangue no quarto, a faca partida e a enxada reconhecidas pela Assistente como os objetos utilizados pelo Arguido quando a agrediu e pegadas com sangue no corredor de acesso do quarto à saída da residência do Arguido e da Assistente), documentação clínica constante de fls. 35 a 41, 43 a 49, 119 a 134 e 151 (determinantes para prova da factualidade constante do ponto 31) dos Factos Provados), auto de exame médico constante de fls. 153 a 155 (cruciais para prova da factualidade constante dos pontos 32) a 34) dos Factos Provados) e exame pericial de fls. 323 a 324 dos presentes autos, foram valoradas para prova da factualidade constante dos pontos 1) a 40) dos Factos Provados.
Sempre se referindo que a violência com que o Arguido atingiu a Ofendida e a zona particularmente atingida (zona da cabeça), conforme descrito pela Assistente, expressa nos elementos clínicos e perícia realizada à Assistente, não deixam dúvida quanto ao facto de ter ficado demonstrado, sem qualquer dúvida, que Arguido bem sabia que as agressões por si perpetradas, na zona atingida, são causa adequada de causar a morte da Assistente, o que quis e representou, apenas não o logrando por se ter convencido que já o tinha alcançado (atenta a ausência de movimentos da Assistente, conforme por esta descrito) e pela pronta assistência médica que a Assistente recebeu.
Quanto às declarações prestadas pelo Arguido não podemos deixar de salientar que este admitiu o inegável, ainda assim justificando-o com alegados “feitiços”.
Sendo que a versão por este apresentada, de que FF apenas o acusar de a acariciar após os factos, e por vingança, não tem qualquer suporte factual, mostrando-se, pelo contrário, contrariada pela prova produzida nos autos, designadamente pelo testemunho prestado pela FF (que apesar do sucedido ainda procurou desculpá-lo, atribuindo tal comportamento ao consumo excessivo de álcool e de estupefacientes) e declarações prestadas pela Assistente (que relatou ter, inclusive, anteriormente, confrontado o Arguido com o sucedido).
Para prova da factualidade constante do ponto 41) dos Factos Provados ativemo-nos ao testemunho prestado por FF que, quanto a tal, se mostrou esclarecedora.
- quanto às condições pessoais do Arguido (pontos 42) a 55) dos Factos Provados) ativemo-nos ao teor do relatório social respeitante ao mesmo junto aos autos em 29.05.2023, que o Arguido declarou ser para considerar nos termos elaborados, complementado pelas Declarações prestadas pela Assistente e testemunho prestado por FF (no que respeita ao facto desta última ter sido institucionalizada e de em 24.08.2022 se encontrar fugida da instituição onde foi acolhida);
- para prova dos antecedentes criminais registados do Arguido (ponto 56) dos Factos Provados) mostrou-se crucial o Certificado de Registo Criminal referente ao mesmo, emitido em 06.09.2023, e junto aos autos em 07.09.2023.
Quando à factualidade considerada como não provada tratou-se de factualidade não demonstrada por meio de prova idóneo para o efeito.
Sempre se referindo, nesta sede, que pese embora tenha ficado demonstrado nos autos que o Arguido já vinha a ameaçar a Assistente de morte nas últimas semanas, da prova produzida não resulta que este o efetivamente planeasse fazer desde então, nem que este se tenha munido da enxada e faca para o efeito, resultando, pelo contrário, da prova produzida, designadamente do testemunho prestado por FF, que era habitual o Arguido ter tais objetos em casa, daí que a mesma não tenha estranhado ver a enxada, que, segundo esta, este habitualmente levava para a horta, no dia dos factos, no interior da habitação (als. h) e i) dos Factos Não Provados).
Não podemos ainda deixar de salientar que parte da convicção que se forma em relação aos testemunhos prestados alavanca-se precisamente na imediação do interrogatório, ou seja, pelos seus gestos, tom de voz, atitude corporal, forma como se referem aos factos, a qual nos permite percecionar a realidade do seu depoimento e testemunhos de forma diferente do que seria caso esta fosse descrita sem a mencionada imediação.
E tais fatores adicionais reforçam a nossa convicção sobre a matéria de facto considerada provada nos termos supra exarados e a credibilidade que os testemunhos prestados nos mereceram para prova dessa mesma factualidade.
Os meios de prova que se descriminaram foram todos conjugados, confrontados e entrecruzados, procurando-se encontrar os pontos de confluência e de coerência dos mesmos, sendo a resposta o resultado da sua ponderação global.”
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IV. Fundamentação
iv.1. da alegada deficiência da gravação da prova
Na conclusão 3ª do respetivo recurso, o recorrente AA alegou que “devem ser declaradas inexistentes as declarações para memória futura prestadas pela menor FF, por não terem ficado gravadas em parte, em outra parte não ser perceptível o que ficou gravado e em outra parte só muito difícil e deficientemente se percebe o que foi dito”.
Na sua resposta, contrapôs o Ministério Público que, “no que respeita à gravação das declarações para memória futura prestadas pela menor ofendida FF, em 03.11.2022, constantes do sistema Citius, embora estas não sejam totalmente compreensíveis, o certo é que nessas passagens, o que foi dito por aquela foi repetido pelo Mmo Juiz de Instrução, pelo que se consegue compreender, na totalidade, aquilo que foi referido”, destacando, porém, que “na gravação constante do CD junto a fls. 258 dos autos – registo de imagem e áudio – já são perceptíveis as suas declarações”.
Vejamos, então.
Tratando-se de depoimento recolhido em declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 271º, nº 2 do Código de Processo Penal, é aplicável ao respetivo registo, o disposto no artigo 363º do mesmo diploma, por expressa remissão do nº 6 do citado artigo 271º. Nos termos daquela disposição legal, na redação dada pela Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade, sendo a documentação efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, como resulta do disposto no artigo 364º do mesmo Código.
Não pode, assim, existir qualquer dúvida quanto à obrigatoriedade da documentação das declarações prestadas oralmente na audiência e quanto à consequência jurídico-processual para o caso da não documentação - que é a nulidade.
Todavia, apesar de a obrigatoriedade da documentação das declarações prestadas em audiência se mostrar instrumental à garantia da efetiva possibilidade de recurso em matéria de facto, a respetiva falta não constitui um vício da decisão, mas antes um vício do procedimento. Por isso, não são aplicáveis, no caso, as regras relativas às nulidades da sentença (que são apenas as previstas no artigo 379º do Código de Processo Penal), mas sim as regras gerais fixadas nos artigos 118º e ss. do Código de Processo Penal.
Não pode, por outro lado, deixar de se atender o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 13/2014, de 03.07.20142, que fixou jurisprudência com o seguinte sentido:
«A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada».
Como se escreveu na fundamentação desta decisão uniformizadora, cuja clareza dispensa comentários adicionais:
6.2. O legislador construiu o sistema de vícios dos atos processuais atribuindo o carácter absoluto ou insanável a casos que enumera de forma taxativa. Constituem nulidades insanáveis, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, as constantes do elenco do artigo 119.º
O que significa que as situações que não se encaixem na lista que o legislador concebeu não sejam nulidades com essa natureza.
Ora, o artigo 363.º, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, dispõe que «as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade».
6.3. Tem-se entendido que à omissão da documentação em ata das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo do depoimento3.
É deficiente a documentação que não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes.
Deve, pois, considerar-se que também constitui a nulidade prevista no artigo 363.º uma documentação que não satisfaça a finalidade visada pela norma que é, justamente, a de permitir impugnar perante um tribunal superior a decisão proferida sobre matéria de facto4.
(…)
6.4. Não se tratando de nulidade elencada no artigo 119.º nem sendo expressamente classificada como insanável, pela própria norma, a nulidade prevista no artigo 363.º é, pois, uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º
Por outro lado, é consubstanciada por um vício procedimental cometido durante a audiência.
Com efeito, a omissão da gravação ou a deficiência equiparável a falta de gravação ocorrem na audiência.
Não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença. Nulidades da sentença são só as previstas no n.º 1 do artigo 379.º e só para estas, compreensivelmente, está previsto um regime especial de arguição em recurso (artigo 379.º, n.º 2).
As demais nulidades devem ser arguidas, em requerimento autónomo, perante o tribunal onde foram cometidas, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 120.º, ou, na falta de norma especial, no prazo geral de 10 dias indicado no artigo 105.º, n.º 1.
Hoje em dia não nos parece sequer concebível a hipótese de o interessado assistir à prática da nulidade - para efeitos de a arguir nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 120.º -, a pressupor que, contra lei e à vista de todos os intervenientes processuais, a audiência decorresse sem que, na sala, existissem quaisquer equipamentos adequados à gravação magnetofónica ou audiovisual ou houvesse funcionário a redigir o auto.
O vício da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência tem, pois, de ser arguido perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, dirigido ao juiz do processo, no prazo geral de 10 dias, a partir do momento em que dele se toma conhecimento.”
Decorre deste entendimento, naturalmente, a responsabilização dos interessados em interpor recurso da decisão em acautelar a obtenção dos suportes técnicos contendo as gravações e o controlo da respetiva qualidade, sendo que, se a deficiência for detetada em momento próximo à audiência de julgamento, ou mesmo enquanto esta ainda se encontra a decorrer, é possível ultrapassar tal nulidade, diligenciando-se pela repetição da inquirição, na medida em que se mostre necessária (já que a repetição do ato é, em regra, o modo de ultrapassar a nulidade, como decorre do disposto no artigo 122º, nº 2 do Código de Processo Penal).
O mencionado AUJ 13/2014 teve, precisamente, tais circunstâncias em conta, concluindo que uma tal exigência não se mostra desproporcionada e não é suscetível de por em causa o direito de defesa do arguido, considerando, designadamente, que: “O propósito da lei não pode ter sido outro que não o de permitir o controlo tempestivo da percetibilidade da gravação pelos sujeitos processuais interessados e, desse modo, criar as condições de um regime eficaz e célere de suprimento de vícios da documentação de declarações orais.
Como se observou no acórdão deste Tribunal de 24/02/2010 (Processo n.º 628/07.8S5LSB.L1.S1):
«É evidente a intenção do legislador, com a nova redação do artigo 101.º, e nomeadamente do seu n.º 3, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de permitir às partes o acesso atempado à documentação da audiência para que elas possam exercer um controlo tempestivo e permanente (sobretudo no caso de audiências repartidas em várias sessões) sobre os vícios que essa documentação possa conter, em ordem à sua pronta reparação.
«Porém, dando-lhes acesso imediato à documentação atribui-lhes concomitantemente a responsabilidade de um controlo em tempo oportuno dos vícios. O interessado deverá, pois, solicitar atempadamente cópia das gravações e proceder de imediato à audição das mesmas. Caso o não faça, adota um procedimento negligente que não recebe proteção legal.
«E esta interpretação não é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, dado que não lhe é negado, nem restringido o acesso à documentação da audiência; pelo contrário, esse acesso com o novo regime processual é mais extenso e rápido. É certo que simultaneamente o arguido fica obrigado a um dever de diligência no controlo da documentação, mas tal não é incompatível com os direitos de defesa, que se exercem necessariamente dentro de um quadro legal de regras e deveres processuais.»”
E, mais adiante ainda, “como se reconheceu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2012, num regular funcionamento das coisas, quando careça de tais elementos, o interessado terá, no máximo, o prazo afetado em 48 horas, «este encurtamento do prazo útil - supondo, o que não é necessariamente certo, que a indisponibilidade temporária dos elementos pretendidos equivalha à inutilização desse tempo para assegurar o recurso - não o reduz a ponto de afetar a exigência constitucional de que o processo assegure todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)».
Aí se adverte de que «é por referência a este significado constitucional, de um processo penal orientado para a defesa em que ao arguido não sejam colocados entraves a que possa defender a sua posição e contrariar a acusação e atacar a sentença condenatória, em matéria de direito e de facto, que há-de ser perspetivado o problema das repercussões das diligências necessárias a obter a reprodução dos registos de prova no prazo de recurso. O que a garantia constitucional exige é que o arguido não seja posto, em termos de disponibilidade de elementos, de tempo e de circunstâncias em que tais elementos lhe são fornecidos, em situação que lhe não permita uma opção esclarecida e eficaz quanto ao âmbito da impugnação da decisão condenatória (ou à defesa da decisão absolutória). Não decorre dela a incolumidade dos prazos fixados pela lei ordinária. O que o arguido não pode é ficar privado de obter os elementos que entenda necessários, permanecer na incerteza acerca do momento em que lhe são fornecidos ou a disponibilização destes consumir parte substancial do prazo de modo a que deixe de ser idóneo para uma opção e preparação refletida da motivação de recurso».
Para, em síntese, se afirmar que, «deste modo, face aos atuais prazos de recurso em processo penal e ao regime de disponibilização de cópias dos registos de prova gravada, que consomem, na pior das hipóteses dois dias desse prazo, não pode concluir-se que a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do CPP, interpretada no sentido de que o prazo para a interposição de recurso, onde se impugne a decisão da matéria de facto cujas provas produzidas em audiência tenham sido gravadas, [se conta] sempre a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não a partir da data da disponibilização ao arguido dos suportes materiais da prova gravada, ainda que estes tenham sido diligente e tempestivamente requeridos por este último - por os considerar essenciais para o cabal exercício do direito de defesa mediante, se diligentemente facultados pelo tribunal, viole a exigência de que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».
6.7. Da conjugação das normas dos artigos 101.º, n.º 3, e 364.º, n.º 1, resulta que, sempre que for realizada gravação, o sujeito processual interessado pode requerer a entrega de uma cópia facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, devendo o funcionário entregar uma cópia, no prazo de quarenta e oito horas. Nessa altura, o sujeito processual fica em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência5.
Por isso, o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efetuada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário (por lei, quarenta e oito horas).
Neste sentido, já se pronunciou o referido acórdão deste Tribunal de 23/11/2011 (processo n.º 161/09.3GCALQ.L1.S1). Ponderando-se que, uma vez decorridas quarenta e oito horas sobre o termo do ato em que houve gravação das declarações orais, o sujeito processual interessado pode exigir a entrega de uma cópia, facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, ficando, nessa altura, em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência e porque, «de acordo com o disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 25 de Fevereiro, que, regulando o registo da prova em processo civil, se aplica analogicamente ao processo penal, nos casos omissos, em conformidade com o disposto no artigo 4.º do CPP, a falta de gravação, ou a sua deficiência, implica a repetição da parte omitida, desde que “essencial ao apuramento da verdade” e essa repetição deve ser feita o mais rapidamente possível, sem afetação de direitos processuais, até porque em processo penal a celeridade constitui garantia de defesa com assento constitucional (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição), o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efetivada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário».
Também na posição sustentada por Paulo Pinto de Albuquerque6, a nulidade sana-se se não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de dez dias a partir da audiência acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido. Se a audiência de julgamento se prolongar por várias sessões, o prazo conta-se a partir de cada sessão da audiência, acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo sujeito processual interessado ao funcionário e a entrega da cópia do suporte técnico ao sujeito processual que a tenha requerido.
Oliveira Mendes7, em comentário ao artigo 363.º, adverte que, «quanto à deficiente documentação, ou seja, a documentação que não possibilite, no todo ou em parte, a captação das declarações oralmente prestadas em audiência, há que considerar duas situações possíveis».
«Caso a deficiência da documentação impeça a captação do sentido das declarações prestadas, deve ser equiparada à falta de documentação, visto se tratar, verdadeiramente, de uma documentação inexistente ou ineficaz. A nulidade daí resultante, como o conhecimento da deficiência só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, deverá ser arguida no prazo de dez dias contados da data em que ao sujeito processual tenha sido entregue o respetivo suporte técnico, caso haja sido requerida a sua entrega - artigo 101.º, n.º 3; caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do termo ou encerramento da audiência em que foi efetuada a deficiente documentação.
«Diferente será, porém, a situação em que se verifique deficiência menor, que não inviabilize a perceção do significado das declarações oralmente prestadas. Neste caso estamos perante mera irregularidade. Como o conhecimento da deficiência, como atrás referimos, só se torna possível ao sujeito processual com o acesso ao suporte técnico, o prazo de três dias para arguir a irregularidade - parte final do n.º 1 do artigo 123.º - iniciar-se-á com a entrega do respetivo suporte técnico, caso a mesma haja sido requerida; caso não tenha sido requerida a entrega do suporte técnico aquele prazo conta-se a partir da data do encerramento da audiência em que foi efetuada a deficiente documentação das declarações oralmente prestadas.
6.8. Reconhecendo-se, como se reconheceu, que o acesso à gravação da prova produzida em audiência é indispensável ao exercício do direito ao recurso em matéria de facto, a imposição de que o interessado proceda ao controlo da qualidade dessa gravação, por via do procedimento instituído pelo n.º 3 do artigo 101.º, nada tem de ilegítimo por não prejudicar o “acesso ao direito” (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República) nem comportar qualquer prejuízo do “direito ao recurso” (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República).
Na verdade, particularmente no caso do arguido, a adoção desse procedimento não só não afeta as garantias de defesa como é o que melhor observa as exigências de celeridade processual, compreendidas como uma das garantias do processo criminal (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República).
Conclui-se, assim, na sequência de tudo o exposto, que a nulidade a que se refere o artigo 363.º deve ser arguida, perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1), a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º”
No caso, consta do auto de declarações para memória futura elaborado em 03.11.2022 (refª Citius 140573862), que as declarações então prestadas pela menor FF foram «gravadas no sistema integrado de gravação digital em uso neste tribunal, tendo ficado igualmente registadas em vídeo, em formato digital e em suporte físico a anexar aos autos». Nesta diligência esteve presente a Ilustre defensora do arguido.
E consta da ata da 1ª sessão da audiência de julgamento, realizada em 19.09.2023 (refª Citius 146281081), que tais declarações, anteriormente prestadas, foram reproduzidas na audiência, tendo a Mma Juiz presidente do coletivo «determinado que caso a ilustre Patrona da Assistente e a ilustre defensora do Arguido requeiram cópia do DVD com registo de som e imagens das declarações para memória futura prestadas pelas Ofendidas lhes seja entregue cópia». Por termo lavrado em 19.09.2023 (refª Citius 146306818), consignou a Srª Oficial de Justiça que: «após a sessão de julgamento gravei em pen, fornecida pela Ilustre Defensora Oficiosa do arguido, gravação das declarações para memória futura (imagens) das ofendidas, conforme autorizado pela Mm.ª Juiz Presidente».
Mostram ainda os autos que, lido publicamente o acórdão condenatório em 16.10.2023 (refª Citius 146841791), o arguido veio requerer, em 20.10.2023, a disponibilização da gravação das sessões de julgamento, a qual lhe foi disponibilizada em 23.10.2023 (refª Citius 147005715).
E o que não resulta dos autos: que em momento algum, no decurso do julgamento, nomeadamente após a reprodução das declarações para memória futura prestadas pelas ofendidas, tenha sido invocada, pelo arguido ou por qualquer outro sujeito processual, a deficiência de tal gravação ou a sua ininteligibilidade.
Ora, tendo tal gravação sido reproduzida na audiência, com a presença de todos os sujeitos processuais, maxime, o arguido e a sua defensora, não é crível que ninguém se apercebesse, caso tais declarações não fossem percetíveis. E, se tal fosse o caso, como decorre do que acima se deixou exposto, a nulidade decorrente de semelhante deficiência da gravação teria de ser arguida imediatamente, ou, no limite, nos 10 dias seguintes.
Concluímos, pois, que o recorrente, dispondo de tempo bastante para o efeito, não veio arguir a deficiência daquela gravação, apenas invocando tal circunstância nas alegações de recurso apresentadas em 15.11.2023, ou seja, em data em que tal eventual nulidade há muito se mostrava sanada.
Note-se que, de acordo com o que consta dos autos, a gravação reproduzida no julgamento foi disponibilizada ao recorrente em 19.09.2023, pelo que, mesmo aceitando-se que, em ato seguido à tomada de declarações para memória futura, não se tenha certificado da respetiva percetibilidade, o que é facto é que, desde então e até ao encerramento da audiência de julgamento, dispôs de inúmeras oportunidades para se inteirar do estado em que se encontrava a gravação (com especial destaque para o momento em que tais declarações foram reproduzidas na audiência de julgamento).
Mesmo que o prazo de 10 dias se contasse desde a data da leitura e depósito do acórdão (16.10.2023), na perspetiva de que, só após tomar conhecimento da decisão final, estaria em condições de equacionar a necessidade de interpor recurso e, portanto, de obter tais gravações (o que, como decorre do que acima se referiu, não corresponde à jurisprudência fixada no AUJ 13/2014), ainda assim seria a referida arguição de nulidade claramente extemporânea – não podendo, por isso, ser conhecida por este Tribunal.
Diga-se, ainda, que, em qualquer caso, a eventual deficiência da gravação apenas seria suscetível de determinar a repetição da diligência (como acima se apontou), e nunca a «inexistência» de tal meio de prova, ou a sua exclusão das provas a considerar pelo Tribunal. Não obstante, é exata a afirmação produzida pelo Ministério Público na resposta ao recurso: a gravação vídeo das declarações da menor (e da assistente) é perfeitamente audível.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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iv.2. do alegado erro de julgamento
Na conclusão 4ª da motivação do recurso, pede o recorrente AA que sejam “eliminados dos factos provados os pontos 11), 12), 13), 14), 15), 16), 36) e 37) (págs. 4 e 7 do acórdão). Isto porque devem ser declaradas inexistentes as declarações para memória futura prestadas pela menor FF, por não terem ficado gravadas em parte, em outra parte não ser perceptível o que ficou gravado e em outra parte só muito difícil e deficientemente se percebe o que foi dito.
Declarada a inexistência das declarações, e porque nelas assentam a prova daqueles pontos da matéria de facto, impõe-se que sejam dados como não provados”.
Cumpre apreciar.
Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar8, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, vd., por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.06.20089, e de 14.05.200910, ambos disponíveis em www.dgsi.pt - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida [assim não podendo fazer-se caso tais provas apenas permitam uma outra decisão, a par da decisão recorrida - neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais] – cf., por todos, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.202111.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa12.
Ora, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, têm de descriminar:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. artigo 430º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nos 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal), salientando-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão nº 3/2012, publicado no Diário da República, Iª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
A reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão13.
No caso, o recorrente limitou-se a pedir que os factos sejam dados como não provados por entender que a prova que os sustenta deve ser considerada «inexistente».
Já vimos que, além de essa não ser a consequência legal da eventual deficiência da gravação (que, mais uma vez sublinhamos, não é um vício da sentença), no caso, tal hipotética nulidade sempre deveria considerar-se sanada, pelo que a prova obtida através das declarações prestadas pela ofendida FF é de considerar válida e apta a sustentar a convicção do Tribunal (ao que acresce, como também já referimos, que tais declarações são perfeitamente audíveis na gravação em vídeo que se mostra junta aos autos – e que foi exibida na audiência de julgamento).
Por outro lado, resulta claro da fundamentação da decisão de facto que acima se deixou transcrita, que tais declarações não foram o único elemento de prova tido em conta no apuramento dos factos questionados pelo recorrente. Na verdade, a decisão recorrida expõe, de forma minuciosa, a conjugação de elementos de prova que levou a que se considerassem provados os factos (nos termos em que o foram), sendo evidente do modo como tais elementos foram detalhados e apreciados de forma conjunta, que se mostram concordantes e coerentes entre si.
Em contraponto da fundamentação oferecida pelo Tribunal a quo, o recorrente nada disse.
Não discutiu a argumentação apresentada, não indicou provas que devessem ser interpretadas de modo diverso, ou, sequer, que a prova produzida não tivesse o sentido que lhe foi atribuído no acórdão recorrido.
Ao pretender que se dêem como não provados os indicados factos, o recorrente reclama apenas que se excluam as declarações prestadas por FF, não porque não sejam credíveis, mas antes afirmando não serem as mesmas audíveis. Ora, não só tal não corresponde à verdade, como a argumentação exposta se mostra inidónea a alcançar o resultado pretendido.
Não traçando o recorrente qualquer relação entre o conteúdo específico de cada meio de prova, ou conjugação de meios de prova, e o facto individualizado que considera incorretamente julgado – o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida (face à exigência da alínea b), do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal, a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida), a demonstração desta imposição compete também ao recorrente – é evidente que a sua pretensão quanto à modificação dos factos provados tem de soçobrar.
Com efeito, nem na motivação de recurso (corpo da mesma), nem nas respetivas conclusões, o recorrente estabelece a relação entre os concretos segmentos dos depoimentos (que não indicou) e o específico ponto ou pontos de facto provados que, por este meio, almeja alterar, antes reportando uma suposta ausência de prova – que já vimos ser de rejeitar.
As menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nos 3 e 4 do referido artigo 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica.
Ora, não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão (vd. acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25.01.202214).
Não tendo cumprido o recorrente (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respetivo recurso nesta parte afetada e defeso estava fazer-lhe convite para aperfeiçoamento, pois trata-se de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.200415, e os acórdãos do Tribunal Constitucional nos 259/2002, de 18.06.2002, e 140/2004, de 10.03.2004, ambos consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt.
É, por isso, de rejeitar a impugnação da matéria de facto tal como pretendida pelo recorrente.
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Adicionalmente, não se vislumbra que a decisão recorrida tenha incorrido em qualquer dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (cujo conhecimento é oficioso), designadamente, que a matéria de facto provada seja insuficiente para a decisão, que seja evidente a existência de factos que ficaram por apurar ou que tenha sido extraída da matéria de facto qualquer conclusão patentemente errada, ilógica ou arbitrária.
Na verdade, o Tribunal recorrido tomou posição sobre a totalidade do objeto do processo, tal como o mesmo foi configurado pelos sujeitos processuais, e os factos que apurou são, claramente, bastantes para permitir a decisão alcançada.
Consequentemente, inexistindo qualquer erro de julgamento, impõe-se manter a matéria de facto nos precisos termos fixados pela 1ª instância.
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iv.3. do enquadramento jurídico-penal
Na conclusão 1ª da motivação do recurso, sustenta o recorrente que «deve ser revogada a condenação do arguido pelo crime de homicídio na forma tentada e, em substituição, ser o mesmo condenado pelo crime de ofensas à integridade física previsto e punido pelo artigo 144º, alínea d), qualificado pelo artigo 145º nº 1 alínea b), ambos do Código Penal», e que, «decidindo como decidiu, o tribunal violou, por erro de interpretação e aplicação, estes artigos e, ainda, os artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 alínea b) do Código Penal».
Embora não conste, como devia, das conclusões formuladas pelo recorrente, depreende-se da motivação oferecida que a proposição constante da conclusão transcrita decorre de ter o recorrente considerado não estar provado o dolo específico do crime de homicídio, ou seja, a intenção de tirar a vida à assistente DD.
Só uma leitura desatenta da decisão proferida pelo Tribunal a quo justifica tal afirmação.
Na verdade, consta dos factos dados como provados na decisão recorrida que:
“38) O Arguido bem sabia que as zonas do corpo onde atingiu a Assistente, designadamente, a cabeça, se trata de uma zona vital para a vida, agindo com o propósito firmado de tirar a vida à mesma, sua companheira e mãe dos seus filhos, o que não sobreveio devido à rápida intervenção da assistência médica;
39) O Arguido agiu livre, voluntária e consciente, visando usar aquela faca e enxada, como usou, como instrumento de agressão, bem sabendo que lhe estava vedada tal conduta;
40) O Arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos, atuando da forma supra descrita;”.
Não é, por isso, verdade, ao contrário do que alega o recorrente, que a matéria relativa ao dolo específico com que o mesmo atuou no dia 24.08.2022 – ou seja, o conhecimento e vontade de atuar da forma descrita, com intenção de tirar a vida à sua companheira, apesar de saber tais condutas proibidas e punidas por lei – apenas tenha sido discutida na fundamentação da decisão de facto.
É certo que, a propósito do exame crítico da prova, se escreveu no acórdão recorrido, entre o mais, que: “Sempre se referindo que a violência com que o Arguido atingiu a Ofendida e a zona particularmente atingida (zona da cabeça), conforme descrito pela Assistente, expressa nos elementos clínicos e perícia realizada à Assistente, não deixam dúvida quanto ao facto de ter ficado demonstrado, sem qualquer dúvida, que Arguido bem sabia que as agressões por si perpetradas, na zona atingida, são causa adequada de causar a morte da Assistente, o que quis e representou, apenas não o logrando por se ter convencido que já o tinha alcançado (atenta a ausência de movimentos da Assistente, conforme por esta descrito) e pela pronta assistência médica que a Assistente recebeu”. Deste segmento se extrai que o Tribunal a quo considerou demonstrados os factos acima transcritos por dedução, a partir da interpretação conjugada dos diversos elementos de prova à disposição do Tribunal.
O recurso a prova indireta para apurar factos do foro íntimo do agente – na ausência de confissão expressa – é perfeitamente admissível (e admitido, na nossa doutrina e jurisprudência) e suportado em juízos de inferência que não suscitam qualquer dúvida, completando de forma adequada o silogismo judiciário.
Concordamos com o Coletivo julgador quando releva o número de pancadas e golpes desferidos, os instrumentos utilizados e as zonas corporais visadas, para concluir que outra não podia ser a intenção do arguido, que não a de tirar a vida à sua companheira – inferência que resulta ainda sublinhada pela circunstância de apenas ter suspendido a agressão quando esta última se encontrava imóvel e sem reação, ou seja, aparentando ter sido alcançado o resultado visado (a sua morte).
Tal avaliação das circunstâncias mostra-se, em absoluto, conforme com as regras de experiência comum, e não nos merece, por isso, qualquer censura.
Acresce que a apurada conduta, integrando a circunstância qualificativa prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, denuncia, também, a verificação da especial censurabilidade essencial ao cometimento do crime de homicídio na sua forma qualificada. Não se trata apenas de o arguido ter dirigido a sua ação contra a companheira, mãe de dois dos seus filhos; trata-se, sobretudo, de o ter feito sem que se apure qualquer circunstância suscetível de desencadear tal reação especialmente violenta, apenas porque se encontrava presa de ciúmes doentios e porque a vítima não se dispôs a deitar-se com ele naquele momento. Ninguém pode duvidar de que tal modo de atuar se deve qualificar como especialmente censurável.
Não tem razão o recorrente ao pretender um diverso enquadramento jurídico dos factos dados como provados16.
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De igual sorte, no que se refere aos crimes de violência de doméstica que teve como vítima o menor EE, e de abuso sexual de criança agravado que teve como vítima a menor FF – relativamente aos quais o recorrente se limitou a pedir a sua absolvição com fundamento em que os factos que sustentam tais incriminações deveriam ser dados como não provados.
Já vimos que assim não deve ser – por se mostrar válida a prova produzida, a qual foi corretamente interpretada pelo Tribunal a quo, não havendo qualquer alteração a introduzir no acervo factual adquirido nos autos – e, nesta conformidade, não há, também, qualquer modificação a introduzir no enquadramento jurídico de tais factos (cuja correção, de resto, o recorrente não discute na sua alegação).
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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iv.4. da escolha e determinação da medida das penas
O arguido AA foi condenado, em 1ª instância, pela prática de um crime de violência doméstica (na pessoa da assistente DD), p. e p. pelo artigo 152º, nos 1, alíneas b) e c), 2, 4 e 5, do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, um crime de homicídio qualificado, na forma tentada (na pessoa da assistente DD), p. e p. pelos artigos 22º, nos 1 e 2, alínea b), 23º, 73º, 131º e 132º, nos 1 e 2, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 9 anos e 6 meses de prisão, um crime de violência doméstica (na pessoa de EE), p. e p. nos termos do artigo 152º, nos 1, alíneas d) e e), e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, um crime de abuso sexual de crianças agravado (na pessoa de FF), p. e p. pelos artigos 171º, nº 1, e 177º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão. Operado o cúmulo jurídico de tais penas parcelares, nos termos do artigo 77º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de 12 anos e 3 meses de prisão.
Nas conclusões 2ª, 5ª e 6ª da motivação do recurso, reclama o recorrente a redução da pena fixada para o crime de homicídio qualificado tentado para medida não superior a 8 anos de prisão (traçando um paralelismo com o limite inferior da pena legalmente fixada para o crime de homicídio simples), e das penas aplicadas aos crimes de violência doméstica e abuso sexual de crianças para os respetivos mínimos legais. Afirma, em apoio da sua pretensão que “o tribunal não respeitou os critérios dos nºs 1 e 2 do artigo 71º do Código Penal”, sem, no entanto, esclarecer por que razão (ou razões) entende que foram desrespeitados tais critérios.
Cumpre apreciar.
Antes de mais, cumpre referir que, no que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1ª instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª instância deve ser moderada e seguir a jurisprudência enunciada, quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 27.05.200917, no qual se considerou: “... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada». (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255)”.
Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª instância alterando o quantum da pena concreta.
Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correcção por parte do tribunal de recurso.
O modo de determinação da medida da pena está legalmente definido, entre nós, no artigo 71º do Código Penal, que dispõe que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1)
E ainda, “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.” (nº 2)
Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.” (nº 3)
O modelo de prevenção acolhido pelo Código Penal – porque de proteção de bens jurídicos – determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro dessa medida de prevenção (proteção ótima e proteção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de proteção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa. As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função da reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afetados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afetados – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.10.200918.
Para tal apreciação, revisitemos as considerações do Tribunal a quo no que se refere à determinação da medida das penas parcelares no caso concreto, e no trecho em que, depois de versar sobre os parâmetros legais de tal operação, enunciou as circunstâncias relevantes:
“No caso em apreço, o modo de atuação do Arguido é revelador de elevado grau de ilicitude, evidenciando o Arguido indiferença para com a vida da Assistente, mãe de dois filhos do Arguido e à data dos factos sua companheira.
A vida humana é o bem maior, supremo e inviolável, conforme resulta do art.º 24º, n.º 1, da Constituição da República, sendo a comunidade abalada de forma muito intensa quando, por ato voluntário, se ofende a vida de um dos seus membros.
E nunca é demais enfatizar que, como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “CRP Anotada”, I), “o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”. E “O direito à vida constitui o valor supremo na hierarquia dos direitos humanos. A jurisprudência está vinculada a refletir a tutela adequada e eficaz em cada caso de atentado voluntário daquele direito primordial, condição de todos os outros.”.
A forma como o Arguido molestou a Companheira, quase lhe provocando a morte - colocando a ponta da faca, nas costas da vítima e, como se estivesse a martelar, espetando a faca, várias vezes, nas costas da Assistente – atinge níveis de malvadez para além do normal deste tipo de crimes.
Embora os crimes de violência doméstica, cometidos na pessoa da Assistente e do EE não tenham assumido as proporções que infelizmente vêm a assumir em situações similares, demonstram a falta de respeito e cuidado do Arguido para com aqueles que devia proteger, sua Companheira e filho, e que são por este molestados e intimidados, pondo em causa o são crescimento de seu filho.
O grau de ilicitude dos factos, apreciado dentro do tipo criminal de abuso sexual de crianças, é considerável. O Arguido atuou com o propósito de satisfazer os seus desejos libidinosos, não se coibindo de o fazer com quem lhe era próximo (filha da Companheira), e que se esperava que gozasse da sua proteção, tendo os factos ocorrido no local onde o Arguido residia com a vítima, e onde esta deveria gozar de segurança e proteção.
O Arguido atuou com dolo direto.
As exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crimes são prementes, dada a frequência com que estes crimes ocorrem e a insegurança que geram na comunidade.
As exigências de prevenção especial mostram-se igualmente acentuadas, evidenciadas na personalidade revelada pelo Arguido e no total desrespeito que demonstrou pela integridade física e psicológica daqueles que lhe eram próximos e que deveriam gozar da sua proteção, a, à data, sua Companheira e mãe de dois dos seus filhos, um dos seus filhos e a filha da sua Companheira (que com o mesmo à data residia).
O Arguido já tem antecedentes criminais registados, pese embora por crime distinto (tráfico de estupefacientes).
Em benefício do Arguido não podemos deixar de ter presente que este beneficia de apoio familiar, por parte do irmão, igualmente residente em Portugal, e não lhe são conhecidas infrações disciplinares em meio prisional.
Assim sendo, atenta a moldura penal aplicável e ponderado, então, todo o circunstancialismo descrito, sopesando as agravantes e atenuantes e, globalmente, a sua culpa, sendo esta reconduzível a um juízo valorativo que atende a todos os elementos aduzidos e conjugando-os com regras de experiência comum e com apelo, ainda, a elementos relativos à lógica, à moral e ao direito, entende o Tribunal justa e adequada (sem olvidar a jurisprudência dos tribunais superiores nesta matéria e alguma necessidade de encontrar parâmetros igualizadores das penas aplicadas em circunstâncias semelhantes) a condenação do Arguido:
- na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, al. b) e c), 2, 4 e 5, do Código Penal (na pessoa da Assistente DD);
- na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.ºs 1, als. d) e e), e 2, al. a), do Código Penal (na pessoa de EE);
- na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs. 22º, 23º, 73º, 131º, n.º 1, e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal (na pessoa da Assistente DD); e
- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º, n.º 1, e 177º, n.º 1, al. b), do Código Penal (na pessoa de FF).”
Como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.202119, no que se reporta à decisão sobre a pena, mormente a sua medida, importa lembrar “que os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.”
Assim, lida a exposição supratranscrita, vemos que o Tribunal a quo, ponderando conjugadamente todas as circunstâncias enunciadas, determinou as penas que reputou adequadas relativamente a cada um dos crimes praticados pelo arguido, nos termos que ali se detalham.
Ora, perante as considerações tecidas, não pode deixar de considerar-se que o recorrente não tem razão ao acusar o Tribunal a quo de não ter tomado em consideração circunstâncias relevantes nessa determinação das penas parcelares – sendo certo que o recorrente também não esclareceu que circunstâncias seriam essas, e em que medida deviam as mesmas ter determinado a imposição de penas menos severas.
Note-se que, no que se refere aos crimes de violência doméstica, numa moldura penal definida entre 2 e 5 anos de prisão, o Tribunal a quo fixou as penas a impor ao arguido em 2 anos e 6 meses de prisão e 2 anos e 3 meses de prisão - ou seja, claramente coladas ao mínimo legal e muito longe daquele que seria o ponto médio da moldura.
Também no que se reporta ao crime de abuso sexual de criança agravado20, considerada a moldura penal aplicável, de 1 ano e 4 meses de prisão a 10 anos e 8 meses de prisão, a pena fixada pelo Tribunal a quo, de 3 anos e 6 meses de prisão, mostra-se contida no terço inferior daquela moldura, também ela muito longe do respetivo ponto médio, sem que se vislumbrem quaisquer circunstâncias atenuantes da gravidade da conduta do arguido, só se compreendendo a benevolência face à reduzida expressão dos danos causados.
Finalmente, no que se reporta ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, ao qual é abstratamente aplicável uma moldura penal, especialmente atenuada, de 2 anos, 4 meses e 24 dias de prisão a 16 anos e 8 meses de prisão, não podendo deixar de relevar-se o modo especialmente censurável da atuação do arguido, ao atacar a vítima com diferentes objetos cortocontundentes, atingindo-a repetidamente, e ainda as graves consequências que de tal atuação advieram para a vítima, que ficou desfigurada e com limitações graves da sua capacidade de trabalho, nenhuma censura nos merece a fixação da pena pela prática de tal crime em 9 anos e 6 meses de prisão, como foi decidido na 1ª instância – não tendo sido indicado pelo recorrente qualquer motivo válido para que a mencionada pena fosse fixada em patamar inferior (é verdade que a morte não ocorreu… mas essa circunstância releva da natureza do crime em questão, que é tentado, e não consumado – se a morte tivesse ocorrido, a pena abstrata a considerar seria de 12 a 25 anos de prisão).
Assim, na determinação das penas de prisão concretas a aplicar, concorda-se com as conclusões extraídas das circunstâncias apuradas pelo julgador de primeira instância, entendendo-se que a ponderação final de síntese (balanceamento dos vários factores agravantes e atenuantes em presença), foi adequada à execução dos crimes e à personalidade do arguido, não obstante a ausência de antecedentes criminais por crimes como os que aqui estão em causa.
Foram ponderadas, quanto à execução do facto (pensada em termos globais – cf. artigo 71º, nº 2, alíneas a), b) e c), do Código Penal) todas as circunstâncias relevantes: a forma intencional da vontade criminosa (a intensidade da vontade no dolo); o modo de execução da actividade delituosa (designadamente, o fácil acesso às vítimas, o contexto familiar em que os factos ocorreram, que deveria ter funcionado como factor de proteção e não de vitimização, como ocorreu; a total ausência de interiorização da censurabilidade dos comportamentos, percecionando o arguido como normal o exercício de violência sobre as crianças a seu cargo e sobre a sua companheira; e a significativa violência empregue); e, bem assim, a duração temporal das atividades delituosas (neste quadro, não particularmente significativa).
Assim, atentas as elevadas exigências de prevenção geral que o caso reclama, bem como o grau de ilicitude e da culpa do arguido, bem andou o Tribunal recorrido ao determinar a aplicação das penas nos termos supra expostos, não tendo o recorrente indicado que outras circunstâncias deviam ter sido tidas em conta, ou em que medida a valoração operada pelo Tribunal diverge dos critérios legais.
Outro tanto se dirá relativamente à pena única fixada pelo Tribunal a quo.
Com efeito, apesar de o arguido reclamar, na conclusão 7ª da motivação do seu recurso, a redução da pena única que lhe foi imposta (de 12 anos e 3 meses de prisão), que reputa “injustificadamente elevada e desrespeitadora dos critérios dos nºs 1 e 2 do artigo 77º do Código Penal”, também não esclareceu em que medida foram tais parâmetros desrespeitados e quais deveriam ser as circunstâncias a ter em conta que não foram adequadamente valoradas pela 1ª instância.
Nesta matéria, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque21, em anotação ao artigo 77º do Código Penal, “A moldura do concurso de crimes é construída, não de acordo com o princípio da absorção puro (punição do concurso com a pena concreta do crime mais grave), nem com o princípio da exasperação ou agravação (punição do concurso com moldura do crime mais grave, devendo a pena concreta ser agravada em virtude do concurso de crimes), mas antes com o princípio da cumulação, segundo o qual se procede à punição do concurso com uma pena conjunta determinada no âmbito de uma moldura cujo limite máximo resulta da soma das penas concretas aplicadas a cada crime imputado, mas cuja medida concreta é decidida em função da imagem global dos crimes imputados e da personalidade do agente, procurando, nas palavras de Eduardo Correia, «na medida em que é possível e conveniente, trazer a ideia da chamada “pena unitária” para dentro do sistema da acumulação» (Actas CP/Eduardo Correia, 1965a: 155). Trata-se, pois, de um sistema de cumulação, mas na forma de um cúmulo jurídico. (…)
Em regra, a ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade é feita nos seguintes termos: tratando-se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave metade (ou, em casos excecionais, dois terços) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando-se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito, o tribunal determina a pena conjunta à pena concreta mais grave um terço (ou, em casos excecionais, um quarto) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (em sentido próximo, por exemplo, acórdão do STJ, de 9.5.2002, processo 02P1259, acórdão do STJ, de 17.10.2002, processo 2792/2002, acórdão do STJ, de 27.1.2005, processo 04P4449, acórdão do STJ, de 12.7.2005, com anotação in RPCC, ano 16: 151, acórdão do STJ, de 6.10.2005, processo 05P2107, acórdão do STJ, de 14.1.2009, processo 3856/08-5, acórdão do STJ, de 26.2.2009, processo 08P2873, acórdão do STJ, de 29.10.2009, processo 18/06.0PELRA.C1.S1-5, acórdão do STJ, de 19.5...., in CJ, Acs. do STJ, XVIII, 2, 191, acórdão do STJ, de 12.7.2012, in CJ, Acs. do STJ, XX, 2, 238, acórdão do STJ, de 12.9.2014, CJ, Acs. do STJ, XXII, 3, 179, acórdão do STJ, de 4.2.2016, CJ, Acs. do STJ, XXIV, 2, 253, e acórdão do STJ, de 8.7.2020, processo 74/14.7JAPTM.3.E1.S1, e com considerações semelhantes, referindo-se a um fator de compressão do remanescente das penas parcelares, Carmona da Mota, 2009, Souto Moura, ...: 108 e 109, Lourenço Martins, 2011: 306 e 307, Miguez Garcia e Castela Rio, 2014: 387, anotação 11ª ao artigo 77º, e Tiago Milheiro, 2020: 75 a 77, mas críticos desse fator, Simas Santos, 2010: 150, embora o Autor o tenha utilizado enquanto relator, por exemplo, nos acórdãos do STJ, de 27.1.2005, e de 6.10.2005 (referindo-se à ponderação de «menos de 1/3 da soma das restantes penas parcelares»), Artur Rodrigues da Costa, 2013: 180 e 181, admitindo que as fórmulas referidas conduzem a «penas conjuntas muito inferiores e aparentemente mais adequadas e mais conformes a um princípio de humanidade», mas duvidando da sua «suficiente solvabilidade jurídica», e António Barreiros, 2009, ainda mais cético em relação à possibilidade de introduzir racionalidade no sistema legal de cúmulo jurídico, tendo até Isabel São Marcos, 2016, considerado que não era «viável identificar o concreto e preciso raciocínio que terá servido de fio condutor na metodologia porventura usada pelo mesmo [Supremo] Tribunal para concretizar tal operação»).”
No caso que temos em mãos, o Tribunal a quo, a propósito da determinação da pena única do concurso, expendeu as seguintes considerações:
“Tendo-se encontrado as penas parcelares relativas aos ilícitos referidos, cumpre agora proceder à determinação de uma pena única, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, nos termos do art.º 77º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
Assim, o limite mínimo da pena aplicável corresponde à pena máxima concretamente aplicada, e o limite máximo corresponde à soma das penas parcelares encontradas.
Como entende o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto no art.º 77º do Código Penal (cfr., por todos, Acórdãos de 11 de janeiro de 2001, Processo n.º 3095/00-5, de 4 de março de 2004, Processo n.º 3293/04-5, e de 12 de julho de 2005, todos in www.dgsi.pt), a pena única a estabelecer em cúmulo deve ser encontrada numa moldura penal abstrata, balizada pela maior das penas parcelares abrangidas e a soma destas, e na medida dessa pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, com respeito pela pena unitária. Na verdade, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, mas a personalidade traduzida na condução de vida, em que o juízo de culpabilidade se amplia a toda a personalidade do autor e ao seu desenvolvimento, também manifestada de forma imediata a ação típica, isto é, nos factos.
Esse critério, conforme salienta Figueiredo Dias, consiste em apurar se “numa avaliação da personalidade – unitária - do agente”, o seu percurso de delinquência “é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma «carreira») criminosa” e não a uma “pluriocasionalidade que não radica na personalidade (…)” (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 291).
Assim, temos como moldura legal abstrata do concurso, uma pena de limite mínimo de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão e de limite máximo uma pena de 17 (quinze22) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Ora, considerando as circunstâncias e gravidade dos factos, as consequências que estes tiveram para os Ofendidos (especialmente para a saúde da Assistente, que ficou com cicatrizes na cabeça, tronco e membros superiores, que a desfiguram de forma grave, com rigidez do punho direito e de D1 a D4 da mão esquerda, que a afetam, de forma grave, na sua capacidade de trabalho) e a personalidade do Arguido neles espelhada (que demonstra uma total indiferença para com a vida da Companheira, mãe dos seus dois filhos, e para com a saúde e são desenvolvimento de um dos seus filhos e da filha da Companheira, que consigo coabitou), e sem esquecer a culpa e as necessidades de prevenção geral (elevadíssimas) e especial (igualmente bem consideráveis), entende o Tribunal como ajustada a aplicação ao Arguido da pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão”.
Cabe dizer que as considerações tecidas quanto aos parâmetros que devem orientar a determinação da pena única – como decorre do que já expusemos acima – se mostram globalmente acertadas, não merecendo igualmente qualquer censura a escolha da pena única imposta ao recorrente AA, que reflete a adição de 1/3 do somatório das penas menos graves à pena mais grave23. O arguido não indicou (nem se vislumbram) circunstâncias especiais que pudessem justificar uma ainda maior compressão na operação de unificação das penas.
Tratando-se de decisão que claramente beneficia o arguido, nada há a alterar na mesma.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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Não vem suscitada no recurso qualquer questão relativa às penas acessórias em que o arguido foi também condenado, pelo que tal condenação se manterá incólume, nos exatos termos em que se mantém a condenação decidida na 1ª instância.
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iv.5. do arbitramento oficioso de indemnização
No recurso interposto, o arguido limitou-se a pedir a redução dos valores indemnizatórios arbitrados apenas como consequência da pretendida alteração da condenação criminal, sem apontar qualquer crítica concreta ao modo como foram determinados tais montantes, ou sequer quanto aos fundamentos da decisão.
Mantendo-se inalterada a decisão recorrida, inexiste motivo para que deva ser introduzida alteração nesta matéria, mostrando-se o arbitramento de reparação fixado a favor das vítimas globalmente justo e equilibrado, inexistindo quaisquer circunstâncias que devam determinar a respetiva alteração por parte deste Tribunal ad quem.
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V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Paulo Barreto (Declaração de Voto)
Ana Cláudia Nogueira


Declaração de Voto
Sendo audíveis as gravações, está prejudicada a suscitada irregularidade. Nem a apreciava.
Se, e não é o caso, as gravações fossem inaudíveis, conhecia oficiosamente a verificação da irregularidade, com fundamento no artigo 123.º, n.º 2, do CPP, por afrontar o direito a um processo equitativo, na medida em que não se pode retirar o direito a um recurso efectivo da matéria de facto devido a um erro (deficiente gravação) que é exclusivamente imputável ao tribunal.
Entendo que esta minha posição, já tomada em anteriores acórdãos, não afronta o AUJ 13/2014, visto que este acórdão aprecia a questão como nulidade do art.º 363.º, do CPP.
A minha opinião não é dizer que a nulidade do art.º 363.º, pode ser invocada a todo o tempo ou que deva ser conhecida oficiosamente.
O que digo é que, face ao actual "estado da arte", em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do TEDH na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o Tribunal da Relação crie a sua própria convicção, a documentação da prova é elemento fundamental. Por isso, este Tribunal ad quem não pode cumprir o seu dever, isto é, apreciar o recurso da matéria de facto, por deficiente gravação da prova inteiramente imputável ao Tribunal a quo, daí o conhecimento oficioso da irregularidade ao abrigo do art.º 123.º, n.º 2, do CPP.
Voto a decisão por entender que, in casu, não há qualquer irregularidade, por serem audíveis as gravações, e por concordar com todos os restantes fundamentos do acórdão. Como digo, só não concordo que, em tese, se afaste o conhecimento oficioso de deficiente gravação, por verificação da irregularidade supra mencionada.
Paulo Barreto
_______________________________________________________
1. Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
2. Publicado no Diário da República nº 183/2014, Série I de 23.09.2014.
3. Assim, v. g., acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/02/2010 (processo n.º 628/07.8LSB.L1.S1).
4. Diferente será a situação em que se verificam deficiências menores, que não inviabilizam a perceção do significado das declarações contidas no depoimento gravado, caso em que não há verdadeiramente omissão de documentação mas apenas uma documentação deficiente que, por não comprometer a captação do sentido essencial desse depoimento, constitui uma mera irregularidade, como se sustentou no acórdão deste Tribunal, de 23/11/2011 (processo n.º 161/09.3GCALQ.L1.S1).
5. Como se escreveu no acórdão deste Tribunal, de 23/11/2011 (processo n.º 161/09.3GCALQ.L1.S1).
6. Comentário cit., anotação 7 ao artigo 363.º, p. 943.
7. Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, 2014, Almedina, p. 1140.
8. Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
9. No processo nº 06P3649, Relator: Conselheiro Souto de Moura.
10. No processo nº 1182/06.3PAALM.S1, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro.
11. No processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, Relator: Desembargador Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
12. Sobre estas questões, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
13. Conforme se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01 de abril de 2008 (no processo nº 360/08-01, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt): “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida.”
14. No processo nº 4833/16.8T9SNT.L1-5, Relator: Desembargador Artur Vargues, em www.dgsi.pt).
15. No processo nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
16. Diga-se, em todo o caso, que – na ausência de demonstração da intenção de matar, que já vimos não ser de acolher – sempre a ofensa à integridade física cometida seria enquadrável no artigo 144º, alíneas a) e b), com a agravação constante do artigo 145º, nº 1, alínea c) e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea b), todos do Código Penal – e nunca o enquadramento proposto pelo recorrente.
17. No processo nº 09P0484, Relator: Conselheiro Raul Borges, acessível em www.dgsi.pt.
18. No processo nº 589/08.6PBVLG.S1, Relator: Conselheiro Pires da Graça, em www.dgsi.pt
19. No processo nº 10/18.1PELRA.S1, Relatora: Conselheira Ana Barata Brito, acessível em www.dgsi.pt.
20. Relativamente ao qual o arguido já beneficiou da desconsideração da multiplicidade de atos praticados, em ocasiões distintas, que, claramente, indiciam uma pluralidade de crimes, mas cuja indeterminação temporal impediu, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que se valorasse tal reiteração criminosa, sendo o arguido condenado por um único crime.
21. Comentário do Código Penal – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, 2021, págs. 407-408.
22. Existe manifesto lapso de escrita no acórdão da 1ª instância, que cumpre retificar, em conformidade com o que resulta do disposto no artigo 380º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Penal. A soma aritmética das penas parcelares aplicadas ao arguido, que constitui a limite superior da pena aplicável ao concurso de crimes é de 17 (dezassete) anos e 9 (nove) meses de prisão (9 anos e 6 meses+2 anos e 6 meses+2 anos e 3 meses+3 anos e 6 meses)
23. No caso, a pena mais grave é de 9 anos e 6 meses de prisão, e a diferença relativamente ao somatório de todas as restantes penas é de 8 anos e 3 meses de prisão, pelo que o respetivo 1/3 corresponde a 2 anos e 9 meses de prisão.