Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13317/22.4T8SNT.L1-7
Relator: ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
CONTRATO DEFINITIVO
PRAZO RELATIVO
ALTERAÇÃO DO PREÇO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. A simples mora não confere ao credor o direito à resolução do contrato sem que proceda à sua conversão em incumprimento definitivo. Para que se verifique causa justificativa da resolução não basta, portanto, que, havendo sido estipulado um prazo para a celebração do contrato prometido, não haja sido outorgado o contrato definitivo. Verificada essa situação, sendo a prestação ainda possível, terá o contraente faltoso incorrido numa situação de mora ou atraso no cumprimento da prestação, conforme previsto nos art.ºs 804º, n.º 2 e 805.º n.º 2 do CC.
II. A mora só se converte em incumprimento definitivo pela perda objectiva subsequente do interesse do credor ou pela interpelação admonitória (art.º 808º nºs 1 e 2 CC).
III. Estando-se perante um prazo relativo ou não essencial, uma vez ultrapassada a data inicialmente estabelecida, a celebração do contrato prometido fica sem prazo e - consoante decorre dos artigos 777º nº 1 e 805º, nº 1 do Código Civil - dependente de interpelação por banda de qualquer das partes com indicação de dia, hora e local para esse efeito.
IV. A alteração do preço constante do contrato-promessa, enquanto elemento essencial do negócio, tem de observar a forma escrita, sob pena de nulidade (cf. art.º 410º/2, 875º e 221º/2 do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
A intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra B e C , pedindo que:
(i) Se condenem os réus a celebrar o negócio definitivo no prazo máximo de 20 dias e nessa sequência a entregar a fracção objecto do mesmo à Autora livre de ónus e encargos;
(ii) A pagar uma indemnização à autora pela mora em que se encontram desde 30 de Junho de 2022 e até à celebração do contrato definitivo, calculada à taxa legal de juros sobre o montante do preço já recebido;
(iii) Subsidiariamente, para o caso de a autora não conseguir manter as condições actuais do seu financiamento, serem os réus condenados na devolução a esta do sinal pago em dobro, acrescido dos gastos acessórios ao processo de compra, acrescida de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alega a autora:
- no ano de 2022 ter decidido adquirir casa própria na zona urbana de Lisboa, obtido pré aprovação de crédito e ter encontrado em anuncio on line o imóvel propriedade dos Réus (ou RR) sito na Damaia, razão pela qual entrou em contacto com a imobiliária encarregue de promover a venda, apresentando uma proposta para aquisição da fracção autónoma designada pela letra M, correspondente ao 3.º andar frente do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Praceta …, n.º ….., Damaia, pelo preço de €125.000, com pagamento de 10% de sinal;
- nos dias seguintes (02-04-2022) os representantes dos Réus na venda informaram a aceitação em efectivar o negócio pelo preço de €126.000,00 com um prazo de 60 dias para celebração do negócio definitivo;
- logo no dia 04-04-2022 a Autora (ou A.) outorgou o Contrato-promessa (de aqui em diante designado de CPCV) mediante recurso à chave móvel digital enviando- o para a imobiliária que representava os Réus, procedendo ao pagamento do sinal no valor de €12.600,00, mediante depósito bancário, recebendo a versão definitiva do contrato no dia 07-04-2022;
- a autora iniciou diligências com vista à elaboração de orçamento para as obras desejada no imóvel e, obtido este, enviou documentação ao BPI com vista à viabilização do crédito associado ao crédito à habitação;
- em 02-05-2022 a Autora recebeu o resultado da avaliação do imóvel em €116.400,00 o que apenas permitiria um financiamento de €98.940,00;
- em 10-05-2022 marcou-se reunião entre todos os intervenientes em que a Autora reiterou a sua vontade de adquirir o imóvel e o Réu marido a de vender, pelo que a Autora se disponibilizou a pagar nova avaliação noutro banco o que, implicando o início de novo processo de avaliação, apenas faria se os Réus dessem o seu acordo, atenta a impossibilidade prática de cumprimento dos 60 dias acordados aquando da realização do CPCV;
- mediante a concordância do Réu a autora iniciou novo processo, tendo sido realizada nova avaliação ao imóvel em 17-05-2022, tendo recebido o resultado de reavaliação do imóvel sem obras em 01-06-2022 como sendo de €127.100,00;
- em 02-06-2022 o Novo Banco confirma que apenas disponibiliza no imediato, para aquisição do imóvel a quantia de €106.200,00 e €15.000 para obras;
- em face do exposto foi solicitada uma reunião com os Réus e seus representantes a qual teve lugar em 6 de Junho de 2022 com o objectivo de negociar a diferença de €7.200 que existia entre o montante que o novo banco estava disposto a disponibilizar e o valor que constava do CPCV;
- nessa reunião a Autora deu nota de que poderia angariar a curto prazo o montante de €3.600,00, tendo a imobiliária baixado €500,00 da sua comissão, e o Réu baixado igualmente €500,00, no espírito de se concluir o negócio, tendo ficado agendada nova reunião para o dia 20-06-2022;
- nessa reunião de 06-06-2022 o Réu deu nota de que havia enviado via CTT uma notificação postal, por precaução em razão dos prazos contratuais;
- a Autora recebeu tal notificação em 07-06-2022, na qual se aludia a um incumprimento do CPCV pela Autora numa data em que estavam todos reunidos a negociar presencialmente;
- a Autora respondeu a tal notificação por email e por correio, não tendo os Réus levantado a carta registada;
- em 14 de Junho de 2022 a Autora recebeu informação do Novo Banco quanto aos documentos necessários para agendar a escritura e que poderia ter lugar a partir de 20-06-2022 e solicitou-a aos Réus, sugerindo o agendamento da escritura definitiva para 30 de junho de 2022, sugerindo que fosse ponderado um desconto adicional de €720,00;
- no dia 19 de Junho de 2022 a Autora recebeu dos Réus um email em que estes davam o CPCV como resolvido e se propunham a devolver 50% do sinal entregue;
- a 20-06-2022 os Réus faltaram à reunião agendada, tendo a Autora, não obstante, transmitido a disponibilidade para agendamento da escritura pelos €125.000,00 acordado em 06-06-2022;
- em 22-06-2022 a Autora soube pela advogada da imobiliária que esta não conseguia comunicar com os Réus, tendo a Autora em 25 de Junho de 2022 recebido uma comunicação dos Réus alegando que a Autora teria em seu poder os documentos necessários para o agendamento da escritura;
Conclui a Autora que, sem culpa sua, o contrato de compra e venda não se realizou, mantendo, intenção de compra, pedindo que sejam  os RR condenados a celebrar o negócio definitivo nos termos que vierem a ser decretados, no prazo máximo de vinte dias, e a entregar a fracção dos autos à A. livre de ónus e encargos, bem como a pagar à A. uma indemnização pela mora em que se encontram desde 30 de Junho de 2022, e até à celebração do contrato definitivo e entrega da fracção dos autos à A. livre de ónus ou encargos, calculada à taxa de juros legal sobre o montante do preço já recebido.
Subsidiariamente, caso não seja possível a A. manter as condições atuais do seu financiamento, devem os Réus ser condenados na devolução a esta do sinal pago em dobro.
Citados, vieram os réus contestar alegando, em síntese, que:
- em 16-11-2021 contrataram a mediador P e V…, Lda. para venda do imóvel pelo valor de €139.000,00, mediante uma remuneração de 3%;
- no dia 02-04-2022 ocorreu uma reunião na qual foi apresentada uma proposta de compra pelo preço de €126.000,00, aceitando a imobiliária reduzir a sua comissão para 2%;
- porque precisavam de vender a fracção e a imobiliária aceitava reduzir o valor da comissão, tal proposta foi aceite tendo o CPCV sido assinado em 05-04-2022;
- durante as negociações a Autora exigiu a possibilidade de revogação unilateral do contrato em caso de recusa de financiamento ou avaliação insuficiente, o que os Réus aceitaram na condição de a mesma ter lugar no prazo de 30 dias;
- a fixação dos prazos constantes do contrato de promessa foram essenciais para a vontade de contratar dos Réus, razão pela qual aceitaram vender por um preço substancialmente inferior ao publicitado;
- a Autora não diligenciou com celeridade pela avaliação do imóvel, pelo que a mesma só ocorreu m 26-04-2022 e o resultado apenas foi apresentado aos Réus em 02-05-2022;
- informada da avaliação do imóvel a Autora teve a faculdade de revogar o contrato, não o tendo feito;
- os Réus são alheios ao pedido de financiamento para obras efectuado pela Autora e de que só com a petição tomaram conhecimento;
- em 10-05-2022 tem lugar uma reunião em que os Réus deixam claro que não aceitam negociar o preço já contratado;
- ocorre nova avaliação do imóvel em que o mesmo foi avaliado em montante suficiente, sendo que nada no contrato foi negociado quanto a obras no imóvel;
- o que a Autora pretendia era que os Réus lhe vendessem o imóvel por valor inferior ao acordado;
- em 01-06-2022 os Réus enviam à Autora a carta registada com aviso de recepção e a partir daí decorreram diversas tentativas de contacto e reuniões onde a Autora sistematicamente pressionou os Réus para que e lhe vendessem a casa a preço inferior ao acordado;
- tendo a Imobiliária igualmente efectuado pressão junto dos Réus para que estes baixassem o preço, pressão essa que levaram os Réus a, considerando excessiva, rescindir o contrato com a mesma e a exigir a devolução imediata da chave do seu apartamento;
- os Réus não faltaram a nenhuma escritura porque não foram notificados para comparecer a qualquer uma.
Concluem os réus pelo incumprimento do cpcv pela A. e consequente absolvição dos mesmos do pedido contra eles formulado.
Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador e fixado o objecto do litígio e os temas da prova.
Foi realizada audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cujo dispositivo é o seguinte:
“Face ao exposto decide-se:
I - Julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência condenar os Réus a, no prazo máximo de 40 dias, celebrar com a Autora o negócio definitivo de compra e venda pelo preço acordado de €125.000 (cento e vinte e cinco mil euros), mantendo-se sobre a Autora a obrigação de notificar os mesmos para a data que vier a ser agendada, no mais se absolvendo os Réus do peticionado.
Custas da acção por Autora e Réus, na proporção de 2/10 para aquela e 8/10 para estes.
Notifique e registe.”
Inconformados com a sentença, vieram os réus dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
• A sentença recorrida não valorou de forma imparcial os interesses e os direitos em confronto;
• a sentença reconhece (ponto 35º dos factos provados) que os Réus tinham necessidade de vender a fracção sub judice por razões financeiras, pelo que os Réus não só não recusaram a outorga da escritura como, pelo contrário, ansiavam (precisavam) que a mesma se efectivasse;
• as pessoas normais/particulares (o bonus pater familias, por exclusão dos comerciantes de imóveis) como são o Réu (engenheiro) e a Ré (médica) só equacionam vender imóveis de que sejam proprietários por necessidade, aliás dada como provada no ponto 35º dos factos provados;
• era à Autora que cabia (e continua a caber na decisão recorrida) a obrigação de marcar a escritura, o que nunca fizeram até ao momento (nem o fizeram até agora).
• Na ponderação do interesse das partes pelo Tribunal – sobretudo quando se perspectiva a decisão da causa com base em institutos como o abuso de direito – deve o tribunal assumir uma posição de distanciamento e imparcialidade, ponderando os interesses de ambas as partes no litígio.
• O interesse dos Réus em outorgar a venda do seu imóvel no prazo e pelo preço contratado é digno de protecção legal e não é nada abusivo nem de má fé;
• O tribunal não pode valorar a disponibilidade do Réu para comparecer em reuniões, para conceder prazo e até para conceder um desconto como má fé e abuso de direito;
• Os Réus não eram obrigados a comparecerem em reuniões nem a reduzir o preço contratado;
• Se a Autora não conseguia obter o financiamento pretendido poderia e deveria ter revogado o contrato – o que nunca fez, nem formal nem informalmente;
• No e-mail de 14 de Junho a Autora diz claramente aos Réus que não marcou a escritura nem tem capacidade económica para pagar o preço contratado;
• Apesar da posição jurídica favorável os Réus disponibilizam-se a devolver à Autora a quase totalidade do sinal que esta lhes havia pago, retendo apenas uma quantia ínfima para se compensarem de gastos em que já tinham incorrido, o que a Autora recusou, ameaçando os Réus com processos de todo o tipo;
• Até por esta ameaça, e pela concretização da mesma no que diz respeito a uma registo provisório abusivo efectivado pela Autora ne que se mantém a bloquear a disponibilidade do imóvel pelos Réus, nunca o tribunal a quo podia ter dado como não provado os factos J e K dos factos não provados;
• Tratando-se nesta causa de um contrato-promessa de fracção autónoma em que está expressamente convencionado que qualquer alteração do contrato teria de revestir a forma escrita e ser assinada pelas partes, atento o disposto nos artigos 410 e 223 do Código Civil, nunca poderia o tribunal recorrido considerar que os Réus tinham alterado o contrato no que diz respeito ao preço e ao prazo;
• O Réu concedeu à Autora um desconto de 500 euros na sequência de promessa verbal de que a escritura seria outorgada até 20 ou mesmo até 30 de Junho;
• Os Réus enviaram à Autora uma carta admonitória de rescisão para deixar clara a sua posição, sem prejuízo de se mostrarem disponíveis para a outorga da escritura com desconto de 500 euros se outorgada no curto prazo indicado;
• O banco financiador da Autora nunca contactou os Réus para pedir documentos (que a Autora aliás já dispunha) ou para agendar a escritura, nem esta o fez nunca, apesar de todo o tempo já decorrido;
• os Réus não alteraram o contrato-promessa no sentido de permitir que a Autora marcasse a escritura para um ano mais tarde e pelo preço de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros);
• Ao decidir nesse sentido a sentença recorrida é arbitrária e impõe aos Réus uma obrigação que estes não assumiram, o que é ilegal e contrário ao Direito;
• Pelo contrário, a Autora não cumpriu o prazo contratado e a prorrogação deste posteriormente concedida, para a outorga da escritura, afirmou aos Réus que não tinha conseguido o montante necessário ao pagamento do preço ajustado, mas também nunca exerceu a faculdade de revogação do contrato-promessa, razão pela qual tem de reconhecer-se que incumpriu definitivamente o contrato promessa tendo perdido o direito ao reembolso do sinal que pagou. Revogando a sentença recorrida e reconhecendo o incumprimento contratual por parte da Autora fará este Tribunal douta JUSTIÇA
*
A recorrida contra-alegou, defendendo, desde logo, que, nas alegações do recurso, os apelantes não indicam uma única norma jurídica violada pela decisão recorrida, o que inviabiliza o recebimento do recurso enquanto circunscrito à matéria de direito (vide art.º 639º/2 do CPC), concluindo que o recurso não deve ser admitido, por não cumprir os requisitos legais de admissibilidade.
No mais, pugnaram pela improcedência do recurso.
Nesta instância recursiva, foi proferido despacho pela relatora, com a ref. citius 20882875, que, ao abrigo do art.º 639º/3 do Código de Processo Civil, convidou os apelantes a, no prazo de cinco dias, completarem as suas conclusões de recurso, observando todos os ónus consagrados no nº 2 do art.º 639º do CPC sob pena de, não o fazendo, se não conhecer do recurso, com a advertência de que as conclusões de recurso reformuladas a apresentar deveriam cingir-se às questões invocadas nas alegações apresentadas, não podendo ampliar o objeto do recurso.
Os apelantes apresentaram novas alegações de recurso, que terminaram com as seguintes conclusões:
• O artigo 62 da Constituição da República Portuguesa reconhece a todos o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte…o que a sentença recorrida violou;
• A sentença recorrida não valorou de forma imparcial os interesses e os direitos em confronto, como deveria atento o disposto no artigo 4º do Código de Processo Civil;
• a sentença reconhece (ponto 35º dos factos provados) que os Réus tinham necessidade de vender a fracção sub judice por razões financeiras, pelo que os Réus não só não recusaram a outorga da escritura como, pelo contrário,ansiavam (precisavam) que a mesma se efectivasse;
• as pessoas normais/particulares (o bonus pater familias, por exclusão dos comerciantes de imóveis) como são o Réu (engenheiro) e a Ré (médica) só equacionam vender imóveis de que sejam proprietários por necessidade, aliás dada como provada no ponto 35º dos factos provados;
• era à Autora que cabia (e continua a caber na decisão recorrida) a obrigação de marcar a escritura, o que nunca fizeram até ao momento (nem o fizeram até agora).
• Na ponderação do interesse das partes pelo Tribunal – sobretudo quando se perspectiva a decisão da causa com base em institutos como o abuso de direito –deve o tribunal assumir uma posição de distanciamento e imparcialidade, ponderando os interesses de ambas as partes no litígio.
• O interesse dos Réus em outorgar a venda do seu imóvel no prazo e pelo preço contratado é digno de protecção legal e não é nada abusivo nem de má fé;
• O tribunal não pode valorar a disponibilidade do Réu para comparecer em reuniões, para conceder prazo e até para conceder um desconto como má fé e abuso de direito;
• Os Réus não eram obrigados a comparecerem em reuniões nem a reduzir o preço contratado;
• Se a Autora não conseguia obter o financiamento pretendido poderia e deveria ter revogado o contrato – o que nunca fez, nem formal nem informalmente;
• No e-mail de 14 de Junho a Autora diz claramente aos Réus que não marcou a escritura nem tem capacidade económica para pagar o preço contratado;
• Apesar da posição jurídica favorável os Réus disponibilizam-se a devolver à Autora a quase totalidade do sinal que esta lhes havia pago, retendo apenas uma quantia ínfima para se compensarem de gastos em que já tinham incorrido, o que a Autora recusou, ameaçando os Réus com processos de todo o tipo;
• Até por esta ameaça, e pela concretização da mesma no que diz respeito a uma registo provisório abusivo efectivado pela Autora ne que se mantém a bloquear a disponibilidade do imóvel pelos Réus, nunca o tribunal a quo podia ter dado como não provado os factos J e K dos factos não provados;
• Tratando-se nesta causa de um contrato-promessa de fracção autónoma em que está expressamente convencionado que qualquer alteração do contrato teria de revestir a forma escrita e ser assinada pelas partes, atento o disposto nos artigos 410 e 223 do Código Civil, nunca poderia o tribunal recorrido considerar que os Réus tinham alterado o contrato no que diz respeito ao preço e ao prazo;
• Quanto à forma exigida para a declaração negocial o tribunal deveria sempre ter respeitado o disposto no artigo 35º do Código Civil que a sentença recorrida epicamente ignora;
• O Réu concedeu à Autora um desconto de 500 euros na sequência de promessa verbal de que a escritura seria outorgada até 20 ou mesmo até 30 de Junho (ver transcrição 00:13:56.1 …B …, resolvemos hoje aqui o tema e eu retiro 500 euros, estamos já a retirar 1.000 euros. Para mostrar até que eu estou com boa fé neste, neste processo, eu quero é vender a casa, por favor.);
• A sentença recorrida violou o disposto no artigo 236º do Código Civil, na
medida em que a vontade declarada e conhecida dos Réus quanto à venda da sua casa era a venda por um determinado valor e prazo e o tribunal entendeu que poderia determinar a venda por menor valor e maior prazo, o que é ilegal;
• A Autora não cumpriu a condição que determinaria o Autor a conceder-lhe um desconto de 500 euros – marcação da escritura no curto prazo indicado;
• Os Réus enviaram à Autora uma carta admonitória de rescisão para deixar clara a sua posição, sem prejuízo de se mostrarem disponíveis para a outorga da escritura com desconto de 500 euros se outorgada no curto prazo indicado;
• O banco financiador da Autora nunca contactou os Réus para pedir documentos (que a Autora aliás já dispunha) ou para agendar a escritura, nem esta o fez nunca, apesar de todo o tempo já decorrido;
• os Réus não alteraram o contrato-promessa no sentido de permitir que a Autora marcasse a escritura para um ano mais tarde e pelo preço de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros);
• Ao decidir nesse sentido a sentença recorrida é arbitrária e impõe aos Réus uma obrigação que estes não assumiram, o que é ilegal e contrário ao Direito;
• A Senhora Drª Juiz de Direito decidiu contra a vontade dos Réus que estes teriam de vender à Autora a casa sub judice por valor inferior ao que os Réus haviam aceite contratualmente e num prazo completamente fora de tudo o que havia sido contratado, o que é abusivo e claramente violador do direito constitucional à propriedade privada consagrado no artigo 62 da Constituição da
República Portuguesa;
• Pelo contrário, a Autora não cumpriu o prazo contratado e a prorrogação deste posteriormente concedida, para a outorga da escritura, afirmou aos Réus que não tinha conseguido o montante necessário ao pagamento do preço ajustado, mas também nunca exerceu a faculdade de revogação do contrato-promessa, razão pela qual tem de reconhecer-se que incumpriu definitivamente o contrato-promessa tendo perdido o direito ao reembolso do sinal que pagou;
• Decidindo de outra forma a sentença recorrida violou o disposto no artigo 62 da Constituição da República Portuguesa, no artigo 4º do Código de Processo Civil, nos artigos 35º, 223º, 236º, 264º, 394º, 442º, 410º e sobretudo o disposto no artigo 406º do Código Civil.
Revogando a sentença recorrida e reconhecendo o incumprimento contratual por parte da Autora fará este Tribunal douta JUSTIÇA.»
Nos termos do n.º 4 do artigo 639º do Código de Processo Civil, a recorrida respondeu às alegações aperfeiçoadas da seguinte forma:
«Os Recorrentes persistem, com todo respeito, nos vícios já apontados às suas Alegações, apenas acrescentando agora matéria de facto nova, não alegada me primeira instância, o que é indivisível, pelo que deverá ser dado por não escrito tudo quanto é alegado no ponto 3 (do direito, da nova alegação, por se tratar de matéria de facto, e não de direito, e sobretudo matéria de facto nova, não incluída no âmbito da correção ordenada, e mais ainda, inadmissível de alegação em sede de recurso..
Tal como já alegado, a decisão em crise, salvo o devido respeito pela opinião dos Recorrentes, é uma decisão justa e respeitadora da Lei, não lhes assistindo qualquer razão na discórdia manifestada face a tal decisão, e que, lidas e relidas as suas alegações, é, afinal, nenhuma, já que não colocando aos Recorrentes a matéria de facto em crise, nenhum reparo é possível fazer quanto à decisão de direito.
Sendo que, perante a manifesta inadmissibilidade do recurso apresentado, os Recorrentes persistem em não cumprir os ónus que sobre si impendem, e ao invés de acatarem o que lhes foi ordenado, limitam-se a alegar novos factos, não discutidos em primeira instância, para, depois, em sede conclusiva, inventarem uma inexistente inconstitucionalidade – mais uma questão que ultrapassa me muito o ordenado por este Tribunal de Recurso, e os limites do “aperfeiçoamento” ordenado.
Na verdade, os recorrentes apresentam uma nova alegação em que mantêm tudo quanto já haviam alegado, acrescentando apenas, ilegalmente, nova matéria de facto, e, depois, juntando algumas conclusões extra, relativas a tal matéria, mas até contraditórias com o que alegam, pois que tão depressa aceitam uma alteração contratual, com referem (matéria totalmente nova) que tal alteração foi ilegal.
No que respeita ao recurso inicialmente apresentado, as novas alegações são exatamente iguais, pelo que se mantêm os vícios doutamente apontados por este Tribunal.
Sendo certo que a sentença em crise não violou qualquer norma jurídica, sendo objetivamente justa, e tendo a causa sido decidida de acordo com a prova produzida e o direito aplicável.
Em face de tudo o que vem sendo exposto, dúvidas não restam de que a Sentença recorrida não padece de qualquer nulidade, nem de erro de julgamento, até porque, perante a factualidade em causa (não colocada em causa pelos recorrentes, repita-se) e o direito aplicável, outra não podia ter sido a decisão do Tribunal a quo, razão pela qual, deve a mesma ser mantida in totum.
Pelo exposto e sempre com o Douto suprimento deste Venerando Tribunal, deve o recurso interposto pelos Recorrentes ser julgado improcedente, se não mesmo rejeitado, mantendo-se a douta decisão recorrida, assim fazendo V. Exas., Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, a habitual e sã JUSTIÇA.»
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões:
- questão prévia: aperfeiçoamento das conclusões do recurso;
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- (in)cumprimento do contrato-promessa; validade e efeitos da resolução contratual.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
Factos provados
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]:
1. No ano de 2022 a Autora iniciou uma busca de imóveis com vista a adquirir casa própria, tendo obtido pré-aprovação de concessão de crédito.
2. Tendo encontrado o anúncio constante de fls. 13v., a Autora entrou em contacto com a imobiliária que promovia a venda do mesmo, visitou o imóvel e decidiu apresentar uma proposta de aquisição referente à fracção autónoma designada pela letra M, correspondente ao 3.º andar frente do prédio em regime de propriedade horizontal sito a Praceta …, n.º ….., na Damaia – Amadora, descrita na Conservatória de Registo Predial e Comercial da Amadora, sob o n.º 296/19981130, inscrita a favor dos Réus através da Ap. 344 de 21-01-2020 por compra.
3. A Autora apresentou proposta de compra em 31-03-2022, pelo valor de €125.000,00, com pagamento de 10%, a título de sinal, na assinatura do CPCV e o restante com recurso a crédito habitacional.
4. No dia 02-04-2022 os representantes dos Réus na venda informaram a Autora, via email, da aceitação daqueles em efectuar a venda pelo preço de €126.000,00 com um prazo de 60 dias para celebração do negócio definitivo.
5. Com data de 05-04-2022 foi celebrado entre Autora e Réus o contrato a que os mesmos denominaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda”, constante de fls. 21v. e ss., e que aqui se dá por integralmente reproduzido no qual se estabeleceram as seguintes cláusulas:
“ (..)
2.ª (Preço)
Pelo presente contrato o Primeiro contraente promete vender, no estado atual, livre de ónus e encargos ou outras responsabilidades, ao segundo contraente, a fracção autónoma acima identificada e esta promete comprar pelo preço de €126.000,00.
3.ª (Pagamento)
O preço global acordado será pago pela segunda contraente da seguinte forma e tempo:
a) A quantia de €126.000,00 através de transferência bancária efectuada por débito da conta com o IBAN… para contrapartida de crédito na conta com o IBAN.., no dia da assinatura do contrato-promessa, a título de sinal e princípio de pagamento, valor esse que os primeiros contraentes declaram já receber e dá a competente quitação após boa cobrança;
b) A quantia remanescente em dívida no montante de €113.400,00 será integralmente paga pela segunda contraente no ato da assinatura do título definitivo de compra e venda, através de cheque visado ou cheque bancário.
c) Considerando que a promitente compradora necessita de financiamento bancário para a aquisição do imóvel objecto do presente contrato promessa, é-lhe reconhecido o direito de revogar o mesmo no caso de o banco não vir a conceder à promitente compradora financiamento bancário necessário para a compra do imóvel.
d) Para o válido e eficaz exercício do direito de revogação estipulado no número anterior a promitente compradora deverá comunicar essa intenção aos promitentes vendedores até 20 dias a contar da presente data, através de carta registada com aviso de recepção que deverá incluir o comprovativo de avaliação insuficiente ou da recusa do financiamento.
e) Recebida a comunicação referida no anterior, os promitentes vendedores ficam obrigados a devolver à promitente compradora em singelo e no prazo máximo de 5 dias, todas as quantias que haja recebido a título de sinal e reforços de sinal (12.600,00 euros).
4.ª (Contrato Definitivo)
1. A marcação do título definitivo de compra e venda fica a cargo da segunda contraente devendo ser celebrado no prazo máximo de 60 dias, a contar da data da assinatura do presente contrato, no concelho do imóvel m causa ou local acordado pelas partes.
2. Para os efeitos do número anterior a segunda contraente, de quem depende a marcação do título definitivo de compra e venda, compromete-se a comunicar aos primeiros contraentes, a data, hora e local da celebração do referido título definitivo de compra e venda com a antecedência mínima de 15 dias úteis.
3. Os primeiros contraentes obrigam-se a fornecer á segunda contraente, após solicitação desta, todos os documentos relativos ao imóvel objecto do presente contrato, que se mostrem necessários para instrução da outorga do título definitivo de compra e venda do referido imóvel.
6.ª (Cláusula Resolutiva – Financiamento)
1. Caso não seja possível cumprir os prazos para a realização do contrato prometido por atraso na obtenção de documentos ou na conclusão do processo bancário por eventuais encerramentos das entidades publicas que impossibilitem a obtenção da documentação necessária para a realização do contrato prometido, bem como os atrasos das entidades bancárias responsáveis pelo crédito bancário pela mesma razão, não pode ser considerado incumprimento de qualquer das partes contraentes.
(…)
9.º (Comunicações)
1. Todas as comunicações previstas n presente contrato deverão ser realizadas através de carta registada com aviso de recepção para as moradas constantes do mesmo, podendo as partes, por acordo, privilegiarem a comunicação por contacto telefónico ou por email através das seguintes caixas de email: a) fcb@g3mail.com; geral@pv....pt; b) A@gmail.com; jvh@gmail.com.
2. Qualquer alteração de morada apenas produzirá efeitos se comunicada à outra parte contratante;
3- Qualquer alteração ao presente contrato deverá revestir a forma de documento escrito e assinado por todos os contraentes constantes deste contrato.
10.ª (Incumprimento)
1. Caso qualquer uma das partes não compareça na data marcada para a realização do título definitivo de compra e venda, (…) fica desde já agendada nova marcação para o 15.º dia posterior, e caso se mantenha a falta de alguma das partes ora contraentes, poderá, desde logo, a parte não faltosa invocar o seu incumprimento definitivo (…).
2. Em caso de incumprimento do presente contrato por causa imputável aos primeiro contraentes, a segunda contraente poderá exigir a restituição em dobro do sinal.
3. Se o incumprimento definitivo do presente contrato, for por causa imputável à segunda contraente, os primeiros contraentes farão suas as quantias até aí recebidas.
4. Fica expressamente acordado entre os contraentes a faculdade de qualquer deles, em alternativa à resolução do presente contrato promessa comas consequências previstas na presente cláusula, requerer execução específica deste contrato, nos termos previstos no art.º 830.º do Código Civil.
(…)”
6. No dia 05-04-2022 foi pago o sinal acordado de €12.600,00, mediante transferência bancária para a conta indicada no contrato promessa.
7. Em 2 de Maio de 2022 a Autora recebeu o resultado da avaliação do imóvel, atribuindo um valor de €116.400,00 pelo que o valor que o BPI se disponibilizaria para financiar seria insuficiente para proceder ao pagamento do remanescente do preço.
8. Em face desta avaliação a Autora enviou ao Réu e à imobiliária, em 04-05-2022 o email constante de fls. 34, que aqui se dá por integralmente reproduzido, condicionando à abertura dos Réus a possibilidade de pedir a realização de uma nova avaliação.
9. Em 10 de Maio de 2022 marcou-se uma reunião entre todos os intervenientes em que, pese embora o tempo já decorrido, a Autora reiterou a sua vontade de adquirir o imóvel objecto do contrato-promessa e o Réu marido a vender o mesmo.
10. A Autora dispôs-se a solicitar avaliação a um outro banco, caso os Réus dessem anuência ao início de novo processo de financiamento, visto que naquela data já resultava inviável o cumprimento do prazo de 60 dias para celebração do contrato de compra e venda.
11. Mediante a concordância dos Réus, a Autora iniciou novo processo de financiamento desta feita junto do Novo Banco.
12. Em 17 de Maio de 2022 foi realizada a avaliação do imóvel pelo Novo Banco.
13. Em 24 de Maio de 2022 a Autora tomou conhecimento do resultado da avaliação que era insuficiente para suportar o remanescente do preço, na medida em que o pagamento do empréstimo para obras estava dependente de vistorias a efectuar.
14. Pelo que a entrega dos montantes relacionados com o crédito de obras seriam por reembolso, depois das mesmas efectuadas, e não antes do início das mesmas.
15. A autora solicitou reapreciação por parte dos avaliadores tendo sido informada em 01-06-2022 que o valor financiado para a aquisição era de €106.200,00 e o valor financiado para obras de €15.000,00.
16. Em 02-06-2022 o Novo Banco confirmou que apenas disponibilizaria no acto da compra €106.200,00 e €15.000,00 para obras nas condições referida em 14.
17. Em face da nova avaliação foi solicitada nova reunião com os Réus e a imobiliária, a qual ocorreu em 6 de Junho de 2022, estando presentes a Autora, o seu namorado, o Réu B e os proprietários da imobiliária.
18. Nessa reunião a Autora deu nota de que poderia angariar a curto prazo o montante de €3.600,00, pelo que, por forma a viabilizar o negócio a imobiliária baixou €500,00 na comissão a receber, tendo o Réu procedido de igual forma baixando €500,00, realizando-se assim o contrato pelo preço de €125.000,00.
19. Restando por assegurar o montante de €2.300,00 ficou acordada a realização de uma nova reunião no dia 20-06-2022.
20. Na reunião realizada em 6 de Junho de 2022 o Réu B deu nota de que havia enviado, via CTT, uma notificação, por precaução em razão dos prazos contratuais.
21. A Autora recebeu em 7 de Junho de 2022 a referida missiva, datada de 1 de Junho, enviada pelo Réu na qual o mesmo referia que:
“Exma. Sra.
Reportando-nos ao Contrato promessa compra e venda da fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra M, que constitui o 3.º andar frente do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Amadora, na Praceta … n.º … Damaia (…)
Não tendo sido accionado o vosso direito de revogação nos termos estipulados nas als. c) e d) da cláusula 3.ª do CPCV, o contrato e compra e venda deveria ser celebrado no prazo de 60 dias, apos a assinatura do CPCV, ou seja até ao dia 6 de Junho de 2022, competindo a V.ª Ex.ª proceder à sua marcação com uma antecedência mínima de 15 dias uteis (…).
Tendo em conta que não recebemos até à presente data tal comunicação, nem é já possível cumprimento desses prazos contratualmente previstos, mas apelando ainda ao mecanismo previsto no n.º 1 da cláusula 10.ª do CPCV, vimos interpelar V.ª Ex.ª para proceder à marcação do título definitivo de compra e venda até ao termo do prazo contratualmente fixado para a sua celebração ou, no limite, até ao 15.º dia posterior, isto é, até ao dia 20 de Junho de 2022.
Findo tal prazo sem que o título definitivo de compra e venda se mostre celebrado, consideraremos o CPCV definitivamente incumprido por causa imputável a V.ª Ex.ª , com as consequências estabelecidas no n.º 3 da cláusula 10.ª do CPCV, o que expressamente se invoca desde já para todos os efeitos legais e contratuais. (…)”.
22. A essa comunicação respondeu a Autora por email e carta registada com aviso de recepção nos termos constantes do email de fls. 38 e ss., que aqui se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte teor:
“Exmos. Srs.
Dou nota da vossa comunicação que refiro acima e cujo conteúdo muito me surpreendeu, por referir uma versão dos factos que sabem não corresponder à verdade, numa atitude que prefiro interpretar (por pensar que ambas as partes se mantêm de boa fé) como uma mera cautela.
Desde logo, como sabem, e consta do contrato promessa de compra e venda, a obtenção da minha parte de crédito bancário que cubra a diferença entre o sinal que paguei – (…) – e o preço total do apartamento prometido vender, sempre foi condição essencial para a celebração do contrato prometido.
Sucede que, como também sabem, numa primeira avaliação o Banco nem sequer entendeu que o apartamento valeria o preço total do contrato, e numa segunda, inteiramente custeada por mim, em face do interesse na manutenção do negócio, tal avaliação foi muito próximo do valor, o que significa a recusa de financiamento da totalidade do valor em falta para o preço total.
Por isso mesmo, e cumprindo integralmente os prazos contratuais, dei nota esse  facto tanto a vós como à imobiliária que vos assessoria e foi agendada nova reunião, que teve lugar exactamente no dia 6 de Junho passado (antes de sequer recebera comunicação a que agora sou forçada a responder), para tentar ultrapassar uma situação que, a manter-se (refiro-me à recusa de financiamento do preço em falta) implicará a resolução do contrato e a devolução do sinal já pago, que parece-me que nenhuma das partes pretende.
Por isso mesmo ocorreu a reunião com todas as partes no dia 6 de Junho de 2022, em que foi agendada nova reunião para o dia 20 de Junho de 2022 exatamente porque mantendo-se a situação actual a cláusula 3.ª do contrato implica, não o que referem, mas a resolução do contrato com a devolução do sinal, o que não é pretendido, por ora, por nenhuma das partes.
(…) Assim, reitero a minha intenção de cumprir o contrato bem como a impossibilidade objectiva, e sem culpa minha, e que conheciam antes de 1 de Junho de 2022, para o agendamento da escritura definitiva no prazo que pretendem impor.
Assim sendo, e porque sempre actuei de boa fé, e, mesmo agora, quero presumir o mesmo da vossa parte, aguardo que confirmem a reunião agendada (…)
No entanto não posso deixar de reiterar que, caso mantenham posição, com base em factos falsos, que me transmitiram por escrito, irei até às ultimas consequências civis ou penais, para ser ressarcida de todos os prejuízos que a situação já me causou e causará e usarei todos os meios ao meu dispor para o fazer, o que, estou certa, não será necessário.
(…).”
23. Em 14 de Junho de 2022 a Autora recebeu informação do Novo Banco quanto aos elementos necessários para agendar a escritura definitiva, ficando o seu agendamento para o dia 20-06-2022 condicionado ao envio da documentação solicitada pelo Banco, sob pena de necessidade de adiamento da mesma.
24. Nesse mesmo dia a Autora reencaminhou para a imobiliária e para o Réu o email do Novo Banco solicitando a entrega dos documentos. Nesse mesmo email, constante de fls. 40v. e que aqui se dá por integralmente reproduzido a Autora refere “A considerar o crédito pessoal que solicitei e o salário de junho, nesse dia faltará somente 720€ dos €6.200. Assim peço encarecidamente aos proprietários em desconto. Apelo ao bom senso, diante da notificação enviada sei que estamos bem aconselhados juridicamente e é certo que teremos muitos mais custos do que os 720 com a acção judicial.
Aguardo resposta ao presente email com o vosso posicionamento.”
25. Em 19 de Junho de 2022 o Réu enviou à Autora e à imobiliária o email constante de fls. 41 e 41v. que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual referiu:
“(…)
Em resposta o V/ email que mereceu a nossa melhor atenção, informa-se o seguinte:
A nossa decisão de celebrar o CPCV, no passado dia 5 de Abril, teve como condição essencial o prazo de 60 dias fixado para a outorga do contrato definitivo de compra e venda.
(…)
Assim, apesar de não sermos obrigados a tal, participámos nas reuniões presenciais que solicitou, nas quais, quando confrontados com tentativas da V. parte de renegociar os termos do CPCV (o que nós nunca aceitámos, nem aceitamos) sempre deixámos bem claro, com absoluta franqueza e boa fé, que não teríamos margem de negociação do preço de venda do imóvel, pois este mesmo valor representava já o resultado de uma cedência bastante significativa da nossa parte, não sendo possível baixá-la ainda mais, sob pena de prejuízo nosso.
(…)
Como é sabido (…) o contrato definitivo de compra e venda deveria ter sido celebrado no prazo de 60 dias após a assinatura do cpcv, ou seja, até ao dia 06 de Junho de 2022, competindo a V.ª Ex.ª proceder a sua marcação com uma antecedência mínima de 15 dias úteis.
Decorrido o prazo contratualmente previsto sem que a escritura estivesse sequer marcada, num derradeiro acto de boa fé e expectativa de sucesso na concretização do negócio, interpelamos V.ª Ex.ª através de carta de 01 de Junho p.p. registada com aviso de recepção, para proceder à marcação do título definitivo de compra e venda até 20 de Junho.
Na reunião ocorrida a 6 de Junho p.p. ficámos a saber que V.ª Ex.ª tinha obtido em 20 de maio p.p. uma avaliação do imóvel com valor superior ao acordado de aquisição, pelo que pensámos que estariam reunidos todos os pressupostos para a celebração do título definitivo de compra e venda.
Foi, pois, com estupefação e completo desalento que recebemos o seu email de 14 de Junho às 18h24m, no qual decorridos praticamente dois meses e meio do CPCV, vem propor a marcação do contrato definitivo de compra e venda para 30 de Junho p.f. e por um preço inferior ao convencionado.
De facto o seu email é um reconhecimento expresso de que, nem no dia 30 de Junho, terá possibilidade de pagar a totalidade da parte remanescente do preço acordado, tentando por isso impor, unilateralmente, sob ameaça de acções judiciais, um preço mais baixo – já diversas vezes por nós recusado, recusa que agora reiteramos.
(…)
Perante todos os factos supra citados é evidente que o CPCV foi irremediável e definitivamente incumprido por V. Exa., o que é causa de resolução do mesmo, o que conforme nossa carta de 1 de Junho p.p. expressamente se invoca e declara.
(…)”
26. A Autora respondeu a tal comunicação no próprio dia, nos termos constantes do email de fls. 42, e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
27. No dia 20 de Junho de 2022 os Réus não compareceram na reunião agendada, tendo a Autora comunicado à imobiliária e ao Réu a disponibilidade para agendamento da escritura pelo valor acordado em 06-06-2022, isto é, €125.000,00.
28. Por email com a mesma data a imobiliária enviou à Autora informação sobre os vendedores, referindo ficar a faltar cópia dos Cartões de Cidadão dos mesmos.
29. No dia 23 de Junho de 2022 a Autora enviou ao Réu e à imobiliária o email constante de fls. 44 que aqui se dá por integralmente reproduzido no qual refere:
“(…)
Lamentavelmente V. Exas. permitiram-se, no dia 20, e após terem invocado factos falsos na vossa última comunicação (prontamente respondida), não comparecer numa reunião que estava agendada por todos desde o dia 6 de junho de 2022 e desde então não respondem a qualquer iniciativa de contato.
Isto após terem sido interpelados formalmente e dentro dos prazos acordados por escrito e em diferentes reuniões entre as partes, para cumprirem a promessa de compra e venda celebrada, nomeadamente fornecendo os elementos ainda em falta para se poder agendar a escritura definitiva.
Fica, pois, muito claro que, desde há muito, não será vossa intenção cumprir a promessa, mas tão só fazerem vosso o sinal que, de boa fé em mesmo ante de ter o contrato assinado, vos entreguei.
Tal não sucederá e, a menos que até amanhã, dia 23 de junho, até Às 14h, forneçam cópia dos vossos documentos de identificação (carões de cidadão) para que o banco marque a data para a outorga da escritura pública de compra e venda prometida e busquem os demais documentos exigidos, a ser indicada a data em que estão disponíveis para celebrar (tanto eu como o banco temos essa disponibilidade desde o dia 20 de junho como vos comuniquei), darei o contrato por definitivamente incumprido sem justa causa por V.ªs Exas. e darei andamento a todos os processos, de índole cível e criminal, que cabem ao caso, bem como reclamarei todos os prejuízos que esta situação me está a causar (…).”
30. Após dia 20 de Junho de 2020 a imobiliária deixou de conseguir contactar o Réu.
31. Na sequência do email referido em 29. o Réu enviou à Autora o email constante de fls. 44v. que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual refere:
“(..)
V. Exa. Celebrou connosco um contrato promessa assumindo a obrigação de marcar uma escritura de compra e venda até determinada data por determinado preço.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos. A promitente compradora não marcou o contrato na data limite e pretende pagar um preço inferior ao contratado – o que não aceitamos.
A promitente compradora tinha todos os elementos que necessitava para marcar a escritura. Se algo faltasse facultaríamos tais elementos ao notário indicado.
Nos termos e fundamentos da nossa última comunicação, o CPCV encontra-se resolvido por incumprimento de V. Exa., pelo que nada mais há a tratar relativamente a este assunto, desconhecendo nós e não aceitando qualquer acto praticado ou acordo proposto pela mediadora sem poderes ou mandato para o efeito.
No entanto nada faremos quanto a este imóvel até ao dia 30 do corrente mês. Depois desta data iremos colocar o imóvel em venda, noutra mediadora e não voltaremos sequer a responder aos seus emails. (…)”
32. O imóvel prometido vender tem licença de utilização emitida na Câmara Municipal da Amadora.
33. Bem como certificado energético SCE 15694532, válido até 07-12-2029.
34. Sobre o imóvel encontra-se inscrita uma hipoteca a favor do Banco Santander Totta S.A.
35. Por razões financeiras os Réus necessitaram de vender a fracção que veio a ser objecto do contrato promessa.
36. Para tanto celebraram em 16 de Novembro de 2021 com a imobiliária P&V …, Lda. contrato e mediação imobiliária com vista à venda da referida fracção pelo preço de €139.000,00, ficando a mediadora com a chave do apartamento.
37. Em data não concretamente apurada, mas posterior 20 de Junho de 2022, os Réus rescindiram o contrato de mediação imobiliária com a P&V …, Lda. e exigiram a devolução imediata da chave. 
*
Matéria de facto não provada
O tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
a) que no dia 07-04-2022 a Autora tenha visitado o imóvel acompanhada de um arquiteto e representantes de empresas de construção civil para fazer um orçamento das obras necessárias e desejadas no imóvel.
b) Que em 14 de Abril a Autora tenha recebido o projecto de reabilitação da fracção com plano de execução de obras e planta antes apos remodelação e os tenha enviado nessa data ao BPI para viabilizar o crédito de obras associado ao crédito habitação.
c) Que os Réus já teriam negociado o imóvel em melhores condições para eles com terceiro e pretendiam, por isso, a todo o custo fazer seu, no todo ou em parte, o sinal recebido.
d) Que a Autora esteja a cumprir 35 anos de idade o que a impede de obter um empréstimo mais longo.
e) Que os Réus estejam a pagar regular e pontualmente as prestações acordadas no contrato de mútuo celebrado com o Santander Totta S.A.
f) Que a fixação do prazo de 6 dias para celebração do contrato definitivo tenha sido essencial para a vontade de contratar dos Réus e que só por isso aceitaram uma proposta substancialmente inferior ao que pretendiam.
g) Que a Autora não tivesse diligenciado com celeridade pela avaliação do imóvel,
h) Que só com a petição inicial os Réus tenham tomado conhecimento de que a Autora não se limitou a pedir financiamento para aquisição do imóvel tendo adicionado a tal pedido um crédito para obras.
i) Que o Novo Banco, face à avaliação efectuada, concedesse à Autora o financiamento necessário ao pagamento do remanescente do preço por pagar.
j) Que nas tentativas de contacto e reuniões apos 1 de Junho de 2022 a Autora tivesse pressionado insistentemente os Réus para que lhe vendessem a casa mais barata do que o acordado, e que os Réus sempre o tenham recusado.
k) Que no decurso das reuniões o namorado da Autora tenha ameaçado os Réus de que iria instaurar um processo judicial e registar a acção ficando os Réus com a casa bloqueada.
l) Que a mediadora tenha começado por dar razão aos Réus, tendo depois passado a pressioná-los para que aceitasse vender a casa por um preço mais baixo.
 *
O tribunal de 1ª instância consignou que:
Os restantes factos alegados e que não constam do elenco dos factos provados ou não provados são afirmações de direito e/ou conclusivas e/ou não relevam para a decisão da causa.
*
III.2. Questão prévia
Como consta do relatório supra, nesta instância recursiva foi proferido despacho (com a ref. citius 20882875), que, ao abrigo do art.º 639º/3 do Código de Processo Civil, convidou os apelantes a completarem as suas conclusões de recurso, observando todos os ónus consagrados no nº 2 do art.º 639º do CPC sob pena de, não o fazendo, se não conhecer do recurso, com a advertência de que as conclusões de recurso reformuladas a apresentar deveriam cingir-se às questões invocadas nas alegações apresentadas, não podendo ampliar o objeto do recurso.
Os apelantes apresentaram novas alegações de recurso incluindo as respectivas conclusões, após o que a recorrida veio responder às alegações aperfeiçoadas, esgrimindo que persistem os vícios antes apontados às alegações,  que apenas foi acrescentada matéria de facto nova, não alegada na primeira instância, considerando que “deverá ser dado por não escrito tudo quanto é alegado no ponto 3 (do direito, da nova alegação, por se tratar de matéria de facto, e não de direito, e sobretudo matéria de facto nova, não incluída no âmbito da correção ordenada, e mais ainda, inadmissível de alegação em sede de recurso.”
Analisadas as conclusões das alegações de recurso apresentadas na sequência do despacho de aperfeiçoamento e comparando-as com as conclusões anteriores, verificamos que os apelantes corresponderam ao convite formulado, indicando expressamente as normas jurídicas violadas pela sentença recorrida, não se detectando nessa sede a alegação de novos factos, diversos daqueles que alegaram anteriormente.
Assim, apenas serão consideradas por este tribunal ad quem as novas conclusões do recurso, por ser esse o objecto do despacho de aperfeiçoamento, que identificou perfeitamente os vícios a corrigir, sendo que o objecto do recurso já ficou definido nas alegações originais, “não sendo legítimo ao recorrente aproveitar o convite para aperfeiçoar para alargar o âmbito do recurso a questões ou parcelas da sentença que não tenham sido focadas anteriormente” – Abrantes Geraldes , Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, pág. 188.
Em face do exposto, entende-se que as conclusões aperfeiçoadas obedeceram ao convite que nesse sentido foi dirigido aos apelantes, atendendo-se no mais às alegações do recurso original.
*
III.3. Mérito do recurso
III.3.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Nas alegações de recurso sustentam os apelantes que devem ser dados como provados os factos julgados não provados sob as alíneas j), k) e l) da sentença recorrida [cf. ponto II.b), embora em sede de conclusões, certamente por lapso (caso assim não fosse, teria de se entender que estaríamos perante a restrição, ainda que tácita, do objecto do recurso, o que impediria este tribunal de recurso de conhecer da matéria vertida na alegação, mas não incluída nas conclusões, questão que, como veremos, não se colocará, face à decisão liminar quanto à presente impugnação da matéria de facto), apenas refiram as alíneas j) e k), referindo que “(…) nunca o tribunal a quo podia ter dado como não provados os factos J e K dos factos não provados”].

Nos termos do disposto no art.º 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Dispõe, por sua vez, o art.º 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Tais ónus são de cumprimento cumulativo, sob pena de imediata rejeição do recurso, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto (neste sentido, v. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 199; e os seguintes acórdãos: do STJ de 27/10/2016, Ribeiro Cardoso; de 27/09/2018, Sousa Lameira; de 3/10/2019, Maria Rosa Tching; e de 2/2/2022 - revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1-1ª Secção, Fernando Samões; e do TRG de 19/06/2014, Manuel Bargado; de 18/12/2017, Pedro Damião e Cunha; e de 22/10/2020, Maria João Matos – todos acessíveis em www.dgsi.pt.)
Acresce que, a reapreciação do julgamento de facto pela Relação, destina-se primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que, atento o preceituado no citado artigo 662º/1 do CPC, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, impondo decisão diversa. Significa que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha.
Por esta razão, a lei exige ao recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
 No que tange à rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 200-201, elenca as situações em que deve verificar-se tal rejeição:
“a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.):
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.”
Como sustenta o mesmo autor, estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, sendo “uma decorrência do princípio de autorresponsabilidade das partes, impedindo que a decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (ob. cit. pág. 201).
Conforme se afirmou no acórdão do STJ de 24.04.2018 (P.140/11.0TBCVD.E1, disponível em www.dgsi.pt), «o art.º 640º, nº 1 do CPCivil impõe um certo número de ónus à parte que impugne a decisão sobre a matéria de facto. Compreendem-se sem dificuldade estas exigências legais, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não está concebido em termos de reescrutínio indiscriminado ou global da materialidade subjacente à causa, mas sim em termos de aferição de pontuais erros de julgamento (os concretamente identificados pelo recorrente). E, de outro lado, visa a lei o rigor na forma de acusação do mau julgamento dos factos, de modo a obviar a impugnações dilatórias, levianas ou carecidas de fundamento probatório objectivo».
À luz deste enquadramento, cumpre verificar se os ora apelantes deram cumprimento aos ónus previstos no art.º 640º do Código de Processo Civil.
Analisado o ponto 2 da alegação recursória, intitulado “matéria de facto”, os apelantes insurgem-se genericamente contra a sentença recorrida e matéria de facto julgada provada, mas sem que se possa identificar os concretos factos que pretendem pôr em crise, apenas resultando clara a conclusão de que devem ser dados como provados os factos julgados não provados sob as alíneas j), k) e l) da sentença recorrida, cujo teor é o seguinte:
“j) Que nas tentativas de contacto e reuniões após 1 de Junho de 2022 a Autora tivesse pressionado insistentemente os Réus para que lhe vendessem a casa mais barata do que o acordado, e que os Réus sempre o tenham recusado.
k) Que no decurso das reuniões o namorado da Autora tenha ameaçado os Réus de que iria instaurar um processo judicial e registar a acção ficando os Réus com a casa bloqueada.
l) Que a mediadora tenha começado por dar razão aos Réus, tendo depois passado a pressioná-los para que aceitasse vender a casa por um preço mais baixo.
Ancoram esta pretensão num argumentário que confunde factos com direito, esgrimindo designadamente que:
“Começa aqui a divergência entre a realidade factual e a interpretação que a Senhora Magistrada do tribunal a quo faz da dinâmica subsequente das relações entre as partes. É que os Réus contemporizaram, aceitaram comparecer em diversas reuniões, o que o sentença recorrida entendeu como uma tentativa de apropriação, em abuso de direito, do sinal recebido, mas a realidade era outra: Os Réus estavam desesperados para vender e foram aceitando o derrapar do prazo até à reunião de 06 de Junho de 2022 descrita no ponto 17º e 18º dos factos provados, em que o Réu marido até aceitou reduzir o preço em €500,00 (quinhentos euros) na perspectiva de um desenlace imediato.
Após o que os apelantes transcrevem grande parte do depoimento de parte do réu B/ora apelante, concluindo em seguida que:
“Para a autora, assinar um contrato assumindo a obrigação de pagar um determinado preço e de marcar a escritura ou revogar o contrato num determinado período temporal é exactamente igual a ir marcando reuniões para exigir a redução do preço acordado.
Ora a sentença recorrida achou este comportamento normal e achou que o comportamento dos réus é que era abusivo, o que nos parece profundamente errado e deve ser revogado.
Os pontos J), K) e L) dados como não provados deveriam ter sido dados como provados atentos os depoimentos supra transcritos.”
Quer dizer, os recorrentes não indicam os concretos meios probatórios que determinariam uma decisão diversa, limitando-se a transcrever excertos do depoimento de parte prestado pelo apelante marido em sede de julgamento, sem que procedam à apreciação crítica dos meios de prova, abstendo-se de valorar aquele depoimento, confrontando-o com os demais meios de prova ou pondo em crise a motivação da matéria de facto constante da sentença.
Flui de todo o exposto que os apelantes incumpriram os ónus a que se reporta citada alíneas b) do nº 1 do art.º 640º do CPC.
Como se escreveu no acórdão do TRP de 4/11/2011, P. 3319/17.8T8PRT.P1, Jerónimo Freitas, “o recorrente não cumpre os ónus impostos pelo art.º 640º/1 do Código Processo Civil quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas” (no mesmo sentido, v. acórdão do TRG de 22/10/2020, P. n.º 5397/18.3T8BRG.G1-Maria João Matos).
É este o caso dos autos, em que os recorrentes se limitam a proceder à indicação genérica da prova e não procedem à apreciação crítica dos meios probatórios que justificassem uma decisão diversa (dar como provados os factos j), k) e l) julgados não provados), sendo manifesto que os apelantes não concordam, isso sim, com a valoração dos factos efectuada na sentença, em sede de fundamentação jurídica, o que não constitui fundamento de impugnação dos factos.
Pelo exposto, atento o incumprimento pelos ora apelantes dos ónus a que alude o artigo 640º/1 alínea b) do CPC, impõe-se a imediata rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, o que se determina.
*
III.3.2. Apreciação jurídica
Na presente acção, a autora peticiona que:
(i) se condenem os réus a celebrar o negócio definitivo no prazo máximo de 20 dias e nessa sequência a entregar a fracção objecto do mesmo à Autora livre de ónus e encargos;
(ii) a pagar uma indemnização à autora pela mora em que se encontram desde 30 de Junho de 2022 e até à celebração do contrato definitivo, calculada à taxa legal de juros sobre o montante do preço já recebido;
(iii) subsidiariamente, para o caso de a autora não conseguir manter as condições actuais do seu financiamento, serem os réus condenados na devolução a esta do sinal pago em dobro acrescido dos gastos acessórios ao processo de compra, acrescida de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Na sentença sob recurso foi decidido “julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência, condenar os réus a, no prazo máximo de 40 dias, celebrar com a autora o negócio definitivo de compra e venda pelo preço acordado de €125.000, mantendo-se sobre a autora a obrigação de notificar os mesmos para a data que vier a ser agendada, no mais se absolvendo o réu do peticionado.”
Insurgem-se os apelantes contra a sentença, esgrimindo, no essencial, que:
- o interesse dos réus em outorgar a venda do seu imóvel no prazo e pelo preço contratado é digno de protecção legal e não é nada abusivo, nem de má fé;
- era à autora que cabia (e continua a caber na decisão recorrida) a obrigação de marcar a escritura, o que não fez até ao momento.
- o tribunal não pode valorar a disponibilidade do réu para comparecer em reuniões, para conceder prazo e até para conceder um desconto como má fé e abuso de direito;
- os réus não eram obrigados a comparecerem em reuniões nem a reduzir o preço contratado;
- se a autora não conseguia obter o financiamento pretendido poderia e deveria ter revogado o contrato – o que nunca fez, nem formal nem informalmente
- Tratando-se nesta causa de um contrato-promessa de fracção autónoma em que está expressamente convencionado que qualquer alteração do contrato teria de revestir a forma escrita e ser assinada pelas partes, atento o disposto nos artigos 410 e 223 do Código Civil, nunca o tribunal recorrido poderia considerar que os réus tinham alterado o contrato no que diz respeito ao preço e ao prazo;
- Quanto à forma exigida para a declaração negocial o tribunal deveria sempre ter respeitado o disposto no artigo 35º do Código Civil que a sentença recorrida ignora;
- o réu concedeu à Autora um desconto de 500 euros na sequência de promessa verbal de que a escritura seria outorgada até 20 ou mesmo até 30 de Junho;
- a autora não cumpriu a condição que determinaria o Autor a conceder-lhe um desconto de 500 euros – marcação da escritura no curto prazo indicado;
- os réus enviaram à autora uma carta admonitória de rescisão para deixar clara a sua posição, sem prejuízo de se mostrarem disponíveis para a outorga da escritura com desconto de 500 euros se outorgada no curto prazo indicado;
- os réus não alteraram o contrato-promessa no sentido de permitir que a Autora marcasse a escritura para um ano mais tarde e pelo preço de €125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros);
- ao decidir nesse sentido a sentença recorrida é arbitrária e impõe aos réus uma obrigação que estes não assumiram, o que é ilegal e contrário ao Direito;
Concluem que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, no artigo 4º do Código de Processo Civil, nos artigos 35º, 223º, 236º, 264º, 394º, 442º, 410º e sobretudo o disposto no artigo 406º do Código Civil.
A questão a decidir prende-se, assim, com o não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a autora/ora apelada, enquanto promitente-compradora e os réus/ora apelantes, enquanto promitentes-vendedores, importando aferir se é imputável à A. ou aos RR. a não celebração do contrato prometido.
Vejamos os factos, com maior relevância para a decisão, dados como provados na sentença recorrida (sendo cada facto antecedido da respectiva numeração constante da sentença):
5. Com data de 05-04-2022 foi celebrado entre Autora e Réus o contrato a que os mesmos denominaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda, constante de fls 21 v. e ss, e que se dá por integralmente reproduzido no qual se estabeleceram as seguintes cláusulas:
“(…)
2.ª (Preço)
Pelo presente contrato o Primeiro contraente promete vender, no estado atual, livre de ónus e encargos ou outras responsabilidades, ao segundo contraente, a fracção autónoma acima identificada e esta promete comprar pelo preço de €126.000,00.
3.ª (Pagamento)
O preço global acordado será pago pela segunda contraente da seguinte forma e tempo:
a) A quantia de €126.000,00 através de transferência bancária efectuada por débito da conta com o IBAN… para contrapartida de crédito na conta com o IBAN.., no dia da assinatura do contrato-promessa, a título de sinal e princípio de pagamento, valor esse que os primeiros contraentes declaram já receber e dá a competente quitação após boa cobrança;
b) A quantia remanescente em dívida no montante de €113.400,00 será integralmente paga pela segunda contraente no ato da assinatura do título definitivo de compra e venda, através de cheque visado ou cheque bancário.
c) Considerando que a promitente compradora necessita de financiamento bancário para a aquisição do imóvel objecto do presente contrato promessa, é-lhe reconhecido o direito de revogar o mesmo no caso de o banco não vir a conceder à promitente compradora financiamento bancário necessário para a compra do imóvel.
d) Para o válido e eficaz exercício do direito de revogação estipulado no número anterior a promitente compradora deverá comunicar essa intenção aos promitentes vendedores até 20 dias a contar da presente data, através de carta registada com aviso de recepção que deverá incluir o comprovativo de avaliação insuficiente ou da recusa do financiamento.
e) Recebida a comunicação referida no anterior, os promitentes vendedores ficam obrigados a devolver à promitente compradora em singelo e no prazo máximo de 5 dias, todas as quantias que haja recebido a título de sinal e reforços de sinal (12.600,00 euros).
4.ª (Contrato Definitivo)
1. A marcação do título definitivo de compra e venda fica a cargo da segunda contraente devendo ser celebrado no prazo máximo de 60 dias, a contar da data da assinatura do presente contrato, no concelho do imóvel m causa ou local acordado pelas partes.
2. Para os efeitos do número anterior a segunda contraente, de quem depende a marcação do título definitivo de compra e venda, compromete-se a comunicar aos primeiros contraentes, a data, hora e local da celebração do referido título definitivo de compra e venda com a antecedência mínima de 15 dias úteis.
3. Os primeiros contraentes obrigam-se a fornecer á segunda contraente, após solicitação desta, todos os documentos relativos ao imóvel objecto do presente contrato, que se mostrem necessários para instrução da outorga do título definitivo de compra e venda do referido imóvel.
6.ª (Cláusula Resolutiva – Financiamento)
1. Caso não seja possível cumprir os prazos para a realização do contrato prometido por atraso na obtenção de documentos ou na conclusão do processo bancário por eventuais encerramentos das entidades publicas que impossibilitem a obtenção da documentação necessária para a realização do contrato prometido, bem como os atrasos das entidades bancárias responsáveis pelo crédito bancário pela mesma razão, não pode ser considerado incumprimento de qualquer das partes contraentes.
10.ª (Incumprimento)
4. Fica expressamente acordado entre os contraentes a faculdade de qualquer deles, em alternativa à resolução do presente contrato promessa comas consequências previstas na presente cláusula, requerer execução específica deste contrato, nos termos previstos no art.º 830.º do Código Civil.
6. No dia 05-04-2022 foi pago o sinal acordado de €12.600,00.
7. Em 2 de Maio de 2022 a Autora recebeu o resultado da avaliação do imóvel, atribuindo um valor de € 116 400,00 pelo que o valor que o BPI se disponibilizaria para financiar seria insuficiente para proceder ao pagamento do remanescente do preço.
8. Em face desta avaliação a Autora enviou ao Réu e à imobiliária, em 04-05-2022 o email constante de fls. 34, que aqui se dá por integralmente reproduzido, condicionando à abertura dos Réus a possibilidade de pedir a realização de uma nova avaliação.
9. Em 10 de Maio de 2022 marcou-se uma reunião entre todos os intervenientes em que, pese embora o tempo já decorrido, a Autora reiterou a sua vontade de adquirir o imóvel objecto do contrato-promessa e o Réu marido a vender o mesmo.
10. A Autora dispôs-se a solicitar avaliação a um outro banco, caso os Réus dessem anuência ao início de novo processo de financiamento, visto que naquela data já resultava inviável o cumprimento do prazo de 60 dias para celebração do contrato de compra e venda.
11. Mediante a concordância dos Réus, a Autora iniciou novo processo de financiamento desta feita junto do Novo Banco.
12. Em 17 de Maio de 2022 foi realizada a avaliação do imóvel pelo Novo Banco.
13. Em 24 de Maio de 2022 a Autora tomou conhecimento do resultado da avaliação que era insuficiente para suportar o remanescente do preço, na medida em que o pagamento do empréstimo para obras estava dependente de vistorias a efectuar.
14. Pelo que a entrega dos montantes relacionados com o crédito de obras seriam por reembolso, depois das mesmas efectuadas, e não antes do início das mesmas.
15. A autora solicitou reapreciação por parte dos avaliadores tendo sido informada em 01-06-2022 que o valor financiado para a aquisição era de 106.200,00 e o valor financiado para obras de €15.000,00.
16. Em 02-06-2022 o Novo Banco confirmou que apenas disponibilizaria no acto da compra €106.200,00 e €15.000,00 para obras nas condições referida em 14.
17. Em face da nova avaliação foi solicitada nova reunião com os Réus e a imobiliária, a qual ocorreu em 6 de Junho de 2022, estando presentes a Autora, o seu namorado, o Réu B e os proprietários da imobiliária.
18. Nessa reunião a Autora deu nota de que poderia angariar a curto prazo o montante de €3.600,00, pelo que, por forma a viabilizar o negócio a imobiliária baixou €500,00 na comissão a receber, tendo o Réu procedido de igual forma baixando €500,00, realizando-se assim o contrato pelo preço de €125.000,00.
19. Restando por assegurar o montante de €2.300,00 ficou acordada a realização de uma nova reunião no dia 20-06-2022.
20. Na reunião realizada em 6 de Junho de 2022 o Réu B deu nota de que havia enviado, via CTT, uma notificação, por precaução em razão dos prazos contratuais.
21. A Autora recebeu em 7 de Junho de 2022 a referida missiva, datada de 1 de Junho, enviada pelo Réu na qual o mesmo referia que:
“Exma. Sra.
Reportando-nos ao Contrato promessa compra e venda da fracção autónoma destinada a habitação, designada pela letra M, que constitui o 3.º andar frente do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Amadora, na Praceta … n.º …, Damaia (…)
Não tendo sido accionado o vosso direito de revogação nos termos estipulados nas als. c) e d) da cláusula 3.ª do CPCV, o contrato e compra e venda deveria ser celebrado no prazo de 60 dias, após a assinatura do CPCV, ou seja até ao dia 6 de Junho de 2022, competindo a V.ª Ex.ª proceder à sua marcação com uma antecedência mínima de 15 dias uteis (…).
Tendo em conta que não recebemos até à presente data tal comunicação, nem é já possível cumprimento desses prazos contratualmente previstos, mas apelando ainda ao mecanismo previsto no n.º 1 da cláusula 10.ª do CPCV, vimos interpelar V.ª Ex.ª para proceder à marcação do título definitivo de compra e venda até ao termo do prazo contratualmente fixado para a sua celebração ou, no limite, até ao 15.º dia posterior, isto é, até ao dia 20 de Junho de 2022.
Findo tal prazo sem que o título definitivo de compra e venda se mostre celebrado, consideraremos o CPCV definitivamente incumprido por causa imputável a V.ª Ex.ª , com as consequências estabelecidas no n.º 3 da cláusula 10.ª do CPCV, o que expressamente se invoca desde já para todos os efeitos legais e contratuais. (…)”.
22. A essa comunicação respondeu a Autora por email e carta registada com aviso de recepção nos termos constantes do email de fls. 38 e ss., que aqui se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte teor:
“Exmos. Srs.
Dou nota da vossa comunicação que refiro acima e cujo conteúdo muito me surpreendeu, por referir uma versão dos factos que sabem não corresponder à verdade, numa atitude que prefiro interpretar (por pensar que ambas as partes se mantêm de boa fé) como uma mera cautela.
Desde logo, como sabem, e consta do contrato promessa de compra e venda, a obtenção da minha parte de crédito bancário que cubra a diferença entre o sinal que paguei – (…) – e o preço total do apartamento prometido vender, sempre foi condição essencial para a celebração do contrato prometido.
Sucede que, como também sabem, numa primeira avaliação o Banco nem sequer entendeu que o apartamento valeria o preço total do contrato, e numa segunda, inteiramente custeada por mim, em face do interesse na manutenção do negócio, tal avaliação foi muito próximo do valor, o que significa a recusa de financiamento da totalidade do valor em falta para o preço total.
Por isso mesmo, e cumprindo integralmente os prazos contratuais, dei nota esse  facto tanto a vós como `imobiliária que vos assessoria e foi agendada nova reunião, que teve lugar exactamente no dia 6 de Junho passado (antes de sequer recebera comunicação a que agora sou forçada a responder), para tentar ultrapassar uma situação que, a manter-se (refiro-me à recusa de financiamento do preço em falta) implicará a resolução do contrato e a devolução do sinal já pago, que parece-me que nenhuma das partes pretende.
Por isso mesmo ocorreu a reunião com todas as partes no dia 6 de Junho de 2022, em que foi agendada nova reunião para o dia 20 de Junho de 2022 exatamente porque mantendo-se a situação actual a cláusula 3.ª do contrato implica, não o que referem, mas a resolução do contrato com a devolução do sinal, o que não é pretendido, por ora, por nenhuma das partes.
(…) Assim, reitero a minha intenção de cumprir o contrato bem como a impossibilidade objectiva, e sem culpa minha, e que conheciam antes de 1 de Junho de 2022, para o agendamento da escritura definitiva no prazo que pretendem impor.
Assim sendo, e porque sempre actuei de boa fé, e, mesmo agora, quero presumir o mesmo da vossa parte, aguardo que confirmem a reunião agendada (…)
No entanto não posso deixar de reiterar que, caso mantenham posição, com base em factos falsos, que me transmitiram por escrito, irei até às ultimas consequências civis ou penais, para ser ressarcida de todos os prejuízos que a situação já me causou e causará e usarei todos os meios ao meu dispor para o fazer, o que, estou certa, não será necessário.
(…).”
23. Em 14 de Junho de 2022 a Autora recebeu informação do Novo Banco quanto aos elementos necessários para agendar a escritura definitiva, ficando o seu agendamento para o dia 20-06-2022 condicionado ao envio da documentação solicitada pelo Banco, sob pena de necessidade de adiamento da mesma.
24. Nesse mesmo dia a Autora reencaminhou para a imobiliária e para o Réu o email do Novo Banco solicitando a entrega dos documentos. Nesse mesmo email, constante de fls. 40v. e que aqui se dá por integralmente reproduzido a Autora refere “A considerar o crédito pessoal que solicitei e o salário de junho, nesse dia faltará somente 720€ dos € 6200. Assim peço encarecidamente aos proprietários em desconto. Apelo ao bom senso, diante da notificação enviada sei que estamos bem aconselhados juridicamente e é certo que teremos muitos mais custos do que os 720 com a acção judicial.
Aguardo resposta ao presente email com o vosso posicionamento.”
25. Em 19 de Junho de 2022 o Réu enviou à Autora e à imobiliária o email, que termina: “Perante todos os factos supra citados é evidente que o CPCV foi irremediável e definitivamente incumprido por V. Exa., o que é causa de resolução do mesmo, o que conforme nossa carta de 1 de Junho p.p. expressamente se invoca e declara.”
26. A Autora respondeu a tal comunicação no próprio dia, nos termos constantes do email de fls. 42, e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
27. No dia 20 de Junho de 2022 os Réus não compareceram na reunião agendada, tendo a Autora comunicado à imobiliária e ao Réu a disponibilidade para agendamento da escritura pelo valor acordado em 06-06-2022, isto é, €125.000,00.
Flui do acervo factual apurado que, em 5/4/22, entre a A. e os RR. foi celebrado um contrato promessa de compra e venda (art.º 410º/1 do CC), nos termos do qual aquela prometeu comprar e estes prometeram vender a fracção autónoma identificada no facto provado 2, pelo preço global de €126.000,00, tendo sido entregue pela promitente-compradora aos promitentes- vendedores, na data de assinatura do contrato promessa, a quantia de €12.600 a título de sinal, ficando a mesma obrigada ao pagamento do remanescente no acto da escritura pública de compra e venda.
Foi estipulado que tal contrato seria celebrado no prazo de 60 dias a contar da assinatura do contrato-promessa (cláusula 4ª, ponto 1), sendo também reconhecido à promitente compradora (autora/ora apelada) o direito de revogar o contrato-promessa, caso o banco não lhe viesse a conceder o financiamento bancário necessário para a compra do imóvel [cláusula 3ª alínea c)].
Mais ficou convencionado que a promitente compradora, de quem dependia a marcação da escritura de compra e venda, se comprometia a comunicar aos promitentes vendedores/ora apelantes a respectiva data, local e hora, com a antecedência mínima de 15 dias úteis (cláusula 4ª, pontos 1 e 2).
Por seu lado, ficou estabelecido que os promitentes-vendedores (ora apelantes) se obrigavam a fornecer à promitente-compradora, após solicitação desta, todos os documentos relativos ao imóvel, necessários para a outorga da escritura (cláusula 4ª ponto 3).
Sustentam os apelantes que a autora/apelada não cumpriu a obrigação que sobre ela impendia de marcar a escritura; que os réus enviaram à A. uma carta admonitória de rescisão para deixar clara a sua posição, sem prejuízo de se mostrarem disponíveis para a outorga da escritura com desconto de €500, se outorgada no prazo indicado.
Aduzem ainda que nunca o tribunal recorrido poderia considerar que os RR. tinham alterado o contrato no que diz respeito ao preço e ao prazo.
Apreciemos.
Atendendo ao objecto da acção definido pelo pedido e causa de pedir, importa apurar se a resolução do contrato-promessa declarada pelos RR. pode ser considerada válida e eficaz ou se, em caso negativo, o contrato-promessa se mantem válido e consequentemente pode proceder o pedido formulado pela autora visando a condenação dos réus a celebrar o contrato definitivo.
Conforme ficou a constar expressamente do contrato, a A. necessita(va) de financiamento bancário para a aquisição do imóvel, para o que diligenciou junto de várias entidades bancárias, sendo que o valor que o BPI se disponibilizou a financiar era insuficiente para o pagamento do remanescente do preço, informação de que a A. tomou conhecimento em 2/5/2022.
Na sequência de email enviado ao réu e imobiliária por este contratada, sobre a possibilidade de pedir uma nova avaliação, foi marcada reunião entre as partes, que se realizou em 10/5/22, na qual ambas reiteraram a vontade de realizar o negócio, tendo a A., com a concordância dos RR., iniciado novo processo de financiamento desta feita junto do Novo Banco, vindo a tomar conhecimento em 24/5/22 do resultado da avaliação, que era insuficiente para suportar o pagamento do remanescente do preço e após reapreciação por parte dos avaliadores, foi informada em 1/6/2022 de que o banco apenas disponibilizava para a aquisição €106.200 e para obras €15.000. Perante tal, foi realizada nova reunião entre as partes em 6/6/2022, tendo a A. dado nota de que poderia angariar os €3.600 a curto prazo, tendo a imobiliária baixado a sua comissão em €500 e o R. baixado €500, realizando-se assim o contrato pelo preço de €125.000, sendo acordada nova reunião para o dia 20/6/22.
Na reunião de 6/6/22 o R. deu nota de que havia enviado uma notificação (datada de 1/6/22) à A., por precaução em razão dos prazos contratuais – que a A. recebeu em 7/6/22 – interpelando a R. para proceder à marcação da escritura até ao termo do prazo contratualmente fixado para a sua celebração ou, no limite até ao 15 dia posterior, isto é até 20/6/22, referindo que findo tal prazo sem que a escritura seja celebrada, o contrato promessa seria considerado definitivamente incumprido por causa imputável à A., fazendo os RR. suas as quantias recebidas.
Ao que a A. respondeu, no mesmo dia, fazendo referência ao acordado na reunião de 6/6/22 e à nova reunião agendada para 20/6/22 e reiterando a sua intenção de cumprir o contrato e a impossibilidade objectiva, sem culpa da A., de realizar a escritura no prazo que os RR. pretendiam impor.
Após informação via mail do Novo Banco de 14/6/22 quanto aos elementos necessários para agendar a escritura para 20/6/22, a A. reencaminhou o email do banco para os RR. e imobiliária, referindo que apenas lhe faltava obter a quantia €720 e pedindo um desconto.
O R. respondeu em 19/6/22, enviando à A. email onde conclui que “é evidente que o CPCV foi irremediável e definitivamente incumprido por Vª Exª, o que é causa de resolução do mesmo, o que conforme nossa carta de 1 de Junho p.p. expressamente se invoca e declara.”
Os RR. não compareceram à reunião de 20/6/22, tendo a A. comunicado ao R. e imobiliária a disponibilidade para agendamento da escritura pelo valor acordado em 6/6/22 (€125.000), tendo a imobiliária nessa data enviado à A. informação sobre os vendedores e referindo estar a faltar apenas cópias dos seus cartões de cidadão.
Analisada esta factualidade, afigura-se-nos que não obstante a mora imputável à autora decorrente da não realização da escritura na data aprazada no contrato-promessa, não se mostram verificados os requisitos legais do incumprimento definitivo, enquanto causa de resolução contratual (cf. art.º 808º e 432º do CC), quer porque a alegada perda de interesse dos RR/ora apelantes na prestação é puramente subjectiva, quer porque não se verificou uma verdadeira interpelação admonitória.
Dispõe o art.º 808º nº 1 do CC que “se o credor em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.”
Note-se que a simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (art.º 804º/1 do CC), não conduzindo, só por si, à resolução do contrato.
No que respeita ao conceito de não cumprimento, pronunciou-se o acórdão do STJ de 28/3/23, P. 211/21.5T8GMR.G1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor, www.dgsi.pt:
“Como de forma muito clara e precisa se tem entendido nesta 1.ª Secção (acórdãos de 28-6-2011, processo n.º 7580/05. 2TBVNG.P1.S1) e de 28-01-2014 (processo n.º 954/05.OTCSNT.L1), o incumprimento definitivo (cuja eventual verificação haverá de relevar para efeitos da decisão a proferir) restringe-se a quatro situações: - Recusa de cumprimento (repudiation of a contract ou riffuto di adimpieri); Termo essencial (prazo fatal); Cláusula resolutiva expressa (impositiva de irretratibilidade); Interpelação admonitória, Perda de interesse do credor apreciada objetivamente.”
A violação do dever de prestar, por causa imputável ao devedor, pode revestir uma dupla forma (consoante a prestação se torna definitivamente impossível ou se atrasa): o não cumprimento definitivo ou falta de cumprimento e a mora.
Esta segunda hipótese – mora do devedor (que é um simples incumprimento temporário) – verifica-se quando, por causa que lhe seja imputável (i.e., que provenha de culpa sua), a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido (artigo 804º, n.º 2, do Código Civil). O devedor não executou a obrigação quando ela se vence, mas poderá vir a executá-la mais tarde, dado que a prestação na sua forma originária continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela. Dá-se, então, um simples retardamento, demora ou dilação no cumprimento da obrigação, e não uma falta definitiva de realização da prestação debitória.
A simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (n.º 1 do artigo 804º do Código Civil) e não lhe confere, em princípio, o direito à resolução do contrato.
No caso de incumprimento do contrato promessa de compra e venda, a nossa lei abre dois caminhos ao contraente não faltoso:
a) - a execução específica regulada no artigo 830.º do Código Civil, havendo simples mora;
b) - a resolução do contrato, havendo incumprimento definitivo, sendo que apenas este dá origem ao direito previsto no artigo 442º, n.º 2 do Código Civil.”
Em suma, a simples mora não confere ao credor o direito à resolução do contrato sem que proceda à sua conversão em incumprimento definitivo.
Para que se verifique causa justificativa da resolução não basta, portanto, que, havendo sido estipulado um prazo para a celebração do contrato prometido, não haja sido outorgado o contrato definitivo.
Verificada essa situação, sendo a prestação ainda possível, terá o contraente faltoso incorrido numa situação de mora ou atraso no cumprimento da prestação, conforme previsto nos art.ºs 804º,n.º2 e 805.º n.º2 do CC.
A aplicação das sanções previstas no art.º 442º CC pressupõe o incumprimento definitivo do contrato- promessa, não bastando a simples mora (neste sentido Cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª Ed, p.95, nota 2; Calvão da Silva, Sinal e contrato- promessa, 4ª Ed, p.85 ss; Brandão Proença, Do incumprimento do contrato-promessa bilateral, BFDC, 2ª Ed,p.125 ss; entre outros Ac STJ de 24/5/2022, Proc. Nº 3025/20.6T8FAR.E1.S1 e Ac STJ de 23/6/2022, Proc. Nº 831/19.8PVZ.P1.S1, www.dgsi.pt).
Acresce que a mora só se converte em incumprimento definitivo pela perda subsequente do interesse do credor ou pela interpelação admonitória (art. 808º nº 1 e 2 CC).
No que concerne à perda de interesse do accipiens terá de resultar, objectivamente, das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, não podendo resultar de simples mudança da vontade do credor, nem de qualquer circunstância que justifique a extinção do contrato aos olhos do credor. A perda do interesse há-de ser justificada segundo o critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas (vide Antunes Varela, in Rev. Leg. Jur., ano 118º, pág. 55).
Assim, tal como se extrai da letra do art.º 808º CC, a perda de interesse tem de resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância.
No caso dos autos, se é certo que a autora incorreu em mora, por não ter sido realizada o contrato definitivo no prazo de 60 dias estipulado no contrato-promessa, por outra banda, resulta do contrato em causa, devidamente interpretadas as declarações de ambos os contraentes, nos termos do art.º 236º do CC., que as partes não convencionaram um prazo fixo e absoluto para a celebração da escritura, tendo inclusivamente estabelecido as seguintes cláusulas:
“3ª
c) Considerando que a promitente compradora necessita de financiamento bancário para a aquisição do imóvel objecto do presente contrato promessa, é-lhe reconhecido o direito de revogar o mesmo no caso de o banco não vir a conceder à promitente compradora financiamento bancário necessário para a compra do imóvel.
d) Para o válido e eficaz exercício do direito de revogação estipulado no número anterior a promitente compradora deverá comunicar essa intenção aos promitentes vendedores até 20 dias a contar da presente data, através de carta registada com aviso de recepção que deverá incluir o comprovativo de avaliação insuficiente ou da recusa do financiamento.
e) Recebida a comunicação referida no anterior, os promitentes vendedores ficam obrigados a devolver à promitente compradora em singelo e no prazo máximo de 5 dias, todas as quantias que haja recebido a título de sinal e reforços de sinal (12.600,00 euros).
6.ª (Cláusula Resolutiva – Financiamento)
1. Caso não seja possível cumprir os prazos para a realização do contrato prometido por atraso na obtenção de documentos ou na conclusão do processo bancário por eventuais encerramentos das entidades publicas que impossibilitem a obtenção da documentação necessária para a realização do contrato prometido, bem como os atrasos das entidades bancárias responsáveis pelo crédito bancário pela mesma razão, não pode ser considerado incumprimento de qualquer das partes contraentes.”
Assim, resulta dos factos apurados que as partes acordaram condicionar a eficácia do negócio prometido a uma eventual recusa por parte da entidade bancária ao financiamento bancário pedido pela promitente-compradora.
A referida cláusula 6ª contém, em si mesma, uma condição resolutiva do contrato promessa, nos termos do art.º 270º do C. Civil, sendo que a condição resolutiva é aquela em que a verificação do facto condicionante determina a cessação da eficácia do negócio, tendo, por princípio, efeito retroactivo (neste sentido também A. Varela e P. Lima, CC Anotado, Vol. I, pág. 233).
No que respeita ao prazo, escreveu-se no acórdão do STJ de 28/1/2021, P. 1790/17.7T8VFX.L1.S1, www.dgsi.pt, relatora Maria da Graça Trigo, in www.dgsi.pt,:
«A fixação de uma data como termo final de celebração da escritura prometida pode ser entendida, em princípio, com um de dois sentidos:
a) ou como prazo limite, absoluto e improrrogável, cujo decurso implica ou determina o incumprimento definitivo do contrato e a sua imediata resolução ou caducidade;
b) ou como prazo relativo ou não essencial, apenas determinante de uma situação de mora, conferindo ao credor o direito de pedir o cumprimento do contrato ou uma indemnização moratória.
No caso de dúvida é de ter como verificada a hipótese referida em b) por estar mais de harmonia com a realidade ou a vontade hipotética das partes e ser a menos onerosa para o devedor - cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 4.6.98, Salvador da Costa, acessível em www.dgsi.pt/jtrl. A qualificação do prazo como fixo ou relativo depende da interpretação da vontade das partes e das suas declarações negociais - cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1.4 2003, Fernando Samões, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
BRANDÃO PROENÇA, Do incumprimento do contrato-promessa bilateral, 1996, p. 112, entende que, em regra o prazo essencial não é absolutamente fixo (não há por parte dos promitentes um interesse temporalmente delimitado), mas apenas relativamente fixo. No entanto, poderá concluir-se pela essencialidade absoluta (em regra, subjetiva ou pactícia) sempre que aos promitentes só interesse celebrar o contrato dentro do prazo fixado por razões jurídicas (necessidade de serem observados outros prazos), materiais (carência absoluta do bem em causa ou do preço em dívida) ou quando certas circunstâncias coenvolventes o imponham, v.g., caducidade do empréstimo bancário deferido se a escritura não for realizada dentro de certa data.
Cremos que o prazo estabelecido era relativo ou não essencial porquanto no contrato-promessa as partes não afirmaram nem direta nem tacitamente a essencialidade de tal prazo - cf. Artigo 236º do Código Civil. De facto, nem do texto do contrato-promessa nem da factualidade provada emerge qualquer circunstancialismo que sustente que o prazo constituía um termo essencial absoluto, razão pela qual se conclui que o prazo é relativamente fixo ou não essencial.
Estando-se perante um prazo relativo ou não essencial, uma vez ultrapassada a data inicialmente estabelecida, a celebração do contrato prometido fica sem prazo e - consoante decorre dos Artigos 777º nº1 e 805º, nº1 do Código Civil - dependente de interpelação por banda de qualquer das partes com indicação de dia , hora e local para esse efeito - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.10.2003, Oliveira Barros, e de 25.11.2003, Azevedo Ramos, acessíveis em www.dgsi.pt/jstj. Na verdade, ultrapassado o prazo acordado para a realização da escritura, o quadro que se verifica “(...) é o mesmo que também se apresenta quando as obrigações contratuais não têm originariamente qualquer prazo, inicial ou final, fixado, pois o seu vencimento depende de interpelação do respetivo credor, que, sendo também ou não devedor, terá de prestar-se à declaração negocial integradora do contrato, para que haja realmente vencimento da obrigação. /Nestes casos, se nenhuma das partes desencadear o vencimento das obrigações contratuais, estas manter-se-ão até que se esgote o prazo da prescrição ordinária. A lei não sentiu aqui a necessidade - que identificou na promessa unilateral - de prever qualquer medida preventiva da vinculação das partes por tão longo período de tempo, pois está ao alcance de qualquer delas fazer vencer a obrigação, através da interpelação.” - ANA PRATA, O Contrato-Promessa e o seu regime civil, Almedina, 1995, pp. 641/642.» - realces nossos
Transpondo estas considerações para o caso vertente, entendemos que estamos perante um prazo relativo ou não essencial, pelo que uma vez que ultrapassada a data inicialmente estabelecida, a celebração do contrato prometido ficou sem prazo e dependente de interpelação para desencadear o vencimento da obrigação.
Por conseguinte, não estando demonstrado que o prazo previsto no contrato promessa para a celebração da escritura fosse um prazo fixo, absoluto e essencial (cuja prova incumbia aos promitentes-vendedores que consideraram resolvido o contrato) o mero decurso daquele prazo, determinou apenas e só uma situação de mora da autora (a quem incumbia a marcação da data da escritura), sendo ainda possível a celebração do contrato prometido.
Foi, aliás, nesse pressuposto que as partes actuaram, designadamente a autora, diligenciando pela obtenção de financiamento junto dos bancos e realizando reuniões com o R., que nelas compareceu, tal como sucedeu na reunião de 6/6/22, tendo o R. demonstrado então interesse na celebração do contrato definitivo, pelo que a falta de comparência do mesmo na reunião de 20/6/22 surge em antinomia com o acordado entre as partes, numa altura em que estavam a ser reunidas as condições para a realização da escritura a breve trecho.
Para além da perda objectiva do interesse na prestação, em consequência da mora, o credor pode converter “a mora debitoris” em incumprimento definitivo fixando ao devedor um prazo razoável para cumprir, sob pena de se considerar não cumprida a obrigação.
É a chamada interpelação admonitória, declaração receptícia, que deve conter três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório de um prazo para o cumprimento; cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá como definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
No citado aresto do STJ de 28/3/23, P. 211/21.5T8GMR.G1.S1, pode ler-se no ponto I. do respectivo sumário:
I - Na jurisprudência deste Supremo Tribunal (Acórdãos de 02-11-2006, proc. n.º 06B3822, de 17-11-2015, proc. n.º 2545/10.5TVLSB.L1.S1 e de 10-12-2019, proc. n.º 386/13.7T2AND.P2.S1), tem-se entendido que o conteúdo da declaração intimativa do credor deve conter os seguintes elementos: 1) A intimação para o cumprimento; 2) A fixação de um termo perentório para o cumprimento; 3) A admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida, se não se verificar o cumprimento dentro do prazo fixado.
Como entendeu o tribunal de 1ª instância, não pode considerar-se como interpelação admonitória  a carta enviada pelo R. à A., datada de 1/6/22 (doc nº 13), recebida em 7/6/22, porquanto aí se não estabelecia um “prazo razoável”, já que fixava como data limite para a escritura o dia 20/6/22, o que não permitia sequer cumprir o prazo de notificação de 15 dias, previsto no contrato-promessa.
Acresce que, tal como o próprio R. reconheceu na reunião de 6/6/22, enviou a referida carta, por precaução em razão dos prazos contratuais, sendo certo que a data que indicou para celebrar a escritura coincidia com a data que havia sido acordada para nova reunião entre as partes.
A dita carta não contem, portanto, os requisitos da interpelação admonitória, para efeitos de converter a mora em incumprimento definitivo.
Do que vimos expondo, é forçoso concluir que não se verifica incumprimento definitivo do contrato-promessa, imputável à apelada, não sendo, por isso, válida nem eficaz a resolução operada pelo ora apelante.
Acresce que, como enfatizou o tribunal recorrido de modo profusamente fundamentado, a conduta dos RR., bem sabendo que a condição para a celebração do contrato não se havia concretizado e que ainda era possível, é susceptível de integrar o instituto do abuso de direito (art.º 334º do CC), por violação do princípio da boa-fé, que deve nortear a conduta dos contraentes na celebração, execução e cessação dos contratos (art.º 227º do C.C). Vide, a este propósito, o acórdão do STJ de 23/6/2022, P. 831/19.8T8PVZ.P1.S1, relator Fernando Baptista, www.dgsi.pt.
Face à invalidade e ineficácia da resolução contratual declarada pelo R., mantendo-se, pois, válido o contrato-promessa de compra e venda, resta extrair as devidas consequências, atendendo ao peticionado pela A.
Afirma o tribunal recorrido que “A Autora intenta a acção como sendo de execução específica” (…)
Não obstante, o pedido que formula a final não é compatível com o da execução específica, na medida em que não pede que o Tribunal se substitua à declaração dos promitentes vendedores, mas sim que os condene na celebração do negócio definitivo.”
 E ancorando-se nos princípios do dispositivo e do pedido (art.º 3º/1 CPC) e consequentemente nos limites da condenação impostos pelo art.º 609º/1 do CPC, conclui aquele tribunal que “Se a autora queria a execução específica teria de, a final, ter concluído e pedido ao Tribunal que proferisse declaração que se substituísse à declaração faltosa dos réus. Assim, quanto ao conteúdo, a sentença terá de ater-se aos limites definidos pela pretensão na acção, o que é considerado “núcleo irredutível” do princípio do dispositivo. É a essa pretensão assim definida que o tribunal está adstrito, não podendo decretar um outro efeito, alternativo, apesar de legalmente previsto no art.º 830º do CC.”
Assim e não tendo o tribunal de 1ª instância, no âmbito do dever de gestão processual (art.ºs 6º e 590º do CPC), dirigido à parte convite ao aperfeiçoamento no que respeita aos concretos pedidos formulados na petição inicial, são estes que configuram o objecto da acção e delimitam os poderes de cognição do tribunal.
Note-se que, de qualquer modo, a procedência da execução específica do contrato-promessa dependeria sempre do depósito da totalidade do preço, em observância do preceituado no art.º 830º/5 do CC (v. acórdão do TRP de 10/5/2021, P. 18625/18.6T8PRT-P1, relator Jorge Seabra, www.dgsi.pt).
Atendendo à pretensão principal da autora, a sentença  decidiu “julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e em consequência, condenar os réus a, no prazo máximo de 40 dias, celebrar com a autora o negócio definitivo de compra e venda pelo preço acordado de €125.000, mantendo-se sobre a autora a obrigação de notificar os mesmos para a data que vier a ser agendada, no mais se absolvendo o réu do peticionado.”
Nenhuma censura merece o decidido, que constitui a consequência lógica do entendimento que levou a considerar inválida a resolução do contrato-promessa. Não colhe, pois, o argumentário dos apelantes atinente à invocada arbitrariedade da sentença, porquanto é patente que a decisão se mostra devidamente fundamentada de facto e de direito.

No que concerne ao preço, o tribunal de 1ª instância atendeu ao montante acordado para a venda na reunião realizada em 6/6/2022 (cf. facto provado 18), ou seja, €125.000. Porém, a alteração do preço, enquanto elemento essencial do negócio em causa, teria de observar a forma escrita, sob pena de nulidade (cf. art.º 410º/2 e 875º do CC), o que, aliás, foi convencionado na cláusula 9ª nº 3 do contrato-promessa. Não tendo sido reduzida a escrito a alteração do preço fixado no contrato-promessa (€126.000), é nula a declaração verbal das partes emergente da reunião de 6/6/22, por força do disposto no art.º 221º/2 do C.C (aderindo-se, face ao texto e espírito da lei, à interpretação de Mota Pinto, subscrita por Manuel Pita - in Código Civil Anotado, coord. Ana Prata, Almedina, 2ª edição revista, pág. 306 – que refuta a interpretação restritiva sustentada por alguma doutrina quanto ao âmbito de aplicação do nº 2 do art.º 221º, segundo a qual o nº 2, tal como o nº 1 da mesma disposição, apenas se aplicaria às “estipulações verbais acessórias”).
A invalidade formal da alteração verbal do preço só poderia ser afastada caso se entendesse que os RR. haviam agido em abuso de direito, designadamente “venire contra factum proprium” (o exercente deixa entender – ou declara – ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa) ou mesmo “inalegabilidade formal”: (o exercente vem alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé – vide Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, 1989, páginas 372 a 383; e Tratado de Direito Civil, tomo V, 2.ª edição, Almedina, 2015, páginas 295 a 381). Porém, afigura-se-nos que os factos apurados não permitem concluir nesse sentido, porquanto, como se extrai do facto provado nº 18, os RR. apenas aceitaram reduzir o preço na perspectiva de celebrar o contrato prometido num prazo breve (o que não ocorreu).
 Nesta conformidade, concluímos que o contrato definitivo deverá ser celebrado pelo preço de €126.000, constante do contrato-promessa.
No mais, face ao objecto do recurso (e, de qualquer forma, atenta a falta de legitimidade e interesse dos apelantes para recorrer nessa parte), não cabe pronunciarmo-nos quanto ao segmento da decisão que absolveu os RR. dos outros pedidos formulados pela A. (condenação dos RR. no pagamento de indemnização à autora pela mora em que se encontram desde 30/6/22; e subsidiariamente, na condenação na devolução do sinal em dobro).
Da mesma forma, porque a questão não é objecto do presente recurso, está este tribunal ad quem impedido de alterar o prazo de 40 dias fixado pelo tribunal a quo para a celebração do contrato definitivo, apesar de exceder o prazo de 20 dias peticionado.
Em síntese conclusiva, tendo sido rejeitada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e não merecendo censura a análise jurídica da sentença (ainda que aduzindo-se neste acórdão outra linha de argumentação), impõe-se a sua confirmação, com excepção do preço, nos termos acima explanados.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida, com excepção do preço, devendo o contrato definitivo ser celebrado pelo preço de €126.000 (cento e vinte seis mil euros).
Custas pelos apelantes e apelada, na proporção de 3/4 para os apelantes e 1/4 para a apelada (artigo 527º do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 19 de Março de 2024
Ana Mónica Mendonça Pavão
Alexandra de Castro Rocha
Cristina Coelho