Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
357/23.5GACDV-B.L1-5
Relator: JOÃO ANTÓNIO FILIPE FERREIRA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
OPHVE
CONDIÇÕES LEGAIS NECESSÁRIAS
TEXTO DA DECISÃO
ATENUAÇÃO DAS EXIGÊNCIAS CAUTELARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade do relator)
I - Caso o tribunal que aplica a medida de coação de prisão preventiva pretenda, no futuro, aplicar a medida de coação de OPHVE, deve tal opção estar expressamente referida no texto da decisão, sem prejuízo de aí se ressalvar a situação de o arguido aguardar em prisão preventiva até as condições legais necessárias para a aplicação em concreto da OPHVE se encontrarem verificadas.
II - A mera indicação no final do despacho, a solicitar a realização de tais diligências, sem que tenha havido qualquer referência a tal medida no texto da decisão que culminou com a determinação da medida de coação de prisão preventiva, é meramente ordenadora das diligências a realizar no futuro, em nada contendo com a liberdade de reapreciação futura da medida de coação pelo Tribunal.
III – A elaboração do relatório para efeitos de ponderação da aplicação da OPHVE, por si só, não consubstancia uma atenuação das exigências cautelares anteriormente apreciadas pelo Tribunal, antes visa apenas verificar das existências das condições técnicas e materiais para a aplicação de tal medida de coação.
IV - Estando em causa os perigos de continuação da atividade criminosa e forte e grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a eventual diminuição dos rendimentos do arguido em face da aplicação da medida de coação de prisão preventiva, é manifestamente inócua para alterar as exigências cautelares que estiveram na base da decisão recorrida, a qual não merece qualquer reparo, uma vez que de forma fundamentada, adequada, proporcional e ponderada manteve a medida de coação de prisão preventiva.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - RELATÓRIO
1. O DESPACHO RECORRIDO
Por despacho proferido em 06.12.2023, no Processo n.º 357/23.5GACDV do Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 1, foi decidido:
“Nos presentes autos, o arguido AA, foi preso preventivamente em 07-10-2023, pela fortemente indiciada prática, em concurso efectivo, de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada, p e p pelos art.ºs 143º, 145º, nº 1, al. a), com referência ao art.º 132º, nº 1, al. h) e e) do Código Penal; de 1 (um) crime de ofensa à integridade física grave, p e p pelo art.º 143º, 144º, nº 1, al. c) e d), com referência ao art.º 132º, nº 1, al. h) e e) todos do Código Penal.
Não obstante, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por iniciativa do tribunal, determinou-se que fosse elaborado relatório pela DGRSP, visando eventual alteração da referida medida de coação, pela OPHVE.
Tal relatório consta de fls. 449 e ss., de se extrai entre o mais, que pese embora existam condições objectivas para a aplicação da OPHVE, pode haver dificuldade na contenção dos impulsos por parte do arguido em situações adversas, fazendo-se ainda menção a anterior intervenção do Serviço de Reinserção Social, em 2019.
A fls. 470, o MºPº nada teve a opor a que a prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito, fosse substituída pela OPHVE.
Cumpre apreciar e decidir:
Resultam fortemente indiciados os factos e qualificação jurídica constantes do despacho de apresentação, fundamentados nas provas carreadas para os autos e analisadas no despacho judicial que aplicou ao arguido a prisão preventiva. Considerou-se que o arguido revela uma personalidade impulsiva, descontrolada e agressiva, e o facto de ser agente de autoridade devia conferir-lhe ainda mais ponderação e responsabilidade, sendo grave o facto de num contexto de desavença entre vizinhos, que o arguido tenha utilizado a arma de serviço. Ademais, o arguido não se limitou a repelir qualquer agressão, procurou conflito, seguindo no encalço dos ofendidos quando estes procuravam dele fugir, refugiando-se no interior da propriedade.
Ouvidas as declarações do arguido, este, de facto, e conforme referido no despacho judicial, adoptou uma postura vitimizante e desculpabilizante, denotando grande rancor para com os ofendidos, alegando que foram os ofendidos que o provocaram e o agrediram, sendo que as fotos das agressões sofridas pelo arguido, constam de fls. 23 a 25, e não têm a gravidade que o arguido lhes imprime, ao invés, desvalorizou os ferimentos que causou nos ofendidos. Acresce que foi o arguido quem se deslocou até junto da residência dos ofendidos, na sequência de ter recebido um telefonema por parte do ofendido BB, foi munido da arma de serviço, factualidade admitida pelo arguido. No local dos factos, o arguido fez dois disparos, um para o ar e outro para o chão, perante os ofendidos BB e CC, e do filho destes com três anos de idade, que logo fugiram para casa, indo o arguido no seu encalço, impedindo-os de fechar o portão de casa, onde o arguido se introduziu e agrediu os ofendidos com golpes de enxada nos termos descritos no despacho judicial e conforme consta das fotos de fls. 19 a 21 e respectiva informação clinica. Após, confrontado com a presença de DD, pai de BB que veio em seu auxílio, o arguido fez cinco disparos a curta distância que atingiram as pernas e o braço de DD, de 65 anos de idade.
Assim, entendo, tal como se considerou em sede de despacho judicial que aplicou ao arguido a prisão preventiva, que os factos imputados ao arguido são muito graves, tanto mais que foram praticados por agente de autoridade que tinha o dever acrescido de não cometer crimes, com utilização da arma de serviço, o que faz concluir que o arguido não tem qualquer ressonância critica do desvalor da sua conduta, o que está plasmado nas declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório judicial, só alguém muito impulsivo e muito violento é capaz de praticar tais actos, os quais foram premeditados daí que o arguido se encontrasse munido da arma de serviço, sabendo ele que se iria encontrar com os ofendidos e que haveria confronto, o que denota também algum sentimento de impunidade.
Verificam-se todos os perigos enunciados no despacho judicial proferido em sede de primeiro interrogatório judicial que se dão por reproduzidos, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas no local onde os factos ocorreram, tais factos são sem dúvida causadores de sentimento de insegurança sobretudo junto da população rural onde os factos ocorreram, pelo que entendo que a medida de coação de OPHVE não salvaguarda as necessidades cautelares que o caso demanda, o que aliado a uma personalidade violenta e impulsiva que caraterizou o arguido, ao número de vitimas e à violência dos factos, torna impossível e inviável que o arguido fique sujeito a OPHVE.
Face ao exposto, determino que o arguido AA, continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva (arts. 191º, 192º, 193º, 196º, 202º, nº 1 al a), 204º al. C do CPP).
Notifique e comunique.”
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2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu do despacho que manteve o seu estatuto coativo, apresentando a sua motivação, extraindo as seguintes conclusões:
• O Arguido encontra-se sujeito à medida de coação Prisão preventiva desde 7.10.2023.
• No Despacho Judicial do 1.º Interrogatório de Arguido Detido, ficou consignado "Solicite com nota de muito urgente à DGRSP que elabore relatório e obtenção dos legais consentimentos para verificação dos pressupostos para alteração da medida de coação prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica e logo que se mostre junto vão os autos com vista ao Ministério Público."
• Tal averiguação teve como objectivo a alteração da medida de coação prisão preventiva para OPHVE, de acordo com os princípios da legalidade, excepcionalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade previstos nos artigos 29.º, n.º 1, 27.º, n.º 3, e 28.º, n.º 2, da CRP e artigos 191.º e 193.º do CPP.
• Do relatório elaborado pela DGRSP consta a existência de condições para a aplicação da OPHVE ao ora Recorrente, relatório que o Tribunal a quo não atentou nem sopesou - como se lhe impunha.
• O Ministério Público nada teve a opor a que a prisão preventiva a que o Arguido se encontra sujeito, fosse substituída pela OPHVE.
• A decisão recorrida assenta em pressupostos errados e procura justificar, à luz de um periculum libertatis numa mera repetição de uma suposta personalidade que não é a do Arguido e não é minimamente compaginável com o seu percurso de vida. Traz meros factos ocorridos em 2019, ao arrepio do artigo 204.º, do CPP, tudo para manter a medida de coação prisão preventiva, medida que deverá ser revogada e substituída por OPHVE.
• Não foi considerada a situação profissional do Arguido em toda a sua abrangência, designadamente as implicações e consequências irremediáveis, actualmente com 47 anos de idade e o risco de ficar numa situação precária.
• O Arguido pelo facto de se encontrar impedido do exercício de funções na sua entidade patronal, foram suspensos os pagamentos das correspondentes retribuições. Do seu trabalho dependem os seus dois filhos menores de idade e estudantes.
• No caso vertente não se verificam os requisitos constantes no artigo 204.º, do CPP. O Arguido tem trabalho, família e uma vida estável.
• O Arguido exerce funções na ... e tem residência no ....
• O despacho recorrido não observou o dever de fundamentação e violou o disposto no art.º 97, n.º 5, do CPP.
• O Recorrente não foi notificado do Douto Despacho prolatado com a referência n.º 159068019.
• A decisão proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada e substituída por outra, menos gravosa.
– Termos em que e nos mais de direito que como habitualmente V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser o presente recurso julgado procedente e, em consequência, ser revogado o Douto Despacho recorrido, por se verificarem todas as condições para a aplicação ao Arguido/Recorrente da medida de coação de prisão preventiva, sendo substituído por decisão que determine a alteração da medida de coação de prisão preventiva à qual se encontra sujeito, pela medida de coação que se encontra prevista no artigo 201º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal, obrigação de permanência na habitação, monitorizada através de vigilância electrónica, fazendo-se JUSTIÇA,
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O Ministério Público em 1.ª instância respondeu ao recurso, apresentando a sua motivação, extraindo as seguintes conclusões:
• O arguido alega que não se verificam os requisitos do art.º 204º do C.P.P., mas se assim fosse nenhuma medida de coação poderia ser aplicada que não fosse o TIR, pelo que acaba por admitir que algum deles têm de se verificar.
• Independentemente do determinado pelo Tribunal a quo em sede de 1º Interrogatório Judicial, o que é facto é que foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva e não a de OPHVE, ficando o arguido preso a aguardar que se reunissem os pressupostos para o efeito.
• Entendeu-se que só esta assegurava eficazmente as exigências cautelares que no momento se faziam sentir.
• As condições familiares e profissionais que o arguido ora alega já eram conhecidas do Tribunal no momento em que lhe aplicou a medida de coação de prisão preventiva e desde então nada se alterou.
•Embora o M. P. não se tenha oposto à alteração para OPHVE, tal não significa que do ponto de vista dos pressupostos em que assentou o despacho que a aplicou tivesse ocorrido qualquer alteração, o que de facto não aconteceu.
• Se houve questões que lhe deveriam ter sido feitas ao arguido pelo Tribunal e não foram, caberia à defesa fazê-las que, ao que parece também não as fez.
• A aplicação de medidas de coação obedece aos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade
• Refere-se no art.º 212, n.º 3 do C.P.P. que "Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coação, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução".
• Desde o momento em que foi aplicada a prisão preventiva até à decisão em crise nenhum facto novo foi trazido aos autos que fundamentasse uma alteração do estatuto coativo do arguindo.
• O despacho que aplica medidas de coação é imutável enquanto não se verificarem factos que atenuem as circunstâncias em que se fundou a sua aplicação, estando sujeito à condição rebus sic stantibus.
• A falta de fundamentação da decisão, que no caso não existe, não configura nulidade, mas sim irregularidade a arguir nos termos do art.º 123.º do C.P.P. o que o arguido não fez
• A exigência de fundamentação do despacho de revisão de medida é menor que a do despacho da sua aplicação, cuja violação configura nulidade, pelo que no caso não existe qualquer falta de fundamentação.
• Neste sentido veja-se o referido no Ac. TRP de 23.11.2009 (www.dgsi.pt).
• No relatório da DGRSP (fls. 49 e ss) conclui-se pela dificuldade do arguido em conter os impulsos em situações adversas, o que foi tido em conta na decisão recorrida.
• Não foi o Tribunal que não considerou "a situação profissional do Arguido em toda a sua abrangência, mas sim o próprio arguido ao praticar os factos que praticou, que sendo polícia não poderia ignorar as consequências dos seus atos, facto este bem revelador da sua impulsividade.
• Não colhe o argumento de que este estatuto coativo prejudica a situação profissional do arguido, pois ainda que estivesse em OPHVE também não poderia estar a trabalhar. Neste sentido veja o Ac. TRL de 20-04-2023 (www.dgsi.pt).
• Por todo o exposto, não merece censura o despacho recorrido.
• Razões pelas quais, nestes termos e nos demais de direito deve o recurso sobre o qual incide a presente resposta ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
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Admitido o recurso nos termos legais, neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador Geral Adjunto emitiu o seu parecer, defendendo a total improcedência do recurso, nos termos propostos na resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância.
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Notificado do parecer, veio o arguido recorrente alegar a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c) do Código de Processo Penal por falta de cumprimento do disposto no artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 33/2010, de 2.9.
No caso em apreço, o disposto no citado artigo 7.º, n.º 3, refere, “A decisão prevista no n.º 1 é sempre precedida de audição do Ministério Público, do arguido ou condenado.”
Todavia, ao invés do que refere o recorrente, a sua omissão não gera uma nulidade, uma vez que a norma não comina tal omissão nesses termos. Ora, no nosso regime processual, refere a regra prevista no artigo 118.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que “1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.”, sendo que “2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.”.
No caso em concreto, não havendo expressamente a cominação de tal omissão com a nulidade, a mesma apenas gera uma irregularidade, a qual teria de ser arguida, no prazo previsto no artigo 123.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o que manifestamente não ocorreu.
Nestes termos, a invocação de tal irregularidade nesta fase, é manifestamente extemporânea, pelo que se indefere liminarmente a mesma.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência para decisão do recurso, nos termos do disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do Código do Processo Penal.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
QUESTÕES A DECIDIR:
Dos poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
Conforme jurisprudência fixada, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, in D.R., série I-A, de 28/12/1995).
Atentas as conclusões de recurso, a questão a decidir circunscreve-se a três questões, a saber:
1. Da falta de notificação ao arguido do despacho proferido de manutenção da decisão recorrida;
2. Da falta de fundamentação da decisão recorrida;
3. Da alteração da medida de coação de prisão preventiva pela Obrigação de Permanência na Habitação, com Vigilância Eletrónica.
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FACTOS ASSENTES RELEVANTES PARA A DECISÃO DO RECURSO
Em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, de 07.10.2023, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:
“Tendo em conta a globalidade dos elementos probatórios já carreados para os autos, concretamente elencados no requerimento do Ministério Público para apresentação a 1.º interrogatório judicial, considera-se fortemente indiciada a seguinte factualidade:
1. O arguido, desde data não concretamente apurada, é …, estando colocado na … daquela … em ....
2. Desde data não concretamente apurada que o arguido vem mantendo uma relação de conflituosa com os seus vizinhos de sua mãe, BB, CC e DD, sita na ....
3. DD é pai de BB e genro de CC e residem na ....
4. Tais conflitos eram motivados por os ofendidos possuírem um canídeo que ladrava com muita frequência e perturbava o descanso do arguido.
5. Para além do referido, existia um conflito entre o arguido e os ofendidos relacionado com as bicas de descarga de águas pluviais de um terraço existente na residência das vítimas, BB e CC, que estavam direcionadas e a drenar as águas para o telhado da residência do arguido, provocando infiltrações na zona da adega contígua à residência.
6. Tais conflitos motivaram diversas discussões entre o arguido e os ofendidos.
7. No dia 06.10.2023, o arguido formulou o propósito de se deslocar à sua residência com a finalidade de quebrar as bicas de drenagem da água do terraço da casa dos ofendidos, seus vizinhos, o que assim fez.
8. Naquele dia, pelas 18h00, BB apercebeu-se dos danos provocados nas bicas de drenagem de água do terraço e sabendo que só o arguido o poderia ter feito, contactou-o para o telemóvel daquele questionando-o sobre os motivos de tal atitude e dizendo-lhe que não tinha o direito de danificar as estruturas de drenagem.
9. Naquele momento, o arguido retorquiu que iria pessoalmente deslocar-se ao local para resolverem o assunto.
10. Cerca de 10 a 15 minutos após o telefonema, o arguido chegou junto à residência de BB, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-GQ-...
11. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido encontrava-se na posse da sua arma de serviço, uma pistola de calibre 9mm, de marca Glock 19, mais precisamente colocada à cintura, na parte da frente, presa nas calças/cinto.
12. Naquele local, encontrava-se BB, CC e ainda um filho de ambos, com apenas 3 anos de idade.
13. Naquele momento, o arguido, desagrado por BB o ter questionado sobre o facto de ter quebrado as bicas da drenagem, formulou ali o propósito de atingir a integridade física daqueles.
14. Naquele momento, o arguido muniu-se da referida arma de fogo, e com a mesma e sem nada que o fizesse prever, efetuou um disparo para o ar e logo após um disparo para o solo.
15. De imediato, BB e CC, sentindo medo que o arguido os pudesse atingir ou ao filho de ambos com a referida arma, refugiram-se de imediato para o interior da propriedade de ambos, tendo BB tentado fechar o portão atrás de si.
16. Não obstante, o arguido decidiu continuar no encalço dos ofendidos.
17. Assim, o arguido, de modo não concretamente apurado impediu BB de fechar o portão e entrou pelo portão da propriedade daqueles, acendendo ao seu interior.
18. Naquele hiato, BB encontrava-se munido de uma enxada, com cerca de 120 cm de comprimento total, com vista a defender-se do comportamento do arguido.
19. Sucede que, o arguido, de modo não concretamente apurado, conseguiu retirar das mãos de BB a enxada que aquele envergava e, em ato contínuo, com a mesma desferiu um golpe na cabeça daquele, provocando a imediata queda do mesmo ao solo e provocando uma hemorragia na zona parietal esquerda.
20. Em ato contínuo, CC colocou-se entre o corpo de BB e o arguido, com vista a defender o marido e a evitar novas investidas do arguido.
21. Não obstante, o arguido continuou com o seu propósito, e munido da enxada desferiu um número ainda não concretamente apurado de golpes nas regiões dorsal à direita e lombar à esquerda e direita, sobre a região parietal esquerda da cabeça e ainda no dedo indicador da mão esquerda de CC, provocando uma hemorragia forte e ativa na lesão produzida na cabeça.
22. Naquele momento, DD ao ver o seu filho e a sua nora a serem agredidos pelo arguido, decidiu ir em socorro dos mesmos e afastar o arguido daqueles.
23. Para o efeito, com objeto que não foi possível apurar, desferiu alguns golpes na zona dorsal direita, ombro direito e membro superior direito do arguido.
24. Ali, o arguido, não obstante ainda ter na sua posse a enxada, decidiu munir-se da sua arma de serviço e com a mesma efetuou um número ainda não concretamente apurado de disparos, mas mais de cinco, na direção do corpo de DD que atingiram ambos os membros inferiores e o membro superior direito daquele.
25. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD apresentava ferimentos perfuro contundentes, provocados por arma de fogo, no braço de direito – uma porta de entrada -, na perna direita – 5 orifícios – e na perna esquerda várias portas de entrada e de saída.
26. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD sofreu fratura da diáfise do fémur da perna esquerda, bem assim como laceração de vasos sanguíneos existentes em ambos os membros inferiores, colocando em perigo a vida deste.
27. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, DD teve necessidade de receber de imediato assistência médica e ser sujeito a intervenção cirúrgica no ... em Lisboa, encontrando-se, ainda, internado face à gravidade das lesões.
28. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB e CC, para além de terem sofrido dores, foram transportados para o ..., onde ainda se mantêm internados sob observação, face às lesões de natureza contundente com hemorragia que ambos apresentam na cabeça.
29. O arguido agiu a descoberto de qualquer motivo, com o propósito concretizado de atingir a integridade física de BB, CC e DD, molestando o corpo e saúde daqueles o que conseguiu.
30. O arguido agiu com o intuito de atingir a integridade física de BB e CC, não ignorando que ao usar um instrumento de natureza corto-contundente – enxada – que o mesmo não só pela sua aptidão e capacidade lesiva e pela surpresa que permite a menor defensabilidade perante o seu uso, era idóneo a provocar lesões corporais graves e profundas, quando utilizado contra a integridade física dos ofendidos e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos, o que quis e conseguiu.
31. O arguido bem sabia que os disparos com a arma de fogo que efetuou nas circunstâncias supra descritas, na distância e direção de DD era adequado e idóneo a provocar no corpo daquele as lesões sofridas e que as mesmas punham, como puseram em perigo a vida de DD, e não obstante não se absteve de o fazer.
32. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punível pela lei como crime.
Encontram-se ainda indiciados os seguintes factos:
33. O arguido não tem antecedentes criminais.
34. O arguido reside no ... com os filhos com 16 e 11 anos de idade, ambos estudantes, um deles em guarda alternada com a mãe.
35. A mãe dos filhos reside também no ... a cerca de 1km de casa do arguido.
36. O arguido trabalha como ... na ...das 9h00 às 17h00.
37. Presta apoio à mãe, com 80 anos que reside sozinha, designadamente com a medicação, deslocando-se a casa da mesma com frequência diária.
38. Aufere mensalmente a quantia líquida de cerca de €1.300,00.
39. Tem de habilitações literárias o 12.º ano.
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Os factos indiciados são suscetíveis de integrar a prática, pelo arguido, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelos artigos 143.º, 145.º, n.º 1, alíneas a), com referência ao artigo 132.º, n.º 1, alíneas h) e e), do Código Penal na pessoa de BB; Um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelos artigos 143.º, 145.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 132.º, n.º 1, alíneas h) e e), do Código Penal na pessoa de CC, e um crime de ofensa à integridade física grave previsto e punido pelos artigos 143.º, 144.º, n.º 1, alínea c) e d) do Código Penal com referência ao artigo 132.º, n.º 1, alíneas h) e e), do Código Penal na pessoa de DD.
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Os factos indiciados encontram-se sustentados pelos seguintes elementos probatórios:
Documental:
«Auto de Notícia, fls. 3-5;
«Termo de entrega, fls. 6;
«Mandado de detenção, fls. 8-10;
«Auto de diligências iniciais, fls. 12-27;
«Auto de Apreensão, fls. 28-29;
«Relatórios de urgência, fls. 30-32.
«Certificado de Registo Criminal, fls. 75.
Por Declarações:
«Autos de interrogatório do arguido, fls. 51-54 e declarações prestadas no dia de hoje.
Testemunhal:
«CC, melhor id. a fls. 33-40;
«BB, melhor id. a fls. 42-47;
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A forte indiciação da factualidade supra descrita resulta da prova já recolhida nos autos, elencada supra.
O arguido, que decidiu prestar declarações, confrontado com os factos constantes do despacho de apresentação, começou por negar genericamente a prática dos mesmos, dizendo “o que está é falso”.
Não obstante, conforme foi descrevendo os factos, acabou por admitir grande parte da factualidade que lhe vinha imputada, designadamente e desde logo o circunstancialismo de tempo e espaço, os golpes de enxada que desferiu nos ofendidos BB e CC, os tiros que disparou para o ar e para o solo e os 5 ou 6 tiros (como referiu) que desferiu contra o ofendido DD. Mais admitiu que após ter disparado os dois primeiros tiros, no ar e no solo, os ofendidos BB e CC se tentaram refugiar no interior da sua propriedade, tendo o arguido seguido no seu encalço. Admitiu também a presença da criança, embora referindo que não a viu desde o início.
Tendo também sido confrontado com as várias fotografias juntas aos autos, designadamente as juntas a fls. 13 a 21, identificou-as como retratando o local, os indivíduos e os objetos existentes no local, o mesmo ocorrendo com as fotografias de fls. 23 a 25.
Ademais o arguido contextualizou os factos, integrando-os num conflito “de vizinhança” já iniciado em ... relacionado com um cão e com o escoamento de águas. Tal conflito latente, apreciado à luz das regras da experiência comum, conferiram ao arguido, na sua perspetiva, causa suficiente para atuar como atuou.
O arguido adotou uma postura vitimizante e desculpabilizante, aduzindo ter sido provocado e agredido, demonstrando ao longo das suas declarações muita raiva para com os ofendidos, imputando-lhes responsabilidade pelo ocorrido.
Certo é que a versão trazida pelos ofendidos afigurou-se credível porque em consonância com toda a vasta prova documental constante dos autos, resultando as consequências dos atos também apuradas em virtude dos relatórios de urgência junto aos mesmos.
A conjugação das declarações do arguido, com toda a já vasta prova constante dos autos não deixou qualquer margem para dúvida quanto à verificação de uma forte indiciação da sua concreta verificação.
Vejamos então se se verifica no caso concreto algum ou alguns dos perigos enunciados no artigo 204.º do Código de Processo Penal.
Desde logo afigura-se-nos que se verifica de forma muito acentuada um perigo de continuação da atividade criminosa. Veja-se que tratamos de relações de vizinhança, sendo os ofendidos vizinhos da mãe do arguido, deslocando-se o arguido diariamente a casa de sua mãe, como o próprio referiu.
Por outro lado, a forma como o arguido relatou os factos e descreveu os ofendidos e as suas condutas denunciam a existência de muita raiva e alguma indiferença às lesões que lhes causou.
O arguido, na prática dos factos, veio a revelar uma personalidade impulsiva, descontrolada e agressiva, contrária ao dever ser jurídico e indiferente a bens jurídicos como a integridade física de terceiros, sendo que o facto de ser um agente de autoridade devia conferir-lhe ainda mais ponderação e responsabilidade, sendo grave o facto de neste contexto não se ter coibido de fazer utilização da arma de fogo que utiliza no âmbito das suas funções.
A intensidade da sua atuação não é também despicienda. O arguido não se limitou a repelir qualquer eventual agressão. O arguido procurou o conflito, seguindo no encalço nos ofendidos quando estes procuravam dele fugir, refugiando-se no interior na propriedade.
Quanto ao ofendido DD, sendo certo que este correndo em auxílio do seu filho atingiu o arguido, certo é que a utilização da arma de fogo, à distância a que estava do ofendido, direcionada ao corpo do mesmo, atingindo as pernas e o braço daquele, foi absolutamente desproporcional, revelando uma grande intensidade, tratando-se de 5 ou 6 tiros como o próprio arguido referiu.
O conflito de vizinhança está, latente, longe de estar atenuado ou findo.
Por todas estas razões, estamos em crer que factos como os verificados possam voltar a ocorrer, intensificando-se em quantidade e gravidade, podendo levar à perda da vida de alguém, sendo premente a aplicação de uma medida de coação que dê resposta a este perigo.
Acresce que estes factos geram, como geraram, forte perturbação da ordem e tranquilidade públicas, sendo factos graves, dirigidos contra bens jurídicos essenciais, praticados no exterior, num meio pequeno, causando na comunidade um sentimento de repulsa e insegurança, até porque praticados por pessoa que profissionalmente tem como missão potenciar sentimentos de segurança na comunidade, e não o contrário.
A energia criminosa revelada nos factos de que o arguido vem indiciado a premência do perigo de continuação da atividade criminosa e da perturbação da ordem pública, a ausência de sentido crítico quanto ao desvalor da sua conduta e indiferença às pessoas das vítimas demandam a aplicação de uma medida que o prive da liberdade.
Na verdade, uma medida que apenas impeça os contactos do arguido com os ofendidos ou impeça a sua deslocação à localidade onde os factos ocorreram no presente momento e atento o estado latente do conflito e os sentimentos demonstrados pelo arguido na prática dos factos e nas suas declarações, não garantem suficientemente que o arguido não reincida na prática dos mesmos.
Todos os requisitos de aplicação desta medida de coação se encontram preenchidos, sendo qualquer outra medida por ora insuficiente (artigo 202.º, n.º 1, als. a) e b) e artigo 1.º, al. j) do Código de Processo Penal).
Perante a gravidade do crime indiciado e os perigos ora elencados, que a integração profissional e social do arguido não são de molde a atenuar, afigura-se ao Tribunal que só a medida de coação de prisão preventiva se mostra, por ora, adequada a remover os mencionados perigos, sendo ainda proporcional à pena em que se perspetiva que venha a ser condenado (artigos 191.º a 193.º, 196.º, 204.º, alíneas b) e c) e 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código de Processo Penal).
Assim, ao abrigo das disposições acima citadas, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:
a) TIR prestado;
b) Prisão preventiva.
Notifique.
Passe mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional. Cumpra o disposto no artigo 194.º, n.º 10 do Código de Processo Penal. Remeta ao Ministério Público para posterior tramitação.
Solicite com nota de muito urgente à DGRSP que elabore relatório e obtenção dos legais consentimentos para verificação dos pressupostos para alteração da medida de coação prisão preventiva para obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância eletrónica e logo que se mostre junto vão os autos com vista ao Ministério Público.”
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Em ........2023, foi elaborado pela ..., relatório para aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada com vigilância eletrónica (OPHVE), com o seguinte teor [Transcrição Parcial]:
“O arguido pretende regressar ao seu agregado, composto pelo próprio, pelo filho mais velho, fruto do seu anterior casamento e pela namorada, onde beneficia de um enquadramento organizado e coeso, em que a dinâmica familiar é afetiva e gratificante.
Caso venha a ser autorizada a OPHVE, a progenitora irá integrar também o agregado dada a impossibilidade de AA se deslocar diariamente à habitação desta que reside sozinha e apresenta já algumas limitações, ainda que fisicamente autónoma. É de referir que a progenitora do arguido é vizinha das vítimas do presente processo.
Não foram sinalizados episódios de desadequação comportamental do arguido em contexto familiar, nem a existência de dinâmicas relacionais conflituosas entre os seus elementos.
Neste sentido, não existem inconvenientes à sua permanência na habitação durante o período em que possa vir a decorrer a medida em análise, com vista ao cumprimento das regras do confinamento.
A habitação, de tipologia T3, dispõe de condições de habitabilidade favoráveis e das infraestruturas logísticas necessárias às instalações dos meios de vigilância eletrónica, nomeadamente a existência de contrato de abastecimento de eletricidade. Trata-se de um apartamento arrendado inserido em meio urbano.
Relativamente à zona de residência, não se preveem constrangimentos à permanência do arguido, distando a sua morada cerca de 16Km da habitação das vítimas.
Iniciou a frequência escolar na idade própria tendo reprovado por três vezes no Ensino Secundário.
Frequentou o 1.º ano do curso de Direito, do qual desistiu. Aos 23 anos, iniciou o curso de Formação Inicial na ..., sendo agente desta ... há cerca de 23 anos. Durante nove anos exerceu essa atividade profissional em Lisboa, tendo desempenhado funções em diversos departamentos. Desde há cerca de catorze anos, está afeto à ....
À data da sua detenção encontrava-se colocado na ..., exercendo funções nos serviços administrativos, secretaria de trânsito, por razões da assistência aos filhos.
Atividades a desenvolver no exterior, locais e horários
Não se prevê o exercício de qualquer atividade no exterior.
Situação económica
Valor dos rendimentos líquidos do arguido/a – 1,444.38€/mês.
A sustentabilidade do arguido será garantida pelo seu salário mensal até decisão do processo disciplinar em curso, contudo, os rendimentos da progenitora na ordem dos 2.000€/mês e da namorada, montante não quantificado, permitem a satisfação das necessidades básicas do arguido em caso de necessidade.
AA revela ansiedade perante a situação em que se encontra. Tem beneficiado de apoio por parte dos serviços clínicos com consultas esporádicas de ... e de..., para se conseguir manter estabilizado em termos psico-emocionais. Não toma qualquer medicação.
AA é descrito pelos familiares como um indivíduo adequado em contexto familiar, mantendo com a progenitora fortes laços de proximidade e afetividade, assim como, com os seus filhos, fruto do seu anterior casamento.
Houve uma anterior intervenção do Serviço de Reinserção Social para eventual suspensão provisória do processo, no ano de 2019, no âmbito do processo 141/19.GABBR, indiciado por um crime de violência doméstica.
No estabelecimento prisional AA tem mantido um comportamento adequado, cumpre com as regras e mantem um relacionamento cordato com os demais; ocupa o seu quotidiano com leitura e exercício físico, no pátio e no ginásio.
O superior hierárquico de AA, referiu-nos que se trata de um bom profissional, correto no trato, e que estabelece relações interpessoais assertivas e isentas de conflitos.
Pese embora as fontes contactadas não referirem a existência de comportamentos desajustados, o atual processo e a anterior intervenção deste Serviço no âmbito de uma suspensão provisória do processo indiciado pela prática de factos que consubstanciavam um crime de violência doméstica, consideramos, salvo melhor opinião, poder haver alguma dificuldade na contenção dos impulsos por parte de AA em situações adversas.
Não foram referenciados quaisquer problemáticas aditivas.
Foram dados os consentimentos legais.
3. CONCLUSÃO
Da análise e avaliação dos itens anteriores, constata-se que o arguido reúne condições favoráveis ao nível habitacional e afetivo, para o cumprimento da medida em apreço pese embora a eventual dificuldade na contenção dos impulsos por parte de AA em situações adversas.
Se houver lugar a aplicação de vigilância eletrónica, à semelhança de múltiplas situações idênticas, estes serviços colocam à consideração do tribunal a possibilidade de a decisão estipular que, em caso de incumprimento grave, nomeadamente saída ilegítima do arguido da habitação em período de restrição, a equipa de vigilância eletrónica informe de imediato os serviços de ... competentes, visando a sua detenção e apresentação a juízo para os devidos efeitos.”
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Em 06.12.2023, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:
“Nos presentes autos, o arguido AA, foi preso preventivamente em 07-10-2023, pela fortemente indiciada prática, em concurso efectivo, de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física qualificada, p e p pelos arts. 143º, 145º, nº 1, al. a), com referência ao art.º 132º, nº 1, al. h) e e) do Código Penal; de 1 (um) crime de ofensa à integridade física grave, p e p pelo art.º 143º, 144º, nº 1, al. c) e d), com referência ao art.º 132º, nº 1, al. h) e e) todos do Código Penal.
Não obstante, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por iniciativa do tribunal, determinou-se que fosse elaborado relatório pela DGRSP, visando eventual alteração da referida medida de coação, pela OPHVE.
Tal relatório consta de fls. 449 e ss., de se extrai entre o mais, que pese embora existam condições objectivas para a aplicação da OPHVE, pode haver dificuldade na contenção dos impulsos por parte do arguido em situações adversas, fazendo-se ainda menção a anterior intervenção do Serviço de Reinserção Social, em 2019.
A fls. 470, o MºPº nada teve a opor a que a prisão preventiva a que o arguido se encontra sujeito, fosse substituída pela OPHVE.
Cumpre apreciar e decidir:
Resultam fortemente indiciados os factos e qualificação jurídica constantes do despacho de apresentação, fundamentados nas provas carreadas para os autos e analisadas no despacho judicial que aplicou ao arguido a prisão preventiva. Considerou-se que o arguido revela uma personalidade impulsiva, descontrolada e agressiva, e o facto de ser agente de autoridade devia conferir-lhe ainda mais ponderação e responsabilidade, sendo grave o facto de num contexto de desavença entre vizinhos, que o arguido tenha utilizado a arma de serviço. Ademais, o arguido não se limitou a repelir qualquer agressão, procurou conflito, seguindo no encalço dos ofendidos quando estes procuravam dele fugir, refugiando-se no interior da propriedade.
Ouvidas as declarações do arguido, este, de facto, e conforme referido no despacho judicial, adoptou uma postura vitimizante e desculpabilizante, denotando grande rancor para com os ofendidos, alegando que foram os ofendidos que o provocaram e o agrediram, sendo que as fotos das agressões sofridas pelo arguido, constam de fls. 23 a 25, e não têm a gravidade que o arguido lhes imprime, ao invés, desvalorizou os ferimentos que causou nos ofendidos. Acresce que foi o arguido quem se deslocou até junto da residência dos ofendidos, na sequência de ter recebido um telefonema por parte do ofendido BB, foi munido da arma de serviço, factualidade admitida pelo arguido. No local dos factos, o arguido fez dois disparos, um para o ar e outro para o chão, perante os ofendidos BB e CC, e do filho destes com três anos de idade, que logo fugiram para casa, indo o arguido no seu encalço, impedindo-os de fechar o portão de casa, onde o arguido se introduziu e agrediu os ofendidos com golpes de enxada nos termos descritos no despacho judicial e conforme consta das fotos de fls. 19 a 21 e respectiva informação clinica. Após, confrontado com a presença de DD, pai de BB que veio em seu auxílio, o arguido fez cinco disparos a curta distância que atingiram as pernas e o braço de DD, de 65 anos de idade.
Assim, entendo, tal como se considerou em sede de despacho judicial que aplicou ao arguido a prisão preventiva, que os factos imputados ao arguido são muito graves, tanto mais que foram praticados por agente de autoridade que tinha o dever acrescido de não cometer crimes, com utilização da arma de serviço, o que faz concluir que o arguido não tem qualquer ressonância critica do desvalor da sua conduta, o que está plasmado nas declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório judicial, só alguém muito impulsivo e muito violento é capaz de praticar tais actos, os quais foram premeditados daí que o arguido se encontrasse munido da arma de serviço, sabendo ele que se iria encontrar com os ofendidos e que haveria confronto, o que denota também algum sentimento de impunidade.
Verificam-se todos os perigos enunciados no despacho judicial proferido em sede de primeiro interrogatório judicial que se dão por reproduzidos, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas no local onde os factos ocorreram, tais factos são sem dúvida causadores de sentimento de insegurança sobretudo junto da população rural onde os factos ocorreram, pelo que entendo que a medida de coação de OPHVE não salvaguarda as necessidades cautelares que o caso demanda, o que aliado a uma personalidade violenta e impulsiva que caraterizou o arguido, ao número de vitimas e à violência dos factos, torna impossível e inviável que o arguido fique sujeito a OPHVE.
Face ao exposto, determino que o arguido AA, continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva (arts. 191º, 192º, 193º, 196º, 202º, nº 1 al a), 204º al. C do CPP).
Notifique e comunique.”
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III - APRECIAÇÃO DO RECURSO
Da falta de notificação do despacho recorrido:
No presente recurso, vem o recorrente alegar que não foi notificado do despacho recorrido (com a ref.ª 159068019).
Estando em causa uma decisão relativa à aplicação de medida de coação, a mesma terá de ser notificada ao arguido para além do seu defensor, conforme impõe o disposto no art.º 113.º, n.º 10 do Código de Processo Penal, contando-se o prazo de recurso a partir da data da última notificação.
No caso em apreço, não só o arguido ao recorrer da decisão recorrida demonstra ter tido conhecimento do teor da decisão recorrida, como resulta manifesto da consulta dos autos, que o arguido foi notificado do despacho recorrido através do Estabelecimento Prisional em 19.12.2023 (ref.ªs 159098451 e 14607230).
Nestes termos, improcede a alegação do recorrente.
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Da Falta de fundamentação da decisão recorrida:
No presente recurso, veio o recorrente, nas suas conclusões, alegar falta de fundamentação da decisão recorrida.
Alega o recorrente, que o despacho recorrido não observou o dever de fundamentação e violou o disposto no artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
Urge apreciar tal alegação.
Em primeiro lugar, tal vício a ocorrer, gera uma irregularidade, sanável nos termos do disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal. Com efeito, em matéria de invalidades, a lei processual penal rege-se pelo princípio da legalidade, segundo o qual “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”, sendo que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular” (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal). A falta de fundamentação das decisões, com exceção da sentença (alínea a) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, não se mostra cominada com a sanção da nulidade, razão pela qual constitui mera irregularidade. (neste sentido, vide Acórdão do STJ de 9.2.20212, ECLI:PT:STJ:2012:131.11.1YFLSB.68).
O artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal traduz a consagração legal da imposição constante do artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”.
Na densificação deste dever, tem sido entendido jurisprudencialmente que “o dever de fundamentação da decisão traduz-se em assumir uma síntese intelectualmente honesta e suficientemente expressiva do resultado do exame contraditório sobre as distintas fontes de prova.” (cfr. Acórdão do STJ de 8.1.2014, ECLI:PT:STJ:2014:7.10.0TELSB.L1.S1.C0)
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de processo penal”, III, pág. 289).
A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objetivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cfr. Michele Taruffo, «Note sulla garanzia costituzionale della motivazione», in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32).”.
O dever de fundamentação está cumprido quando da decisão se possa entender o processo lógico e racional de valoração da prova que conduziu a uma decisão, independentemente de se concordar ou não com a mesma.
Por fim, há que ter em atenção que no caso de uma decisão de reapreciação de uma medida de coação, atento o princípio rebus sic standibus, a mesma poderá ter uma fundamentação mais concisa, na estrita medida em que remeta, no demais, para a decisão que aplicou a referida medida de coação em reapreciação, reafirmando o seu sentido.
No caso em apreço, estando em causa uma decisão de reapreciação da medida de coação de prisão preventiva, aplicada aquando do primeiro interrogatório do arguido detido, é manifesto que a mesma está devidamente fundamentada, uma vez que o Tribunal analisa os pressupostos para a sua aplicação, referindo expressamente os fundamentos para a sua decisão de manutenção da medida de coação de prisão prevenetiva. Em bom rigor, o recorrente discorda da fundamentação constante da decisão, na medida em que manteve a decisão anterior. Ora, na sua essência, estamos perante uma mera discordância sobre o valor dos fundamentos invocados para estribar a decisão. Deste modo, a questão não se coloca no plano da falta ou insuficiência de fundamentação, mas na discussão da verificação ou não dos pressupostos para a manutenção da medida de coação de prisão preventiva, questão que infra se analisará.
Nestes termos, improcede, nesta parte, o recurso.
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Da alteração da medida de coação de prisão preventiva pela Obrigação de Permanência na Habitação, com Vigilância Eletrónica.
No presente recurso, o recorrente invoca a inadequação e desproporcionalidade da aplicação da medida de coação de prisão preventiva que lhe foi imposta, alegando que deveria ser substituída pela medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação, por Vigilância Eletrónica, assentando a sua posição em dois argumentos essenciais:
1. Aquando do primeiro interrogatório de arguido detido, o tribunal ao aplicar a medida de coação de prisão preventiva determinou que se solicitasse com nota de muito urgente à DGRSP que elaborasse relatório e os devidos consentimentos para alteração da medida de prisão preventiva pela medida de coação de OPHVE, dai resultando que com tal averiguação visava-se a alteração de tal medida de coação, logo que os respetivos pressupostos formais estivessem verificados.
2. O arguido está laboral, familiar e social integrado, sendo que a manutenção do seu estatuto coativo terá graves consequências na sua vida pessoal e familiar uma vez que se encontra privado do seu salário, correndo o risco de ficar numa situação precária, pela que a manutenção da medida de coação de prisão preventiva é desadequada, excessiva e desproporcional.
Atento os fundamentos invocados, é necessário, desde logo, afirmar que a manutenção da medida de coação de prisão preventiva decorreu, em abstrato, do cumprimento de um dever de controlo da legalidade, consubstanciado na obrigação de reexame das medidas de coação, sempre que o juiz entenda que as circunstâncias subjacentes à sua aplicação se alteraram de tal modo que as mesmas deixaram de ser as mais adequadas e proporcionais para obstar aos perigos enunciados no artigo 204.ºdo Código de Processo Penal (cf. artigo 213.º do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, o reexame das medidas de coação implicou a manutenção do estatuto coativo já existente à data. Nesta medida, é necessário analisar se as circunstâncias que estiveram na base da aplicação de tal medida de coação aquando do primeiro interrogatório de arguido detido se mantinham aquando da prolação do referido despacho de manutenção.
Com efeito, há que ter em conta que a reapreciação dos pressupostos das medidas de coação está sempre sujeita à cláusula rebus sic stantibus, a qual deve ser entendida no sentido estrito de que a anterior decisão que aplicou a medida de coação, “se mantém válida e deve permanecer imutável se, e enquanto, não ocorrerem circunstâncias de relevo que determinem a sua alteração”1. Como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/06/2020, (ECLI:PT:TRP:2020:251.18.1PAGDM.P1.03) “I - Quaisquer medidas de coação aplicadas no processo estão sujeitas a modificação em face das circunstâncias que em cada momento se verificam sobre a sua necessidade e adequação [condição rebus sic standibus - art.º 212º, n.ºs 1, b), e 3]. II - Não são imutáveis, mas a sua alteração pressupõe variações do condicionalismo subjacente, por isso, enquanto permanecerem as circunstâncias de facto e se mantiverem os fundamentos de direito que justificaram a respetiva imposição, também as medidas de coação se devem manter inalteradas. III - Não sobrevindo qualquer actuação do arguido que apontasse no sentido da alteração das exigências cautelares e a consequente necessidade do reforço das medidas de coação a aplicar-lhe, não pode esta ser modificada, ademais por recurso a elementos dos autos que deles já constassem aquando da aplicação da medida de coação.”
Temos assim por acertada a jurisprudência que refere que qualquer alteração de uma medida de coação, “pressupõe sempre que algo mudou entre a decisão que aplicou tal medida e a segunda decisão que procede ao reexame. O Juiz não se confrontando com qualquer alteração superveniente das circunstâncias que possam pôr em causa os pressupostos que fundamentaram a aplicação da medida de prisão preventiva, não pode reformar essa decisão, sob pena de criar uma instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios.”(cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/11/2019, ECLI:PT:TRL:2019:44.19.9PKLRS.B.L1.3.72).
Aqui chegados urge, desde logo, discutir que tipo de alteração das circunstâncias, deve ser tida em conta para efeito de alteração de uma medida de coação.
Em primeiro lugar, é necessário ter presente que a avaliação das circunstâncias relevantes, assenta sempre num juízo de probabilidade de verificação de uma situação futura que altera as exigências cautelares até então existentes. Todavia, este juízo nunca pode ser feito em termos abstratos, antes terá de assentar em factos concretos, existentes nos autos à data da respetiva ponderação, donde se possa concluir, como séria, a probabilidade de ocorrência de um facto futuro que coloque em causa a adequação e proporcionalidade da medida de coação pré-existente, enquanto garante das exigências cautelares, aplicáveis no caso em apreço.
O juízo de probabilidade subjacente à aplicação de uma medida de coação tem de ancorar-se sempre em factos indiciários concretos que podem ser tomados em consideração no momento processual em que tal decisão é tomada.
No caso em concreto, analisando os perigos que fundamentaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva e sua manutenção (perigo de continuação da atividade criminosa, forte e grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas), é manifesto que os mesmos se mantêm inalterados, justificando a decisão recorrida de manutenção da referida medida de coação. Ou seja, desde a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ocorrida em primeiro interrogatório de arguido detido até à prolação da decisão recorrida não ocorreram quaisquer factos ou circunstâncias dos quais resulte o desagravamento dos perigos invocados, de tal modo que apenas a aplicação da medida de prisão preventiva se tem como a única adequada e proporcional para obstar à concretização dos perigos elencados em ambas as decisões.
Quanto ao primeiro fundamento invocado, da leitura da primeira decisão, que aplicou a medida de coação de prisão preventiva em nenhum momento da mesma, que se refere à fixação da medida de coação, resulta sequer a ponderação da adequação da medida de coação de Obrigação de Permanência na habitação, com Vigilância eletrónica, antes, da referida fundamentação, resulta uma clara afirmação que só a medida de coação de prisão preventiva é a adequada atentas as concretas exigências cautelares.
Com efeito, da referida decisão, pode ler-se que “O arguido adotou uma postura vitimizante e desculpabilizante, aduzindo ter sido provocado e agredido, demonstrando ao longo das suas declarações muita raiva para com os ofendidos, imputando-lhes responsabilidade pelo ocorrido. (…) Desde logo afigura-se-nos que se verifica de forma muito acentuada um perigo de continuação da atividade criminosa. Veja-se que tratamos de relações de vizinhança, sendo os ofendidos vizinhos da mãe do arguido, deslocando-se o arguido diariamente a casa de sua mãe, como o próprio referiu.
Por outro lado, a forma como o arguido relatou os factos e descreveu os ofendidos e as suas condutas denunciam a existência de muita raiva e alguma indiferença às lesões que lhes causou.
O arguido, na prática dos factos, veio a revelar uma personalidade impulsiva, descontrolada e agressiva, contrária ao dever ser jurídico e indiferente a bens jurídicos como a integridade física de terceiros, sendo que o facto de ser um agente de autoridade devia conferir-lhe ainda mais ponderação e responsabilidade, sendo grave o facto de neste contexto não se ter coibido de fazer utilização da arma de fogo que utiliza no âmbito das suas funções.
A intensidade da sua atuação não é também despicienda. O arguido não se limitou a repelir qualquer eventual agressão. O arguido procurou o conflito, seguindo no encalço nos ofendidos quando estes procuravam dele fugir, refugiando-se no interior na propriedade. (…) O conflito de vizinhança está, latente, longe de estar atenuado ou findo.
Por todas estas razões, estamos em crer que factos como os verificados possam voltar a ocorrer, intensificando-se em quantidade e gravidade, podendo levar à perda da vida de alguém, sendo premente a aplicação de uma medida de coação que dê resposta a este perigo.
Acresce que estes factos geram, como geraram, forte perturbação da ordem e tranquilidade públicas, sendo factos graves, dirigidos contra bens jurídicos essenciais, praticados no exterior, num meio pequeno, causando na comunidade um sentimento de repulsa e insegurança, até porque praticados por pessoa que profissionalmente tem como missão potenciar sentimentos de segurança na comunidade, e não o contrário.
A energia criminosa revelada nos factos de que o arguido vem indiciado a premência do perigo de continuação da atividade criminosa e da perturbação da ordem pública, a ausência de sentido crítico quanto ao desvalor da sua conduta e indiferença às pessoas das vítimas demandam a aplicação de uma medida que o prive da liberdade.
Na verdade, uma medida que apenas impeça os contactos do arguido com os ofendidos ou impeça a sua deslocação à localidade onde os factos ocorreram no presente momento e atento o estado latente do conflito e os sentimentos demonstrados pelo arguido na prática dos factos e nas suas declarações, não garantem suficientemente que o arguido não reincida na prática dos mesmos.
Todos os requisitos de aplicação desta medida de coação se encontram preenchidos, sendo qualquer outra medida por ora insuficiente (artigo 202.º, n.º 1, als. a) e b) e artigo 1.º, al. j) do Código de Processo Penal).
Perante a gravidade do crime indiciado e os perigos ora elencados, que a integração profissional e social do arguido não são de molde a atenuar, afigura-se ao Tribunal que só a medida de coação de prisão preventiva se mostra, por ora, adequada a remover os mencionados perigos, sendo ainda proporcional à pena em que se perspetiva que venha a ser condenado (artigos 191.º a 193.º, 196.º, 204.º, alíneas b) e c) e 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código de Processo Penal).”
Atentos os fundamentos invocados na decisão, é manifesto que a possibilidade de aplicação de OPHVE não foi sequer equacionada, uma vez que a mesma era inadequada em face das concretas exigências cautelares colocadas pela personalidade do arguido e as circunstâncias concretas do caso.
Esta posição veio a ser reafirmada pela decisão recorrida que considerou manterem-se todas as circunstâncias que levaram o Tribunal a decretar a medida de coação de prisão preventiva.
O facto de a final o Tribunal da primeira decisão, solicitar as diligências necessárias para a ponderação futura da aplicação da medida de coação de OPHVE, não encerra, em si mesmo, qualquer enunciação de decisão futura nesse sentido, antes visa apetrechar o Tribunal de todos os elementos para que no futuro, caso as circunstâncias assim o justifiquem, possa ponderar da sua aplicação, uma vez que a mesma pressupõe e exige a verificação prévia de condições técnicas e dos legais consentimentos, os quais têm de estar assegurados aquando de uma eventual aplicação da referida decisão.
Com efeito, caso o tribunal que aplicou a medida de coação de prisão preventiva pretendesse aplicar a medida de coação de OPHVE, devia tal opção estar expressamente referida no texto da decisão, sem prejuízo de aí se ressalvar a situação de o arguido aguardar em prisão preventiva até as condições legais necessárias para a aplicação em concreto da OPHVE se encontrarem verificadas. A mera indicação no final do despacho, a solicitar a realização de tais diligências, sem que tenha havido qualquer referência a tal medida no texto da decisão que culminou com a determinação da medida de coação de prisão preventiva, é meramente ordenadora das diligências a realizar no futuro, em nada contendo com a liberdade de reapreciação futura da medida de coação pelo Tribunal.
A realização do relatório apenas contende com os pressupostos materiais e formais para aplicação da OPHVE, nada relevando para apreciação dos pressupostos de aplicação das medidas de coação estabelecidos no Código de Processo Penal.
Como refere o Acórdão da Relação de Lisboa, de 21.03.2019, (ECLI:PT:TRL:2019:12.17.5JBLSB.G.L1.9.D2), «1. O artigo 7º da Lei n.º 33/2010, de 02 de Setembro (Utilização de meios técnicos de controlo à distância - vigilância electrónica), relativo à elaboração do relatório prévio sobre a aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE), não se reporta aos pressupostos da medida de coacção, os quais estão definidos no Código de Processo Penal, mas, antes e apenas, à situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido de modo a assegurar que a mesma é compatível com as exigências da vigilância electrónica e os sistemas tecnológicos a utilizar. 2. O relatório previsto na lei apenas é vinculativo para o Tribunal na parte da compatibilidade das condições pessoais e familiares do arguido com as exigências da vigilância electrónica e os sistemas tecnológicos a utilizar. 3. Apesar de o relatório concluir pela compatibilidade e pela verificação das condições técnicas para aplicar a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE), o Tribunal não fica vinculado à aplicação daquela medida
Analisando o relatório solicitado e junto aos autos, temos de concluir que o mesmo não trouxe ao processo nenhuma circunstância atenuativa que permitisse a requerida alteração, tendo apenas constatado a verificação das condições que possibilitam a aplicação da medida de coação de OPHVE. Antes pelo contrário, do mesmo resulta o reforço da análise da personalidade do arguido nos termos já supra expostos.
Neste plano, como resulta manifesto da decisão da aplicação de medida de coação de prisão preventiva, só aquela medida de coação era adequada e proporcional às exigências cautelares do caso concreto. Caberia sempre ao Tribunal efetuar nova ponderação de tal adequação, após a realização de tais diligências, o que efetivamente foi feita na decisão recorrida.
No caso concreto, esta ponderação das exigências cautelares foi fundamentadamente tida em consideração pela decisão recorrida, que não apenas as reafirmou como reforçou a necessidade da manutenção da medida de coação de prisão preventiva, pela manifesta personalidade impulsiva e violenta do arguido.
A nosso ver, tal decisão só não merece reparo, como é a única adequada, atentas as circunstâncias indiciadas, e o concreto perigo de continuação da atividade criminosa.
Com efeito, está indiciado nos autos que o arguido, sendo Agente Principal da ..., não se coibiu de atentar contra a integridade física de terceiro usando a arma de fogo de serviço.
Acresce que a causa desta conduta do arguido, reside num conflito com os ofendidos por causa de um canídeo que ladrava com muita frequência e perturbava o descanso do arguido, bem como na descarga de águas pluviais de um terraço na residência das vítimas para o telhado da residência do arguido, provocando infiltrações na zona da adega contígua à residência, as quais manifestamente não justificam tal conduta, nem o nível de perturbação que o arguido demonstrou com a sua conduta. Só uma personalidade impulsiva, totalmente indiferente às consequências de uma tal conduta violenta permite enquadrar os factos praticados pelo arguido. Acresce que não estamos perante uma pessoa sem qualquer treino para gerir tais situações. Com efeito, estamos perante um Agente Principal da ... que tem um dever acrescido de respeito por terceiros, e que recebeu um treino adequado para gerir conflitos de forma pacifica e apaziguadora. Por outro lado, em face da sua profissão, ao mesmo impõe-se um conjunto de deveres funcionais que devem pautar o seu comportamento, devendo o mesmo adequar, a todo o tempo, a sua conduta por forma a respeitar a integridade de terceiros, impondo-se o uso de meios violentos como última ratio. Ora, o arguido não só desrespeitou gravemente os mesmos, como se aproveitou o facto de ter na sua posse a arma de serviço, e ter conhecimento acrescidos no seu manuseamento, para atentar gravemente contra a integridade física dos ofendidos.
Estamos perante alguém que se desloca ao local dos factos, na posse da sua pistola de serviço, uma Glock, e aí perante a reação dos ofendidos, não se coíbe de a utilizar contra o ofendido DD, atingindo-o no braço direito e nas pernas. Aliás, antes destes factos já o mesmo havia disparado para o ar, sendo-lhe indiferente que junto dos ofendidos BB e CC se encontrasse o filho de ambos, de 3 anos de idade.
De todo este circunstancialismo, não pode este Tribunal deixar de concluir que a medida de coação de OBPHVE não é, nesta fase, adequada e proporcional, justificando-se plenamente a decisão recorrida de manutenção da medida de coação de prisão preventiva.
Com efeito, sendo certo que a OPHVE é uma medida privativa da liberdade, a capacidade de o arguido ultrapassar tal limitação existe, o que não acontece com a medida de coação de prisão preventiva. E não estamos a considerar apenas o facto de o arguido poder retirar voluntariamente o dispositivo de vigilância, mas a possibilidade de o mesmo requerer a saída da sua habitação para outras atividades que a jurisprudência tem entendido, justificar tal ausência, designadamente para ir estudar, trabalhar, ir a uma consulta médica ou tratar de documentação essencial, e, numa dessas saídas, deslocar-se ao local onde residem os ofendidos e reiterar a sua conduta criminosa.
Como salienta o Acórdão da Relação de Lisboa de 11.06.2019 (ECLI:PT:TRL:2019:1534.17.3T9TVD.A.L1.5.05), « Se é certo que a medida de obrigação de permanência na habitação prossegue um fim concorrente com o da prisão preventiva, coincidindo até em alguns dos seus pressupostos e tratamento adjectivo, tal circunstância não tem a virtualidade de apagar as diferenças significativas que existem entre ambas, em especial ao nível da sua eficácia, porquanto, “a barreira física decorrente do confinamento de alguém a um domicílio não assenta exclusivamente na valia dos meios técnicos postos na detecção de eventuais ausências” que têm essencialmente por função dar a conhecer as “violações” da obrigação de permanência na habitação
Esta possibilidade, que entendemos ser real em face do temperamento impulsivo e temerário do arguido, levam este Tribunal a concluir que, no caso concreto, a medida de OPHVE não elimina o perigo concreto da atividade criminosa. Para o efeito, apenas a medida de coação de prisão preventiva obsta a tal perigo.
Por outro lado, falece também o segundo argumento alegado pelo recorrente atinente ao prejuízo que a presente situação comporta na sua condição financeira e laboral. Com efeito, a mesma é apenas decorrente de uma conduta voluntária do mesmo, desrespeitadora dos mais elementares deveres que se impõe a qualquer cidade e, com maior acuidade, aos agentes das forças policiais. Aliás, como o mesmo refere, foi-lhe instaurado um processo disciplinar, sendo, por isso, a sua situação laboral já condicionada pelo mesmo, o qual corre autonomamente aos presentes autos.
A nosso ver, este argumento demonstra, na sua essência, a personalidade do arguido que perante uma conduta sua tão violenta e desadequada, não mostra qualquer postura de reflexão e arrependimento, antes uma postura vitimizante e desculpabilizante, já mencionada na primeira decisão de aplicação da medida de coação.
Estando em causa os perigos de continuação da atividade criminosa e forte e grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a eventual diminuição dos rendimentos do arguido em face da aplicação da medida de coação de prisão preventiva, é manifestamente inócua para alterar as exigências cautelares que estiveram na base da decisão recorrida, a qual não merece qualquer reparo, uma vez que de forma fundamentada, adequada, proporcional e ponderada manteve a medida de coação de prisão preventiva.
Nestes termos, entendemos que o arguido não alegou sequer qualquer facto donde resulte uma atenuação das exigências cautelares do caso em apreço, nem a mesma resulta de qualquer elemento constante dos autos, sendo que as valorações feitas em ambas as decisões que aplicaram e mantiveram a medida de coação de prisão preventiva, respetivamente, são ajustadas e proporcionais à gravidade do caso concreto, plasmada no enquadramento jurídico penal imputado e respetivo sancionamento (neste sentido, vide Acórdão da Relação de Lisboa de 07.01.2016 - ECLI:PT:TRL:2016:576.14.5GEALR.F.L1.9.15).
Em conclusão, não trazendo o relatório social aos autos qualquer novo elemento donde resulte qualquer alteração aos pressupostos em que assentou a aplicação e manutenção da medida de coação de prisão preventiva, sendo certo que as mesmas estão sempre subordinadas à cláusula rebus sic stantibus, a sua modificação exige que haja uma alteração, no decurso do processo, dos elementos em que as mesmas se basearam, designadamente por via do desenvolvimento da investigação, quanto à indiciação ou quanto às exigências cautelares. Ocorrendo tal situação, o tribunal, oficiosamente ou mediante requerimento, não deixará, como é seu dever, de reponderar a situação.
Pelo exposto, improcede o recurso interposto.
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IV – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação:
1. Julgar improcedente o recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida de manutenção da medida de coação de prisão preventiva.
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Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513.º, n.o 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa].
Comunique de imediato a presente decisão ao Tribunal a quo, bem como ao EP competente.
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Lisboa, 20.02.2024
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)
João António Filipe Ferreira
Maria José Machado
Sara André dos Reis Marques
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1.1 Cfr. DIAS, MARIA DO CARMO SILVA (2021), Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 447, §11.