Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
722/22.5T8AGH.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
SIMULAÇÃO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
EFEITO ÚTIL NORMAL
RECONHECIMENTO DA PROPRIEDADE PLENA
PROPRIETÁRIO INSCRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Embora a lei não imponha o litisconsórcio necessário quando se invoca a simulação de um negócio e se peticiona seja declarada a sua nulidade, é necessária a intervenção de todos os intervenientes no negócio na ação, para assegurar que a  decisão a obter produz o seu efeito útil normal, nos termos do disposto no art.º 33º, nºs 2 e 3, do CPC.
2. Se apenas se demandar um dos intervenientes no negócio, o R. é parte ilegítima por preterição de litisconsórcio necessário natural, para a ação.
3. Sendo formulado, também, pedido de reconhecimento da titularidade plena do direito de propriedade sobre o imóvel com base em usucapião, e pedido acessório baseado em acessão industrial imobiliária, o R., proprietário inscrito, é parte legítima na ação no que respeita a esses pedidos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 11.10.2022, A intentou contra B, ação declarativa com processo comum, pedindo que se declare nula a doação efetuada ao R., em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido JP e o irmão e cunhada deste, declarando-se a titularidade do direito de propriedade plena da Autora sobre o imóvel sub judice, com a consequente condenação do R. a reconhecer à A. o direito de propriedade plena sobre o referido prédio. Subsidiariamente, caso assim se não entenda, condenar-se o R. a reconhecer a A. como dona e legítima possuidora do prédio descrito, por o ter adquirido por acessão industrial imobiliária.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
A A. contraiu matrimónio com JP no dia 22.12.1999, mas a relação entre ambos já se havia iniciado há alguns anos, por volta do ano de 1989.
Como de encontravam em processo de divórcio, ainda que já separados de facto, viram-se impossibilitados de assumir legalmente o seu relacionamento.
De forma a contornar a situação legalmente irregular em que se encontravam, a A. e o falecido esposo pediram ajuda ao irmão deste, FP, para celebrarem um contrato de compra e venda de um imóvel onde pudessem viver conjugalmente, tendo em 19.2.1991, sido celebrado o referido contrato de compra e venda de um prédio urbano sito em Acima do Calço do Ferreiro, Lombega, Castelo-Branco, Horta, inscrito na matriz sob o nº …...
O contrato de compra e venda foi celebrado entre MPK, estando presente o seu procurador MH enquanto vendedor, e FP e a sua respetiva cônjuge EP. enquanto compradores, os quais celebraram a compra a pedido do falecido marido da A., que facultou o valor do preço do prédio.
Além do contrato de compra e venda suprarreferido foi ainda celebrada uma doação a B, neto do JP, falecido esposo da Autora, e neto-sobrinho dos compradores, e uma doação do usufruto à A.
Em representação da A. esteve presente o seu falecido esposo.
Tanto o contrato de compra e venda celebrado com o irmão de JP, FP, a pedido do mesmo, como a doação da nua propriedade ao neto de JP  e o usufruto à Autora tiveram como objetivo único evitar que o prédio que iria servir de morada de família da Autora e de JP constasse da relação de bens que decorriam entre os mesmos e os seus ex-cônjuges dos quais se encontravam separados de facto.
Todos os encargos e despesas relacionadas com a compra e venda do imóvel foram suportados pela A. e pelo seu falecido esposo, e, a partir dessa data, a A. e o falecido esposo passaram a coabitar no referido imóvel, como proprietários, passando o mesmo a ser considerado a morada de família.
Na sequência de sismo ocorrido em julho de 1998, o edifício sofreu destruições consideráveis, tendo a A. feito obras de reconstrução, no valor de €41.003.97, que em muito excedem o valor do prédio, que é de €9.976.00.
Por detrás do negócio simulado/aparente – a doação ao réu e o direito de usufruto concedido à Autora - há um negócio dissimulado, real – a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel em causa pela A. e pelo esposo falecido, que sempre se comportaram em relação ao mesmo como seus proprietários.
Regularmente citado, o R. contestou, por exceção, invocando falta de interesse em agir da A. e ineptidão da PI, e por impugnação. Terminou pedindo que sejam julgadas procedentes as exceções invocadas, absolvendo-se o R. da instância. Prosseguindo a ação, pugna: a) pela sua improcedência, absolvendo-se o R. dos pedidos; b) pela declaração de que a A. atua com abuso de direito; c) pela condenação da A. como litigante de má-fé e, nessa sequência, a pagar uma multa ao tribunal e indemnização ao R. no montante não inferior a 8 UC’s.
Convidada a pronunciar-se sobre as exceções invocadas e o pedido de condenação como litigante de má fé, a A. respondeu pugnando pela improcedência das exceções invocadas, e dever o “R. ser sancionado incidentalmente no tocante à invocação infundamentada dos pedidos de condenação da Autora por Abuso de Direito e litigância de Má fé.”
Foi proferido despacho a convidar a A. a apresentar PI aperfeiçoada [1], o que esta fez [2], a qual termina pedindo: “a) Ser declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre MPK e FP e esposa a 19.02.1991, em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido JP (verdadeiros adquirentes do prédio) e o irmão FP e esposa; b) Ser declarada a nulidade da doação efetuada a favor do R., aposto no mesmo ato de escritura notarial datado de 19.02.1991, em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido JP  e o irmão FP e esposa; c) Ser reconhecida a titularidade do direito de propriedade plena da A. sobre o imóvel sub judice, d) Ser o R. condenado a reconhecer à A. o direito de propriedade plena sobre o referido prédio. Subsidiariamente, Caso assim se não entenda, condenar-se o R. a reconhecer a A. como dona e legítima possuidora do prédio descrito, por o ter adquirido por acessão industrial imobiliária.”.
O R. respondeu, mantendo a defesa apresentada em sede de contestação.
Foi dispensada audiência prévia, e proferido despacho saneador, que julgou improcedentes as exceções invocadas, e procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, e, consequentemente, absolveu “o R B…, por falta de participação de todos os interessados na ação e do lado passivo (preterição de litisconsórcio necessário passivo), atendendo aos pedidos formulados pela A., tudo de acordo com o disposto nos artigos 278º/1-d), 578º, ambos do CPC”.
Não se conformando com a decisão, dela apelou a A., tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:
a) Por entender o tribunal recorrido não estarem na ação todos os RR. com interesse legítimo em contestar a autora, por sentença veio o R. B (por falta de participação de todos os interessados na ação e do lado passivo preterição de litisconsórcio necessário passivo), absolvido da instância, atendendo aos pedidos formulados pela A., tudo de acordo com o disposto nos artigos 278.º, 1, d) e 578.º, ambos do CPC.
b) Convidada a deduzir um incidente autónomo de intervenção principal de terceiros (dos ditos “conluiados”) provocado, chamando à demandada e para se associarem ao R., FP e a cônjuge EP, quer quanto ao pedido de declaração de nulidade por simulação, quanto ao contrato de compra e venda do imóvel, a A. não deduziu intervenção provocada dos indicados intervenientes na simulação, por não ser vivo o irmão de JP nem o próprio JP.
c) Com o devido respeito, a intervenção dos ditos FP e cônjuge EP, não é necessária, pela natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
d) Não se tem, nem se poderá ter, por essencial, a intervenção do casal que interveio na escritura como comprador do imóvel, mais que o marido, FP, faleceu já em 24.11.1996, sendo que a A. é usufrutuária e o R. B é dono da nua propriedade do imóvel, não havendo conflito entre o direito da A. e do R. e qualquer outro que se equacione deter o “casal comprador”, FP (já falecido) e esposa, não sendo, igualmente, estes últimos interessados no processo por não terem interesse em agir.
e) Nenhum efeito útil produzirá assim a sentença a proferir na sua esfera jurídica, não podendo dizer-se que seriam seus destinatários e que esta regularia definitivamente a situação jurídica entre os interessados, precisamente por não serem interessados.
f) A ter-se por necessária e essencial a intervenção, jamais seria provocada tal intervenção do lado passivo, mas, ao invés e, quando muito, do lado ativo juntamente com a A. dada a coligação entre “compradores” reais e fictícios, opostos ao “vendedor”, beneficiando, assim, a A. daquela intervenção.
g) É que, a pretensão principal da ação visa a declaração da nulidade do negócio de doação formalizado pela escritura de celebrada em 10.09.1991, com base na simulação (cfr. art.º 240.º do CC). Não sendo controvertida a compra pelo irmão do falecido marido da A., ainda que simulada, porque “querida”, sendo-o apenas a doação.
h) Pouco ou nada terá a acrescentar aos autos a mulher do falecido FP, cunhado da aqui A., na medida em que os termos em que foi celebrado o negócio de compra/ doação terão sido delineados pelo falecido marido da A. juntamente com o falecido FP, irmãos, limitando-se a esposa deste a intervir no negócio por conta do regime de casamento.
i) Em bom rigor, não existiu um pacto entre os adquirentes, FP e esposa, e o alienante, no sentido de estes declararem uma vontade que não corresponde à sua vontade real; o que existiu foi um pacto entre A. e falecido marido e alienante no sentido de que, pese embora o preço fosse integralmente pago por estes, figurariam na escritura, como compradores, FP e esposa.
j) Não vislumbra, por conseguinte, a A. qual a eventual inutilidade ou contradição prática da decisão a proferir, designadamente, quando traz aos autos o único R. interessado, causa de pedir e pedido, dos quais considera demonstrar-se possível a regulação definitiva da situação concreta das partes perante o pedido.
k) Tanto mais que a A. invoca ainda que a propriedade do bem (prédio urbano) sempre lhe pertenceria ao alegar ainda a posse boa para usucapir passados todos os anos que ali tem vivido e, subsidiariamente, com recurso ao instituto da acessão imobiliária nos termos do art.º 1324.º e seguintes do CC, porquanto o valor das obras é superior ao valor do terreno, logo a proprietária desse imóvel será a autora.
l) Por conseguinte, e em face do pedido inicial formulado pela A. e à causa de pedir, a intervenção da viúva de FP não é exigível para que a decisão produza o seu efeito útil normal, por esta não poder reconduzir-se à “qualidade” de “titular de direitos com interesse em contradizer a pretensão da A.”.
m) Ao ter decidido nos termos supra, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 33.º, n.º 2 e 3 do Cód. Proc. Civil.
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida, substituindo-se por decisão que determine a prosseguimento dos autos contra o R. B, com todas as devidas e legais consequências assim se fazendo Justiça!
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC) a questão a decidir é a legitimidade passiva do R. para a presente ação.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante é a constante do relatório supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O despacho recorrido é do seguinte teor:
 “… Sucede que, como acima o dissemos, convidou-se a autora para deduzir incidente de intervenção principal provocada a propósito de garantir o litisconsórcio necessário natural do lado passivo, quer quanto ao pedido de declaração de nulidade por simulação quanto ao contrato de compra e venda do imóvel acima descrito uma vez que, já se havia pedido a declaração de nulidade (por simulação) da doação, de modo a garantir a intervenção dos ditos “conluiados” ao que a autora não fez respondendo que não o fazia porque o FP, já tinha falecido bem como, o próprio marido da autora. Determina o artigo 240º/1 do CC que, se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergências entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. Nos termos do nº 2 deste artigo reza que o negócio simulado é nulo. Por sua vez o artigo 241º/1 do mesmo código sob a epígrafe de simulação relativa, afirma-se ainda que quando sob o negócio simulado exista outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. De acordo com o nº 2 deste normativo, se porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei. Por sua vez o artigo 33º/2 do CPC determina que, é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. Nos termos do nº 3 ainda deste artigo dispõe-se que, a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. Perante tudo o acabado de expor, conclui-se que na verdade face aos pedidos apresentados pela autora designadamente, na sua segunda petição inicial corrigida que apresenta que faltam interessados que deveriam intervir na presente ação e ao lado do já réu que se encontra presente na ação, portanto por forma a garantir o litisconsórcio necessário do lado passivo, dos ditos intervenientes “conluiados” nestes dois negócios de compra e venda e de doação que realizaram no Cartório Notarial da Horta e no dia 19.02.1991. Litisconsórcio natural, mas necessário em qualquer caso, a fim de que possam intervir na causa e serem destinatárias de uma vez, da decisão final a proferir nesta ação, a qual regularia definitivamente entre os interessados, a respetiva situação jurídica. Neste sentido seguimos o acórdão do Tribunal da Relação de Porto proferido no processo nº 1947/05.3TBLSD.P1, datado de 25.03.2010, sendo seu relator o Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador João Proença, decidindo a propósito precisamente de negócios simulados e do litisconsórcio necessário natural que nesta sede deve existir e que seguimos de perto, in www.gde.mj.pt/jtrp. Outro acórdão é o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo nº 240/2010, datado de 12.01.2012, sendo seu relator o Excelentíssimo Senhor Juiz Desembargador Ho Wai Neng, decidindo a propósito precisamente de negócios simulados e do litisconsórcio necessário natural que nesta sede deve existir sendo que foi uma das exceções alegadas por lapso, mas que se verificava e por isso essa questão em concreto, ficou prejudicada, o que acompanhamos, in www.court.gov.mo/sentence/pt/11949. Cogitadas estas normas de direito substantivo e outras decisões jurisprudenciais, fácil é, pois, chegar à conclusão que no caso dos autos, andamos bem em convidar a A, a deduzir o incidente de intervenção provocada. Portanto o casal que interviu na dita escritura como comprador do imóvel ora em causa, é essencial para junto com as atuais partes, se obtenha a final, a decisão jurídica que se impõe regulando de uma vez por todas a respetiva situação jurídica. Por conseguinte e sem necessidade de mais considerações, estão preteridas in casu as regras dum litisconsórcio necessário passivo, nos termos do disposto no artigo 33º/2 e 3 do CPC. Encontramo-nos consequentemente, perante a falta dum pressuposto processual, neste caso a ilegitimidade do lado passivo, por não intervirem na ação todos os interessados diretos na ação, o que nos termos do artigo 278º/1-d) do CPC, implica a absolvição do réu da instância. Sendo esta uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, nos termos também do artigo 578º do mesmo código acabado de citar. Não estão, pois, na ação todos os RR, com interesse legítimo em contestar a autora, tal como a atual A, configura a relação jurídica controvertida em atenção para além do mais ao artigo 33º/2 e 3 do CPC. Por conseguinte, absolvo o R- B, por falta de participação de todos os interessados na ação e do lado passivo (preterição de litisconsórcio necessário passivo), atendendo aos pedidos formulados pela A, tudo de acordo com o disposto nos artigos 278º/1-d), 578º, ambos do CPC.”.
Insurge-se a A. contra o decidido, sustentando que:
- Não se pode ter por essencial a intervenção do casal que interveio na escritura como comprador do imóvel, para mais porque o marido, FP, faleceu já em 24.11.1996, porquanto a A. é usufrutuária e o R. é dono da nua propriedade do imóvel, não havendo conflito entre o direito da A. e do R. e qualquer outro que se equacione deter o “casal comprador”, FP (já falecido) e esposa, não sendo, igualmente, estes últimos interessados no processo por não terem interesse em agir;
- A sentença a proferir no âmbito dos presentes autos nenhum efeito útil produzirá na esfera jurídica daqueles, não podendo dizer-se que seriam seus destinatários e que esta regularia definitivamente a situação jurídica entre os interessados;
- A ter-se por necessária e essencial a intervenção, jamais seria provocada tal intervenção do lado passivo, mas, ao invés e, quando muito, do lado ativo juntamente com a A. dada a coligação entre “compradores” reais e fictícios, opostos ao “vendedor”, beneficiando, assim, a A. daquela intervenção, e jamais o R.;
- A A. e marido pretenderam que aquela que vieram a consolidar como sua casa de morada de família fosse efetivamente transmitida a FP e esposa, acautelando o seu direito de propriedade com o usufruto, tendo, apenas, sido “simulada” (por verdadeiramente não pretendida) a doação (da nua propriedade) a B, neto de FP e esposa, não obstante, durante a menoridade de B, ora R., a mesma fizesse sentido à A. e marido para “assegurar” que o bem não sairia da “sua” esfera;
- Não se vislumbra qual a eventual inutilidade ou contradição prática da decisão a proferir, designadamente, quando se traz aos autos o único R. interessado, causa de pedir e pedido, dos quais se demonstra possível a regulação definitiva da situação concreta das partes perante o pedido;
- Tanto mais que a A. invoca ainda que a propriedade do prédio sempre lhe pertenceria ao alegar ainda a posse boa para usucapir passados todos os anos que ali tem vivido e, subsidiariamente, com recurso ao instituto da acessão imobiliária, porquanto o valor das obras é superior ao valor do terreno, logo a proprietária desse imóvel será a A.
Apreciemos.
Na presente ação, a A. peticiona que: seja declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre MPK e FPe esposa a 19.02.1991, em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido JP (verdadeiros adquirentes do prédio) e o irmão FP e esposa; seja declarada a nulidade da doação efetuada a favor do R., aposta no mesmo ato de escritura notarial datado de 19.02.1991, em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido JP e o irmão FP e esposa; seja reconhecida a titularidade do direito de propriedade plena da A. sobre o imóvel sub judice; seja o R. condenado a reconhecer à A. o direito de propriedade plena sobre o referido prédio. Subsidiariamente, caso assim se não entenda, se condene o R. a reconhecer a A. como dona e legítima possuidora do prédio descrito, por o ter adquirido por acessão industrial imobiliária.
Ou seja, foram formulados pedidos principais, pedindo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda e de doação a favor do R. formalizados na escritura de 19.2.1991, e o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade plena da A. sobre o imóvel, e pedido subsidiário, de reconhecimento desse direito com base em acessão industrial imobiliária.
A causa de pedir subjacente aos pedidos principais consiste no acordo simulatório entre A. e seu falecido marido e o irmão deste e a esposa, bem como na posse do imóvel, e a causa de pedir subjacente ao pedido subsidiário consiste nas obras de reconstrução realizadas pela A. no imóvel e seu valor.
O objeto do presente recurso é apenas o de aquilatar da legitimidade do R. para a presente ação, independentemente da bondade das pretensões da A.
Dispõe o art.º 240º do CC que “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo.”.
A simulação consiste, pois, na divergência entre a vontade e a declaração, estabelecida por acordo entre as partes, e com o intuito de enganar terceiros.
São, assim, requisitos da simulação o acordo entre o declarante e o declaratário, no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade das partes, e com o intuito de enganar terceiros [3].
A simulação pode ser absoluta, quando as partes declaram a vontade de celebrar um negócio jurídico, quando, na realidade, não o querem celebrar, nem celebrar qualquer outro, ou relativa, quando as partes quiseram celebrar um outro negócio sob o negócio simulado.
Dispõe o art.º 241º do CC que “1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. 2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.
Formas de simulação relativa são a simulação subjetiva, que incide sobre as pessoas intervenientes, e a simulação objetiva, que incide sobre o negócio ou alguma das suas cláusulas.
Ana Filipa Morais Antunes, no Comentário ao Código Civil, UCE, pág. 556, discorrendo sobre estas formas de simulação relativa, escreve que “Na simulação subjetiva, pretende-se celebrar um dado negócio jurídico, mas entre sujeitos que não são aqueles que efetivamente nele intervieram. Assim sucede, v.g., na hipótese de uma das partes do negócio celebrado não pretender revelar a sua identidade, fazendo-se substituir por outro sujeito, que surge no negócio como parte declarante ou declaratária e se compromete a transmitir os direitos e as obrigações fundadas no negócio celebrado para a esfera jurídica daquele. Na simulação subjetiva, pode ocorrer uma interposição fictícia de pessoas, caracterizada pela interferência de um sujeito que, não ocupando realmente a posição de parte no negócio, surge como “testa de ferro” ou “homem de palha” do verdadeiro sujeito que celebra o negócio: há, nesta eventualidade, um conluio entre os três sujeitos. … A simulação objetiva define-se por exclusão de partes e tem por referência o objeto, conteúdo, tipo ou natureza do negócio jurídico. É o caso de, v.g., as partes declararem a celebração de uma compra e venda, quando, na realidade, celebraram uma doação ou um arrendamento, ou vice-versa – está em causa uma simulação sobre a natureza do negócio. …”.
Tendo em atenção a factualidade alegada pela A. a fundamentar a invocada simulação dos negócios celebrados pela escritura de 19.2.1991, em causa estará uma simulação relativa, quer subjetiva (quanto às partes do negócio, sendo “compradores” a A. e o falecido marido, e não o irmão deste e a esposa), quer objetiva (quanto à natureza dos negócios celebrados, tendo-se pretendido celebrar, apenas, um negócio de compra e venda, sendo as doações simuladas).
Ou seja, em causa está um único negócio jurídico (dissimulado) - a compra e venda -, que foi efetivado através de vários negócios (simulados) – a compra e venda e as doações -, pedindo-se que estes sejam declarados nulos.
Para aquilatar da legitimidade das partes na ação, o tribunal recorrido lançou mão do disposto no art.º 33º do CPC, concluindo pela verificação da preterição de litisconsórcio necessário natural passivo.
Nos termos do disposto no art.º 30º do CPC, o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer (nº 1), exprimindo-se tal interesse pelo prejuízo que lhe advenha da procedência da ação (nº 2), considerando-se titular desse interesse, na falta de indicação da lei em contrário, o sujeito da relação controvertida tal como é configurada pelo autor (nº 3).
Por seu turno, dispõe o art.º 33º do CPC que “1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. 2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. 3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.”.
No caso em apreço, o que está em causa é aquilatar da aplicação dos nºs 2 e 3 do preceito, uma vez que a lei não impõe o litisconsórcio necessário quando se invoca a simulação do negócio e se peticiona a declaração da sua nulidade, nem tal foi convencionado.
O preceito reproduzido impõe o litisconsórcio necessário, a intervenção de todos os interessados na ação, quando a natureza da relação jurídica assim o determine para assegurar que a  decisão a obter produz o seu efeito útil normal.
E o nº 3 do mencionado preceito concretiza que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, embora não vinculando os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Em anotação ao artigo em análise, escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no CPC Anotado, Vol. I, 4ª ed., págs. 99/100, que “A norma do nº 3 não trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais. A pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas ações de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em caus não comportar uma definição ou realização parcelar.”.
De forma elucidativa, escrevem (João de Castro Mendes e) Miguel Teixeira de Sousa, no Manual de processo civil, Vol. I, 2022, págs. 364 a 366, que “(a) A maneira mais impressiva de mostrar a necessidade de litisconsórcio natural é recorrer a um aspeto temporal: o litisconsórcio é necessário se tiver de haver uma decisão simultânea para todos os interessados. … Também constituem exemplos de litisconsórcio necessário natural a instauração de uma ação de simulação de um contrato contra todos os que o celebraram; … (b) O que conta para se exigir o litisconsórcio natural não é definitividade de uma decisão global entre todos os interessados, mas a não definitividade de uma decisão que seja proferida apenas em relação a alguns dos interessados. … Assim, não é a circunstância de haver vários interessados que torna o litisconsórcio necessário; o que impõe o litisconsórcio natural é a circunstância de uma decisão parcelar entre apenas alguns dos interessados correr o risco de se tornar incompatível com outra decisão igualmente parcelar obtida entre outros interessados.” (sublinhado nosso).
Embora incidindo sobre circunstancialismo distinto, mas analisando o âmbito de aplicação do disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 33º do CPC, escreve-se no Ac. do STJ de 22.10.2015, P. nº 2394/11.3TBVCT.G1.S1 (Lopes do Rego), em www.dgsi.pt, que “A doutrina e a jurisprudência têm, porém, desde há muito, operado una interpretação mais ampla do conceito de efeito útil normal, admitindo o litisconsórcio necessário natural nas situações em que, por ser o objeto do processo um interesse indivisível e incindível dos vários interessados ou contitulares, se impõe o litisconsórcio por prementes razões de coerência jurídica, que ficaria relevantemente afetada pela possibilidade de serem proferidas, em causas separadas, decisões divergentes acerca desse mesmo objeto unitário e indivisível (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 162/163). É este entendimento que está na base da exigência do litisconsórcio quando numa ação se discuta a validade ou eficácia de um negócio jurídico em que outorgaram várias partes por vício que envolva todos os interessados, por essa via se obtendo na ação uma pronúncia, simultânea e definitiva, acerca da validade ou eficácia do ato. Como escreve Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, 2014, pág. 75), numa ação destinada a obter a declaração de nulidade de um negócio jurídico, visto que o negócio, a ser nulo (ou válido), há de sê-lo para todos os contraentes, é obrigatória a presença de todos eles, atenta a natureza da questão jurídica que se discute nos autos, sob pena de os contraentes ausentes na lide não ficarem vinculados à decisão a proferir, a qual, por isso, não teria a virtualidade de regular de modo definitivo a questão submetida a juízo. Também a ação destinada à anulação de uma escritura de partilhas exige a intervenção de todos os sucessores outorgantes na mesma.”.
Aplicando estes ensinamentos ao caso em apreço, não se pode deixar de concluir, tal como concluiu o tribunal recorrido, que existe preterição de litisconsórcio necessário natural passivo, o que implica a ilegitimidade processual do R.
Contudo, esta ilegitimidade apenas se reporta ao pedido principal, de declaração de nulidade do contrato de compra e venda e de doação celebrados em 19.2.2021, por simulação, e já não ao pedido de reconhecimento da titularidade plena do direito de propriedade sobre o imóvel com base em usucapião, e ao pedido acessório baseado em acessão industrial imobiliária.
Relativamente a estes pedidos, o R. é parte legítima, atenta a relação controvertida, tal como configurada pela A. (art.º 27º, nº 1, do CPC).
Nesta conformidade, procede parcialmente a apelação, devendo alterar-se a decisão recorrida em conformidade, julgando-se o R. parte ilegítima, por preterição de litisconsórcio necessário natural, para a ação, relativamente ao pedido principal de declaração de nulidade da contrato de compra e venda e doação a favor do R., celebrados por escritura de 19.2.1991, por simulação, e parte legítima para conhecer dos restantes pedidos formulados, devendo prosseguir seus termos o processo para sua apreciação.
As custas da apelação ficam a cargo da apelante e apelado, em partes iguais – art.º 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando-se, em conformidade, a decisão recorrida, julgando-se o R. parte ilegítima, por preterição de litisconsórcio necessário natural, para a ação, relativamente ao pedido principal de declaração de nulidade do contrato de compra e venda e de doação a favor do R., celebrados por escritura de 19.2.1991, e parte legítima para conhecer dos restantes pedidos formulados, devendo prosseguir seus termos o processo.
Custas pela apelante e apelado nos termos referidos.
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Lisboa, 2024.02.20
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
Paulo Ramos de Faria
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[1] Bem como, “face ao novo pedido que vai apresentar, a deduzir um incidente autónomo de intervenção principal de terceiros provocada, nos termos dos artigos 316º e ss., do CPC, chamando à demanda e para se associarem ao ora Réu, os ditos FP e a cônjuge EP, uma vez que no presente caso existe toda a conveniência em que aconteça um litisconsórcio necessário natural (artigo 33º/2 do CPC), entre os intervenientes que participaram em tal escritura de compra e venda e doação designadamente, do lado dos simuladores e para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal quanto a todos eles.”.
[2] Declarando que “Não procede ao pedido de intervenção provocada dos indicados intervenientes na simulação por não ser vivo já o irmão do igualmente falecido JP”.
[3] Com a intenção de enganar terceiros pode cumular-se a intenção de prejudicar outrem, caso em que a simulação se diz fraudulenta.