Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17587/16.9T8LSB.L1-8
Relator: RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA
Descritores: ACTO MÉDICO
NEGLIGÊNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONSENTIMENTO INFORMADO
ÓNUS DA PROVA
DANO BIOLÓGICO
DANO MORAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - A decisão que julgou procedente o incidente de arguição de nulidade suscitado pela recorrente no recurso de apelação por si interposto da sentença final, suprindo a nulidade invocada, passou a integrar o objecto do recurso (art.º 617.º, n.º 2 do CPC), não sendo, autonomamente, recorrível pelo recorrido, que só pode activar a subida do recurso no caso de a recorrente dele desistir (art.º 617.º, n.º 4 do CPC);
II - Os factos que escapam, completamente, ao núcleo dos factos essenciais que compõem a causa de pedir da acção, tal como foi configurada na petição inicial, constituem factos essenciais novos, que não integraram os temas da prova e não foram objecto de apreciação na sentença final, pelo que não é lícito que o recorrente os invoque no recurso dessa sentença, posto que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação;
III - A doutrina mais recente, acompanhada pela jurisprudência nacional, propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados, a seguinte tipologia: (i) contrato total («contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)»), (ii) contrato total com escolha de médico ou contrato médico adicional («contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações») e (iii) contrato dividido («a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é directa e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos)»);
IV - Recai sobre a instituição prestadora de cuidados de saúde o ónus de provar que se está perante um contrato dividido e não perante um contrato total, por ser essa instituição quem, de acordo com a normalidade, está em melhor posição para o demonstrar;
V - No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de “contrato total com escolha de médico”, aquela instituição responde perante o paciente-credor pelos danos decorrentes da execução dos actos médicos e/ou da violação de deveres de informação e de recolha de consentimento levados a cabo pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do art.º 800.º, n.º 1, do CC;
VI - Porém, o médico responde, também, pela sua conduta pessoal, a título de responsabilidade civil extracontratual;
VII - A ingerência médica na integridade física do paciente só é licita se este consentir nessa ingerência e se o seu consentimento for prestado de forma esclarecida e o paciente estiver ciente de todos os dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avultam os riscos próprios de cada intervenção médica;
VIII – Recai sobre a instituição prestadora de cuidados de saúde e sobre o médico o ónus de provarem a existência de consentimento informado, por ser facto impeditivo do direito do paciente;
IX - A responsabilidade civil emergente da realização de acto médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do acto médico e na violação do dever de recolha do seu consentimento;
X - Os bens jurídicos tutelados pela exigência dos deveres de informação e de recolha de consentimento são o direito à integridade física e moral e o direito à liberdade e autodeterminação;
XI – Não sendo o consentimento do paciente válido, a intervenção médica não se justifica pelo consentimento e, consequentemente, a intervenção sobre o corpo é ilícita, pelo que surge o dever de compensar o paciente pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados, quer os danos resultam da violação da liberdade da vontade, quer as lesões, dores e demais incómodos sofridos;
XII - A conclusão anterior não viola o princípio constitucional da igualdade relativamente às situações em que os danos decorrem da má prática médica ou da violação da leges artis, uma vez que o tratamento distinto que ambas as situações merecem decorrerá da ponderação das diferentes intensidades do ilícito e da culpa para efeitos do cômputo das indemnizações;
XIII - A obrigação de indemnizar constitui-se no momento em que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, visando a sentença proferida em acção declarativa, apenas, o reconhecimento dessa obrigação e a determinação do seu quantum, pelo que a dívida inerente transmite-se, por morte do responsável, aos seus herdeiros, não integrando nenhuma das situações de intransmissibilidade sucessória previstas no art.º 2025.º do CC;
XIV - As indemnizações, nos caso de lesões irreversíveis, que implicam um sofrimento continuado até ao fim da vida, não podem assumir características miserabilistas, antes devendo proporcionar um sucedâneo significativo de danos que, por sua natureza, são irreparáveis, afigurando-se justa e criteriosa a indemnização de € 85.000,00, pelo dano biológico sofrido por um homem de 64 anos de idade que, em consequência das cirurgias efectuadas, padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação activa nos territórios de L4-L5 e L5–S1, que determinaram alterações da mobilidade e sensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira (zona perineal, peniana e anal); que devido a essa condição, apenas consegue locomover-se com auxílio de canadianas, em deslocações pequenas, carecendo de cadeira de rodas e apoio na generalidade das deslocações; que ficou totalmente impossibilitado de trabalhar na organização e gestão diária da sua empresa familiar ou em qualquer trabalho equivalente; que não faz a sua higiene pessoal, necessitando de ajuda para as tarefas em causa; que perdeu toda a capacidade sexual; que não controla a sua função urinária ou excretora, carecendo do uso de fralda e de tomar medicamentos; e cuja integridade estética foi afectada num valor quantificável em 4, numa escala de 1 a 7;
XV - Devendo o montante da reparação ser proporcionado à gravidade do dano, atendendo-se, na sua fixação, a todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, afigura-se, equitativamente, justa e criteriosa a quantia de €50.000,00, a título de indemnização global pelos danos não patrimoniais sofridos por um homem de 64 anos que, no espaço de cinco dias, foi submetido a três intervenções cirúrgicas; que experimentou dores, perda de sensibilidade dos membros inferiores, coxas, nádegas e região perineal, incomodidades e depressão no pós-operatório; que esteve internado cerca de um mês e meio, sendo alguns dias no serviço de cuidados intensivos, e que nesse período necessitou sempre de ajuda para se sentar, levantar, posicionar-se no leito e fazer a transição para a cadeira de rodas; que fez fisioterapia durante o internamento; que, aquando da alta, necessitava de ajuda para as actividades de vida diárias, sendo, apenas, autónomo para a alimentação, que usava algália, tinha incontinência de esfíncter anal, incapacidade de executar posição ortostática, ausência de capacidade de flexão e extensão dos dedos de ambos os pés e ambos os tornozelos e hipostesia na região perineal, nadegueira e ambos os pés; que após a alta fez reabilitação física, sem capacidade para se locomover sem apoio de muletas, para reter a urina, para controlar a dejeção e para manter relações sexuais; que ao longo de todo o internamento, e até aos dias de hoje, padece de dores, que foram intensas e prolongadas no período de internamento, sendo quantificáveis em grau 6 numa escala de 1 a 7, e que, após tal período, são permanentes e pontualmente de grande intensidade, não quantificável; que, em consequência da sua condição física, sente grande desgosto e frustração, tendo sofrido uma depressão, que ultrapassou, mas que se tornou uma pessoa mais taciturna e triste e socialmente isolada;
XVI - O art.º 496.º n.º 1 do CC deve ser interpretado no sentido de abranger os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos pelo cônjuge do lesado, nomeadamente o dano de privação do débito sexual, sendo justo e equitativo atribuir o montante de €30.000,00 a uma mulher com 60 de idade, à data dos factos, que tinha uma vida conjugal normal e que deixou de ter qualquer vida sexual, passando a ficar cingida quase exclusivamente a cuidar do marido lesado e que sente, desde então, tristeza e angústia por tal situação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
                          
I – RELATÓRIO
1.1. A e B intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum, contra:
1.º C, D e E, na qualidade de herdeiras de J;
2.º F, S.A.
3.º G
4.º H
5.º I
Formularam os seguintes pedidos:
«a) Condenar os Réus ao pagamento solidário do quantitativo pecuniário total de €151.553,71 (cento e cinquenta mil, quinhentos e cinquenta e três euros e setenta e um cêntimo) título de danos patrimoniais ao Autor;
b) Condenar os Réus ao pagamento solidário do quantitativo pecuniário total de €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euro) a título de danos não patrimoniais ao Autor;
c) Condenar os Réus ao pagamento solidário de €40.000,00 (quarenta mil euro) a título de danos não patrimoniais à Autora;
d) Quantitativos aos quais devem acrescer juros de mora desde a citação até ao integral pagamento».
Pretendiam efectivar a responsabilidade civil, contratual e extracontratual, dos RR. por danos decorrentes de erro médico e violação das leges artis na execução de três intervenções cirúrgicas, bem como da violação de deveres de documentação, de esclarecimento e de recolha de consentimento informado.
1.2. As 1.ªs RR. contestaram, arguindo a excepção dilatória da sua ilegitimidade passiva (por entenderem que o interesse directo em contradizer pertence à herança aberta por óbito do falecido J e por este, à data dos factos, ter transferido a sua responsabilidade civil para a seguradora Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A.) e pronunciando-se pela improcedência da acção, defendendo que o falecido J era um médico tecnicamente muito habilitado, com excelente prestação profissional, reconhecido pelos seus colegas e pacientes, diligente e com sentido das responsabilidades.
Requereram a intervenção principal provocada de Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A.
1.3. A 2.ª R. contestou, pronunciando-se pela improcedência da acção, defendendo, em suma, que o 1.º R., que foi contratado pelo A., não fazia parte dos seus quadros clínicos e actuou por conta própria, limitando-se a utilizar as instalações e apoio técnico da 2.ª R. para consultas ou cirurgias, e argumentando que inexiste nexo de causalidade entre os danos alegadamente sofridos pelos AA. e as acções dos seus funcionários, que agiram com rigor, diligência e prudência.
Deduziu, também, reconvenção, pedindo a condenação dos AA. a pagarem-lhe a quantia de €15.374,79, por serviços prestados ao 1.º A., quantia acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a data da factura e até pagamento.
Requereu a intervenção acessória provocada de Generali Companhia de Seguros, S.P.A.
1.4. Os 3.º, 4.ª e 5.ª RR. contestaram conjuntamente, pronunciando-se pela improcedência total da acção e pela condenação dos AA. como litigantes de má-fé, por abuso do direito de acção, defendendo, essencialmente, que não praticaram qualquer acto que pudesse ser gerador dos danos invocados pelos AA., sendo que inexiste qualquer nexo de causalidade entre a alegada falta do consentimento e esses danos.
Requereram a intervenção principal provocada de Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A., e de Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A.
1.5. Os AA. responderam por escrito, propugnando pela improcedência da excepção dilatória deduzida pelas 1.ªs RR., contestando o pedido reconvencional deduzido pela 2.ª R. (por entenderem nada ter a pagar), pronunciando-se pela sua absolvição do pedido de condenação por litigância de má-fé deduzido pelos 3.º, 4.ª e 5.ª RR. e, mantendo, no mais, a posição já expressa na petição inicial.
Quanto aos incidentes de intervenção de terceiros deduzidos pelos RR., declararam nada ter a opor.
Por despacho de 05.03.2028, tal articulado de resposta foi admitido, mas apenas no que concerne aos respectivos artigos 1.º a 19.º, 29.º, 34.º a 44.º, 86.º a 91.º e 108.º a 154.º, considerando-se tudo o mais como não escrito, por não ser processualmente admissível.
1.6. Por despacho de 04.05.2017, foram admitidas a intervir nos autos, na qualidade de co-rés, Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A., Fidelidade -Companhia de Seguros, S.A., e Generali Companhia de Seguros, S.p.A., ordenando-se a sua citação nos termos do art.º 319.º do CPC.
No que respeita a esta última, consignou-se no referido despacho o seguinte: «À seguradora é facultada a legitimidade bastante para intervir na ação interposta pelo lesante como parte principal, razão pela qual se admite o chamamento da “Generali Companhia de Seguros, S.A.” a título de intervenção principal provocada e não nos termos requeridos pela ré  F .».
Tal despacho foi, contudo, revogado por acórdão desta Relação de 10.05.2018, na parte em que admitiu a intervenção principal provocada de Generali Companhia de Seguros, S.p.A., que determinou que se considerasse a respectiva intervenção como acessória (apenso A) – cfr., ainda, despacho de 05.07.2018.
1.7. A interveniente Generali – Companhia de Seguros, S.A., (actualmente, Generali Seguros, S.A. – cfr. despacho de 03.11.2021) contestou, defendendo que, atenta as exclusões do contrato de seguro que celebrou com a 2.ª R.,  não lhe pode ser imputada qualquer responsabilidade no caso de a 2.ª R. vir a ser responsabilizada por actos praticados pelo médico externo Dr. J, sendo que, no que respeita a qualquer responsabilidade que possa vir a existir, imputável aos 3.º, 4.ª e 5.ª RR., a mesma terá como limite os montantes das garantias assumidas no âmbito do contrato de seguro e a franquia contratualmente estipulada. No mais propugnou pela improcedência da pretensão dos AA., acompanhando o alegado pela 2.ª R., sua segurada.
1.8. A interveniente Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A., contestou, alegando que, de acordo com os contratos de seguro que celebrou com o médico J e com os 3.º e 4.ª RR., o limite da sua responsabilidade, para cada sinistro, é de €300.000,00, sendo que, a haver responsabilidade dos referidos RR., as perdas indirectas de qualquer natureza e os lucros cessantes reclamados pelo A. não se encontram cobertos. Quanto à questão de fundo, declarou subscrever as contestações dos RR.
1.9. A interveniente Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., contestou, alegando que o contrato de seguro que celebrou com a 5.ª R. estabelece uma franquia correspondente a 10% do valor dos prejuízos no mínimo de €125,00, sendo o capital seguro de €600.000,00, limitado a €300.000,00 por sinistro, e excluindo a  responsabilidade decorrente de actos ou omissões dolosos do segurado ou das pessoas seguras e da violação dolosa dos deveres profissionais e deontológicos. Acrescenta que a 5.ª R. não participou o sinistro, por escrito, no prazo previsto no contrato, e que a mesma tem outro seguro de responsabilidade civil contratado com a seguradora AXA Seguros, S.A., devendo a sua responsabilidade ser limitada a metade. No mais, impugnou, motivadamente, qualquer responsabilidade da sua segurada, bem como os danos invocados.
1.10. Os AA. responderam à excepção peremptória deduzida pela Interveniente Generali, defendendo que a alegada cláusula de exclusão de cobertura de seguro não é susceptível de impedir o efeito jurídico dos factos por si alegados.
1.11. Com dispensa da audiência prévia, foi admitido o pedido reconvencional deduzido pela 2.ª R. contra os AA. e foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva das 1.ªs RR, tendo-se, ainda, fixado o objecto do litígio e enunciados, concretamente, os temas da prova.
1.12. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença em 13.05.2022, que culminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo que fica exposto, julgando a ação parcialmente procedente por provada e o pedido reconvencional deduzido pelo reconvinte F. procedente por provada, decide-se:
a) Absolver os réus G, H e I, assim como as chamadas Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A. e Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A., esta apenas enquanto garante da responsabilidade dos RR. G e H, dos pedidos contra si deduzidos;
b) Condenar solidariamente C; D e E, na qualidade de herdeiros de J; F; Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de garante da responsabilidade de J, e Generali Companhia de Seguros, S.A. nos seguintes montantes:
- €60.000 (sessenta mil euros) relativos a danos biológicos sofridos pelo autor;
- €40.000 (quarenta mil euros) relativos a danos não patrimoniais sofridos pelo autor;
- €26.618,92 (vinte seis mil seiscentos e dezoito euros e noventa e dois cêntimos) a título de danos patrimoniais sofridos pelo autor.
c) Condenar C; D e E, na qualidade de herdeiros de J e Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de garante da sua responsabilidade, no pagamento ao autor da quantia de €15.374,79 (quinze mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos) a título de danos patrimoniais do autor e €2500 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais à autora;
d) Condenar os aludidos réus em juros de mora legais para obrigações civis desde a data de propositura da e ação e até integral pagamento.
Custas da ação serão suportadas pelos autores e pelos réus condenados, na proporção do decaimento, sendo as custas da reconvenção suportadas pelos autores reconvintes, dispensando-se o pagamento de qualquer taxa remanescente eventualmente devida».
1.13. Inconformada apelou, em 14.06.2022, a Interveniente Acessória Generali Seguros, S.A., pedindo que tal sentença seja revogada e formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1 – A sentença recorrida violou quanto dispõem os artigos 321º e ss. do CPC, 70º, 483º, 487º, 497º, 500º, 798º, 799º e 800º do CC e 3º, 4º, 7º, 34º, 44º, 47º e 48º do Código Deontológico dos Médicos, constante do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de Janeiro;
2 – Assim, em primeiro lugar, sendo a posição da Generali Seguros, SA uma posição de Interveniente Acessória e não Principal, nunca poderia ser condenada nesta acção, como foi, solidariamente com as Rés, partes principais nos autos;
3 – A intervenção acessória está prevista no art.º 321º do CPC, que estipula que “O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar da defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal (nº 1).
A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento.”;
4 - Estamos perante um contrato de seguro de responsabilidade civil voluntário, ao qual se aplicam, nomeadamente, as normas estabelecidas nos arts. 137° e ss. Do Dec-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro);
5 - Nos contratos de seguro facultativo as seguradoras apenas assumem (garantem) perante o tomador do seguro a eventual responsabilidade civil por danos causados a terceiros, não se constituindo, no entanto, como garantes directos da responsabilidade do segurado perante os lesados;
6 - A relação jurídica em causa nos autos, tal como foi delimitada pelos autores na petição inicial, articula-se, assim, entre os lesados, e a tomadora do seguro, enquanto lesante;
7 - Diferente (embora conexa com ela) será a relação material estabelecida entre o lesante e a seguradora, relação que se constituiu com a celebração do contrato de seguro;
8 - A seguradora só indirectamente surge conexionada com a relação principal, por ter assumido, mediante o contrato de seguro, a eventual responsabilidade deste último, garantindo-o a ele e ao seu património, mas não se constituindo como garante directo perante aquele terceiro lesado;
9 - Quer isto dizer que a intervenção da chamada, na situação dos autos, se restringiu ao auxílio da defesa quanto à responsabilidade pelo pagamento peticionado (art.º 323º nº 4 do CPC);
10 - Por outras palavras, tal instituto jurídico visa tornar indiscutíveis certos pressupostos de uma futura e eventual acção de regresso contra o terceiro, nele repercutindo o prejuízo que lhe cause a perda da demanda (cfr. neste sentido M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 178; A. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, in Processo Civil, pág. 65);
11 - A significar que a ora Recorrente não pode ser directamente condenada a liquidar qualquer quantia aos AA;
12 - Impondo-se, consequentemente, a revogação da sentença recorrida na parte em que condena a ora Recorrente solidariamente;
13 - Sem prejuízo do supra exposto e a acrescer, a ora Recorrente considera que o facto elencado sob o ponto 79 da factualidade dada como provada deve ser alterado, face à prova produzida, considerando igualmente que da mesma prova resultou demonstrado um facto da maior relevância para a boa decisão da causa que não foi considerado pelo Tribunal a quo e que deverá ser aditado;
14 - Quanto à questão da alteração do facto constante do ponto 79 da factualidade dada como provada, cumpre referir que, em face da factualidade elencada nos pontos 38, 39, 44, 45, 60 e 80, se verifica que o quadro clínico de lesão neurológica irreversível, com desenervação ativa nos territórios de L4-L5 e L5–S1, corresponde ao “síndrome de cauda completo” e foi diagnosticado logo após a intervenção cirúrgica realizada no dia 12/12/2014, ou seja, logo após a primeira cirurgia;
15 - Isto significa que os danos sofridos pelo Autor, concretamente, “ausência de sensibilidade no pé direito e sensibilidade reduzida no pé esquerdo, ausência total de sensibilidade na zona testicular e peniana” resultam, todos eles, da primeira cirurgia, já que as segunda e terceira cirurgias se destinaram tão só a proceder ao encerramento da fistula céfaloraquidiana que estava a originar o vazamento de líquido liquor, colocando em sério risco a vida do Autor;
16 – Isso mesmo resulta também das declarações de parte do Réu G, médico (depoimento gravado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início pelas 15h53m e termo às 17h15m), concretamente, ao Minuto 1:24, ao Minuto 3:24, ao Minuto 4:20, ao Minuto 4:50, ao Minuto 6:50, ao Minuto 9:19, ao Minuto 10:36, ao Minuto 13:16, ao Minuto 19:00, ao Minuto 20:33, ao Minuto 23:06, ao Minuto 42:22, à 1 Hora:07minutos, à 1 Hora:11 minutos e à 1 Hora:14 minutos;
17 – E resulta ainda do relatório do Dr. J de 28.12.2014, junto à contestação apresentada pela G como doc. nº 1 a fls. 5, onde consta a propósito da cirurgia realizada em 12.12.2014, “Na primeira observação após a cirurgia o doente apresentava um síndrome da cauda completo, pelo que só poderia tratar-se de uma fístula de LCR. (…)”;
18 - Ainda no mesmo doc. nº 1 junto com a referida contestação, a fls. 10, consta um relatório clínico elaborado em 30 de dezembro de 2014, pelo Director Clínico do Hospital em exercício, no qual se lê: “Doente de 64 anos admitido pelo Dr. J, neurocirurgião, para foraminotomia e discectomia L4-L5. Tem antecedentes de cirurgia de hérnia lombar em Setembro de 2014 no H CUF mas continuou a referir queixas de dor e redução da mobilidade do membro inferior direito. Foi operado pelo Dr. J dia 12/12/2014 com foraminotomia e discectomia L4-L5. No pós-operatório imediato teve sequelas neurológicas com alterações da mobilidade e sensibilidade nos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira pelo que efectuou revisões cirúrgicas dias 13 e 15/12/2014. Mantém sequelas neurológicas que carecem de reabilitação física pelo que foi pedida observação pelos colegas de fisiatria do centro de medicina física e reabilitação do Alcoitão.”;
19 - Ora, o supra exposto, implica assim a alteração do facto dado como provado no ponto 79. da matéria de facto dada como provada, do mesmo devendo passar a constar que, “Em consequência da cirurgia realizada em 12/12/2014, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação ativa nos territórios de L4-L5 e L5–S1.”;
20 - Efectivamente, foi apenas na sequência desta cirurgia e não das cirurgias subsequentes que o A. passou a sofrer de sequelas neurológicas que determinaram alterações da mobilidade e sensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira (zona perineal, peniana e anal);
21 - Pelo que só esta alteração da matéria de facto nos termos expostos, espelha com rigor a prova que foi produzida a este respeito;
22 - Por outro lado, das declarações de parte do Dr. G nas passagens supra assinaladas, conjugadas com os excertos dos relatórios médicos acima transcritos, constatamos que no pós-operatório imediato à primeira cirurgia realizada no F pelo Dr. J em 12/12/2014, o A. apresentava um síndrome da cauda completo, decorrente de uma fístula de líquor;
23 - Ora, conforme o Dr. G assinalou ao minuto 23:06 e 1hora:14 minutos das suas declarações de parte gravadas em 11 de fevereiro de 2022, com início pelas 15h53m e termo às 17h15m, o síndrome da cauda completo é uma urgência médica, que tem que ser tratada nas primeiras 12 horas, sob pena de se tornar irreversível;
24 – Conforme resultou provado, tal não aconteceu, ou seja, o Dr. J, apesar de se ter apercebido, no pós-operatório imediato, “que o doente apresentava um síndrome da cauda completo, pelo que só poderia tratar-se de uma fístula de LCR”, não tratou, nem tão pouco tentou tratar, esta lesão neurológica nas primeiras 12 horas, como mandam as boas práticas clínicas e como era sua obrigação;
25 - Optou por levar o doente ao bloco para reintervenção apenas no dia 13 de dezembro, tendo apenas tentado, sem sucesso, o encerramento da fístula. E depois, só no dia 17 o levou novamente ao bloco…
26 - Ou seja, mesmo que se considere, como entendeu o Tribunal a quo, que o síndrome da cauda completo e a fístula com perda de líquor são intercorrências, riscos próprios do acto cirúrgico e como tal, insusceptíveis de imputação de responsabilidade ao Dr. J porque, atenta a prova produzida, não se sabe se resultaram de má prática clínica,
27 - A verdade é que, tendo tais intercorrências sido constatadas pelo referido médico logo após o acto cirúrgico realizado no dia 12 de dezembro, era-lhe exigível que reintervencionasse o doente de imediato, para tentar reverter a lesão neurológica causada durante o acto cirúrgico, conforme bem resulta das declarações de parte do G;
28 – Pois só assim poderia evitar ou, porventura, minorar as sequelas neurológicas que determinaram alterações da mobilidade e sensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira (zona perineal, peniana e anal);
29 - Neste contexto, afigura-se da maior relevância, por ter resultado da prova produzida e por ter consequências no enquadramento jurídico a adoptar, que seja aditado um facto ao elenco dos factos provados, com o seguinte teor:
- O síndrome da causa completo é uma lesão neurológica que consubstancia uma urgência médica, devendo ser tratado nas primeiras 12 horas, sob pena de se tornar irreversível;
30 - Em face do aditamento deste facto, conjugado com a restante factualidade provada e com a alteração referida relativamente ao ponto 79, temos de concluir que o Dr. J, tendo detectado a lesão decorrente do acto cirúrgico do dia 12 de dezembro, logo no pós-operatório imediato, identificando-a, deveria ter nas 12 horas subsequentes, tentado reverter o quadro;
31 - Pelo que, ao não o ter feito, violou a leges artis e causou, com tal comportamento, sequelas irreversíveis na pessoa do A.;
32 - Estamos, pois, perante um quadro de responsabilidade contratual, no âmbito do contrato de prestação de serviços celebrado entre o Autor e o Réu médico. Neste sentido, Moitinho de Almeida ("A Responsabilidade Civil do Médico e o seu Seguro”, publicado na "Scientia Ivrídica", Tomo XXI, 1972, pág. 327 e segs);
33 - De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis);
34 - Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC;
35 - Assim, num caso como o dos autos em que, no pós-operatório imediato a uma cirurgia de uma hérnia, se verifica uma fístula de líquor com síndrome da causa completo, é obrigação do médico, de acordo com as boas práticas clínicas e conforme resultou provado pelas declarações de parte do Dr. G, tentar reverter o quadro, intervencionando o doente nas 12 horas seguintes, uma vez que se sabe, da ciência médica, que após esse período temporal as sequelas neurológicas decorrentes (insensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira) se tornam irreversíveis;
36 - Pelo que, não tendo sido esta a opção seguida pelo Dr. J, é de considerar verificada a prática de um ato ilícito violador da integridade física da paciente;
37 - Nessas circunstâncias, presumindo-se a culpa do médico operador, incumbirá ao devedor da prestação provar que tal ocorrência não lhe é imputável por falta de cuidado ou de imperícia, nos termos do artigo 799.º do CC. Prova essa que manifestamente não foi feita;
38 - Pelo que devem, in casu, as herdeiras do Dr. J, ser responsabilizados em conformidade, impondo-se com este fundamento a revogação da sentença recorrida;
39 – Passando à análise da questão do consentimento informado, resulta da factualidade dada como provada em 3., 25. e 29. da matéria de facto constante da sentença recorrida que, para a cirurgia de 12 de dezembro de 2014, o Dr. J reservou o bloco operatório e realizou a intervenção cirúrgica;
40 - O F, como mero cedente do espaço, não conhece nem tem de conhecer que tipo de cirurgia vai ser realizada, pelo que não lhe compete, nem tem de competir, assegurar que o médico cumpre os deveres de informação que lhe são imputáveis;
41 - Se dúvidas persistissem sobre o enquadramento jurídico a adoptar atenta a factualidade provada em 3., 25. e 29., tais dúvidas ficam totalmente esclarecidas, mais uma vez, com as declarações de parte do Dr. G (depoimento gravado pelo sistema H@billus Média Studio, no dia 11 de fevereiro de 2022, com início pelas 15h53m e termo às 17h15m), ao Minuto 36:15, ao Minuto 37:50 e ao Minuto 38:29;
42 - De acordo com o preceituado nas disposições conjugadas dos arts. 3º, nº 1, 4º, 34º e 44º do Código Deontológico dos Médicos, constante do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de Janeiro, o médico, no exercício da sua profissão, é técnica e deontologicamente independente e responsável pelos seus actos, existindo eventual responsabilidade do hospital apenas nos casos em que os médicos exerçam a sua profissão àquele vinculados;
43 - Inexistem, pois, fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão de condenação do Réu Hospital com base em responsabilidade objetiva prevista no artigo 800.º do Código Civil, já que não ficou provado que o Autor tivesse contratado diretamente com o Réu Hospital a prestação de quaisquer serviços;
44 - A factualidade assente não evidencia que o Dr. J tivesse atuado como auxiliar no cumprimento dos serviços contratados entre o Autor e o Réu Hospital, mas sim o inverso: o Réu Hospital cedeu ao Dr. J os seus meios e instalações para que este executasse a cirurgia que lhe foi solicitada pelo Autor, o que é incompatível com o sentido da norma prevista no artigo 800º do Código Civil;
45 - A escolha do Autor nesta concreta prestação de serviços recaiu sobre o Dr. J, intuitu personae, e não sobre o Réu Hospital, o qual interveio na mesma como auxiliar do seu cumprimento;
46 - Donde, é forçoso concluir que a relação contratual foi estabelecida pelo Autor com o Dr. J, a quem solicitou diretamente a prestação de serviços de saúde;
47 - A factualidade provada apenas permite concluir que o Autor estabeleceu relação contratual com o Dr. Jou, quanto muito, duas relações contratuais conexas com sujeitos e âmbitos distintos: a primeira com o Dr. J para prestação de cuidados de saúde, a segunda com o Réu Hospital para fornecimento de instalações e meios necessários à prestação daqueles cuidados;
48 - De uma forma ou de outra, ao contrário do entendimento plasmado na sentença recorrida, não tem aplicação o disposto no artigo 800º do Código Civil;
49 - Na modalidade de contrato dividido que está presente in casu, o Réu Hospital assume contratualmente apenas a parte relativa aos meios para a prestação do serviço, sendo o médico contratualmente responsável pelos seus atos e pelos atos das pessoas que utilize no cumprimento da prestação acordada com o Autor;
50 - Uma vez que não resultou provado que a realização da cirurgia em apreço tenha sido contratada pelo Autor diretamente com o Réu Hospital, este não pode ser responsabilizado por (eventual) incumprimento ou cumprimento defeituoso de uma prestação não contratada entre o Autor e o Réu Hospital, in casu, a violação dos deveres de informação prévios ao acto cirúrgico;
51 - E bem assim, também não resultaram provados factos que apontem no sentido da prática de ato ilícito por parte do Réu Hospital, nem do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso de qualquer obrigação a que estivesse concretamente vinculado, decorrente de contrato celebrado (a ter sido) com o Autor;
52 - Por assim ser, inexistem fundamentos de facto e de direito para condenar solidariamente o Réu Hospital já que, nos termos do disposto no artigo 513º do Código Civil, a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes;
53 - Pelo que, mesmo que se considere a existência de um contrato com pluralidade de devedores - como parece ser o que resulta da fundamentação da sentença recorrida - impõe-se aplicar o regime geral das obrigações conjuntas ou parciárias (cfr. 796º, n.º 3 do Código Civil);
54 - Se acaso se considerar insuficiente para este enquadramento jurídico (quanto a nós cristalino) o elenco da factualidade dada como provada a este respeito e supra transcrita, então, em consonância com as declarações de parte do Dr. G nas passagens supra referidas (minuto 36:15, minuto 37:50 e minuto 38:29) deverá aditar-se à factualidade provada, o seguinte facto: “No âmbito do contrato celebrado entre o Dr. J e o Hospital F, em casos de realização de uma cirurgia, apenas foi acordada a cedência, em dia e hora pré-agendados, de um quarto, de um bloco operatório, de uma anestesista e de um instrumentista.”;
55 - No âmbito da responsabilidade contratual - que o douto Tribunal a quo considerou ser o regime aplicável no caso concreto - não tem aplicabilidade a regra da solidariedade estabelecida na responsabilidade extracontratual (cfr. artigo 497º do Código Civil), já que a mesma não resulta da lei, nem resultou provado que tivesse havido acordo das partes a esse respeito;
56 - Assim, a concluída verificação de responsabilidade objetiva do Réu Hospital fundada no artigo 800º do Código Civil está inquinada de erro de julgamento, em resultado de uma inexata qualificação jurídica da intervenção do Réu Hospital nos factos em discussão que não encontra fundamento na matéria de facto provada;
57 - A par deste, a decisão de condenação solidária do Réu Hospital é igualmente inadmissível por ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, no âmbito da responsabilidade contratual, donde a decisão está ferida de nulidade (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC);
58 - Ainda quanto à questão da inexistência de relação contratual entre o A. e o Réu Hospital, ou existência de duas relações contratuais (uma entre o A. e o médico, e outra entre o A. e o Réu Hospital), importa ter em conta a tipologia que a doutrina mais recente propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados (ver André Dias Pereira, Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., págs. 684 e segs., desenvolvendo a proposta de Carlos Ferreira de Almeida, “Os contratos civis de prestação de serviço médico”, in Direito da Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, págs. 75 e segs.), tipologia que aqui se indica: (i) “contrato total”, que é “um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)”; (ii) “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional)”, que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”; (iii) “contrato dividido”, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos).”;
59 - Perante a prova feita, conjugada com o facto aditado resultante das declarações do G, afigura-se que se tratará de uma situação de “contrato dividido” ou autónomo pelo qual o A. e o Réu Hospital, acordaram que este prestaria àqueles serviços “decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.)”;
60 - Identifica-se, assim, uma relação contratual entre o A. e o Dr. J, que tem como objecto a prestação dos serviços especificamente médicos; e uma outra relação contratual entre o A. e o Réu Hospital, que não envolve a prestação de serviços médicos em sentido estrito;
61 - Deste modo, quanto ao fundamento da acção relativo à realização da cirurgia do dia 12 de dezembro de 2014 à hérnia de que o A. padecia, o Dr. J não é auxiliar de cumprimento das obrigações do Réu Hospital, não podendo, pois, este ser responsabilizado pela conduta daquele (ao abrigo do regime geral do art.º 800º, nº 1, do Código Civil);
62 - Assim, tendo-se concluído na sentença recorrida pela responsabilidade do Dr. J com fundamento na falta de consentimento devidamente informado do A., não pode responsabilizar-se o Réu Hospital, pela conduta do mesmo médico, neste sentido, vide, por todos, Ac. do STJ de 22.03.2018, disponível em www.dgsi.pt.
63 - A acrescer, cumpre recordar que, uma vez que as lesões e sequelas decorrentes do acto médico, decorrem todas elas da primeira cirurgia – a de dia 12 de dezembro de 2014 – de nada releva a informação ou ausência dela, porventura prestadas ou não prestadas nas cirurgias do dia 13 de dezembro e do dia 17 de dezembro;
64 - Uma vez que, na sequência dessas, não ocorreu nenhum dano, pressuposto para a existência de responsabilidade civil;
65 - Acresce que, sendo cirurgias urgentes, conforme se demonstrou que eram, presume-se o consentimento, nos termos do disposto no art.º 47º do Código Deontológico dos Médicos, constante do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de Janeiro;
66 - Finalmente e conforme resulta do disposto no art.º 44º do citado diploma, não se afigura que fosse obrigação do médico comunicar ao A. o risco de paraplegia, ainda assim raro e excessivamente preocupante para o doente;
67 – A Recorrente não se conforma também com a sentença recorrida, por ter desconsiderado o âmbito da cobertura do contrato de seguro por si celebrado com a F, S.A., o qual não cobre a responsabilidade civil contratual, com base na qual se concluiu pela condenação, não cobrindo igualmente danos provocados por actos de natureza profissional das pessoas sem vínculo laboral com o Segurado;
68 – Com efeito, nos termos do Capítulo I, das “Condições Particulares” (Continuação) do contrato celebrado, sob a epígrafe “Âmbito do Contrato”, é garantida pela ora Recorrente apenas “a responsabilidade, de natureza extra-contratual (...)” “como reparação de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, involuntariamente causados a terceiros em consequência de factos acidentalmente ocorridos durante a actividade exercida nas suas instalações (…)”, vide doc. nº 2 junto com o articulado apresentado pela Interveniente Acessória GENERALI SEGUROS, SA. (cópia de fls. 474 a 496 dos autos, aqui dados por reproduzidos);
69 – E nos termos do Capítulo III, das “Condições Particulares” (Continuação) do contrato celebrado, sob a epígrafe “Exclusões”, “(…) a Seguradora não será responsável por: 6. Responsabilidade Civil pessoal legalmente imputável aos legítimos representantes do Segurado ou às pessoas ao seu serviço e pelas quais o  Segurado seja civilmente responsável; 7. Danos provocados por actos de natureza profissional das pessoas sem vínculo laboral com o Segurado, que exerçam a sua actividade no Hospital da Cruz Vermelha; (…) 11. Danos causados por pessoas que não tenham relação de dependência laboral do Segurado e de cuja actividade este se sirva no exercício da sua; (…)”, vide doc. nº 2 junto com o articulado apresentado pela Interveniente Acessória GENERALI SEGUROS, SA. (cópia de fls. 474 a 496 dos autos, aqui dados por reproduzidos);
70 - Termos em que, quer a responsabilização pelos danos sofridos pelo A. seja em consequência de má prática médica como supra se defendeu, quer seja em consequência da violação dos deveres de informação, ambas têm natureza de responsabilidade civil contratual, estando, por conseguinte, excluídas do âmbito da cobertura do contrato celebrado;
71 - De igual modo, mesmo que se opte pela responsabilidade solidária do Hospital e do médico, o que aqui estamos em crer, não é possível, fundamentando-se essa responsabilidade num acto de natureza profissional do Dr. J, está a mesma excluída do contrato de seguro, na medida em que o médico não tinha vínculo laboral com o hospital;
72 - Termos em que, em face do exposto, deve a sentença recorrida ser revogada em conformidade, julgando-se a acção improcedente relativamente à ora Interveniente Generali Seguros, SA.».
1.14. Também inconformadas apelaram, em 20.06.2022, as 1.ªs RR., pedindo que seja «revogada a decisão recorrida na parte em que condenou as ora recorrentes ao dever de indemnizar», formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1.ª O presente recurso é interposto da sentença na parte em que decidiu:
b) Condenar solidariamente C; D e E, na qualidade de herdeiros de J; F.; Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de garante da responsabilidade de J, e Generali Companhia de Seguros, S.A. nos seguintes montantes:
- €60.000 (sessenta mil euros) relativos a danos biológicos sofridos pelo autor;
- €40.000 (quarenta mil euros) relativos a danos não patrimoniais sofridos pelo autor;
- €26.618,92 (vinte seis mil seiscentos e dezoito euros e noventa e dois cêntimos) a título de danos patrimoniais sofridos pelo autor.
c) Condenar C; D e E, na qualidade de herdeiros de J e Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de garante da sua responsabilidade, no pagamento ao autor da quantia de €15.374,79 (quinze mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos) a título de danos patrimoniais do autor e €2500 (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais à autora;
d) Condenar os aludidos réus em juros de mora legais para obrigações civis desde a data de propositura da e ação e até integral pagamento.
2.ª A responsabilização que a sentença recorrida imputa às ora recorrentes emerge de actos que não praticaram, mas que a sentença imputa ao falecido médico Dr. J, marido da primeira recorrente e pai da segunda e terceira.
3.ª Tal sentença fundamenta-se, na parte respeitante ao referido de cuius em responsabilidade delitual, ou seja, extracontratual, como resulta expressamente da sua fundamentação de Direito, no quadro de uma obrigação de meios que não de resultados.
4.ª É disso que se recorre (i) na parte em estão em causa actos que as recorrentes não praticaram e pelos quais não podem ser pessoalmente responsabilizadas (ii) na parte em que não se lhes transmite o dever de satisfazer pelas forças da herança quaisquer quantias indemnizatórias, porquanto as mesmas não estavam reconhecidas como dívida do seu de cuiús  (iii) naquilo que se entende não ter ocorrido acto ilícito da parte do referido clínico que pudesse ser causa adequada destes danos que se encontram em apreço, porquanto os que integram o objecto da acção são essencialmente imputados a má prática médica e só lateralmente ao decorrente da não prestação de esclarecimento quanto ao risco das intervenções cirúrgicas e não obtenção de consentimento informado.
5.ª A sentença recorrida expressamente afirma que não se pode concluir que o médico cirurgião, Dr. J, marido da primeira recorrente e pai da segunda e terceira, ao efectuar três cirurgias sucessivas na pessoa do primeiro coautor no F, tenha praticado ou omitido qualquer acto ilícito a nível de má prática clínica que tenha gerado dano biológico (páginas 39 e 40 das 50 do PDF) e afasta, por isso, a sua condenação com esse fundamento.
6.ª A sentença recorrida, por seu turno, consignando que o Dr. J sofria à data uma doença oncológica, conclui expressamente que tal não significou limitação física que se haja traduzido nos actos cirúrgicos a que procedeu, ou que implicasse o dever de se abster de os praticar (páginas 41 a 43 das 50 do PDF) e também afasta, por isso a sua responsabilização com esse fundamento.
7.ª A condenação assenta, sim, no facto de a sentença ter dado como provado que não foi obtido o consentimento informado do primeiro autor, paciente relativamente ao qual se efectuaram intervenções cirúrgicas em causa, nem ter sido o mesmo informado dos riscos inerentes às mesmas (factos tidos como provados sob os números 33 e 34 quanto à primeira intervenção cirúrgica, 41 no que respeita à segunda e 46 relativamente à terceira), omissão que a sentença imputa ao médico Dr. J e ao hospital onde tiveram lugar as intervenções cirúrgicas em causa (a F), ré na acção (página 43 de 50 do PDF).
8.ª A acção cível em causa, que alega danos ocorridos no quadro de três intervenções cirúrgicas efectuadas em Dezembro de 2014 (respectivamente a 12.12.2014, 13.12.2014 e 17.12.2104), foi interposta em 2016 (concretamente a 11.07.2016), quando o Dr. J havia falecido em 2015 (mais precisamente a 26.04.2015) pelo que foi proposta, já não contra o médico, mas sim contra as herdeiras ora recorrentes.
9.ª 17. As ora recorrentes é que não podem ser condenadas, em sede de responsabilidade civil, por actos que não praticaram, nem por omissão de deveres a que não poderiam estar adstritas, ou seja, relativamente a condutas face às quais não lhes é imputável qualquer juízo de culpa.
10.ª Também no que se refere à demonstração de ter havido prestação de esclarecimento sobre os riscos da intervenção e obtenção pré-operatória de declaração de consentimento informado, trata-se de ónus que é impossível ser satisfeito pelas recorrentes por não terem consigo qualquer documentação com essa natureza porquanto a mesma está nos arquivos do F, pelo que a sentença recorrida (páginas 43-44 de 50 do PDF) não pode considerar que esse ónus lhes seja oponível.
11.ª A sentença recorrida enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação dos artigos 483º, n.ºs 1 e 2, 486º, 487º, n.ºs 1 e 2, 496º, n.ºs 1 a 4 e 563º do Código Civil, porquanto os referidos preceitos exigem, para a sua verificação, a prática, em autoria, de factos ilícitos que sejam causa adequada de danos e no caso as rés ora recorrentes não praticaram quaisquer actos com essa natureza e inexiste, em relação ao Dr. J., nexo causal adequado entre a conduta que lhe é imputada e os danos que estão indicados como ressarcíveis.
12.ª A sentença recorrida enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação do artigo 2068º do mesmo diploma, o qual concretizando um princípio geral expresso, a contrario, no artigo 2025º do Código Civil, apenas permite a responsabilização civil por «dívidas do falecido» e no caso não há decisão judicial transitada prévia à abertura da herança e sua aceitação que reconheça qualquer dívida do de cuius, nomeadamente aquelas que foram elencadas na acção como exigíveis a título de responsabilidade extracontratual.
13.ª Dando a aludida sentença como assente (páginas 43-44 de 50 do PDF) que as rés não fizeram prova de ter sido obtido o consentimento informado – e afinal a prestação dos esclarecimentos que permitissem avaliar o risco das intervenções cirúrgicas –, facto é que essa possibilidade (rectius, esse ónus) não pode ser invocada contra as ora recorrentes, porquanto a documentação clínica e respectivos registos pré-operatórios, não só não estão em seu poder, como está demonstrado que ficaram no hospital onde a intervenção teve lugar e que, aliás, os fez chegar aos autos, como decorre dos mesmos.
14.ª Não é de excluir que tais danos decorram de caso fortuito e este não pode fundamentar a responsabilização civil.
(para além disso)
15.ª A sentença recorrida enferma de erro de Direito (i) ao ter dado como assente a inexistência de consentimento informado ante a inexistência de documento escrito (facto provado 33), porquanto nos termos do Código Deontológico dos Médicos vigente à data (Regulamento 14/2009, publicado no Diário da República, 2ª Série, n.º 8 de 13 de Janeiro de 2009) o consentimento poderia ser prestado por forma oral, nada existindo juridicamente que obrigasse à existência no caso de forma escrita (artigo 48º, que se cita), isto não relevando que o referido Código admitia, aliás, o consentimento implícito e caso de urgência (artigo 47º) (ii) e no caso dos autos há elementos relevados entre os factos não provados que não permitem excluir que – independentemente do documento que possa existir e as recorrente não têm em seu poder por integrar o arquivo do hospital – tenham sido prestados os esclarecimento e a anuência do paciente às intervenções cirúrgicas tenham decorrido no quadro de um consentimento informado.
16.ª A sentença recorrida enferma de erro de Direito, por violação dos artigos 483º e 486º do Código Civil, ao ter dado como assente que a omissão de obtenção do consentimento informado após prestação de esclarecimentos ao paciente quanto ao risco das intervenções cirúrgicas gerou, como sua causa adequada, os danos cujo ressarcimento patrimonial exige, porquanto (i) não se pode considerar, em termos de adequação do nexo causal, que os danos que estão em avaliação sejam resultado causal adequado daquelas omissão de esclarecimento e obtenção de consentimento informado e, assim (como veremos) (ii) a haver ressarcibilidade a mesma apenas pode recair (nos termos dos artigo 70º e 573º e 483º do Código Civil) sobre o dano moral decorrente da violação da autodeterminação da pessoa, a sua liberdade de opção, como se verá de seguida.
17.ª Os danos que estão em apreço, tal como foram configurados pela parte autora (artigos 409º da petição inicial) são os emergentes de intervenções cirúrgicas, por um lado, e também das condições em que se verificou o post-operatório, que imputa ao falecido Dr. J., a título de violação de leges artis, porquanto relativamente ao não esclarecimento dos riscos das intervenções cirúrgicas e à omissão de obtenção do consentimento informado (artigos 359º da petição inicial) tal é delineado como integrando «consequências laterais» indemnizáveis.
18.ª Ora a sentença exclui de modo expresso (páginas 39 a 43 de 50, do PDF) que os danos em causa tenham emergido de actuação do Dr. J, cuja competência e zelo, aliás a decisão recorrida exalta.
19.ª Uma omissão de esclarecimento e concomitante obtenção de consentimento informado por parte de um paciente sujeito a intervenções cirúrgicas não é causa adequada dos danos que integram a primacial causa de pedir da acção, em termos de fundamentar a responsabilidade civil do cirurgião, porque essa foi assacada em virtude da prática de actos clínicos, o que a sentença recorrida rejeitou que possa ter ocorrido.
(enfim, o que subsidiariamente se suscita)
20.ª Mesmo que (o que subsidiariamente se suscita) se configure que haja responsabilidade civil emergente da omissão do dever de esclarecimento e da obtenção do consentimento informado, essa responsabilização apenas pode relevar naquilo em que tenha atentado contra a autodeterminação do paciente, à sua liberdade de escolha (artigos 70º e 573º do Código Civil), e não pode ser extensiva, sob pena de violação do princípio da causalidade adequada (artigo 483º do mesmo diploma) a danos que só poderiam ter sido causados de modo adequado por má prática médica e no caso essa situação está excluída no que ao Dr. J respeita.
21.ª Por via disso, a ser legalmente possível (e não é) decretar a responsabilização das rés pela intervenção sem consentimento a mesma teria de se circunscrever, em critérios de equidade, ao que resultar daquela circunstância da omissão do dever de esclarecimento e não obtenção do consentimento informado, e não de danos que não resultem como efeito causal adequado de actos cirúrgicos quando, como é o caso, a sentença dá como adquirido que não está provado que o médico Dr. J haja dado causa aos mesmos.
22.ª Os artigos 70º, 573º e 483º do Código Civil (quando prevejam que, em caso de omissão do dever de esclarecimento e obtenção do consentimento informado, o médico, que não tenha actuado em má prática, que não esteja por isso incurso na violação das leges artis da sua profissão, mas em que, no final da sua intervenção e em virtude de caso fortuito, tenham ocorrido ou se tenham ampliado danos biológicos, haja que responder por esses danos e não apenas pelos emergentes da violação do princípio da autodeterminação e liberdade de escolha do paciente), violam o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da Lei Fundamental) porquanto, a ser assim, em duas intervenções cirúrgicas que tenham gerado danos, aquela em que não tenha ocorrido má prática e os danos resultem de caso fortuito, mas em que se verifique a omissão referida de esclarecimento e de obtenção do consentimento informado obrigaria a um dever de indemnização igual àquela outra em que tal má prática se tivesse verificado e fosse a causa de tais danos».
1.15. A Interveniente principal AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., declarou aderir ao recurso interposto pelas herdeiras do seu falecido segurado Dr. J (requerimento de 20.06.2022), nos termos do n.º 3 do art.º 634.º CPC.
1.16. Também inconformados apelaram, em 29.06.2022, os AA., pedindo que a sentença seja «…revogada…, em conformidade com o pedido em sede de petição inicial», formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1. Os Recorrentes consideram que a sentença recorrida não procedeu a uma correta apreciação da prova produzida e, consequentemente, a uma correta aplicação do Direito ao caso.
2. Os Recorrentes, consideram, assim, que deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
a. O Autor A deu entrada no Hospital F a 12 de dezembro de 2014, a caminhar pelo próprio pé, sem recurso a canadianas ou qualquer outro auxiliar de marcha;
b. A 1.ª cirurgia a que foi submetido aconteceu às 14h45 e terminou às 15h20 do mesmo dia 12/12/2014;
c. No imediato pós-cirúrgico, o Autor revelou perda de sensibilidade dos membros inferiores;
d. E pelas 7h do dia 13/12/2014, foi verificado que o AA. apresentava penso repassado com líquido sugestivo de ‘perda de liquor’ e lesão da ‘dura mater’;
e. Tendo, nesse turno da manhã do dia 13/12/2014, o Dr. J diagnosticado síndrome de cauda completo e fístula de LCR (líquido cefalorraquidiano);
f. A reparação da lesão da ‘dura mater’, que implica risco de vida para o doente, afigura-se como um procedimento life-saving, absolutamente emergente desde o momento em que se constata a perda de ‘liquor’;
g. O diagnóstico de síndrome de cauda completo exige intervenção urgente, nas primeiras 12 horas, sob pena de consolidação e irreversibilidade;
h. Não obstante, a 2.ª cirurgia iniciou-se às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, mais de 27 horas após os primeiros sintomas da síndrome de cauda, provocada pela má execução do Dr. J, na 1.ª cirurgia;
i. O Dr. J provocou uma laceração na ‘dura mater’, com ‘perda de liquor’, por inadvertida execução técnica no decurso da primeira cirurgia;
laceração que, igualmente por má execução técnica, não conseguiu reparar nas cirurgias seguintes (quer na 2.ª cirurgia, que teve início às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, quase 28 horas após a cirurgia durante a qual fora provocada a laceração; quer na 3.ª cirurgia, realizada no dia 17/12/2014, até ao momento em que teve de ser substituído pelo Dr. G ), não obstante essa reparação fosse um procedimento life-saving;
j. O Dr. J violou as mais elementares leges artis, não só na prestação de informação imprescindível a um consentimento livre e informado, como na execução das cirurgias, como, ainda, no acompanhamento pós-operatório – todas estas obrigações que sobre si impendiam;
k. O Dr. J encontrava-se diminuído nas suas capacidades à data das cirurgias realizadas ao AA., o que influenciou a sua execução e o (des)acompanhamento prestado ao doente.
3. Entendeu o Tribunal a quo que nada se apurou quanto ao incumprimento das leges artis por parte do Dr. J nas cirurgias por si realizadas ao Autor A, referindo mesmo que nada foi alegado quanto a esta matéria.
4. Antes de mais, os Autores alegaram, nos seus artigos 409.º a 412.º da PI, a violação das leges artis por parte do Dr. J, quer em virtude de uma atitude ativa quer em virtude de uma atitude omissiva; por outro lado, entendem os Autores, ora Recorrentes, que tal violação das leges artis resultou adequadamente sustentada em audiência de julgamento. Senão vejamos,
5. Entendem os Recorrentes que, da conjugação da carta de transferência de enfermagem (constante de fls. 3 e 4 do Doc. 1-Anexo A – c/ 12 fls. junto com a contestação da R. Cruz Vermelha) e do depoimento da testemunha VD (depoimento prestado no dia 14 de fevereiro de 2022, com início às 15h00m e termo às 15h49m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220214150036_19057238_2871033), deveria ter sido considerado provado o seguinte facto: “O Autor A deu entrada no Hospital da F a 12 de dezembro de 2014, a caminhar pelo próprio pé, sem recurso a canadianas ou qualquer outro auxiliar de marcha”;
6. Sendo a prova do referido facto relevante para demonstração da notória degradação física sofrida pelo Autor desde que deu entrada no Hospital da F.
7. Deveria a douta sentença ter dado também como provado que “A 1.ª cirurgia a que foi submetido aconteceu às 14h45 e terminou às 15h20 do mesmo dia 12/12/2014”, resultando tal documentalmente provado a fls. 60 do processo clínico junto pela R. F;
8. Sendo, também, a prova deste facto absolutamente essencial para a apreciação do cumprimento das boas práticas pelo médico cirurgião, bem como pelo Hospital, em termos de acompanhamento pós-cirúrgico;
9. Por outro lado, da conjugação da “avaliação de enfermagem pós-operatória imediata” (fls. 58 do processo clínico junto pela R. F) e dos registos efetuados pela Enf.ª L no turno da noite do dia 13/12/2014 e, especificamente, às 7h desse dia (fls. 77 e 78 do processo clínico junto pela R. F), resultou adequadamente demonstrado que, no imediato pós-cirúrgico, o Autor apresentou queixas de perda de sensibilidade.
10. Resultou também demonstrado do depoimento da testemunha AMR  (depoimento prestado no dia 14 de fevereiro de 2022, com início às 11h05m e termo às 11h39m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220214110445_19057238_2871033) que contactou telefonicamente o Dr. J às 7h desse dia 13/12/2014, procedimento que não é recorrente, porque considerou que as queixas de perda de sensibilidade justificavam esse cuidado.
11. Pelo exposto, entendem os Recorrentes que a sentença recorrida deveria ter considerado provado o seguinte facto “No imediato pós-cirúrgico, o Autor revelou perda de sensibilidade dos membros inferiores”.
12. Do mesmo registo efetuado pela Enf.ª L, pelas 07h00 do dia 13/12/2014 (fls. 77 e 78 do processo clínico junto pela R. F), se impunha que a sentença de que se recorre tivesse considerado provado o seguinte facto “E pelas 07h00 do dia 13/12/2014, foi verificado que o AA.
apresentava penso repassado com líquido sugestivo de perda de ‘liquor’ e lesão da ‘dura mater’.
13. Ora, após o contacto telefónico efetuado pela Enf.ª L pelas 7h, o Dr. J visita o doente, tendo percecionado a existência de dois diagnósticos: (i) síndrome de cauda completo e (ii) fístula de LCR, ou seja, líquido cefalorraquidiano (‘liquor’), decorrente de laceração da ‘dura mater’, conforme anotação efetuada, ainda nesse dia 13/12/2014, em sede de Diário Clínico, fls. 78 do processo clínico junto aos autos pela R. F
14. Impunha-se, pois, que a sentença tivesse considerado provado o seguinte facto: “Tendo, nesse turno da manhã do dia 13/12/2014, o Dr. J diagnosticado síndrome de cauda completa e fístula de LCR (líquido cefalorraquidiano)”.
15. Do depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033), resultou que este profissional de saúde, que substituiu o Dr. J na terceira cirurgia – 17/12/2014 – a que o Autor foi submetido nas instalações do Hospital da F, se deparou com um campo operatório que evidenciava uma laceração importante da ‘dura mater’ com perda de ‘liquor’ e que, por isso, a sua reparação se afigurava um life saving procedure, por comportar risco de vida para o doente; mais, resultou ainda do referido depoimento, que essa emergência de reparação surge desde o momento em que se constata a perda de liquor.
16. Pelo exposto, não poderá deixar de dar-se como provado o seguinte facto: “A reparação da lesão da ‘dura mater’, que implica risco de vida para o doente, afigura-se como um procedimento life-saving, absolutamente emergente desde o momento em que se constata a perda de ‘liquor’”.
17. A sentença recorrida procede também a uma errada avaliação da prova produzida quando refere que “Foi também claro ao declarar que o “síndrome de cauda equina” (perda de sensibilidade e função na zona perineal e nadegueira) tem que ser corrigido, no máximo, em 48 horas, sob pena de irreversibilidade das lesões nos radiculares nervosos.”
18. De facto, do depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033) resultou inequívoco que a síndrome da cauda equina deve ser tratada nas primeiras 12 horas sob pena de irreversibilidade e consolidação.
19. Ora, este facto permitirá avaliar da (im)prontidão e (in)eficácia da actuação do médico cirurgião, Dr. J, face ao tempo que deixou decorrer desde a manifestação de sintomas pelo paciente até ao início da revisão cirúrgica.
20. Assim, sempre deverá ser dado como provado que “O diagnóstico de síndrome de cauda completo exige intervenção urgente, nas primeiras 12 horas, sob pena de consolidação e irreversibilidade”.
21. Mais, porque essencial à demonstração da violação das leges artis por parte do Dr. J, e porque documentalmente provado pelo Registo de Enfermagem (constante de fls. 39 do processo clínico junto pela RR. F) deveria a sentença ter dado como assente o seguinte facto: “Não obstante, a 2.ª cirurgia iniciou-se às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, mais de 27 horas após os primeiros sintomas da síndrome de cauda, provocada pela má execução do Dr. J, na 1.ª cirurgia”.
22. Do depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033) resultou ainda que a laceração da ‘dura mater’ ocorreu no decurso da primeira cirurgia a que o Autor, aqui Recorrente, foi sujeito pelo Dr. J e ainda que, não obstante o Dr. J tivesse tentado proceder à sua reparação na segunda cirurgia (realizada a 13/12/2014), não o logrou conseguir por não ter utilizado a técnica recomendada.
23. Pelo exposto, deverá ser considerado provado o seguinte facto: “O Dr. J provocou uma laceração na ‘dura mater’, com ‘perda de liquor’, por inadvertida execução técnica no decurso da primeira cirurgia; laceração que, igualmente por má execução técnica, não conseguiu reparar nas cirurgias seguintes (quer na 2.ª cirurgia, que teve início às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, quase 28 horas após a cirurgia durante a qual fora provocada a laceração; quer na 3.ª cirurgia, realizada no dia 17/12/2014, até ao momento em que teve de ser substituído pelo Dr. G ), não obstante essa reparação fosse um procedimento life-saving”.
24. Conjugado o depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033) e da testemunha CH (prestado no dia 17 de fevereiro de 2022, com início às 14h26m e termo às 15h22m, com o ficheiro n.º 20220218142556_19057238_2871033) resulta que a laceração da dura ‘mater’ decorrente da atuação do Dr. J  naquela primeira cirurgia (realizada a 12 de dezembro de 2014) não poderá desculpar-se pela existência de fibrose, na medida em que (i) aquela área não havia sequer sido manipulada na prévia cirurgia realizada na CUF e (ii) a fibrose se trata de uma mera e descabida desculpa.
25. Por outro lado, ainda do depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033) resultou inequívoco que a síndrome de cauda equina deve ser tratada nas primeiras 12 horas e, por outro lado, a fistula de liquor reclama um procedimento emergente, que deve ser iniciado logo após o derrame de liquor.
26. Mais, da anotação efetuada pela Enf.ª L, pelas 7h do dia 13/12/2014, em sede de Diário Clínico (fls. 77 do processo clínico junto pela R. F), resulta que aquela perda de liquor se constatou às 7h do dia 13/12/2014.
27. Apesar disso, e também como resulta do depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033), o Dr. J não logrou reparar a laceração da dura na cirurgia do dia 13/12/2014, na medida em que usou um procedimento distinto do procedimento (eficaz) que foi levado a cabo pelo Réu G aquando da sua intervenção na cirurgia de 17/12/2014.
28. Assim, decorreram 5 dias, i.e., 120 horas desde que o momento em Dr. J provocou a laceração da ‘dura mater’ e a consequente perda de ‘liquor’ até à sua reparação (reparação esta feita, aliás, pelo Dr. G), por mero e indesculpável desleixo dos RR.; por outro lado, a síndrome da cauda equipa por não ter sido corrigida nas primeiras 12h, acabou por consolidar, implicando irreversível perda de mobilidade dos membros inferiores, região perineal, peniana e anal.
29. O Dr. J, negligentemente (desde logo em razão da complexidade da intervenção e, mais, em razão do seu estado de saúde), realizou todas as cirurgias ao AA. sem se fazer acompanhar de especialista de ortopedia, o que seria de todo recomendável, atendendo ao depoimento do Réu G (prestado no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033).
30. Tudo isto justificando que a testemunha Dr. CTH, no seu depoimento prestado a dia 17 de fevereiro de 2022 (com início às 14h26m e termo às 15h22m, com o ficheiro n.º 20220218142556_19057238_2871033), se tenha referido ao ocorrido no F como “catastrófico”.
31. Resulta, assim, claro que, com o seu desleixo, o Dr. J incumpriu as mais elementares regras de cuidado para com um doente a quem provocara uma laceração da ‘dura mater’, com perda de ‘liquor’, pelo que não poderá deixar de considerar-se provado o seguinte facto: “O Dr. J violou as mais elementares leges artis, não só na prestação de informação imprescindível a um consentimento livre e informado, como na execução das cirurgias, como, ainda, no acompanhamento pós-operatório – todas estas obrigações que sobre si impendiam”.
32. A sentença de que se recorre é, ainda, contraditória relativamente à capacidade do Dr. J para a realização de cirurgias como aquelas a que o Autor, ora Recorrente, foi sujeito. Apesar de referir que “Porém, em concreto, há apenas umas referências genéricas a situação de remissão, inexistência de metástases e tratamentos, desconhecendo-se, efetivamente (e, uma vez mais, não foi sequer matéria alegada e discutida), que cancro afetava o médico, qual o seu estado de evolução e, com grande importância, se estavam em curso alguns tratamentos de radio ou quimioterapia, reconhecidamente enfraquecedores”, refere também que “No ano de 2014 estava bem, ficando novamente debilitado por altura do Natal de 2014, quando iniciou radioterapia e quimioterapia” (relativamente à testemunha D), que “Relativamente a matéria com conhecimento direto referiu, quanto a contactos com o médico J, que o encontrou uma vez no F, cerca de 1 semana depois da intervenção, muito debilitado e mal conseguindo falar” (relativamente à testemunha VD), que “O que declarou, ainda que muito cuidadosamente, foi esclarecedor quanto à existência de dúvidas sobre a capacidade de se manter a trabalhar, havendo alturas em que o encontrou “muito cansado” (relativamente à testemunha JB e que “Esclareceu ter feito uma visita ao doente autor, nesse contexto, no sentido de salientar a necessidade de efectuar recuperação nesse centro (Alcoitão), permitindo também esclarecer que o Dr. J, à data, estava impedido de o fazer em razão da saúde” (relativamente à testemunha FM).
33. Porém, das declarações da Ré D, prestadas no dia 18 de março de 2022 (com início às 10h28m e termo às 10h46m, com o ficheiro n.º 20220318101735_19057238_2871033), resultou que o pai veio a falecer de cancro do pulmão e que a doença sofreu um agravamento entre julho de 2014 e abril de 2015.
34. Também das declarações do Réu G (prestadas no dia 11 de fevereiro de 2022, com início às 15h53m e termo às 17h15m, e gravado no sistema H@bilus Média Studio, com o ficheiro n.º 20220211155259_19057238_2871033) resultou que a debilidade do Dr. J  era visível e que tal justifica que não tenha conseguido reparar a fístula na segunda e na terceira cirurgias, na medida em que este procedimento cirúrgico envolve um cuidado minucioso e exigente.
35. E tanto era visível a sua incapacidade que, entre 20/12/2014 e 07/1/2015, o referido médico-cirurgião esteve sem trabalhar, conforme resulta do facto 72 da matéria assente.
36. Este período de incapacidade para trabalhar, logo após a 3.ª cirurgia (que, de resto, já não logrou terminar por, no seu decurso, se ter sentido bastante indisposto), é prova suficiente para fazer cair o argumento de que “(…) poderá até o desfalecimento ser uma situação que pode afectar qualquer médico, sobretudo ante uma repetição de cirurgias ao mesmo doente em tão curto espaço de tempo, com resultados muito negativos e com o doente a correr risco de vida”, conforme resulta da sentença recorrida.
37. Mais, é disso também prova – prova igualmente inequívoca – a própria indisposição sentida pelo Dr. J durante a terceira cirurgia. Este RR. não tinha, pois, condições físicas para uma cirurgia desta natureza – e, sabendo que as não tinha, desconsiderou os mais essenciais deveres que tinha com os seus doentes, deveres de pugnar pelo melhor tratamento para os seus doentes, que, manifesta e malogradamente, naquela altura, não lhes podia prestar.
38. E a desconsideração desse evidente e notório facto demonstra, ainda, falha grave cometida pelo F que, nas suas instalações, e perante doentes que o procuraram confiando no seu bom nome e na sua reputação, i.e., confiando nos seus procedimentos, permitiu que um médico cuja debilidade conhecia tivesse realizado uma intervenção cirúrgica desta exigência.
39. Pelo exposto, não poderá deixar de considerar-se provado o seguinte facto: “O Dr. J encontrava-se diminuído nas suas capacidades à data das cirurgias realizadas ao AA., o que influenciou a sua execução e o (des)acompanhamento prestado ao doente”.
40. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483.º e 800.º do Código Civil, na medida em que deveria considerar responsável o médico cirurgião, Dr. J pela violação das leges artis e, bem assim, o F, por todo e qualquer dano resultante da atuação deste seu “auxiliar”.
41. De facto, ainda que a obrigação do médico, ou do Hospital onde se integra, não seja de resultado, impende sobre o profissional de saúde uma inequívoca obrigação de meios.
42. Por tal, e tendo em conta a factualidade que agora se entende como provada, sempre se imporá uma diferente subsunção do direito. Senão vejamos,
43. No pós-operatório imediato o Autor, aqui recorrente, começa a manifestar perda de sensibilidade dos membros inferiores, sem que isso, logo nessa fase, tenha sido adequadamente valorizado.
44. Após a chegada ao internamento, e às 7h do dia 13/12/2014, o Autor continua a manifestar perda de sensibilidade dos membros inferiores, evidenciando um compromisso neurológico que viria a confirmar o diagnóstico de “síndrome da cauda completo”, bem como perda de ‘liquor’ em virtude de laceração da ‘dura mater’, ocorrida na cirurgia de 12/12/2014.
45. A equipa de enfermagem da R. Cruz Vermelha dá nota telefónica dessa circunstância ao Dr. J que, quando observa o doente ainda nessa manhã de dia 13/12/2014, confirma diagnóstico de “síndrome de cauda completo” e “fistula de LCR”.
46. Perante o diagnóstico, não podia o Dr. J, médico-cirurgião, desconhecer que: (i) a reparação da ‘dura mater’ é um procedimento life-saving, que deve ser realizado imediatamente após a constatação de perda de ‘liquor’; (ii) a síndrome da cauda equina deve ser objeto de intervenção nas primeiras 12 horas, sob pena de consolidação e irreversibilidade.
47. Apesar disso, o Dr. J procede à revisão cirúrgica apenas às 18:50h do dia 13/12/2014, ou seja, mais de 27 horas após os primeiros sintomas de síndrome da cauda equina, manifestados com a perda de sensibilidade dos pés logo à saída do bloco operatório – levando ao desfecho que, lamentavelmente, se conhece hoje, em que a perda da mobilidade dos membros inferiores, da região perineal, peniana e anal se consolidou, afetando o Autor para toda a vida.
48. Por outro lado, sendo a reparação da ‘dura mater’ um procedimento life-saving não logrou o Dr. J proceder à sua reparação com a prontidão e a minúcia que o mesmo exigia, tanto assim que esta circunstância que pode pôr em causa a vida do doente apenas foi reparada pelo R. G na cirurgia realizada a 17/12/2014.
49. Dito isto, não poderá senão concluir-se que, ao atuar, como atuou, o Dr. J não observou as mais elementares leges artis, atuando ilicitamente, bem como não observou a diligência, o cuidado e a competência de um cirurgião médio, atuando, pois, com culpa. Devendo, por tal, ser responsável pelos danos que a sua conduta causou aos Autores, ora Recorrentes.
50. No que concerne aos danos, não pode também o Autor, aqui Recorrente, conformar-se com o montante indemnizatório atribuído a título de dano biológico e danos não patrimoniais.
51. O dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, sendo um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, suscetível de afetar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais e recreativas.
52. O Autor apresenta ausência de sensibilidade dos membros inferiores, região perineal, peniana e anal, carecendo de cadeira de rodas na generalidade das deslocações, não lhe subsistindo qualquer capacidade sexual, pelo que (e atendendo à matéria assente de 79 a 85) não podendo, pois, conformar-se com o montante de €60.000,00 atribuído a título de dano biológico;
53. Também atendendo à matéria assente de 86 a 93 da sentença, não pode também o Autor conformar-se com o montante de €40.000,00 a título de danos não patrimoniais.
54. A este propósito, não poderá deixar de ser considerado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-12-2015, que considerou justa a atribuição de €100.000,00 (cem mil euros) a título de dano biológico e de €50.000,00 a título de danos não patrimoniais, a homem de 60 anos que ficou paraplégico em consequência de procedimento cirúrgico.
55. Verifica-se, de igual forma, violado o preceito do artigo 483.º do Código Civil no que concerne aos danos sofridos pela Autora e a definição do montante para a sua compensação.
56. Na verdade, dando-se como provado os factos 95 a 98, não poderá aceitar-se a atribuição à Autora, ora Recorrente, da quantia de €2.500,00 como algo “essencialmente simbólico”, “considerando a sua idade - da Autora - e na culpa do responsável J”.
57. No que à culpa/responsabilidade do médico cirurgião, Dr. J, diz respeito, já foram supra aduzidos os argumentos que fundamentam esta responsabilidade; no que à idade da Autora concerne, sempre se deverá sublinhar que, nas palavras do Juiz Conselheiro Jubilado Dr. Joaquim Sousa Diniz, “os direitos de personalidade não cessam com a idade”.
58. A este propósito, sempre haverá de atentar-se ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 22/1/2013, que considerou justo o valor de €25.000,00 para o dano de privação sexual de uma mulher com 80 anos.
59. Mais, tendo estes danos sido causados pela atuação do médico cirurgião, Dr. J, deverá a Ré F ser, também ela, considerada responsável, ao abrigo do disposto no artigo 800.º do Código Civil».

1.17. De igual forma inconformada, apelou, em 29.06.2022, a 2.ª R., pedindo que se determine:
 «i) a recitificação do lapso de escrita cometido na sentença recorrida, decorrente da omissão de condenação do Autor no pagamento do crédito da Recorrente, peticionado em sede de reconvenção, nos termos do disposto no artigo 614.º do CPC; ou, caso assim não se entenda:
i-a) a declaração de nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, na parte em que deixa de decidir pela condenação do Autor no referido crédito, ao abrigo do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d), do CPC, devendo, em qualquer dos casos, ser aduzida à sentença a condenação do Autor a pagar à Recorrente o valor de €15.374,79, por serviços hospitalares prestados, acrescidos de juros à taxa legal desde o vencimento até integral pagamento; e
ii) a declaração de nulidade da sentença recorrida, em virtude da total ausência de fundamentos de facto que sustentem o pretenso contrato singular entre o Autor e a Recorrente para realização de cirurgia, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b), do CPC; ou, caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese de raciocínio,
iii) a alteração do enunciado do facto provado n.º 79 nos termos supra peticionados, com suporte em prova por depoimento de parte prestada em audiência e em prova documental; e, em qualquer dos casos,
iv) a revogação da sentença recorrida, com fundamento em erros de julgamento em matéria de Direito, devendo a mesma ser substituída por outra que absolva a Recorrente do pedido indemnizatório formulado pelo Autor».
Para o efeito, alinhou as seguintes conclusões:
«E.1) Introdução
I. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida nos autos em 13/5/2022, na parte em que condena a Recorrente no pagamento de indemnização de supostos danos sofridos pelo Autor, decorrentes do alegado incumprimento de um dever de informação, incluindo a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (com base em prova gravada) e da decisão sobre matéria de Direito;
II. O recurso diz ainda respeito à omissão, na sentença recorrida, da devida condenação do Autor no pagamento do crédito da Recorrente, invocado em sede de reconvenção.
E.2) Rectificação de lapso de escrita / nulidade por omissão de pronúncia
III. A sentença recorrida pronuncia-se, na respectiva motivação, sobre o pedido reconvencional deduzido pela Recorrente, declarando-o procedente; mas omite, no trecho decisório, a correspondente condenação do Autor no pagamento do valor peticionado pela Recorrente.
IV. Tudo indica que a referida omissão se deve a mero lapso de escrita por parte do douto Tribunal a quo, pelo que se requer a rectificação do mesmo nos termos do disposto no artigo 614.º do CPC, sendo aduzida à sentença a condenação do Autor no pagamento à Recorrente da quantia de €15.374,79 por serviços prestados, acrescida de juros moratórios à taxa legal desde a data do vencimento e até integral pagamento.
V. Admitindo, por mera cautela, a hipótese de assim não se entender, sempre se invoca, subsidiariamente, a nulidade da sentença recorrida com fundamento em omissão de pronúncia quanto ao referido pedido reconvencional, requerendo-se seja o autor condenado no pagamento à Recorrente do valor supra indicado, nos termos conjugados do disposto nos artigos 615.º n.º 1, alínea d), e 665.º do CPC.
E.3) Da nulidade por falta de fundamentação (matéria de facto)
VI. A principal premissa (como veremos, incorrecta) da condenação da Recorrente, de acordo com a sentença recorrida, é o reconhecimento da celebração de um suposto “contrato singular” entre a Recorrente e o Autor, tendo por objecto a realização de uma cirurgia – é nesse pressuposto que assenta a imputação à Recorrente, por via do disposto no artigo 800.º do Código Civil, do pretenso incumprimento de um dever de informação emergente desse suposto “contrato singular”.
VII. A celebração de um contrato depende da prévia emissão, pelas partes, de declarações negociais que exteriorizem uma vontade juridicamente relevante – trata-se de um postulado do próprio conceito de contrato, enquanto negócio jurídico bilateral e expressão da autonomia privada, que é reconhecido sem reservas pela doutrina e pela jurisprudência.
VIII. A conclusão, alcançada em sede de decisão judicial, de que foi celebrado um determinado contrato deve, forçosamente, assentar na premissa de facto de terem sido emitidas declarações de vontade pelas partes com conteúdo simétrico, das quais decorrerão, por sua vez, os efeitos a produzir em concreto pelo contrato em questão.
IX. Os factos provados elencados na sentença recorrida não incluem, de todo, qualquer facto que pudesse consubstanciar uma eventual declaração negocial de vontade, quer do Autor, quer sobretudo da Recorrente, que por sua vez concorra para a formação de um putativo negócio jurídico bilateral (o dito “contrato singular”) com vista à realização de uma cirurgia.
X. Do exposto decorre uma absoluta omissão – e não uma mera incompletude ou insuficiência – dos putativos fundamentos de facto que permitiriam ao Tribunal a quo concluir, na sentença recorrida, pela pretensa celebração de um “contrato singular” tendo por objecto a realização de uma cirurgia, o que traduz um vício cominado com nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b), do CPC, a qual desde já se invoca para todos os efeitos.
E.4) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
XI. O facto provado n.º 79 (“Em consequência das cirurgias efetuadas, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação ativa nos territórios de L4-L5 e L5–S1”), em particular, na referência plural que faz às “cirurgias efetuadas” enquanto putativa causa das lesões neurológicas sofridas pelo Autor, não tem amparo na prova produzida nos autos.
XII. Ficou cabalmente demonstrado nos autos que apenas a cirurgia efectuada em 12/12/214 pelo Dr. J constitui a causa da referida lesão neurológica.
XIII. Assim como ficou comprovado que as cirurgias subsequentemente realizadas ao Autor, em 13/12/2014 e 17/12/2014, não geraram quaisquer lesões no Autor, mas antes, pelo contrário, se destinaram apenas a solucionar e minorar as eventuais consequências da primeira cirurgia, de 12/12/2014.
XIV. A prova que sustenta as conclusões alcançadas resulta do depoimento prestado pelo Autor, em audiência realizada em 11/2/2022, a minutos 00:10:00, 00:13:16, 00:47:35 e 00:48:07 (cfr. gravação áudio constante do ficheiro denominado “20220211101347_19057238_2871033.wma”); do depoimento do Réu G, a minutos 01:13:24 e segs. (cfr. gravação áudio constante do ficheiro denominado “20220211155259_19057238_2871033.wma”), bem como do relatório do Dr. J com data de 28/12/2014 e do relatório elaborado pelo Director Clínico do Hospital da Cruz Vermelha em 30/12/2014, que integram o documento n.º 1 junto à contestação da Recorrente.
XV. Conclui-se que o enunciado do facto provado n.º 79 patenteia um erro de julgamento, porquanto dele se extrai que a causa das “lesões” sofridas pelo Autor teriam sido todas as cirurgias realizadas ao mesmo nas instalações da Recorrente, e não apenas a primeira, efectuada em 12/12/2014, o qual desde já se invoca nos termos do disposto no artigo 640.º n.º 1, alíneas a) e b), do CPC.
XVI. Pelo que se requer, ao abrigo do disposto no artigo 640.º n.º 1, alínea c), do CPC, que o referido ponto 79 passe a enunciar o seguinte facto, que resulta provado pelos elementos de prova acima indicados: “Em consequência da cirurgia realizada pelo Dr. J em 12/12/2014, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação ativa nos territórios de L4-L5 e L5–S1”
E.5) Do pretenso “contrato singular” entre Recorrente e Autor
XVII. Certos tratamentos médicos – como é o caso da cirurgia ao Autor, realizada pelo Dr. J – requerem a utilização de recursos técnicos / materiais dispendiosos e tornam necessário o internamento do doente, com todos os serviços que lhe estão conexos, em termos que, na prática, só um hospital / clínica pode assegurar.
XVIII. É, por isso, muito comum que os médicos que exercem actividade por conta própria façam uso das instalações e dos recursos materiais detidos por hospitais e clínicas, nos termos de contratos de cedência de gozo celebrados com esse propósito entre médico e Hospital, à semelhança do contrato celebrado entre a Recorrente e o Dr. J (v. facto provado n.º 30).
XIX. Reconhecendo a tipicidade social desta modalidade de exercício da medicina, a doutrina e a jurisprudência têm enquadrado a posição do doente perante o médico e o hospital sob a figura denominada “contrato dividido”, no qual o doente celebra um contrato directamente com o médico, que actua por conta própria, tendo em vista a realização de determinado tratamento (maxime, cirurgia) nas instalações e com os equipamentos de determinado Hospital, e outro contrato directamente com esse Hospital, tendo por objecto o subsequente internamento e serviços conexos de alimentação, higiene etc.
XX. De acordo com a mesma doutrina e jurisprudência, ao “contrato dividido” contrapor-se-ia principalmente a modalidade de “contrato total”, em que é celebrado apenas um contrato entre o doente e a entidade gestora do Hospital, comprometendo-se esta a prestar ao doente a globalidade dos tratamentos necessários, incluindo cirurgias e internamento, através dos seus funcionários (médicos, enfermeiros, auxiliares etc.).
XXI. Tem sido entendido, pacificamente, que, em sede de “contrato dividido”, o médico responde pelo (in)cumprimento das obrigações que assumiu directamente perante o doente (neste caso, uma cirurgia) e o hospital / clínica responde, por sua vez, pelo (in)cumprimento dos serviços de internamento, e conexos, a que se vinculou perante o doente (v. Carlos Ferreira de Almeida, André Gonçalo Dias Pereira, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/3/2018, proferido no âmbito do processo n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8/11/2018, proferido no âmbito do processo n.º 27836/16.8T8LSB.L1-2 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/2/2020, proferido no âmbito do processo n.º 3670/18.0T8VIS.C1).
XXII. As relações contratuais estabelecidas entre o Autor, o Dr. J e a Recorrente, com suporte nos factos provados nº 29 e n.º 30, prefiguram, justamente, uma situação de “contrato dividido”: o Autor contratou directa e autonomamente com o Dr. J a realização de uma cirurgia, e contratou directamente com a Recorrente a prestação de serviços de internamento e outros conexos.
XXIII. A modalidade de exercício da medicina adoptada pelo Dr. J postula, por conseguinte, que entre a Recorrente o Autor não foi celebrado qualquer contrato tendo em vista a realização da dita cirurgia.
XXIV. Importa ainda demonstrar a falta de fundamento da posição adoptada pelo tribunal a quo, quando afirma a celebração de um “contrato singular” entre a Recorrente o e Autor para realização de uma cirurgia.
XXV. Nesse sentido, reitere-se que a celebração de um contrato pressupõe a emissão, pelas partes, de duas (ou mais) declarações negociais com conteúdo simétrico, podendo as mesmas ser expressas ou tácitas, nos termos do artigo 217.º do Código Civil.
XXVI. Os factos provados evidenciam, desde logo, que nenhuma declaração expressa foi emitida, quer pelo Autor quer pela Recorrente, quer permita fundamentar o pretenso “contrato singular” entre ambos tendo em vista a realização de uma cirurgia; resta questionar se é identificável alguma eventual declaração tácita que permita alcançar essa conclusão.
XXVII. A declaração tácita requer, por imperativo da norma presente no artigo 217.º do Código Civil, que de factos concludentes, que em si mesmos não consubstanciam um acto declarativo, se possa deduzir, com elevado grau de segurança, a preexistência de uma vontade negocial na esfera psicológica do putativo declarante – sendo de frisar que a efectiva existência de uma vontade livre é, apesar de tudo, um elemento essencial da declaração tácita.
XXVIII. In casu não ficou demonstrado, nem sequer por via dedutiva, que a Recorrente alguma vez tenha tido uma vontade de contratar com o Autor a realização de uma cirurgia, e muito menos que tenha exteriorizado essa putativa vontade, expressa ou tacitamente, o que afasta liminarmente que estejamos na presença de uma declaração tácita da Recorrente que, por sua vez, permitisse fundar um “contrato singular” com vista à realização de uma cirurgia no Autor.
XXIX. Acresce que não ficou sequer demonstrada, nem mesmo pela via dedutiva, uma vontade negocial na esfera do próprio Autor de contratar com a Recorrente a realização da mencionada cirurgia.
XXX. O que resulta dos factos provados n.º 25 a n.º 28, com sustento na globalidade da prova produzida, e com relevância para a questão vertente é apenas que:
i) o Autor contactou directamente o Dr. J solicitando os respectivos serviços para o tratamento de um problema de saúde (“pé pendente”), atentas as habilitações e a excelente reputação granjeada por este médico na sua área de especialidade;
ii) o Autor, após ter acordado com o Dr. J que este lhe realizaria uma intervenção cirúrgica, foi seguidamente encaminhado para as instalações da Recorrente para que a dita cirurgia aí tivesse lugar.
XXXI. Conclui-se que os factos provados não consubstanciam factos concludentes dos quais se possa deduzir, com mínima segurança, uma declaração tácita por parte da Recorrente para celebração de um “contrato singular” tendo por objecto a realização de uma cirurgia;
XXXII. Nem tão pouco é possível, com base nos elementos de facto coligidos, deduzir do comportamento do próprio Autor uma declaração tácita dirigida à Recorrente, com esse sentido e conteúdo.
XXXIII. Acrescente-se ainda que, ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, não é tão pouco admissível extrair um suposto “contrato singular” para realização de cirurgia, entre a Recorrente o Autor, a partir do que o Tribunal a quo apelida de “normalidade jurídica e social”.
XXXIV. A concepção dessa alegada “normalidade jurídica e social” é uma construção puramente subjectiva, abstracta e sem abrigo em normas jurídico-positivas que dela extraiam efeitos jurídicos – muito menos a constituição de uma relação contratual, que sempre dependeria, como vimos, de declarações negociais de conteúdo simétrico, que in casu não se verificam.
XXXV. Ademais, essa concepção desconsidera que também a medicina exercida ao abrigo de “contrato dividido” é perfeitamente normal e socialmente típica, tendo sido justamente isso que levou a doutrina e a jurisprudência a estudar e a qualificar as relações contratuais subjacentes ao “contrato dividido” nos moldes acima indicados – os quais, recorde-se, excluem a responsabilidade da Recorrente pela alegada violação de um dever de informação ao Autor.
XXXVI. Conclui-se, a este respeito, que as alusões do Tribunal a quo à suposta “normalidade jurídica e social” são imprestáveis para fundamentar o pretenso “contrato singular” entre Recorrente e Autor para realização de uma cirurgia, e mais parecem configurar uma ficção (encapotada) de celebração de um contrato, o que sempre seria inadmissível por falta de base legal.
XXXVII. Noutro passo, e ao contrário do que pretende o Tribunal a quo, não poderia aquele suposto “contrato singular” entre Autor e Recorrente, para realização de cirurgia, fundar-se na suposta omissão de uma “clara e inequívoca informação ao autor” de que a cirurgia havia sido contratada directamente ao Dr. J e não à Recorrente,
XXXVIII. Porquanto esse eventual dever / ónus de informar o Autor de que os serviços em causa se enquadravam num “contrato dividido” sempre seria incumbência exclusiva do Dr. J, que contratou directamente com o Autor,
XXXIX. Sendo certo que, na prática, a Recorrente não estava sequer numa posição que tornasse possível a prestação das referidas informações ao Autor, já que não estabeleceu com este qualquer contacto prévio à realização da cirurgia.
XL. Conclui-se, a este respeito, que a eventual omissão de uma “clara e inequívoca informação ao autor” quanto aos termos da prestação do serviço de cirurgia nunca seria imputável, a qualquer título, à Recorrente nem permitiria fundamentar o estabelecimento de uma relação contratual entre a Recorrente e o Autor tendo em vista a realização daquela cirurgia.
Sem prescindir,
XLI. A título subsidiário, e admitindo por mera hipótese, sem conceder, que entre a Recorrente e o Autor tivesse sido celebrado um “contrato singular” para realização de cirurgia, como pretende o Tribunal a quo, sempre haveria que confrontar os seguintes factos provados:
i) era intenção declarada e inequívoca do Autor que o tratamento / cirurgia fosse realizado pelo Dr. J (v. factos provados n.º 25 a n.º 28);
ii) o Dr. J era um médico externo ao Hospital F, não tendo qualquer vínculo laboral ou de prestação de serviços com a Recorrente (v. facto provado n.º 29).
XLII. Dos referidos factos decorria, forçosamente, que aquele pretenso “contrato singular” sempre seria impossível, e por isso nulo nos termos do artigo 280.º n.º 1 do Código Civil, porquanto a Recorrente não tinha sobre o Dr. J um poder de direcção que vinculasse este último a realizar a cirurgia supostamente contratualizada com o Autor.
XLIII. E decorreria também que o Dr. J não seria qualificável como “auxiliar” da Recorrente no cumprimento da alegada obrigação para com o Autor, nem se encontraria, o Dr. J, sob a orientação e fiscalização da Recorrente.
XLIV. Conclui-se, por isso que os pressupostos de aplicação do artigo 800.º do Código Civil não se verificam, quer no que diz respeito ao teor literal desse preceito, quer quanto ao espírito da norma aí presente, cuja teleologia está em responsabilizar o devedor pelos ilícitos contratuais praticados pelo seu “auxiliar” na medida em que este está, na sua actividade, sujeito a um certo grau de controlo por parte do referido devedor.
XLV. Por conseguinte, a pretensa conclusão alcançada na sentença recorrida, de que entre Autor e Recorrente tenha sido contratualizada a realização de uma cirurgia, padece de um manifesto erro de julgamento, decorrente da incorrecta interpretação e aplicação do disposto, entre outros, nos artigos 217.º, 232.º e 800.º do Código Civil, devendo ser revogada e substituída por outra que reconheça que entre o Autor e a Recorrente não foi celebrado qualquer contrato com vista à realização de uma cirurgia.
E.6) Da alegada “omissão dos deveres de informação” e suas pretensas consequências
XLVI. Tendo ficado concluído que entre a Recorrente e o Autor não vigorou qualquer “contrato singular” cujo objecto fosse a realização de uma cirurgia, soçobra qualquer putativo fundamento para imputar à Recorrente um dever de informação / obtenção de consentimento informado em relação ao Autor: esse eventual dever sempre vincularia, em exclusivo, o Dr. J.
XLVII. Consequentemente, não há fundamento algum para que os eventuais danos causados pelo alegado incumprimento desse dever sejam suportados pela Recorrente em sede de responsabilidade civil, ou a qualquer outro título – o que denota um manifesto erro de julgamento, subjacente à condenação da Recorrente pela sentença recorrida, o qual desde já se invoca para todos os efeitos.
XLVIII. Ainda que se admitisse, por mera hipótese, que entre a Recorrente e o Autor tivesse sido celebrado um “contrato singular” para realização de cirurgia, sempre haveria que relevar que o dever de informação, centralmente previsto no artigo 19.º do Regulamento n.º 707/2016 da Ordem dos Médicos, vincula exclusivamente o médico perante o doente, conforme tem sido reconhecido pela doutrina e pela globalidade da jurisprudência (p.ex. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/11/2018 proferido no âmbito do processo n.º 18450/16.9T8LSB.L1-7 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/1/2022, proferido no âmbito do processo n.º 19473/17.6T8LSB.L1.S1).
XLIX. Assim, mesmo na hipótese subsidiária que se colocou, a Recorrente não era titular do dever de informação / obtenção de consentimento informado em relação ao Autor, nem seria concebível, por isso, que a Recorrente tivesse recorrido ao Dr. J enquanto “auxiliar” para o cumprimento desse dever, para os efeitos do disposto no artigo 800.º do Código Civil.
L. Conclui-se, por isso, que, mesmo admitindo a hipótese de que entre a Recorrente e o Autor existisse um “contrato singular” para a realização de cirurgia, o eventual incumprimento do referido dever de informação nunca poderia ser imputado à Recorrente, nem poderia a mesma ser responsabilizada pelos eventuais danos decorrentes desse incumprimento.
LI. Sem prescindir do que fica exposto, e ainda sob o pressuposto hipotético de ter sido celebrado entre a Recorrente e o Autor um “contrato singular” para realização de cirurgia, sempre a decisão recorrida se revelaria infundada num ponto decisivo: a falta de um nexo causal relevante entre o suposto incumprimento do dever de informação acima referido e as lesões neurológicas sofridas pelo Autor na sequência da cirurgia de 12/12/2014.
LII. Nesse sentido, considere-se que a jurisprudência tem estabelecido uma presunção judicial no sentido de que a omissão ilícita das informações devidas ao doente é, presumivelmente, a causa da decisão tomada pelo doente de se submeter ao tratamento / cirurgia que se veio a revelar lesivo, levando a que o risco dos efeitos indesejáveis do tratamento em questão corra por conta do médico inadimplente (v. p. ex. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/12/2020, proferido no âmbito do processo n.º 359/10.1TVLSB.L1.S1).
LIII. In casu, porém, não se vislumbra na motivação da sentença recorrida qualquer raciocínio que, partindo de factos conhecidos (constantes da decisão sobre matéria de facto) e tomando por base regras de experiência, ilustre uma eventual presunção judicial de que foi a suposta falta de informações relevantes que determinou a decisão do Autor de ser sujeito à cirurgia realizada em 12/12/2014, ao abrigo do disposto no artigo 351.º do Código Civil.
LIV. Pelo contrário, o Tribunal a quo limita-se a afirmar que os danos são imputáveis à Recorrente (entre outros réus), sem ilustrar minimamente o pertinente nexo causal, enquanto pressuposto inarredável da responsabilidade civil contratual.
LV. Ao exposto acresce ainda um aspecto determinante, ainda no plano da causalidade: é que o Tribunal dá por expressamente demonstrado que, na hipótese de o Autor ter sido cabalmente informado dos riscos potenciais da cirurgia a que foi submetido em 12/12/2014, teria ainda assim, com “alto grau de probabilidade”, optado voluntariamente por realizar essa cirurgia, aceitando os riscos envolvidos na mesma.
LVI. Essa conclusão consubstancia um “consentimento hipotético” – figura estabelecida pela doutrina e reconhecida pela jurisprudência em matéria de responsabilidade por actos médicos – que tem o efeito de afastar a eventual causalidade estabelecida entre a violação do dever de informação entre médico e doente quanto a determinado tratamento e as lesões resultantes desse tratamento (v. p. ex., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/6/2015, proferido no processo n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1).
LVII. Por conseguinte, a premissa de que o Autor teria optado por realizar a cirurgia em causa, mesmo que previamente soubesse dos riscos envolvidos na mesma, sempre traduziria, in casu, a não verificação de um nexo causal entre o putativo incumprimento do dever de informação e as lesões neurológicas sofridas pelo Autor em virtude da cirurgia realizada em 12/12/2014, decorrente de consentimento hipotético, nos termos do disposto no artigo 562.º do Código Civil.
LVIII. Do exposto decorre que a condenação da Recorrente no pagamento de indemnização ao Autor padece de um manifesto error in judicando, consequente da indevida imputação à Recorrente de um dever de informação ou, em qualquer dos casos, da inexistência de qualquer nexo causal relevante entre a putativa violação desse dever e as lesões neurológicas provocadas ao Autor».
1.18. As 1.ªs RR contra-alegaram (em 01.09.2022), defendendo que «a sentença recorrida ser mantida na parte em que afastou qualquer responsabilização médica e revogada na parte em que foi objecto de recurso por parte dos contra-alegantes autores e réu GENERALI», sem, no entanto, formular conclusões.
1.19. os AA. apresentaram contra-alegações (em 07.09.2022) ao recurso interposto pelas 1.ªs RR., pronunciando-se no sentido de que «deve ser indeferido o presente recurso, mantendo-se a sentença a quo no sentido da condenação das Recorrentes», deduzindo as seguintes conclusões:
«1. Argumentam as Recorrentes que a sentença deve ser revogada, essencialmente por três ordens de razões: (i) por estarem em causa atos que as Recorrentes não praticaram e pelos quais não podem ser pessoalmente responsabilizadas; (ii) por considerarem que não se lhes transmite o dever de satisfazer pelas forças da herança quaisquer quantias indemnizatórias, porquanto as mesmas não estavam reconhecidas como dívida do seu de cuius; e (iii) por entenderem não ter ocorrido ato ilícito da parte do Dr. J que possa ser causa adequada dos danos.
2. A título prévio, começam as Recorrentes por alegar que os Autores tiveram oportunidade de iniciar a presente ação judicial até 26 de abril de 2015 (data do falecimento do Dr. J) e que, não o tendo feito, com isso privaram o Dr. J de se defender dos factos que lhe são imputados.
3. Aos Autores é, porém, legítimo iniciar a ação judicial a todo o momento, desde que respeitem os prazos de prescrição do direito, num juízo de oportunidade que só aos mesmos compete, sendo certo que, atendendo à extensão dos danos sofridos na sequência das cirurgias levadas a cabo pelo Dr. J nos dias 12, 13 e 17 de dezembro de 2014, naturalmente se compreenderá que não tivessem os Autores capacidade para ponderar o recurso imediato a uma ação judicial.
4. Alegam, ainda, as Recorrentes que não podem ser condenadas, em sede de responsabilidade civil, por atos que não praticaram, nem por omissão de deveres a que não poderiam estar adstritas.
5. As Recorrentes intervêm na presente ação na qualidade de herdeiras de herança aceite, mas que permanece indivisa, em conformidade com o n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil.
6. Por tal, naturalmente, as Recorrentes não são condenadas por atos que praticaram ou por omissão de deveres a que não estavam sujeitas, mas antes são condenadas na qualidade de herdeiras (e cotitulares do património em que se traduz a herança indivisa) a reconhecer a existência do crédito reclamado e, consequentemente, a satisfazê-lo pelas forças/bens em que se traduz a herança indivisa. Por outro lado, e mesmo que a herança tenha já sido partilhada, cada herdeira apenas responderá pela dívida na proporção da respetiva quota, nos termos do artigo 2098.º, n.º 1 do Código Civil.
7. Vêm, ainda, as Recorrentes invocar que a sentença recorrida enferma de erro de Direito na interpretação e aplicação do artigo 2068.º do Código Civil, alegando que este artigo apenas permite a responsabilização civil por «dívidas do falecido», o que entendem não suceder no presente caso, uma vez que não existia, à data da abertura da herança, decisão judicial transitada que reconhecesse a dívida do de cuius.
8. Com tal argumentação, as Recorrentes procuram fazer coincidir o momento constitutivo da responsabilidade civil extracontratual (e consequentemente da dívida resultante da obrigação de reparação) com o trânsito em julgado da decisão judicial.
9. Porém, o direito à reparação dos danos constitui-se no momento em que se verificaram os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, o que, no presente caso, ocorreu nos dias 12, 13 e 17 de dezembro de 2014 (data das cirurgias a que o Autor foi submetido) e, portanto, previamente, ao falecimento do Dr. J.
10. A obrigação de reparação do dano onerava já o património do de cuius à data da abertura da herança, transmitindo-se, consequentemente, aos respetivos herdeiros com a aceitação da mesma, nos termos dos artigos 2068.º do Código Civil, visando a ação declarativa de condenação tão-só declarar a existência de um direito à reparação de danos, condenando as Recorrentes, na qualidade de herdeiras, a reparar/indemnizar o lesado nos seus precisos termos.
11. Alegam, ainda, as Recorrentes que a sentença recorrida enferma de erro de Direito por ter dado como assente a inexistência de consentimento informado ante a inexistência de documento escrito.
12. Antes de mais, sempre se diga que a sentença recorrida não dá como assente a inexistência de consentimento informado pela inexistência de documento escrito, mas antes pela existência de documento escrito (fls. 180 do processo clínico junto aos autos pelo F) que não se encontra assinado pelo doente.
13. Perante a existência do documento designado de “consentimento informado para cirurgia” – de onde se retira ser a formalização escrita o procedimento seguido pelo referido clínico – e a ausência de assinatura do doente bem andou a sentença recorrida ao considerar que o falecido Dr. J não recolheu o consentimento informado e esclarecido ao Autor A.
14. Além disso, nos termos do artigo 48.º, n.º 2 do Regulamento n.º 14/2009, de 13 de janeiro de 2009, “o consentimento escrito e ou testemunhado é exigível em casos expressamente determinados pela lei ou por regulamento deontológico”.
15. Ora, a Direção-Geral da Saúde, através da norma 015/2013, determinou que o consentimento informado deve ser dado por escrito, em caso de “Realização de atos cirúrgicos e/ou anestésicos, com exceção das intervenções simples de curta duração para tratamento de afeções sobre tecidos superficiais ou estruturas de fácil acesso, com anestesia local”. Assim, não se tratando as cirurgias a que o Autor foi submetido de intervenções simples, sempre o consentimento para as cirurgias a que foi sujeito a 12, 13 e 17 de dezembro de 2014 deveria ter sido recolhido por escrito.
16. Por último, sendo o consentimento informado causa de exclusão da ilicitude da sua atuação, é sobre o médico (no caso sobre as suas sucessoras) que impende o ónus de prova do consentimento (livre e esclarecido) prestado pelo doente, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, ónus que não lograram cumprir.
17. Por último, alegam as Recorrentes que a sentença recorrida enferma de erro de Direito ao ter dado como assente que a omissão de obtenção de consentimento informado gerou como causa adequada os danos cujo ressarcimento patrimonial exige.
18. O consentimento informado do doente, por força do primado da dignidade da pessoa humana, é um requisito essencial da licitude da intervenção cirúrgica, salvaguardando o respeito pela integridade física e moral do doente e pela sua autodeterminação (enquanto bens jurídicos protegidos pela norma).
19. Este respeito pela integridade física do doente impõe que a sua afetação seja precedida de consentimento devidamente informado e esclarecido prestado pelo próprio, sob pena de ilicitude dos atos que afetem a sua integridade física, tal como resulta, desde logo, do disposto no artigo 156.º, n.º 1 do Código Penal.
20. Para que o consentimento seja válido e eficaz é fundamental que, nos termos do disposto no artigo 157.º do Código Penal, o doente tenha sido esclarecido sobre o diagnóstico, a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento, para que com liberdade possa decidir sobre as intervenções a que aceita submeter-se.
21. Assim, diante a inexistência de consentimento informado e esclarecido, a afetação da integridade física do doente afigura-se como um ato ilícito e culposo, devendo, pois, todos os danos (patrimoniais e não patrimoniais) daí decorrentes ser ressarcidos.
22. Neste sentido se pronuncia André Dias Pereira, in “Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade”, segundo o qual: “Havendo violação do dever de esclarecimento, o consentimento é ineficaz, e assim toda a intervenção médica é tida como ilícita. Basta, pois, a alegação por parte do paciente nesse sentido e o médico tem – como pré-condição da causa de justificação do consentimento – o ónus da prova de que esclareceu adequadamente o paciente. Se o médico não conseguir provar que cumpriu os deveres de esclarecimento e que agiu ao abrigo de uma causa de justificação, recai sobre ele todo o risco da responsabilidade da intervenção médica, bem como os fracassos da intervenção, os efeitos secundários não controláveis e os danos resultantes da intervenção”.
23. No mesmo sentido, se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores, designadamente o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 27/11/2018.
24. Por todo o exposto, não poderá deixar de entender-se, confirmando a sentença recorrida, que os danos que resultaram ao Autor da realização das intervenções cirúrgicas ocorridas a 12, 13 e 17 de dezembro de 2014 deverão ser imputados à conduta omissiva do Dr. J, ao não recolher o consentimento informado e esclarecido ao doente».
1.20. A 2.ª R. apresentou (em 29.09.2022) contra-alegações ao recurso interposto pelos AA., defendendo que lhe deve ser negado provimento, sem, no entanto, formular conclusões.
Requereu, ainda, a junção aos autos de dois documentos, ao abrigo do disposto no artigo 651.º do CPC.
1.21. Os recursos foram admitidos com subida imediata e efeito meramente devolutivo (em 16.01.2023) e, quanto às nulidades invocadas, foi, pelo tribunal a quo, proferido o seguinte despacho:
«Nulidades suscitadas por esta Ré:
a) Suscitada omissão de pronúncia por ausência de condenação do autor/reconvindo no pagamento de serviços hospitalares cuja verificação foi reconhecida:
Verifica-se, efetivamente, que o dispositivo da sentença não traduz a compensação declarada quanto à Ré/Reconvinte F, falta cujo suprimento ora se determina.
Por consequência, entende-se que deve operar a compensação, reformando-se o dispositivo da decisão, na parte referente a condenação da Ré F no pagamento de danos patrimoniais ao autor e fixando a indemnização por esta devida, a este título, no valor global de €11.244,13 (onze mil duzentos e quarenta e quatro euros e treze cêntimos).
b) Suscitada nulidade por falta de fundamentação da decisão de facto:
Entende-se que a invocada omissão se não verifica e que os fundamentos da convicção foram objetivamente apresentados de forma adequada e subjetivamente bem entendidos».
1.22. Em face desse despacho, a 2.ª R. procedeu (em 30.01.2023) ao alargamento do âmbito do recurso de apelação por si interposto, ao abrigo do disposto no art.º 617.º, n.º 3 do CPC, pedindo que se:
«i) declare a nulidade do despacho de 16/01/2023, por excesso de pronúncia, na parte em que aprecia a (suposta) compensação entre o crédito da Ré / Recorrente sobre o Autor, por serviços hospitalares prestados, e o pretenso crédito do autor sobre a Ré / Recorrente, referente a pretensa indemnização por alegados danos patrimoniais, ao abrigo do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d), do CPC; e
ii) declare a nulidade da sentença recorrida, com fundamento em omissão de pronúncia quanto ao pedido reconvencional deduzido pela ora Ré / Recorrente, tal como invocado no recurso de apelação, atenta a falta de supressão desse vício no despacho de 16/01/2023;
ou, caso assim não se entenda, o que se concebe sem conceder,
iii) revogue a sentença recorrida, com fundamento em erro de julgamento; e em qualquer dos casos, substituindo-se ao Tribunal recorrido,
iv) proceda à condenação do Autor em conformidade e nos estritos limites do pedido formulado pela Ré, aqui Recorrente, na respectiva reconvenção;
v) no mais, requer-se seja proferida decisão em conformidade com o peticionado no recurso de apelação da ora Ré / Recorrente, interposto em 29/06/2022 (ref.ª 42723550)».
Formulou, para o efeito, as seguintes conclusões:
«A. O presente requerimento tem por objeto o alargamento do âmbito do recurso interposto pela aqui Recorrente em 29/06/2022 (ref.ª 42723550), nos termos do artigo 617.º, n.º 3 do CPC, na sequência da prolação do despacho de 16/01/2023, na parte em que conheceu e supriu a nulidade da sentença proferida nos autos em 13/05/2022 do dispositivo da decisão recorrida.
B. A alteração sofrida, em consonância com o disposto no n.º 2 do artigo 617.º do CPC, faz incorrer a sentença recorrida em nulidade, desta vez por excesso de pronúncia, conforme resulta da conjugação dos artigos 615.º, alínea d) e 608.º, n.º 2, ambos do CPC.
C. A compensação que o Tribunal a quo fez operar entre o montante a que a Ré, aqui Recorrente, foi condenada no pagamento de indemnização por alegados danos patrimoniais ao Autor e o montante a que este último foi condenado a pagar à Recorrente pelos serviços prestados, não foi pedida pelas partes.
D. Sendo que o pedido reconvencional da aqui Recorrente foi deduzido e admitido no despacho saneador proferido nos autos “ao abrigo do disposto no art.º 266º, nºs 1 e 2, al. a) do Cód. Proc. Civil” e não ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do referido artigo.
E. Pelo que o Tribunal a quo conheceu uma questão que não poderia conhecer incorrendo em violação do disposto no artigo 608.º n.º 2 do CPC, fazendo incorrer a sentença recorrida em nulidade por excesso de pronúncia (615.º, alínea d) do CPC), a qual desde já se invoca para todos os efeitos.
F. O Tribunal a quo acabou por não conhecer do pedido reconvencional deduzido pela Ré / Recorrente – o qual, recorde-se, consistia na condenação, pura e simples, do Autor no pagamento de serviços prestados no F, no valor de €15.374,79, e não numa suposta compensação – mantendo-se, por isso, por sanar / suprir a nulidade por omissão de pronúncia invocada e enquadrada no recurso de apelação interposto (v. alegações 7 a 12 e conclusões III a V do recurso), a qual aqui se reitera para todos os efeitos.
G. Devendo ser declarada, igualmente, a referida nulidade por omissão de pronúncia, dita o disposto no artigo 665.º do CPC, que este Tribunal deve conhecer do objecto da apelação nessa parte e, substituindo-se ao tribunal recorrido, proceder à condenação do Autor em conformidade e nos estritos limites do pedido formulado pela Ré, aqui Recorrente, na respectiva reconvenção – o que desde já se requer, para todos os efeitos.
H. Sem prejuízo do exposto, e na mera hipótese de a questão que antecede não vir a proceder, sempre se considere que tão pouco se encontrava preenchido um dos pressupostos de natureza substancial, imposto pelo artigo 848.º n.º 1 do CC a que a compensação se encontra sujeita, qual seja a declaração expressa da mesma por uma das partes à outra.
I. In casu, nem o Autor nem a ora Ré / Recorrente alguma vez declararam, judicial ou extrajudicialmente, uma eventual vontade de fazer operar a compensação nos moldes acima referidos, nem tão pouco essa putativa declaração foi sequer alegada nos autos.
J. Com efeito, a douta sentença recorrida violou de forma flagrante o disposto nos artigos 848.º n.º 1 do CC, incorrendo em erro de julgamento, e devendo essa decisão ser revogada e substituída por outra que condene o Autor em conformidade e nos estritos limites do pedido formulado pela Ré, aqui Recorrente, na reconvenção».
1.23. Sobre tal ampliação, o tribunal a quo proferiu (em 10.03.2023) o seguinte despacho:
«Ampliação da apelação:
Admite-se.
Entendendo-se que a questão foi apreciada no despacho anterior, as questões objeto de ampliação estão apreciadas.
Decorrido o prazo de contraditório, subam os autos ao Tribunal da Relação onde os Srs. Desembargadores melhor decidirão».
1.24. Já nesta Relação, foi pelo relator determinado (despacho de 20.06.2023), ao abrigo do disposto no art.º 617.º, n.º 5 do CPC, que os autos baixem à 1.ª instância para que o tribunal a quo se pronunciasse sobre:
a) a nulidade por excesso de pronúncia arguida pela 2.ª R. no requerimento de ampliação do âmbito do recurso;
b) a nulidade invocada pela recorrente Generali Seguros, S.A. (cfr. conclusão 57.ª das respectivas alegações de recurso).
1.25. Sobre a nulidade referida na al. a) do ponto 1.24, o tribunal a quo decidiu (em 22.09.2023) da seguinte forma:
«(…) declara-se verificada a suscitada nulidade, traduzida em conhecimento de questão que o tribunal não poderia ter conhecido, reformando-se o dispositivo da sentença da seguinte forma:
- Mantém-se integralmente o decidido nas alíneas a); c) e d) do dispositivo da sentença;
 - O constante na alínea b) do dispositivo volta a ter o teor constante da sentença, ficando sem efeito o despacho reformador proferido a 16/1/2023;
- É aditada uma alínea e), com o seguinte teor:
e) Julgar o pedido reconvencional deduzido pela reconvinte F procedente e, em consequência, condenar o autor-reconvindo no pagamento da quantia de €15.374,79 (quinze mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos), acrescida de juros moratórios devidos para obrigações civis vencidos desde 31 de janeiro de 2015 e até integral pagamento.
- Mantém-se o decidido quanto a custas, incluindo da reconvenção (estando os autores condenados no seu pagamento), com a retificação do lapso de escrita aí constante (onde se lê autores - reconvintes deverá ler-se autores – reconvindos)».
Sobre a nulidade referida na al. b) do ponto 1.24, o tribunal a quo persistiu em nada dizer.
1.26. Inconformado, apelou o A. (em 02.11.2023), referindo que «…tendo sido notificado do despacho que reforma o dispositivo da sentença, e não se conformando com o mesmo, vem apresentar Recurso de Apelação, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 644.º do Código de Processo Civil (CPC), com subida nos próprios autos, ao abrigo do disposto nos artigos 645.º do CPC, com reapreciação da prova gravada» (sublinhado nosso), declarando que «o âmbito subjetivo do presente recurso restringe-se à decisão consagrada no despacho de 22.09.2023» e requerendo, a final, que a sentença seja revogada nessa parte, formulando as seguintes conclusões:
«A. Por douto despacho de 22.09.2023, veio o Tribunal a quo reformar o dispositivo da sentença, tendo vindo condenado o Autor / Reconvindo no pagamento da quantia de €15.374,79 (quinze mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos), acrescida de juros moratórios devidos para obrigações civis vencidos desde 31 de janeiro de 2015 e até integral pagamento.
B. O Recorrente não se pode conformar com a douta sentença, nem com a alteração agora operada, pelas razões e com os fundamentos nas alegações já mencionados.
C. Atendendo que o efeito do presente recurso é meramente devolutivo, nos termos do n.º 1 do art.º 647.º do CPC, a alteração do dispositivo da sentença agora operada patenteia dano de elevado relevo na esfera do Recorrente, pelo que se requer que a esta apelação seja atribuído efeito suspensivo, oferecendo-se o Autor / Recorrente para prestar caução, nos termos definidos pelo Douto Tribunal.
D. Na reforma agora levada a cabo, acrescentou o Tribunal a quo um ponto à sua decisão, condenando o Autor/Recorrente no pedido reconvencional, que tem por fundamento “todos os serviços de que este necessitou no seguimento do internamento solicitado pelo Dr. J, nomeadamente, internamento, administração e fornecimento de medicamentos, alimentação e todo o material necessário à prestação dos cuidados de saúde durante esse período”, - cfr. art.º 238.º da Contestação da Ré sociedade hospitalar.
E. E, conforme doc. 7 junto à PI dos Autores, tal valor corresponde ao período de internamento de 12.12.2014 a 23.01.2015. 18
F. Não pode o Autor / Reconvindo aceitar a decisão do Tribunal a quo, considerando que esta concreta decisão está em oposição com os seus fundamentos, o que consubstancia nulidade da sentença, nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
G. Das razões de tal entendimento, vejamos que condenou o Tribunal a quo, solidariamente, “C; D e E, na qualidade de herdeiros de J; F; Ageas Portugal Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de garante da responsabilidade de J, e Generali Companhia de Seguros, S.A. nos seguintes montantes:
(…) - €26.618,92 (vinte seis mil seiscentos e dezoito euros e noventa e dois cêntimos) a título de danos patrimoniais sofridos pelo autor.”
H. A propósito, veja-se o Aresto do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.09.2020, que sustenta que “não só a ausência de consentimento, conforme unanimemente sustentado, constitui ofensa à integridade do doente não justificada, como faz a entidade hospitalar e o médico, que atue como seu auxiliar, em responsabilidade civil, sendo solidária a responsabilidade por todos os danos e presumindo-se verificação de causalidade dos mesmos, a menos que fosse alegado e demonstrado que o doente teria tomado a mesma decisão (i.e., sido submetido a intervenção) caso o dever de informação tivesse sido cumprido.” – realces das signatárias.
I. Apurou o Tribunal a quo que o Autor estabeleceu contrato com a Ré sociedade hospitalar e não com o médico cirurgião J, a fls. 38 da douta sentença posta em crise, tal como discutido e apreciado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a 28.01.2016, tendo-se decidido que “(o)s factos provados permitem afirmar que estamos perante um caso de “contrato total com escolha de médico (com contrato de médico adicional). (…) Deste modo, a relação entre o R. F e a A. tem a natureza de contrato de prestação de serviços médicos globais (enquadrando-se na noção do art.º 1154º, do Código Civil), sem prejuízo de a relação entre o R. CC e a A. corresponder também a um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos (segundo o previsto no art.º 1154º, do CC).”
J. Também no caso em apreço, o Autor, sem prejuízo de ter escolhido pessoalmente o médico cirurgião J, celebrou contrato com a Ré sociedade hospitalar, porquanto esta “é a entidade geradora de confiança na qualidade do serviço e na proteção contra eventuais intercorrências”, o que é asseverado pelo facto de ser esta segunda a emitir a fatura para pagamento dos serviços prestados.
K. Ora, tendo sido celebrado contrato entre o Autor e a Ré sociedade hospitalar, figura esta última como principal devedora da obrigação que se estabeleceu mediante o contrato: a prestação principal de serviços médico-cirúrgicos e o cumprimento dos deveres acessórios que resultam da mesma, porquanto os demais réus são, e seguindo a linha da douta sentença, a fls. 38, “auxiliares no cumprimento da obrigação”, tornando-se a Ré sociedade hospitalar responsável perante o Autor pelos actos do médico J como se tais atos tivessem sido por si praticados, porquanto o “utiliz(ou) para o cumprimento da obrigação”.
L. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.03.2017, que proclama que “VII - A responsabilidade objectiva do Hospital devedor dos serviços de saúde decorre do princípio geral previsto no art.º 800º do Código Civil, segundo o qual o devedor que, para efeitos de cumprimento, lança mão de auxiliares e daí retirando vantagens -, deve, em contrapartida, aceitar o risco pelos prejuízos causados a terceiros, a título de culpa (mesmo que presumida), pelos seus auxiliares”; e que “VIII - Os actos dos auxiliares no cumprimento do contrato de prestação de serviços médicos (sejam eles dependentes ou independentes) são imputáveis ao devedor (Hospital) como se tivessem sido cometidos pelo próprio.”
M. E veja-se, também, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.03.2017, - aresto este, aliás, citado na douta sentença – que dispõe que “I. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.”; e que “III. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do CC, será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço daquela instituição.”
N. E veja-se, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 28.01.2016, nos termos do qual se declara que “relativamente à responsabilidade civil do hospital (no caso em apreço, também ele, hospital privado), os pressupostos aferem-se a partir da conduta dos auxiliares de cumprimento, dependentes ou independentes, da obrigação de prestação de serviços médicos, que são todos os agentes envolvidos (cirurgião, anestesista, enfermeiros e outros). A conduta dos auxiliares imputa-se ao devedor hospital “como se tais atos tivessem sido praticados pelo próprio devedor” (artigo 800.º, n.º 1, do CC)” – realces das signatárias.
O. E veja-se também a doutrina de Antunes Varela, quanto à verificação da responsabilidade do comitente, “(p)ara que haja responsabilidade objetiva deste, o primeiro requisito é que haja comissão – que alguém tenha encarregado outrem de qualquer comissão (art.º 500.º, 1). (…) A comissão pressupõe uma relação de dependência (...) entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo.”, afirmando, ainda, o mesmo Autor, que “(s)e houver culpa, tanto do comitente como do comissário, qualquer deles responde solidariamente perante o lesado, mas o encargo da indemnização será depois repartido entre eles (art.º 497.º, 2 , ex vi do art.º 500.º, 3), na proporção das respetivas culpas.”
P. É, pois, doutrinal e jurisprudencialmente assente que, em caso de responsabilidade contratual, o devedor responde não só pelo cumprimento dos deveres de prestação, como responde ainda pela observância dos deveres acessórios de conduta, onde se incluem os deveres de informação e de obtenção de consentimento informado.
Q. Decidiu o Tribunal a quo – e bem – que houve omissão dos deveres (contratuais) de informação e obtenção de consentimento informado, que resultou em cumprimento defeituoso do contrato, imputável tanto à Ré sociedade hospitalar, como ao médico J, representado em juízo pelas Rés suas herdeiras, tendo resultado amplamente provado que o Autor não assinou qualquer documento de consentimento informado, nem para as cirurgias a que foi sujeito, nem para qualquer dos atos médicos que lhes antecederam ou sucederam, e que ao Autor não foram explicados os respetivos riscos, pelo que nunca neles consentiu e nem, de forma livre e consciente, poderia ter consentido.
R. No que toca à absoluta necessidade de informação dos potenciais (graves e/ou frequentes) de cirurgias similares àquelas a que o Autor foi submetido, veja-se o depoimento do Réu G, constante do ficheiro 20220211155259_19057238_2871033.
S. Ora, o consagrado dever de informação e dever de obtenção de esclarecimento informado do paciente tem por objetivo, não só a salvaguarda da integridade física e psíquica do doente, mas essencialmente o respeito pela sua autodeterminação e liberdade pessoal. Assim, o consentimento informado do doente, por força do primado da dignidade da pessoa humana, é um requisito essencial da licitude da intervenção cirúrgica.
T. De facto, diante da inexistência de consentimento informado e esclarecido, a afetação da integridade física do doente afigura-se como um ato ilícito e culposo, devendo, pois, o doente, por todos os danos daí decorrentes, ser ressarcido.
U. Na linha de pensamento de André Dias Pereira, “(a)ssim sendo, o médico responde, em princípio, por todas as consequências da intervenção, devendo compensar os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da intervenção arbitrária”.
V. No mesmo sentido, se têm pronunciado, também, os nossos tribunais superiores, designadamente o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 27.11.2018, segundo o qual “Numa intervenção médica arbitrária (sem consentimento ou com consentimento viciado) devem distinguir-se duas situações: (…) 2) a intervenção é arbitrária e não obteve êxito, ou verificaram-se riscos próprios da operação, ou provocou consequências laterais desvantajosas. Na primeira são ressarcíveis os danos não patrimoniais; na segunda, são ressarcíveis os danos não patrimoniais e patrimoniais suportados pelo paciente. Ora, os bens jurídicos tutelados são o direito à integridade física e moral e o direito à liberdade, pelo que os danos ressarcíveis são não só os que resultam da violação da liberdade da vontade, mas também as dores, os incómodos e a lesão da incolumidade pessoal (cf. art.º 70º do C. Civil). Assim, a doutrina tem aceitado que o dano moral resultante da intervenção arbitrária merece a tutela do direito – cf. André Dias Pereira, op. cit., pp. 459 e 460. Este autor estende, porém, a abrangência do esclarecimento e do consentimento do doente de modo a que não estejam em causa apenas motivos éticos (o direito geral de personalidade), mas também o direito do paciente a decidir auto-responsavelmente acerca da sua situação patrimonial. Como tal, serão ressarcíveis os danos não patrimoniais causados pela violação do seu direito à autodeterminação e à liberdade, mas também por violação da sua integridade física, bem como os danos patrimoniais derivados do agravamento do estado de saúde (cf. art.ºs 70º e 483º do C. Civil)”.
W. O Professor André Dias Pereira defende, ainda, que, não tendo o Autor tido consciência “da verdadeira dimensão do risco que corria e, perante ele, em condições de o balançar com os benefícios potenciais e tomar uma decisão esclarecida (…) existe responsabilidade do hospital e do médico pelos danos verificados.” – sendo certo que aquela obrigação, de prestar informação e recolher consentimento do doente, recaia sobre ambos, o médico cirurgião e a Ré sociedade hospitalar.
X. A responsabilidade das instituições de Saúde pela prestação de informação ao paciente e pela obtenção do consentimento informado tem amplo acolhimento na nossa melhor doutrina e jurisprudência; veja-se, também, a este propósito, Vera Lúcia Raposo, que defende que “(a) responsabilidade pela prestação da informação ao paciente e pela obtenção do consentimento cabe, em princípio, ao próprio médico que realiza a intervenção e, em caso de incumprimento, será ele que em primeira linha se arrisca a um processo judicial. Mas pode igualmente caber à instituição em si mesma, quando se comprove que a violação do consentimento informado se deve a procedimentos internos de funcionamento do serviço – impositivos de critérios uniformes de atuação a todos os seus funcionários – que descurem esta prática. É dificilmente pensável que um só profissional de saúde consiga respeitar as várias exigências atinentes ao consentimento informado num estabelecimento de saúde onde este não seja uma rotina arreigada.”
Y. Como já supra se deixou comentado, o Tribunal a quo qualificou – e bem – a relação entre a Ré sociedade hospitalar e o médico J como uma relação de comissão, e decidiu, ainda, o Tribunal a quo, na sentença já posta em crise, que houve cumprimento defeituoso do contrato (em virtude de ter o médico e a sociedade hospitalar violado determinados deveres de conduta), estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, imputável tanto à Ré sociedade hospitalar como ao médico J, nesta acção representado por suas herdeiras – cfr. p. 45 da sentença, onde se afirma que “(n)ão o tendo feito (prestado informação pertinente ao Autor para que este estivesse consciente da verdadeira dimensão do risco que corria e, perante ele, em condições de o balançar com os benefícios potenciais e tomar uma decisão esclarecida), existe responsabilidade do hospital e do médico pelos danos verificados.”
Z. Em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso, presumindo-se a culpa do devedor, nos termos do n.º 1 do art.º 799.º do CC, torna-se aquele responsável pelo prejuízo que tiver causado ao credor, nos termos do art.º 798.º do CC.
AA. E, assim, havendo, no caso, uma relação de comissão, nos termos do art.º 800.º do CC, é a Ré sociedade hospitalar responsável por todos os danos causados ao Autor, porquanto nas palavras de Vaz Serra, “(o) devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles”.
BB. Não podendo, por tal, ao Autor ser imputada a responsabilidade pelo pagamento dos bens e serviços supra explicitados, considerando que: a) houve cumprimento defeituoso do contrato, por omissão do dever de informação e de obtenção de consentimento informado, imputável ao médico cirurgião J e à Ré sociedade hospitalar enquanto comitente; b) responde esta Ré por todos os danos causados ao Autor em virtude de cumprimento defeituoso do contrato, enquanto comitente, i.e., beneficiária dos factos do seu auxiliar/comissário; e c) havendo cumprimento defeituoso, torna-se o devedor (a Ré sociedade hospitalar) responsável pelo prejuízo que haja causado ao credor - prejuízo esse onde se inclui o alegado crédito hospitalar.
CC. Veja-se, ainda, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 06.12.2012, que dita que “I – O cumprimento defeituoso constitui uma das formas de violação do dever de prestar, que provém dos vícios, defeitos ou irregularidades da prestação efectuada que causa danos ao credor, ou, pelo menos, desvaloriza, a prestação, sendo certo que “a questão de saber de o defeito da prestação prejudica ou não o fim da obrigação tem que ser apreciada e resolvida objectivamente, por analogia com o disposto para outras situações da mesma natureza (cfr. arts. 793.º, 2; 802.º, 2; 808.º, 2) mas tendo em linha de conta os termos e as circunstâncias próprios de cada situação concreta (…)”; e “II - No cumprimento defeituoso, tal como na falta de cumprimento, a culpa do devedor presume-se, sendo apreciada nos termos da responsabilidade civil, tornando o devedor responsável pelo prejuízo que causa ao credor (cfr. arts. 799º, nºs 1 e 2 e 798º, ambos do CC); (…) V - Comprovados os defeitos da prestação de serviços, tem o Recorrente direito à redução do preço acordado, que se entende dever ser já fixada, por recurso à equidade (art.º 566º, nº 3 do CC), em metade do montante do preço acordado.”
DD. E o aresto de 07.03.2006 do Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu que “(a) consequência mais importante do cumprimento defeituoso é a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor - art.º 798.º do CC; a seguir, o que há mais característico nesse regime é o direito, em outros casos conferido ao credor, de exigir a reparação ou substituição da coisa (art.º 914.º do CC) ou a eliminação dos defeitos, quando esta seja material e economicamente viável (art.º 1221.º) e, ainda, o direito de redução da contraprestação (art.º 911.º do CC). Os meios de que o credor lesado se pode servir são, além de outros (variáveis de caso para caso), a acção de cumprimento (para obter a prestação realmente devida: art.º 817.º) e o direito à indemnização dos danos provenientes do cumprimento defeituoso (art.º 798.º do CC).”
EE. Assim, não pode o Autor aceitar que, pelos mesmos factos – omissão do dever de informação e de obtenção de consentimento informado – e quanto aos mesmos danos - dano biológico, danos patrimoniais e danos não patrimoniais - se condene pelo seu ressarcimento as Rés Herdeiras de J e a Ré F, solidariamente, fazendo exceção do crédito hospitalar, objeto do pedido reconvencional, sem que, para tal, tenha havido sequer uma gradação da culpa dos intervenientes, i.e., sem qualquer justificação para a exclusão da responsabilidade da Ré sociedade hospitalar pelo dano patrimonial referente ao crédito hospitalar.
FF. E, mais: condenando-se a Ré sociedade hospitalar, na qualidade de comitente, pela omissão do dever de informação e de obtenção de consentimento informado, sempre se teria de ponderar se aquela omissão dera origem aos serviços médico-cirúrgicos faturados, i.e., sempre teria o Tribunal a quo de fazer um juízo de prognose, a fim de averiguar se o Autor se teria submetido (ou não) aos diversos atos médicos agora cobrados pela Ré sociedade hospitalar, caso tivesse sido devidamente informado e esclarecido sobre os riscos da intervenção a que se ia submeter, mormente o de paraplegia – como, de facto, de acordo com as declarações do Autor, não teria sucedido.
GG. Bastaria, de facto, ao Tribunal a quo levar em consideração as declarações do Autor, que, quando, questionado se foi cabalmente esclarecido dos potenciais riscos da intervenção cirúrgica, prestou as esclarecedoras declarações constantes do ficheiro, 20220211101347_19057238_2871033, a partir de 00:18:03 até 00:19:00 e a partir de 00:51:25 até 00:53:00.
HH.E nem se diga que o mesmo não foi alegado pelo Autor, considerando o poder-dever do juiz consagrado no art.º 411.º do CPC, nos termos do qual incumbe a este “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer” – realces das signatárias.
II. É que a violação dos deveres de informação conduz “à frustração da confiança criada na contraparte pela actividade anterior do violador ou quando essa mesma violação retire às negociações o seu sentido substancial profundo de busca de um consenso na formação de um contrato válido, apto a prosseguir o escopo que, em termos de normalidade, as partes lhe atribuam”, consubstanciando uma situação de culpa in contrahendo, como ensina Menezes Cordeiro.
JJ. Assim, a decisão de condenação do Autor em danos que o Tribunal a quo até considerou serem danos patrimoniais do Autor (condenando as Rés herdeiras no seu ressarcimento) vem completamente despegada da fundamentação da douta sentença, só podendo ser vista como uma frustrada tentativa de superação de outras alegadas nulidades da sentença, sem qualquer coerência lógica com o restante dispositivo e fundamentação da douta sentença, pelo que não pode subsistir».
1.27. A 2.ª R. contra-alegou (em 18.12.2023), pedindo que se «i)determine a rejeição do presente recurso ser rejeitado, com fundamento na irrecorribilidade do despacho impugnado e, em qualquer dos casos, no incumprimento do ónus de especificação que se impõe ao Recorrente; ou, caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese, ii) julgue o recurso improcedente, atenta a falta de fundamento das respectivas conclusões», sem, no entanto, formular conclusões.
1.28. Sobre o recurso referido no ponto 1.26, o tribunal a quo proferiu (em 11.01.2024) o seguinte despacho:
«Recurso do despacho que apreciou a invocada nulidade:
Por legal e tempestivo, admite-se (art.º 617.º n.º 6 do CPC).
Subirá nos autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo da decisão à instância superior.
Resposta da recorrida (e arguente da nulidade apreciada):
Visto.
Oportunamente, subam os autos ao Tribunal da Relação».
Sobre a nulidade arguida pelo A./recorrente na conclusão F), o tribunal a quo, mais uma vez, nada disse, em violação do disposto no art.º 617.º, n.º 1 do CPC.
1.29. Colhidos os vistos, importa decidir.
II – QUESTÕES PRÉVIAS
2.1. Cumpre, antes de mais, decidir da admissibilidade do recurso interposto pelo A./reconvindo em 02.11.2023 (cfr. ponto 1.26).
Sustenta a 2.ª R./reconvinte que tal recurso não deve ser admitido por o despacho impugnado ser irrecorrível.
Vejamos.
A decisão recorrida foi proferida em 22.09.2023, ao abrigo do disposto no art.º 617.º n.º 5 do CPC e limitou-se a suprir a nulidade que havia sido invocada pela 2.ª R./reconvinte na ampliação do recurso de apelação que interpôs da sentença final datada de 13.05.2022 (cfr. ponto 1.22).
Tal como bem salienta a 2.ª R./reconvinte, quer o proferimento desse despacho, quer os seus termos subsequentes obedecem a regras específicas, que estão previstas no artigo 617.º do CPC.
Ora, de acordo com o disposto no n.º 2 deste artigo, «se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objecto a nova decisão».
Desta forma, o despacho de 22.09.2023 passou a constituir complemento da sentença de 13.05.2022 e a integrar o objecto do recurso de apelação dessa mesma sentença interposto pela 2.ª R./reconvinte (cfr. pontos 1.17 e 1.22).
Por sua vez, nos termos do n.º 3 do referido art.º 617.º, tendo o juiz suprido a invocada nulidade, «…pode o recorrente, no prazo de 10 dias, desistir do recurso interposto, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração, no mesmo prazo».
A 2.ª R./reconvinte, que recorreu e arguiu a nulidade, nada disse, não tomando qualquer posição, pelo que, como se viu, a decisão incidental resultante do despacho de 22.09.2023 passou a integrar o objecto do recurso de apelação da sentença, interposto por aquela recorrente (cfr. pontos 1.17 e 1.22).
O A./reconvindo, como recorrido, apenas poderia responder, no caso de a recorrente ter alargado ou restringido o objecto do recurso (n.º 3), ou activar a subida do recurso, no caso de a recorrente ter desistido do mesmo (n.º 4), o que não ocorreu.
De resto, e como se viu, a decisão de 22.09.2023 não assume autonomia, pelo que, de igual forma, não pode ser objecto de recurso autónomo (contrariamente ao que sucedida no CPC anterior, em que o recorrido podia interpor recurso da sentença alterada no prazo de 15 dias a contar da notificação do despacho que deferisse o requerimento do recorrente – cfr. art.º 670.º, n.º 4).
Tal como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, II, Almedina, 3.ª ed., p. 746, «esta alteração só pode ter o sentido de restringir o âmbito de liberdade do novo recorrente (ex-recorrido) na conformação do objecto do recurso».
Repare-se que, sendo a decisão primitiva desfavorável, o recorrido sempre tinha o direito de recorrer dela no prazo geral.
No caso dos autos, apesar do dispositivo da sentença primitiva ser omisso quanto ao pedido reconvencional (o que originou, inclusivamente, a arguição de nulidade por omissão de pronúncia por parte da 2.ª R./reconvinte – ponto 1.17), na sua fundamentação consta, expressamente: «Pedido reconvencional apresentado pela reconvinte F : Como referido, o pagamento pelos serviços hospitalares prestado ao autor é devido, devendo ser este condenado e operada a respetiva compensação, quanto a esta ré».
Portanto, a sentença primitiva pronunciou-se, na respectiva fundamentação, sobre o pedido reconvencional deduzido pela 2.ª R./reconvinte, julgando-o procedente, sem que o A./reconvindo tenha reagido, por qualquer forma, a tal decisão, nada dizendo, nomeadamente, no recurso que dela interpôs (ponto 1.16).
Acresce que, em 16.01.2023, o tribunal a quo proferiu despacho suprindo a invocada nulidade por omissão de pronúncia (ponto 1.21.), operando, por esta via, a compensação relativamente ao crédito da 2.ª R./reconvinte que já havia sido reconhecido na fundamentação da sentença primitiva, sem que, mais uma vez, o A. tenha reagido a tal decisão, por qualquer forma, e sem que tenha sequer respondido ao alargamento do âmbito do recurso que a 2.ª R./reconvinte requereu nos termos do disposto no art.º 617.º, n.º 3 do CPC.
Desta forma, não pode agora o A. recorrer, autonomamente, do despacho que reconheceu e deferiu a nulidade arguida pela 2.ª R./reconvinte e referido no ponto 1.25.
É certo que, nos termos previsto no n.º 6 do art.º 617.º do CPC, «a parte prejudicada com a alteração da decisão pode recorrer».
Tal previsão, no entanto, abrange, apenas, as situações em que os incidentes de arguição de nulidade ou de reforma foram deduzidos autonomamente, por não ser admissível recurso ordinário da sentença. Só nesses casos, requerida a reforma da sentença ou arguida uma nulidade, a decisão do juiz a quo sobre a questão suscitada passa a ser impugnável através de recurso ordinário pela parte prejudicada com a alteração e, ainda assim, nos caso a que se refere o n.º 2 do art.º 616.º (regime que, também, é aplicável aos casos em que é arguida uma nulidade ou pedida a reforma da sentença na pressuposição de que a mesma admitia recurso, mas o tribunal superior acaba por não apreciar o objecto desse recurso – cfr. n.º 5, segunda parte, do CPC).
Ora, nada disto sucede no caso dos autos, em que se estava, inequivocamente, em face de uma sentença que admitia recurso ordinário.
Conclui-se, pois, que o recurso interposto pelo A./reconvindo em 02.11.2023 (cfr. ponto 1.26) é inadmissível, por ter por objecto uma decisão da qual não cabe recurso de apelação autónomo, pelo que se impõe rejeitar o mesmo.
2.2. Nas suas contra-alegações, a 2.ª R. requereu a junção aos autos de dois documentos (ponto 1.20) em língua estrangeira, protestando juntar as respectiva traduções para português «logo que tais documentos serem admitidos».
Os dois documentos em causa consistem:
- no artigo científico intitulado “Spinal pseudomeningoceles and cerebrospinal fluid fistulas Couture”, da autoria de Daniel Couture, M.D., And Charles L. Branch, Jr., M.D., publicado em Neurosurg Focus 15 (6): Article 6, em 15/12/2013, no qual, de acordo com o alegado pela recorrida, «se pode ler que a maioria dos rasgos durais resolve espontaneamente e que o repouso é frequentemente o primeiro passo no tratamento conservador de pseudomeningocelos e fístulas de LCE»;
- no artigo científico intitulado “Management of Persistent Cerebrospinal Fluid Leakage Following Thoraco-lumbar Surgery”, da autoria de Bilgehan Tosun, Konuralp Ilbay, Michael Sun Min Kim, Ozgur Selek, publicado no Asian Spine Journal Vol. 6, No. 3, pp 157 ~ 162, em 03/06/2012, no qual, de acordo com o alegado pela recorrida, «pode ler-se também que a terapêutica das fístulas de LCE é controversa, que alguns cirurgiões advogam reparação cirúrgica primária, enquanto outros advogam a derivação lombar do fluido, e que em casos de vazamento cérebro-espinhal após cirurgia da coluna, verificou-se que o tratamento não cirúrgico incluindo drenagem lombar, sobre-sutura cutânea e repouso foram eficazes».
Refere a recorrida que a junção dos referidos documentos é admissível nos termos do art.º 651.º do CPC, «em razão do teor das alegações de recurso dos Recorrentes, face à nova factualidade que carreiam aos autos sobre a qual a Recorrida não teve oportunidade de se pronunciar em sede da respectiva contestação e que, a ser atendida, o que não se concede, precludiria o seu direito ao contraditório».
Antes de mais, importa dizer que dificilmente se percebe a intenção da recorrida de, apenas, juntar aos autos tradução dos documentos em causa após a sua admissão, como se a apreciação da pertinência da sua junção não estivesse dependente da exacta apreensão e compreensão do seu teor!
Seja como for, de acordo com o disposto no art.º 651.º, n.º 1 do CPC, «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância».
Por sua vez, o art.º 425.º do CPC estatui que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».
Ora, desde logo, e tal como salienta Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes».
No que respeita à impossibilidade de apresentação anterior, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 2001, p. 426, consideram que «Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida (superveniência objetiva) ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento (superveniência subjetiva). Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 (atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil)».
Rui Pinto, Ob. Cit., p. 314, refere que, no «tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar – a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento».
Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (art.º 651.º, n.º 1, do CPC), Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 184, afirma que «podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo. A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado».
Do exposto, decorre, pois, que o regime consagrado no n.º 1 do art.º 651.º do CPC não permite a junção à alegação de documento potencialmente útil à causa ab initio e que poderia e deveria ter sido apresentado em 1.ª instância.
No caso vertente, e tal como, de resto, a recorrida reconhece e defende, os documentos cuja junção é pretendida não visam a prova ou contraprova de factos alegados nos articulados, mas sim rebater novos factos ou novos argumentos deduzidos pelos AA./recorrentes nas suas alegações, demonstrando que existem outras abordagens ou opções terapêuticas face a uma fístula de LCR, para além da propugnada pelos AA. nas suas alegações.
Acresce que, quanto muito, a pertinência da junção desses documentos ter-se-á verificado no decurso do julgamento em primeira instância, nomeadamente, durante o depoimento de parte do 3.º R. G, pelo que a junção deveria ter ocorrido antes do encerramento da discussão em primeira instância, sendo certo que a recorrida não alegou que desconhecesse, então, a existência desses documentos, nem invocou qualquer impossibilidade de junção em momento anterior ao recurso.
Repare-se que os documentos em causa são cópias de artigos científicos publicados em 2012 e 2013, pelo que eram susceptíveis de ser conhecidos e juntos ao processo antes do encerramento da discussão em primeira instância.
Acresce que a junção, para além de não se mostrar justificada à luz dos ensinamentos supra referidos, revela-se manifestamente inútil como meio de prova. É que tais documentos constituem meros artigos científicos, cujas conclusões (por falta de tradução) se desconhecem e que, a serem as sumariadas pela recorrida, se ignora se se mantêm actuais e consensuais ou, ao invés, se foram rebatidas e estão ultrapassadas, pelo que, naturalmente, careciam de ser confirmadas no âmbito da perícia realizada ou, preferencialmente, de parecer do conselho médico-legal nos termos do art.º 7.º da Lei n.º 166/2012, de 31.07 (Lei Orgânica do INMLCF).
Enfim, os documentos em causa visam provar factos que não foram alegados nos momentos processuais próprios (e que, como se verá infra, nem sequer se inserem no âmbito da causa de pedir invocada), não possuem qualquer valor probatório e em nada contribuem para a descoberta da verdade e boa decisão da causa. 
Nestes termos, impõe-se não admitir os documentos junto com as contra-alegações de recurso e determinar o seu desentranhamento e subsequente entrega à 2.ª R./recorrida, que suportará as custas do incidente respectivo (art.º 534.º do CPC), cuja taxa de justiça se fixará em uma UC (art.º 7.º, n.º 8 do RCP).
III – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, são as seguintes as questões essenciais a decidir:
a) das nulidades da sentença;
b) das alterações à matéria de facto provada;
c) da natureza jurídica da relação estabelecida entre o A., por um lado, e o médico J e a 2.ª R., por outro lado;
d) dos pressupostos da responsabilidade civil:  ilícito perpetrado (erro médico e/ou falta de consentimento informado) e nexo de causalidade entre os danos sofridos pelos AA. e a falta de consentimento informado;
e) da responsabilidade da 2.ª R. e das herdeiras do médico de cujus;
f) do cômputo das indemnizações.
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
4.1. A sentença sob recurso considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1. O autor nasceu em 21/5/1950 e a autora em 22/11/1953;
2. J faleceu 26/4/2015, deixando como herdeiros C, D e E;
3. O autor foi encaminhado pelo Dr. J para as instalações do F, onde foi admitido no dia 12 de dezembro de 2014;
4. O autor foi submetido a intervenção cirúrgica nesse mesmo dia 12 de dezembro de 2014, nas instalações do F, com anestesia geral;
5. O 3.º réu G é médico especialista em cirurgia ortopédica da coluna e exercia, em dezembro de 2014, a sua atividade profissional na Unidade de Cirurgia da Coluna, no Serviço de Ortopedia do F;
6. Em dezembro de 2014, J havia transferido a responsabilidade civil emergente da sua profissão para a Ageas Portugal-Companhia de Seguros, S.A. por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0084.05.935346;
7. Nos termos de tal contrato, o limite do seguro era, à data, de €300.000,00 por cada sinistro, sendo que o capital garantido é definido em cada anuidade, sendo aplicada, por sinistro, uma franquia de 10% do valor reclamado relativamente a danos patrimoniais, com um mínimo de €125,00, (cópia de fls. 726 e 727, com as “Condições Gerais” de fls. 729 a 745 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido);
8. A ré F tem a sua responsabilidade civil transferida por contrato de seguro intitulado “Responsabilidade Civil de Exploração”, celebrado em 18/6/2001, com a Generali Companhia de Seguros, S.A., titulado pela apólice n.º 0151/10000900 (cópia de fls. 474 a 496 dos autos, aqui dados por reproduzidos);
9. Tal garantia está limitada a €500.000,00 por cada sinistro e anuidade (€150.000,00 por sinistro com danos corporais; €25.000,00 por sinistro com danos materiais, com uma franquia de 10% do valor do sinistro, com um mínimo de €249,40;
10. Em 16/2/2015, a ré F, S.A. comunicou ao seu mediador de seguros e participou à “Generali, Companhia de Seguros, S.A.”, conforme consta a fls. 499 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;
11. A ré “F, S.A.” emitiu, e o autor recebeu, a fatura n.º 201501/920, datada de 31.01.2015, no valor global de €15.374,79, cuja cópia consta a fls. 212 a 225 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;
12. A Ageas - Companhia de Seguros, S.A. e o réu G celebraram um contrato de seguro do Ramo “Responsabilidade Civil Profissional”, modalidade Ordens Profissionais, Especialidade Neurocirurgia, titulado pela apólice n.º 0084.05.946348, cuja cópia consta a fls. 727v/728 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido;
13. Tal contrato, à data, estava limitado por sinistro ao capital de €300.000,00, sendo este definido a cada anuidade, ficando limitado, por sinistro, sendo aplicada a cada sinistro relativamente a danos patrimoniais uma franquia de 10% do valor reclamado, com um mínimo de €125,00 - “Condições Gerais” constam a fls. 729v./745 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido;
14. A Ageas - Companhia de Seguros, S.A. e a ré H celebraram um contrato de seguro do Ramo “Responsabilidade Civil Profissional”, modalidade Ordens Profissionais, Especialidade Anestesiologia, titulado pela apólice n.º 0084.05.930497, cuja cópia consta a fls. 728v./729 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido;
15. Tal contrato estava, à data, limitado ao capital de €300.000,00 por sinistro, sendo que este é definido em cada anuidade e sendo aplicada a cada sinistro, relativamente a danos patrimoniais, uma franquia de 10% do valor reclamado, com um mínimo de €125,00, cujas “Condições Gerais” constam a fls. 729/745 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido;
16. A “Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A.” e a ré I celebraram um contrato de seguro do Ramo “Responsabilidade Civil Profissional”, titulado pela apólice n.º RC23710872, cuja cópia consta a fls. 763/764 dos autos, cujo objeto é a responsabilidade civil extracontratual decorrente do exercício da sua atividade médica anestesista;
17. Tal contrato tinha, à data, como capital seguro de €600.000,00, limitado a €300.000,00 por sinistro, prevendo uma franquia correspondente a 10% do valor dos prejuízos no mínimo de €125,00, e cujo teor se dá por reproduzido - “Condições Gerais” de fls. 755/763 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
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Factos apurados na sequência da prova produzida (matéria referente a factualidade essencial ou complementar alegada, sendo que a mais constante dos articulados é meramente instrumental, repetida, conclusiva ou de direito):
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Factos prévios às cirurgias:
18. Em dezembro de 2014 o autor exercia profissionalmente a atividade de comerciante, sendo sócio e gerente de sociedade familiar de comércio de produtos agrícolas e pecuários em Foros de Benfica do Ribatejo;
19. Em dezembro de 2014 a autora exercia igualmente essa atividade de comerciante na empresa familiar;
20. O autor era, a tal data, reconhecido no seu meio pessoal e profissional como pessoa ativa e dinâmica;
21. Em momento não apurado foi-lhe diagnosticada uma hérnia discal, incidente sob as vértebras L4-L5;
22. Tal condição provocava-lhe compressão de nervo sensitivo e motor, causava-lhe dor e paresia do pé direito, i.e., incapacidade de realizar dorsiflexão do pé, condição também designada de pé pendente, com o inerente claudicar ao caminhar;
23. Para solução de tal problema e do desconforto inerente, submeteu-se a cirurgia em setembro de 2014, realizada no hospital Cuf Infante Santo, pelo médico Dr. CTH;
24. Após tal intervenção mantinha tal condição de pé pendente;
25. Encontrando-se a realizar fisioterapia subsequente de recuperação e mantendo limitações físicas, procurou aconselhamento foi-lhe indicado, como reputado na especialidade, o Dr. J;
26. Dirigiu-se a consulta, este aceitou acompanhá-lo e declarou ao autor que a sua condição iria melhorar no caso de ser por si intervencionado;
27. O autor tinha, em dezembro de 2014, historial clínico de HTA (hipertensão arterial), elevada concentração de ácido úrico no sangue e dislipidemia (distúrbio de lípidos no sangue);
28. Foi a perspetiva de melhoria resultante da declaração do médico J que levou o autor a aceitar a realização de nova cirurgia à hérnia discal;
29. O Dr. J era um médico “externo” ao hospital da F, não integrando o quadro de funcionários do hospital;
30. Entre o médico J e a ré F foi celebrado contrato intitulado de utilização de consultório médico pelo qual, designadamente, a ré sociedade se comprometeu a ceder-lhe uma sala de consultório no F (e o mais que consta do doc. n.º 3 anexo à contestação da ré F);
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Período entre 12/12/2014 e 17/12/2014:
31. A intervenção cirúrgica realizada no dia 12/12/2014 foi conduzida por uma equipa constituída pelo médico-cirurgião J, pela médica anestesiologista H e por equipa de enfermagem composta por anestesista, circulante e instrumentista;
32. A médica anestesiologista e as enfermeiras integravam o Corpo Clínico da ré F;
33. O autor não assinou a declaração denominada “consentimento informado para cirurgia”, seja nesta intervenção ou em qualquer das outras intervenções que realizou no F;
34. O Dr. J não informou o autor sobre os riscos inerentes à realização da cirurgia;
35. Antes de ser submetido à cirurgia, o autor foi avaliado pela anestesiologista H no próprio Bloco Operatório;
36. Esta recolheu junto do autor a informação necessária, elaborou a ficha de anestesia, tendo explicado ao autor o tipo de anestesia a ministrar - geral;
37. O autor, após acordar da cirurgia realizada em 12/12, sentiu dores agudas e incomodidade que, de imediato, assinalou ao pessoal de enfermagem presente, nada lhe tendo sido dito nesse momento;
38. Após a cirurgia ficou com ausência de sensibilidade no pé direito e sensibilidade reduzida no pé esquerdo, ausência total de sensibilidade na zona testicular e peniana;
39. Na sequência da intervenção, o Dr. J diagnosticou o autor com “síndrome de cauda completo”, ordenou a retirada do dreno e deu indicação para “reintervenção cirúrgica”;
40. No dia seguinte, 13 de dezembro de 2014, o autor foi novamente conduzido ao bloco operatório, onde foi novamente intervencionado cirurgicamente, com anestesia geral;
41. Não lhe foi prestado qualquer esclarecimento prévio a tal segunda intervenção no F;
42. Esta intervenção cirúrgica do dia 13/12/2014 foi realizada pelo Dr. J, a médica anestesiologista H, aqui 4.ª ré, e uma equipa de enfermagem composta por enfermeira anestesista, enfermeira circulante e enfermeira instrumentista;
43. A equipa de enfermagem e a anestesiologista integram os quadros da ré sociedade hospitalar;
44. Na sequência desta intervenção, o autor apresentava sensibilidade e mobilidade das pernas, mas com ausência de sensibilidade no pé direito e sensibilidade reduzida no pé esquerdo, com mobilização das pernas, mas sem mobilização dos dedos dos pés, nem dorsiflexão em ambos os pés e com ausência total de sensibilidade na zona testicular e peniana;
45. Quatro dias depois, a 17/12/2014, o autor foi submetido a uma terceira intervenção cirúrgica no F;
46. Antes de tal cirurgia, não foi prestado ao autor esclarecimento sobre a mesma;
47. A 3.ª intervenção foi efetuada pelo cirurgião J, assistido pela enfermeira anestesista AL, pela enfermeira circulante LL, pela Enfermeira instrumentista PL e pela médica anestesiologista I, todas funcionárias da ré F;
48. Foi no dia 17/12/2014 que a ré I tomou conhecimento da situação do autor, tendo analisado o seu processo clínico, incluindo os dados cirúrgicos e anestésicos anteriores;
49. No decurso desta intervenção, o médico J sentiu-se mal, teve um desfalecimento, sentou-se num banco no interior do bloco, pálido, a transpirar e com ar combalido;
50. Tal desfalecimento foi comunicado à Direção Clínica do hospital que, de imediato, solicitou ao réu G que se deslocasse de emergência ao bloco operatório;
51. Foi nesse momento que o réu G teve o seu primeiro contacto com a situação do autor;
52. Quando o 3.º réu chegou ao bloco operatório o autor encontrava-se inconsciente, sob o efeito de anestesia;
53. Nesse momento, o Dr. J solicitou ao Dr. G que terminasse a cirurgia e não concluiu a intervenção;
54. Iniciando a sua intervenção, o réu G procedeu à avaliação do estado do autor e verificou a existência de uma fistula com rutura do saco dural e vazamento de líquido liquor;
55. Usou este cirurgião como técnica cirúrgica uma plastia da dura mater com fáscia e utilização de cola biológica, assim procedendo ao encerramento da fistula céfalo- raquidiana;
56. Após ter participado na cirurgia de 17/12/2014, no dia seguinte (18/12/2014), o R. G deu conhecimento à Direção Clínica do hospital do ocorrido no bloco operatório (doc. n.º 2 anexo à contestação dos RR. G, H e B e doc. n.º 5 anexo à contestação da ré F, S.A., aqui dado por integralmente reproduzido);
57. Em tal comunicação declarou, designadamente, além do antes referido, que o doente ficou estável e melhorado, com sinais vitais dentro da normalidade;
58. O Dr. J sofria de doença oncológica em dezembro de 2014, encontrando-se a trabalhar, não tendo comunicado ao autor a sua condição de saúde;
59. Na sequência desta cirurgia de 17/12/2014, o autor foi encaminhado para os serviços de Cuidados Intensivos do hospital da F;
60. Nesse momento o autor mantinha diminuição da sensibilidade ao nível dos membros inferiores e genitais e dor à mobilização dos membros inferiores da região dorsal;
61. Nas cirurgias de 13/12 e 17/12 ao autor nada foi perguntado ou dito antes de início do procedimento relativamente à anestesia a realizar;
--
Período após 17/12/2014 e até alta:
62. No dia 18/12/2014, o autor foi transferido dos Cuidados Intensivos para o Internamento, mantendo os sintomas;
63. O autor permaneceu internado até 23/1/2015 no Hospital da F, dia em que recebeu alta;
64. Após esta cirurgia, nos dias 18/12 e 19/12, o autor recebeu a visita do Dr. J;
65. Nessa altura, encontrava-se deprimido e enviou uma mensagem telefónica a familiares com “ideias suicidas”;
66. Iniciou fisioterapia no período de internamento;
67. Nesse período manteve ausência de sensibilidade na região posterior das coxas, nádegas e toda a região perineal;
68. Ao longo do período de internamento o autor necessitou sempre de ajuda para se sentar, levantar e posicionar-se no leito e ainda para fazer a transição para a cadeira de rodas;
69. Após alta, seguiu para reabilitação física no Centro de Alcoitão, sem capacidade para se locomover sem apoio de muletas, sem capacidade para reter a urina, sem capacidade para controlar a dejeção e sem capacidade para manter relações sexuais;
70. Aquando da alta, necessitava de ajuda para as atividades de vida diárias, exceto para alimentação, onde era autónomo;
71. Usava algália, tinha incontinência de esfíncter anal, incapacidade de executar posição ortostática, ausência de capacidade de flexão e extensão dos dedos de ambos os pés e ambos os tornozelos, hipostesia na região perineal, nadegueira e ambos os pés;
72. O médico J encontrou-se em situação de impossibilidade de trabalhar, em razão de saúde, entre o dia 20 de dezembro de 2014 e 7 de janeiro de 2015;
73. Nesse período o autor não recebeu visita médica, recebendo acompanhamento do pessoal de enfermagem e auxiliar da sociedade hospitalar, realizando fisioterapia e tendo a sua situação sido acompanhada pelo corpo clínico do Hospital F;
74. Os médicos ao serviço da ré sociedade tomavam conhecimento da situação do autor aquando das suas rondas de serviço;
75. O autor enviou carta à Administração do Hospital, reclamando pelo tratamento que estava a receber invocando, além do mais, falta de acompanhamento médico;
76. No dia 7/1/2015 o autor foi visitado pelo Dr. J, que, designadamente, lhe sugeriu realizar reabilitação em Alcoitão;
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Período após alta; situação física permanente do autor:
77. A pedido do Centro de Reabilitação de Alcoitão foi agendada ao autor consulta de reavaliação de neurocirurgia para o dia 2/4/2015, no Hospital da F, junto do médico J;
78. No decurso da consulta, o médico em causa deu-a terminada, declarando no respetivo relatório que tal se deveu ao doente ter declarado que foi convocado pela instituição e não estar de live vontade, o que invalida a relação de confiança entre paciente e médico (doc. n.º 2 anexo à contestação à ré F, S.A.);
79. Em consequência das cirurgias efetuadas, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação ativa nos territórios de L4-L5 e L5–S1;
80. Tais sequelas neurológicas determinaram alterações da mobilidade e sensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira (zona perineal, peniana e anal);
81. Em consequência da sua condição, apenas consegue locomover-se com auxílio de canadianas, em deslocações pequenas, carecendo de cadeira de rodas e apoio na generalidade das deslocações;
82. Desloca-se e conduz automóvel, adaptado à sua condição;
83. Ficou totalmente impossibilitado de desenvolver de trabalhar na organização e gestão diária da empresa familiar, ou em qualquer trabalho equivalente;
84. Não faz a sua higiene pessoal, necessitando de ajuda para as tarefas em causa;
85. Perdeu toda a capacidade sexual, não controla a sua função urinária ou excretora, carecendo do uso de fralda e de tomar medicamentos;
86. A sua integridade estética foi afetada num valor quantificável em 4, numa escala de 1 a 7;
87. Ao longo de todo o internamento, e até aos dias de hoje, padece de dores;
88. Tais dores foram intensas e prolongadas no período de internamento, sendo quantificáveis em grau 6 numa escala de 1 a 7;
89. Após tal período, tem dores não permanentes, pontualmente de grande intensidade, não quantificável;
90. Em consequência da sua condição, sente grande desgosto e frustração;
91. Sofreu uma depressão, que ultrapassou;
92. Tornou-se uma pessoa mais taciturna e triste e socialmente isolada;
93. Passou para o filho a gestão da empresa, deslocando-se à mesma pontualmente;
94. As lesões físicas sofridas pelo autor fazem parte da lista de riscos inerentes a uma cirurgia a hérnia discal, riscos que aumentam a cada reintervenção;
95. Os autores, antes das lesões sofridas pelo autor, tinham uma vida conjugal normal;
96. Após tais lesões, a vida da autora passou a ficar cingida quase exclusivamente a cuidar do autor;
97. A autora sente, desde então, tristeza e angústia por tal situação;
98. Os autores deixaram de ter qualquer vida sexual.
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Elementos estritamente patrimoniais:
99. A ré sociedade hospitalar apresentou ao autor, para pagamento de serviços prestados, uma fatura final do valor de €15.374,79;
100. O autor não pagou tal fatura;
101. O autor despendeu em medicação a quantia de €2.356,92;
102. Em honorários com outros clínicos a quantia de €11.431,33;
103. Em consultas e exames diversos a quantia de €1.994,30;
104. Nos serviços de reabilitação física do Hospital de Alcoitão suportou a quantia de €5.250,00;
105. Para adaptação da sua habitação e automóvel despendeu €4.733,92;
106. Em deslocações para tratamentos despendeu o montante de €672,45 em portagens;
107. O autor, após entregar a gestão diária da empresa familiar ao filho, passou a ser apenas funcionário da mesma;
108. A ré F prestou ao autor os serviços descritos na fatura supra referida».

4.2. A sentença sob recurso considerou não provada a seguinte matéria de facto, que, agora, se enumera, para facilidade de referenciação:
«1 - A relação filial dos autores com VD e a data de nascimento deste (falta de apresentação de documento);
2 - Que, quando se dirigiu ao Dr. J, o autor o tenha feito por ser conhecedor de várias publicações em revistas científicas, designadamente relativas a recuperação de paraplégicos;
3 - Que a cirurgia ao autor deveria ser realizada com uma técnica específica em que o Dr. J se havia especializado;
4 - Que, aquando da primeira consulta, o Dr. J garantiu a ausência de riscos inerentes à intervenção;
5 - Que a ré H tenha explicado ao autor os riscos envolvidos na anestesia ou dado alguma possibilidade de escolha;
6 - Que, após a cirurgia de 12/12, se tenha verificado desnorteio e embaraço dos enfermeiros de serviço, quando confrontados com a condição do autor;
7 - Que, após as cirurgias, o Dr. J limitava-se a estabelecer contacto telefónico com o serviço;
8 - Que, após as cirurgias, o Dr. J limitou-se a efetuar passagens junto rápidas ao autor declarando que “o sr. A vai ficar bom e está a recuperar muito bem”;
9 - Que o autor tenha solicitado explicações ao Dr. J sobre a realização da 2.ª intervenção e este limitou-se a dizer que se tratava de uma “revisão de cirurgia”;
10 - Que o autor apenas soube que ia ser submetido às intervenções cirúrgicas realizadas a 13/12/2014 e 17/12/2014 quando entrou no bloco operatório;
11 - Que, a meio do procedimento cirúrgico de 17/12, o médico J desmaiou;
12 - Que, à data da 3.ª intervenção, o Dr. J sabia que a sua doença poderia perturbar o seu regular desempenho como médico cirurgião;
13 - Que, após o desfalecimento do Dr. J, a cirurgia poderia ter sido cancelada;
14 - Que o réu G agendou, à revelia do autor, consulta de neurocirurgia com o Dr. SL no Hospital da F;
15 - Que o autor está impossibilitado de se locomover sem auxílio de outrem;
16 - Que o autor necessita sempre de ser transportado;
17 - Que não se locomove sem apoio de cadeira de rodas;
18 - Que necessita de ajuda do filho para realizar a sua higiene pessoal;
19 - Que está impossibilitado de trabalhar;
20 - Que a depressão que sofreu se foi agravando;
21 - Que o autor é uma pessoa triste;
22 - Que a entrega da gestão diária da sociedade familiar ao filho não foi bem vista por alguns clientes, que deixaram de negociar com a sociedade;
23 - Que, devido às lesões que sofreu, o autor deixou de trabalhar na empresa familiar;
24 - Que o autor auferia mensalmente o quantitativo de €850,00 como gerente da sociedade, retribuição que deixou de auferir;
25 - Que, como funcionário da empresa, tenha deixado de auferir salário ou que aufira salário inferior ao que auferia antes do acidente;
26 - Que o autor pagou à ré F por serviços prestados no Hospital da F, o quantitativo de €15.374,79;
27 - Que o autor se viu na necessidade de contratar um motorista em abril de 2015, que aufere uma retribuição mensal líquida de €516,00, tendo despendido, até à propositura da ação, o valor de €7.740,00;
28 - Que o autor planeia nova intervenção cirúrgica junto de outro médico;
29 - Que, qualquer dos réus e especialmente a ré sociedade hospitalar tenha, intencionalmente omitido ou alterado dados ou organização do processo clínico;
30 - Que o estado físico do autor poderá sofrer melhorias com recurso a fisioterapia».
V – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
5.1. Comecemos pelas nulidades da sentença.
5.1.1. A 2.ª R. invocou a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia quanto ao pedido reconvencional que deduziu (conclusão V das respectivas alegações).
Sucede que, como se referiu no ponto 1.21., tal nulidade foi apreciada, reconhecida e suprida pelo tribunal a quo, o que motivou, por parte da 2.ª R., o alargamento do âmbito do recurso, onde arguiu, por sua vez, a nulidade da decisão por excesso e omissão de pronúncia (ponto 1.22), mais uma vez julgada verificada e suprida pelo tribunal a quo (ponto 1.25), sem que a recorrente algo mais tenha requerido.
Por conseguinte, e a respeito da nulidade sobredita, nada mais cumpre decidir.
5.1.2. A 2.ª R. invocou, ainda, a nulidade da sentença por falta de fundamentação da matéria de facto (conclusões VI a X das respectivas alegações), por considerar que a mesma padece de «…uma absoluta omissão – e não uma mera incompletude ou insuficiência – dos putativos fundamentos de facto que permitiriam ao Tribunal a quo concluir, na sentença recorrida, pela pretensa celebração de um “contrato singular” tendo por objecto a realização de uma cirurgia, o que traduz um vício cominado com nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b), do CPC…».
O tribunal recorrido pronunciou-se sobre tal arguição, entendendo que a mesma não se verifica, por os fundamentos da sua convicção terem sido objectivamente apresentados (ponto 1.21).
Ora, dispõe a al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O dever de fundamentação das decisões judiciais tem consagração constitucional (art.º 205.º da CRP) e infraconstitucional (art.º 154.º do CPC), sendo, apenas, dispensável no caso de decisões de mero expediente.
Assim, ainda que a questão decidenda não suscite especiais dúvidas, a respectiva decisão deve ser fundamentada nos termos que se apresentem ajustados ao caso, sendo certo que a qualidade da fundamentação é aferida em função do seu conteúdo substancial e não por via da sua extensão.
Tem sido, uniformemente, entendido pela jurisprudência que a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC abrange, apenas, a absoluta falta de fundamentação (isto é, a falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão) e não a fundamentação insuficiente ou lacónica e, muito menos ainda, o desacerto da decisão.
Nesta senda, escreveu-se no acórdão do STJ de 2.06.2016, in www.dgsi.pt, que «As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º (…) ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos (…) Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada».
Este traduz, aliás, o pensamento de Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V, 3.ª ed., Coimbra Editora, p. 140, quando refere que «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
No caso vertente, conforme resulta do ponto V da sentença, na parte relativa à “relação jurídica estabelecida entre o autor e réus”, encontram-se explanadas, suficientemente, as razões fáctico-jurídicas que levaram o tribunal a quo a concluir pela existência de um contrato entre o A. e a 2.ª R.
Atente-se, por exemplo, nas seguintes passagens da sentença: «Sendo estes os elementos mais relevantes, a primeira evidência que ressalta, desde logo da simples existência de um pedido de condenação em pagamento de serviços prestados feita pela própria ré sociedade hospitalar, é a existência de um contrato entre o autor e esta. O autor não deu entrada no hospital em situação de urgência e sem capacidade de entender e querer e, portanto, necessariamente, as contraprestações que teria que pagar ao hospital inseriam-se num contrato de prestação de serviços, não se tratando de mera obrigação assistencial de fonte indeterminada»; «A despeito da posição da ré sociedade hospitalar, não se pode considerar senão a existência de um contrato singular celebrado entre o autor e esta. Para o sustentar deve começar-se por olhar para a normalidade social – o jurídico é um reflexo desta. No quadro social, é artificial sustentar a existência, sem outros elementos, de vários contratos. (…) Esta normalidade jurídica e social poderia ser infirmada, se existissem elementos que a pusessem em causa. Não os há. (…) Se o autor procurou o J e este lhe foi indicado como trabalhando no Hospital F, quando se dirigiu a consulta, e depois a cirurgia, foi com a instituição que contratou»; e «(…) para o paciente, o contrato foi celebrado com o hospital e isso é o suficiente para a conclusão em apreço. É o que decorre diretamente do facto de a gestão administrativa do contrato, no caso a sua faturação, ser realizada pelo hospital e não pelo médico».
O que sucede é que a recorrente confunde os vícios que determinam a nulidade da sentença por falta de fundamentação com o inconformismo quanto ao seu teor.
É, todavia, incontroverso que as causas de nulidade, taxativamente, enumeradas no art.º 615.º do CPC, não visam o chamado erro de julgamento, nem a injustiça da decisão ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável.
As questões suscitadas pela recorrente não constituem motivo de nulidade da sentença, mas, quanto muito, fundamento, quer para a impugnação da decisão sobre a factualidade provada e/ou não provada, com base na errónea apreciação das provas, quer para a impugnação da decisão jurídica, o que será apreciado mais à frente neste acórdão.
Improcede, por isso, a arguida nulidade.
5.1.3. Também a recorrente Generali Seguros, S.A., invocou a nulidade da sentença (cfr. conclusão 57.ª das respectivas alegações de recurso), por considerar que «a decisão de condenação solidária do Réu Hospital é (…) inadmissível por ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão, no âmbito da responsabilidade contratual, donde a decisão está ferida de nulidade (cfr. artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC)».
O tribunal a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, quer atendendo ao disposto nos arts. 641.º, n.º 1 e 617.º, n.º 1 do CPC, quer em face do despacho proferido pelo relator (ponto 1.24), que, expressamente, o determinou.
Seja como for, e como é consabido, a omissão de despacho do tribunal a quo sobre as nulidades arguidas não determina, necessariamente, a remessa dos autos à 1.ª instância para tal efeito (cfr. n.º 5, do referido art.º 617.º), cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cfr., neste sentido Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo Civil, p. 149.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, entendemos que não se justifica ordenar, novamente, a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se, desde já, ao conhecimento da suscitada nulidade.
Ora, afigura-se-nos evidente que a sentença recorrida não padece de falta de fundamentação no que respeita à condenação da 2.ª R., sendo perfeitamente possível descortinar as razões que conduziram à decisão (patentes, nomeadamente, nas seguintes passagens da sentença «Ante a conclusão de existência de um contrato entre o autor e a sociedade hospitalar, a situação dos autos, naquilo que concerne à situação do autor paciente (que não da autora mulher), deve começar por ser vista à luz de responsabilidade contratual. Neste quadro, a ré sociedade hospitalar figura como devedora principal da obrigação de prestação de serviços médico-cirúrgicos, sendo os demais réus médicos auxiliares no cumprimento da obrigação (cf. art.º 800.º do Código Civil – CC)» e «Uma nota final neste ponto a propósito de uma eventual exclusão de responsabilidade da sociedade hospitalar por tal dever cumprir, em primeiro lugar, ao cirurgião J Não estaria em causa, a esta luz, a inexistência de um contrato, argumento que acima se tratou e foi considerado insustentado, mas uma exclusão de responsabilidade por incumbir o dever de informação ao médico, aqui representado pelos herdeiros. É uma linha de argumentação que não colhe. Em primeiro lugar, como acima referido, o cirurgião deve ser qualificado, à luz do que dispõe o art.º 800.º do CC, como um auxiliar de uma organização complexa de meios humanos e materiais. Assim, nunca poderá exonerar-se a entidade que integra os médicos de todos os atos e omissões praticados no seu seio e a ela imputáveis. (…) é a sociedade que detém os meios e a organização e, portanto, no limite, teria/terá sempre a possibilidade de fechar o bloco operatório à chave e só o abrir depois de confirmar a existência de um consentimento assinado e de estar paciente devidamente informado»).
A recorrente também apreendeu essas razões, tanto que logrou atacá-las por via deste recurso.
  Mais uma vez, o que se verifica é que a recorrente discorda da fundamentação e solução jurídica do tribunal a quo. Todavia, como se disse, tal não constitui motivo de nulidade da sentença.
E, assim sendo, conclui-se pela não verificação da apontada nulidade da sentença recorrida.
5.1.4. A recorrente Generali Seguros, S.A., alegou que, sendo parte acessória na acção e não parte principal, jamais poderia ser nela, directamente, condenada, mas, apenas, por via do direito de regresso, em acção posterior a instaurar pela sua segurada 2.ª R., nos termos dos arts. 321.º e segs. do CPC, pelo que pede a revogação da sentença recorrida na parte em que a condena solidariamente no pagamento das indemnizações fixadas (cfr. conclusões 2.ª a 12.ª das respectivas alegações de recurso).
Conforme se referiu no ponto I, a companhia de seguros Generali foi admitida na acção como interveniente acessória (cfr. acórdão desta Relação de 10.05.2018, proferido no apenso A).
Dispõe o art.º 321.º do CPC que «1 - O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar da defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal. 2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento».
Diferentemente do que sucede na intervenção principal, que se destina a permitir a participação, numa acção já pendente, de um terceiro, que é titular (activo ou passivo) de uma situação subjectiva própria, mas paralela à alegada pelo A. ou pelo R. (cfr. art.º 311.º do CPC), na intervenção acessória o interveniente é um mero auxiliar da parte principal e a sua actividade está subordinada à dela (cfr. art.º 328.º ex vi do art.º 323.º, n.º 1 do CPC), visando a mesma, apenas, tornar indiscutíveis certos pressupostos de uma futura e eventual acção de regresso, pelo prejuízo que lhe causou a perda da demanda
Por isso, nos termos previsto no art.º 323.º, n.º 4, «a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no artigo 322.º, relativamente ás questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização».
Vê-se, pois, que o interveniente acessório não pode ser directamente condenado a pagar qualquer quantia ao A., até porque este não formulou qualquer pedido contra si!
Sucede que a sentença recorrida condenou, solidariamente, a interveniente acessória a pagar ao A. as indemnizações de €60.00,00, €40.000,00 e €26.618,92, acrescidas de juros de mora (als. b) e d) do respectivo dispositivo).
Ora, como é consabido, o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (art.º 608.º, n.º 2, segunda parte do CPC) e a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir (art.º 609.º, n.º 1 do CPC), sob pena de nulidade (art.º 615.º, n.º 1, als. d) e e) do CPC).
A recorrente não invoca, expressamente, a nulidade em causa, mas suscita, inequivocamente, a questão do excesso cometido pelo tribunal a quo, embora lhe retire como consequência jurídica a revogação da sentença e a improcedência da acção quanto a si.
Esta Relação não está, contudo, vinculada à qualificação jurídica das partes (art.º 5.º, n.º 3, do CPC).
A nulidade de sentença por condenação ultra petitum decorre, como é consabido, da violação do disposto no art.º 609.º, n.º 1 do CPC, que proíbe a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
No caso dos autos, como se viu, a companhia de seguros Generali não interveio na acção como parte principal e contra ela não foi deduzido qualquer pedido, pelo que não podia ter sido condenada como foi.
A sentença é, pois, nula nessa parte, o que cumpre declarar.
Fica, por conseguinte, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela recorrente Generali Seguros no recurso que interpôs (art.º 608.º, n.º 2 primeira parte, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
5.2. Passemos, agora, à impugnação da matéria de facto.
A este respeito, importa não esquecer que o regime processual vigente restringe a possibilidade de revisão da matéria de facto a questões de facto controvertidas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, admitindo-se, apenas, a reapreciação de concretos meios probatórios relativos a determinados pontos de facto impugnados.
Rejeitaram-se, desta forma, quer soluções maximalistas que determinam a repetição de julgamentos ou a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, quer a possibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto (cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2022, p. 194 e segs.).
Com efeito, de acordo com o disposto no art.º 640.º do CPC, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões) e, fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, devendo, ainda, consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. Ob. Cit., p. 197 e 198).
Deve, no entanto, evitar-se um excesso de formalismo, adoptando-se soluções que façam prevalecer aspectos de ordem material, guiadas por critérios de proporcionalidade e razoabilidade.
Certo é que «os aspectos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios  de prova indicados e explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido» (Abrantes Geraldes, Ob. Cit., p. 208).
No caso dos autos, os recorrentes cumpriram, suficientemente, o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º do CPC, nada obstando, por esta via, à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Atentemos, então, nos concretos aspectos impugnados.
5.2.1. Defende a 2.ª R. que o n.º 79 dos factos provados deve ter a seguinte enunciação: «Em consequência da cirurgia realizada pelo Dr. J em 12/12/2014, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação ativa nos territórios de L4-L5 e L5–S» (conclusões XI a XVI).
Considera que, com base nas declarações de parte do A. e nos relatórios médicos que refere, ficou «…demonstrado nos autos que apenas a cirurgia efectuada em 12/12/214 pelo Dr. J constitui a causa da referida lesão neurológica» e que «…as cirurgias subsequentemente realizadas ao Autor, em 13/12/2014 e 17/12/2014, não geraram quaisquer lesões no Autor, mas antes, pelo contrário, se destinaram apenas a solucionar e minorar as eventuais consequências da primeira cirurgia, de 12/12/2014».
Os AA. nada contra-alegaram a este propósito.
Decidindo, impõe-se reconhecer razão à recorrente.
Com efeito, é o que perpassa, desde logo, da demais factualidade provada (não posta em causa por qualquer das partes): dos factos provados sob os n.ºs 38, 39, 44, 45, 60 e 80, decorre que o quadro clínico do A. de lesão neurológica irreversível, com desenervação activa nos territórios de L4-L5 e L5–S1, corresponde ao “síndrome de cauda completo” e foi diagnosticado logo após a intervenção cirúrgica realizada no dia 12.12.2014.
Acresce que tal conclusão é, ainda, a única que pode extrair-se da prova documental junta aos autos, designadamente: do relatório subscrito pelo médico J, datado de 28.12.2014, do qual consta, a propósito da cirurgia realizada em 12.12.2014, que «na primeira observação após a cirurgia o doente apresentava um síndrome da cauda completo, pelo que só poderia tratar-se de uma fístula de LCR. (…)»  (cfr. pág. 5 do documento n.º 1 junto à contestação da 2.ª R.); do relatório subscrito pelo Director Clínico da 2.º R., datado de 30.12.2014, onde se lê que «foi operado pelo Dr. J dia 12/12/2014 com foraminotomia e discectomia L4-L5. No pós-operatório imediato teve sequelas neurológicas com alterações da mobilidade e sensibilidade nos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira pelo que efectuou revisões cirúrgicas dias 13 e 15/12/2014» (cfr. pág. 10 do documento n.º 1 da contestação  da 2.ª R); e do diário clínico do Hospital, de cujas anotações consta que, no dia 13.12.2014, pelas 7h da manhã, o A. se queixava de «perda de sensibilidade abaixo da linha umbilical acima do 1/3 médio da coxa» e que se suspeitava de «liquor na tubuladura», bem como a seguinte anotação feita pelo médico J, ainda no dia 13.12.2014, pela manhã, «síndrome de cauda completo. (…) Poderá ter uma fístula de LRC» (cfr. pág. 4 do documento n.º 2 junto com a petição inicial).
Inequívoco, no sentido propugnado pela recorrente, foi, ainda, o depoimento de parte do 3.º R., do qual resultou, claramente, que a lesão neurológica sofrida pelo A. decorreu da cirurgia realizada no dia 12.12.2014 (cfr. passagens assinaladas nas alegações de recurso da 2.ª R.).
Finalmente, é esta realidade que decorre das declarações de parte do A., quando refere que, após acordar da primeira cirurgia, nada sentia do umbigo para baixo e que tal estado se manteve após as cirurgias subsequentes (cfr. passagens assinaladas nas alegações de recurso da 2.ª R.).
Enfim, dos meios de prova mencionadas, que não foram contrariados por quaisquer outros, só pode concluir-se que foi, apenas, na sequência da intervenção cirúrgica de 12.12.2014, e não das intervenções subsequentes, que o A. passou a sofrer das sequelas neurológicas que determinaram as alterações da mobilidade e sensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira (zona perineal, peniana e anal).
Procede, pois, o recurso nesta parte, determinando-se que o n.º 79 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção: «Em consequência da cirurgia realizada em 12.12.2014, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação activa nos territórios de L4-L5 e L5–S1».
5.2.2. Entendem os AA. que devem ser dados como provados os seguintes factos:
«a. O Autor A deu entrada no Hospital da F a 12 de dezembro de 2014, a caminhar pelo próprio pé, sem recurso a canadianas ou qualquer outro auxiliar de marcha;
b. A 1.ª cirurgia a que foi submetido aconteceu às 14h45 e terminou às 15h20 do mesmo dia 12/12/2014;
c. No imediato pós-cirúrgico, o Autor revelou perda de sensibilidade dos membros inferiores;
d. E pelas 7h do dia 13/12/2014, foi verificado que o AA. apresentava penso repassado com líquido sugestivo de ‘perda de liquor’ e lesão da ‘dura mater’;
e. Tendo, nesse turno da manhã do dia 13/12/2014, o Dr. J diagnosticado síndrome de cauda completo e fístula de LCR (líquido cefalorraquidiano);
f. A reparação da lesão da ‘dura mater’, que implica risco de vida para o doente, afigura-se como um procedimento life-saving, absolutamente emergente desde o momento em que se constata a perda de ‘liquor’;
g. O diagnóstico de síndrome de cauda completo exige intervenção urgente, nas primeiras 12 horas, sob pena de consolidação e irreversibilidade;
h. Não obstante, a 2.ª cirurgia iniciou-se às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, mais de 27 horas após os primeiros sintomas da síndrome de cauda, provocada pela má execução do Dr. J, na 1.ª cirurgia;
i. O Dr. J provocou uma laceração na ‘dura mater’, com ‘perda de liquor’, por inadvertida execução técnica no decurso da primeira cirurgia; laceração que, igualmente por má execução técnica, não conseguiu reparar nas cirurgias seguintes (quer na 2.ª cirurgia, que teve início às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, quase 28 horas após a cirurgia durante a qual fora provocada a laceração; quer na 3.ª cirurgia, realizada no dia 17/12/2014, até ao momento em que teve de ser substituído pelo Dr. G), não obstante essa reparação fosse um procedimento life-saving;
j. O Dr. J violou as mais elementares leges artis, não só na prestação de informação imprescindível a um consentimento livre e informado, como na execução das cirurgias, como, ainda, no acompanhamento pós-operatório – todas estas obrigações que sobre si impendiam;
k. O Dr. J encontrava-se diminuído nas suas capacidades à data das cirurgias realizadas ao AA., o que influenciou a sua execução e o (des)acompanhamento prestado ao doente».
Analisaremos cada um deles isoladamente.
5.2.3. «a. O Autor A deu entrada no F a 12 de dezembro de 2014, a caminhar pelo próprio pé, sem recurso a canadianas ou qualquer outro auxiliar de marcha».
Consideram os AA. que tal facto decorre da carta de transferência de enfermagem, junta como documento n.º 1 com a contestação da 2.ª R., e do depoimento da testemunha VD (filho do A.), nas passagens que transcrevem.
Defendem que «…a prova deste facto revela-se essencial a uma fiel apreciação da matéria, porquanto demonstra a notória degradação física que o Autor sofreu, desde o momento em que entrou no F».
As 1.ªs RR. propugnaram pela rejeição do recuso, por os recorrentes não terem indicado o preciso momento da gravação onde se encontram registadas as passagens do depoimento por si citadas.
Já a 2.ª R. defendeu que tal facto não pode ser considerado provado, por não decorrer dos elementos de prova referidos pelo AA.
Ora, o facto em causa foi alegado pelos AA. nos arts. 48.º, 51.º e 450.º al. b) da petição inicial e a sentença não se pronunciou sobre ele expressamente, o que se impunha, tendo em conta a relevância que pode assumir para a cabal compreensão da condição física do autor à entrada no Hospital, por comparação com aquela que tinha após as intervenções cirúrgicas e os tratamentos a que aí foi sujeito.
Dos trechos do depoimento da testemunha VD, citados pelos recorrentes, nada resulta quanto à situação do A. à entrada no Hospital F, no dia 12.12.2014, sendo, portanto, irrelevante para os efeitos pretendidos (quer pelos AA., quer pelas 1.ªs RR.).
Todavia, da “carta de transferência de enfermagem” mencionada pelos AA., e não impugnada por nenhuma das partes, consta que «à entrada doente orientado no tempo, espaço pessoa. Vem a deambular, apresenta redução da mobilidade no membro inferior direito, com dificuldade na execução de marcha não recorrendo a nenhum auxiliar de marcha» (sublinhados nossos), sendo certo que “deambular” tem o significado de andar, passear ou vaguear.
Assim sendo, procede o recurso nesta parte, determinando-se o aditamento aos factos provados do seguinte facto, que assumirá o n.º 3A: «O autor deu entrada no Hospital da F a 12 de dezembro de 2014, a caminhar pelo próprio pé, com redução da mobilidade no membro inferior direito e com dificuldade na execução de marcha, mas sem recurso a canadianas ou qualquer outro auxiliar de marcha».
5.2.4. «b. A 1.ª cirurgia a que foi submetido aconteceu às 14h45 e terminou às 15h20 do mesmo dia 12/12/2014».
Consideram os AA. que este facto decorre do processo clínico junto aos autos pela 2.ª R. e que é essencial para a apreciação do cumprimento das boas práticas pelo médico cirurgião, bem como pelo Hospital, em termos de acompanhamento pós-cirúrgico.
A 2.ª R. defendeu que o recurso é inconsequente e inútil nessa parte, porque, apesar de nos factos provados da sentença não constarem expressamente as horas de início e de término da cirurgia de 12.12.2014, tal informação terá sido, necessariamente, considerada pelo tribunal a quo.
Ora, o facto em causa foi alegado no art.º 56.º da petição inicial e a sentença recorrida não se pronunciou sobre ele de forma explícita, sendo certo que, em face das várias soluções plausíveis da questão de direito, pode ser útil e necessário para a boa decisão da causa.
Tal facto decorre, inequivocamente, dos documentos juntos aos autos (cfr. registo de enfermagem de 12.12.2024, que faz parte do documento n.º 2 junto com a petição inicial, e do documento n.º 1 junto pela 2.ª R.), que não foram impugnados.
Assim sendo, procede o recurso nesta parte, determinando-se o aditamento aos factos provados do seguinte facto, que assumirá o n.º 36A: «A 1.ª cirurgia a que o autor foi submetido iniciou-se às 14h45 e terminou às 15h20 do mesmo dia 12/12/2014».
5.2.5. «c. No imediato pós-cirúrgico, o Autor revelou perda de sensibilidade dos membros inferiores».
Entendem os AA. que este facto decorre da “Avaliação de enfermagem pós-operatória imediata”, constante do processo clínico junto aos autos pela 2.ª R., da anotação efetuada no diário clínico, constante do mesmo processo clínico, bem como do depoimento da testemunha AMR, enfermeira.
O facto em causa foi alegado nos arts. 72.º e 73.º da petição inicial e encontra-se, claramente, abrangido pela factualidade, mais concreta e esclarecedora, já provada sob o n.º 38 dos factos provados, que não foi posta em causa por qualquer das partes, pelo que o recurso é, nesta parte, inútil.
Por conseguinte, nada cumpre decidir a este respeito.
5.2.6. «d. E pelas 7h do dia 13/12/2014, foi verificado que o AA. apresentava penso repassado com líquido sugestivo de ‘perda de liquor’ e lesão da ‘dura mater’»
Consideram os AA. que este facto resulta demonstrado pela anotação efectuada, pelas 07h00 do dia 13.12.2014, no diário clínico constante do processo clínico junto aos autos pela 2.ª R.
A 2.ª R. defende, mais uma vez, que o recurso é inútil nesta parte, por tal facto ter sido considerado pelo tribunal a quo para a formação da sua convicção.
O facto em causa foi alegado pelos AA. nos arts. 73.º e segs. da petição inicial e pode ser, também, relevante para o desfecho da causa, perante as várias soluções possíveis da questão de direito.
Ora, consta do documento supra referido (não impugnado pelas partes), a seguinte anotação, feita pelas 07,00h do dia 13.12.2014: «Dreno (rc): funcionante de líquido hemático. Contactada Dra. I por Sr. ter referido perda de sensibilidade abaixo da linha umbilical e acima do 1/3 médio da coxa, dreno muito funcionante de líquido hemático com suspeita de liquor na tubuladura. Dra. I deu indicação para contactar cirurgião Dr. J, foi informado destas situações, de falta de sensibilidade, de dreno muito funcionante e de líquido sugestivo de liquor ao nível da tubuladura. Deu indicação para retirar dreno na mesma e que viria ver o doente».
Resulta, assim, demonstrado que, pelas 07,00h do dia 13/12/2014, foi verificado que o A. apresentava penso repassado com líquido sugestivo de perda de líquor (isto é, líquido cefalorraquiano ou LCR).
Já não decorre do referido documento, contrariamente ao propugnado pelos AA., que, pelas 07,00h do dia 13.12.2014, tenha sido verificado que o A. apresentava “lesão da dura-máter” (isto é, da membrana que envolve o encéfalo e a medula espinal).
Assim sendo, procede, parcialmente, o recurso nesta parte, determinando-se o aditamento aos factos provados do seguinte facto, que assumirá o n.º 38A: «Pelas 07,00h do dia 13/12/2014, foi verificado que o autor apresentava penso repassado com líquido sugestivo de perda de líquor».
5.2.7. «e. Tendo, nesse turno da manhã do dia 13/12/2014, o Dr. J diagnosticado síndrome de cauda completo e fístula de LCR (líquido cefalorraquidiano)».
Consideram os AA. que o facto em causa decorre do registo feito pelo médico J, na manhã do dia 13.12.2014, no diário do processo clínico junto aos autos pela 2.ª R.
Tal facto foi alegado pelos AA. nos arts. 82.º e segs. da petição inicial.
Na sentença recorrida, sob o n.º 39, foi dado como provado que «Na sequência da intervenção, o Dr. J diagnosticou o autor com “síndrome de cauda completo”, ordenou a retirada do dreno e deu indicação para “reintervenção cirúrgica”».
Do documento referido consta, efectivamente, que, na manhã do dia 13.12.2014, o médico J anotou «Síndrome de cauda completo (…) Poderá ter uma fístula de LCR. Foi retirado o dreno e dependendo da evolução será para reintervencionar».
O n.º 39 dos factos provados é, assim, omisso quanto à anotada possibilidade de verificação de uma “fístula de LCR”, o que não se justifica e pode revelar-se importante para a boa decisão da causa.
Por conseguinte, determina-se que o n.º 39 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção: «Na sequência da intervenção, o Dr. J diagnosticou o autor com “síndrome de cauda completo”, bem como a possibilidade de se verificar uma “fístula de LCR”, ordenou a retirada do dreno e deu indicação para “reintervenção cirúrgica”».
5.2.8. «f. A reparação da lesão da ‘dura mater’, que implica risco de vida para o doente, afigura-se como um procedimento life-saving, absolutamente emergente desde o momento em que se constata a perda de ‘liquor’».
«g. O diagnóstico de síndrome de cauda completo exige intervenção urgente, nas primeiras 12 horas, sob pena de consolidação e irreversibilidade».
«i. O Dr. J provocou uma laceração na ‘dura mater’, com ‘perda de liquor’, por inadvertida execução técnica no decurso da primeira cirurgia; laceração que, igualmente por má execução técnica, não conseguiu reparar nas cirurgias seguintes (quer na 2.ª cirurgia, que teve início às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, quase 28 horas após a cirurgia durante a qual fora provocada a laceração; quer na 3.ª cirurgia, realizada no dia 17/12/2014, até ao momento em que teve de ser substituído pelo Dr. G), não obstante essa reparação fosse um procedimento life-saving».
Consideram os AA. que os factos em causa resultam, inequivocamente, demonstrados pelo depoimento do 3.º R., nas passagens que citam.
As 1.ªs RR. contra-alegaram, alertando para a circunstância de os AA. não terem alegado na petição inicial «qualquer falha técnica específica na execução da cirurgia ou por qualquer das equipas médicas», pretendendo que se demonstre, em recurso, uma matéria nova, que não integra o objecto do processo, sendo que os recursos ordinários não servem para se discutirem temas novos. Sustentam que, para além do mais, o depoimento do 3.º R. não pode ser valorado por falta de indicação do momento da gravação onde se encontra registado e que a factualidade em causa não pode basear-se, apenas, numa só declaração e sem estar apoiada em outro meio de prova cientificamente independente e tecnicamente credenciado, sendo que tal prova não existe nos autos. Quanto à al. i), referem que nada permite concluir que o médico J tenha provocado a lesão descrita, nem que não tenha logrado repará-la por ausência da técnica adequada, uma vez que do processo clínico nada resulta e que o depoimento do 3.º R. não pode ser valorado (quer pelo sobredito motivo, quer por ser «parte interessada numa conclusão que afaste de si qualquer possível responsabilização, tanto que é réu na acção»).
A 2.ª R., que igualmente contra-alegou, argumentou que a factualidade em causa não foi carreada para os autos em 1.ª instância, constituindo uma nova factualidade sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar em sede da respectiva contestação e que, a ser atendida, precludiria o seu direito ao contraditório, pelo que não pode ser apreciada. Considera, de resto, que do depoimento do 3.º R., apenas, decorre que o procedimento por ele adoptado no decorrer da cirurgia de 17.12.2014 era, em face da laceração importante com perda de líquor, considerado um life saving procedure, sendo que, antes de entrar no bloco operatório, desconhecia se o caso requeria uma intervenção life saving, porque não observou o doente e, segundo o que lhe foi transmitido pelo médico J, o mesmo estaria estável e a perda de líquor teria diminuído, o que reclamaria uma reparação urgente, mas não emergente. Contrapõe, ainda, que, do processo clínico resulta que, só às 07,00h do dia 13.12.2014, o A. apresentava perda de sensibilidade abaixo da linha umbilical e acima de 1/3 médio da coxa (pois que, no pós-operatório e até então, referia tão somente a falta de sensibilidade nos dois pés), sendo que, do depoimento do 3.º R., decorreu que só a perda de sensibilidade na zona perineal, testículos, ânus e face interna da perna, é considerada síndrome da cauda equina, o que permite concluir que o síndrome da cauda equina só se terá instalado a partir do início da manhã do dia 13.12.2014 e, portanto, que a cirurgia que visava tratar desse síndrome ocorreu menos de 12 horas após o seu diagnóstico. Finalmente, aduz que o depoimento do 3.º R. foi no sentido de o síndrome de cauda equina (perda de sensibilidade e função na zona perineal e nadegueira) ter que ser corrigido, no máximo, em 48 horas, sob pena de irreversibilidade das lesões nos radiculares nervosos. No que concerne à al. i), a 2.ª R. evidencia que a matéria em causa (falhas na execução das cirurgias pelo médico J e a inadequação da técnica utilizada para encerramento da fistula) constitui alegação atinente à pretensa violação da leges artis na preparação e execução dos procedimentos cirúrgicos pelo médico J, que não foi deduzida na sua petição inicial e que, por isso, não faz parte da causa de pedir, não podendo ser conhecida no âmbito do presente recurso. Acresce que do depoimento do 3.º R. não resulta que a laceração da “dura mater” tenha ocorrido na cirurgia de 12.12.2014, nem que o facto de não se ter logrado reparar a fístula na cirurgia do dia 13.12.2014 tenha origem numa “inadvertida execução técnica”, sendo que a circunstância de o 3.º R. ter utilizado, na cirurgia de 17.12.2014, outra técnica que considerou ser melhor, não significa que a técnica utilizada pelo médico J não fosse, também, correcta.
Vejamos.
 Os factos ou a matéria supra referidos, que os AA. pretendem ver provados, não foram alegados na petição inicial, nem na resposta às contestações ou em qualquer outro articulado superveniente e, salvo melhor opinião, não podem ser considerados factos concretizadores e, muito menos, instrumentais.
Na verdade, compulsada, atenta e exaustivamente, a petição inicial, verifica-se que os AA., sob o ponto I (“Dos Factos”), imputam a todos os RR. a prática de factos tendentes a demonstrar a violação dos deveres de informação, de documentação e de falta de acompanhamento, sendo esses os únicos factos ilícitos integradores da responsabilidade civil que lhes pretendem assacar.
Para além disso, e no que concerne ao “erro médico”, propriamente dito, no referido ponto I, os AA. limitam-se a descrever a sintomatologia e a condição física do A. após as cirurgias e os diagnósticos médicos no pós-operatório. No art.º 101.º da petição inicial, os AA. referem, em termos conclusivos, o “deficiente cumprimento dos fins” da primeira cirurgia, sem, contudo, alegarem qualquer erro de execução da mesma, sendo que a frustração da finalidade de uma cirurgia não significa, necessariamente, que tenha sido mal executada. No art.º 162.º da petição inicial os AA. limitam-se a aventar a possibilidade de o estado de saúde do médico J ter afectado o seu desempenho, mas nada alegam de concreto quanto a esse desempenho, explicitando, nomeadamente, o que deveria ter feito e não fez ou o que fez e não deveria ter feito. No art.º 216.º da petição inicial os AA. referem a “assunção explícita do absoluto fracasso da prestação de cuidados médicos que o A. consigo contratara e cujo resultado havia por si sido garantido”, mas, mais uma vez, nada concretizam quanto a um possível “erro médico” na execução das cirurgias e/ou na avaliação da necessidade e urgência das intervenções subsequentes.
Dos arts. 224.º e 228.º da petição inicial resulta claro que os AA. consideram, em jeito de síntese, que o cumprimento do serviço médico contratado foi defeituoso, por o A. ter sido votado ao abandono e por terem sido escassos os esclarecimentos que lhe foram prestados quanto à sua condição de saúde e às alternativas terapêuticas aconselháveis, para que pudesse prestar um consentimento livre e consentido, imputando a esse cumprimento defeituoso as sequelas de que ficou a padecer.
Já no ponto II da petição inicial (“Do Direito”), os AA. voltam a referir-se aos factos ilícitos perpetrados pelos RR. como estando relacionados com a falta de “consentimento informado” (onde discorrem sobre os deveres de informação e de recolha desse consentimento) e com a violação do “dever de documentação”, sendo que na parte relativa ao “erro médico e violação da leges artis” (arts. 409.º a 435.º), os AA. limitam-se a apontar a “atitude displicente de que foi vítima o A.”; a assunção de riscos desnecessários por parte do médico J, em face do estado de saúde do A.; a falta de comunicação dos mesmos ao A.; a falta de comparência do referido médico quando chamado pelos serviços; a omissão da “conduta assacável” na relação com o A. por parte do médico J; o facto de o 3.º R. não ter sido mandatado para substituir o médico J e a sua falta de conhecimentos técnicos; a ausência de contactos das 4.ª e 5.ª RR. com o A. e de uma correcta avaliação pré-anestésica. E concluem que foram essas condutas dos RR. que geraram danos ao A.
 Vê-se, pois que os AA. alegaram, apenas, a existência de erro médico e de violação da leges artis de uma forma genérica (como é evidenciado pelos artigos 409.º a 412.º da petição inicial, que citam no início das suas alegações…) e sempre relacionada com a violação de deveres de informação, documentação e assistência, nunca os tendo sustentado em qualquer falha na preparação e execução das intervenções cirúrgicas a que foi sujeito, nos diagnósticos pós-operatório ou na avaliação da necessidade, urgência e escolha das intervenções posteriores.
Aliás, quanto a essa urgência (que os AA. pretendem, agora, sob a al. g) que seja de, no máximo, 12 horas após o diagnóstico de síndrome de cauda completo), olvidam os  AA. que alegaram, sob o art.º 93.º da petição inicial, que a cirurgia realizada no dia 13.12.2014 «…não se assomava como uma operação de extrema urgência – de resto, em lado nenhum se encontra tal urgência arguida ou estribada», sendo que, no art.º 102.º, reiteraram que «inexistia urgência ou perigo na demora» dessa cirurgia (o mesmo alegando, no art.º 139.º, quanto à cirurgia do dia 17.12.2014) e, no art.º 299.º, defenderam que a comunicação ao A. para as cirurgias subsequentes à de 12.12.2014 deveria ter respeitado um período de reflexão de, pelo menos, 48 horas, o que, claramente, revela que a - só agora - pretendida omissão do dever de intervenção dentro das 12 horas não constituía causa de pedir dos pedidos formulados.
Desta forma, a referida perfuração da dura-máter, por má execução técnica, bem como o insucesso na sua reparação também por má execução técnica, não são parte da causa de pedir da acção, não constam dos temas da prova, nem foram, por isso, objecto de instrução, antes constituem questões de facto novas, que não podem ser conhecidas por este tribunal superior.
Tal como bem defende a 2.ª R. nas suas contra-alegações, a «factualidade alegada pelos Autores na sua Petição Inicial resume-se a alegadas falhas na informação que seria devida ao Autor pelo Dr. J, alegadas falhas no preenchimento do processo clínico, quanto ao seu alegado “abandono” durante o período de internamento e pouco mais», sendo que «em momento algum é alegado qualquer facto sobre a correção (ou incorreção) quer da 1.ª intervenção cirúrgica, quer da preparação e execução dos outros procedimentos cirúrgicos subsequentes, realizados pelo Dr. J», relembrando que «como é evidente, é aos Autores que cabe definir a causa de pedir na Petição Inicial, e sendo caso disso ampliar a mesma nos termos que se encontram previstos na nossa lei adjectiva» e concluindo que «o Tribunal não pode oficiosamente apreciar uma alegada violação da leges artis por parte do Dr. J, por factos que não foram invocados pelos Autores na Petição Inicial, estando vinculado à decisão das questões invocadas pelos mesmos nas suas peças processuais para fundamentar a respectiva decisão».
Com efeito, é, comummente, entendido que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto de onde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer e que é legalmente idóneo para o condicionar ou produzir (art.º 581.º, n.º 4 do CPC).
Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (arts. 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 2 al. d), do CPC), entendendo-se por “factos essenciais” aqueles que integram o núcleo primordial da causa de pedir e que desempenham uma função individualizadora da mesma.
Ora, no caso dos autos, e conforme decorre do exposto, os factos essenciais, integradores e individualizadores da causa de pedir, são os atinentes à violação dos deveres de informação, de documentação e de falta de acompanhamento. É a essa violação que os AA. imputam os danos sofridos e é dela que os AA. retiram o direito de indemnização que pretendem fazer valer.
Os factos referidos neste ponto 5.2.8, que os AA. almejam ver provados, escapam, completamente, ao núcleo dos factos essenciais que compõem a causa de pedir da acção, tal como foi configurada na petição inicial, constituindo factos novos, que não foram objecto de uma oportuna ampliação da causa de pedir e que não podem ser atendidos.
E nem se diga que os factos em causa assumem a natureza de meros factos concretizadores, pois que os mesmos não têm como propósito pormenorizar, densificar ou explicitar o quadro fáctico exposto, antes cumprindo uma nova função individualizadora do tipo legal.
Os recursos têm por escopo a reapreciação daquilo que foi decidido, estando vedado ao tribunal de recurso o conhecimento de questões novas, com excepção daquelas que devam ser de conhecimento oficioso.
Tal como salienta Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2022, p. 139, «a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termo gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis». E, mais à frente (p. 141), «a assunção desta regra encontra na jurisprudência numerosos exemplos: a) As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição. b) os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decidias no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a mesmo que se trate de questões de conhecimento oficioso».
A este respeito, o acórdão do STJ de 02.06.2015, in www.dgsi.pt., decidiu que «a questão nova não é susceptível de vir a obter um novo enquadramento jurídico, em sede de recurso, mas antes uma primeira e definitiva abordagem, pelo que, a menos que se reconduza a uma hipótese de conhecimento oficioso, está vedado, até com base no princípio da estabilidade da instância, ao Tribunal Superior a sua apreciação, que não pode conhecer e decidir o que, anteriormente, o não foi, por falta de atempada invocação».
Também o acórdão do STJ de 08.10.2020, in www.dgsi.pt, considerou que «(i) Os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão, mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. (ii) - As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida».
Ainda que se entendesse que os factos em causa são, meramente, complementares ou concretizadores da causa de pedir invocada e que decorreram da instrução da causa, nomeadamente, do depoimento do 3.º R., o certo é que sobre os mesmos as partes não tiveram oportunidade de se pronunciar (art.º 5.º, n.º 2 al. b) do CPC), o que impediria que esta Relação se substituísse à 1.ª instância e os considerasse, dando-os como provados, com base nos elementos probatórios constante dos autos e não contraditados pelas partes nisso interessadas.
Conforme se decidiu no acórdão da RP, de 13.07.2022, in www.dgsi.pt., «I. Podem ser considerados na sentença (com referência, sempre, aos limites de cognição do tribunal traçados pela causa de pedir e/ou excepção individualizadas e identificadas nos factos essenciais alegados pelo autor e pelo réu, pelo requerente e requerido, pelo embargante e embargado – art.º 5º, nº 1 e 615º, nº 1 d) do CPC) os factos complementares e instrumentais – estes, quando resultem da instrução da causa (art.º 5º, nº 2, a) do CPC); aqueles, quando resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido as partes possibilidade de se pronunciar. II. Deve entender-se que a disciplina prevista no art.º 5º, nº 2, b) do CPC exige para que os factos complementares ou concretizadores sejam considerados (independentemente de requerimento das partes nesse sentido) que as partes sejam expressamente advertidas, antes do encerramento da discussão de facto, sobre tal, pois que importa cumprir o contraditório quanto ao próprio aproveitamento do facto pelo tribunal. III. Sendo a factualidade que a parte pretende ver incluída na decisão, a coberto da alínea b) do nº 2 do art.º 5º do CPC, relevante à decisão da causa, a não observância de tal necessário pressuposto para a sua aquisição oficiosa imporá a anulação da decisão, nos termos do art.º 662º, nº 2, c) do CPC – pressupondo tal anulação que a factualidade em causa haja emergido da discussão da causa com a consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo (ou seja, que a discussão da causa os tenha tornado patentes)».
Por todo o exposto, improcede, pois, o recurso nesta parte.
5.2.9. «h. Não obstante, a 2.ª cirurgia iniciou-se às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014, mais de 27 horas após os primeiros sintomas da síndrome de cauda, provocada pela má execução do Dr. J, na 1.ª cirurgia».
Consideram os AA. que este facto decorre do processo clínico junto aos autos pela 2.ª R. e que é relevante porque demonstra uma clara e grosseira violação das boas práticas médicas.
O facto relativo ao início, duração e término da cirurgia realizada no dia 13.12.2014 foi alegado nos arts. 98.º, 108.º e 112.º da petição inicial e a sentença recorrida não se pronunciou sobre ele expressamente, sendo certo que, também aqui, as várias soluções plausíveis da questão de direito aconselham a sua inclusão entre os factos provados.
Tal facto decorre, inequivocamente, do processo clínico junto aos autos, que faz parte do documento n.º 2 junto com a petição inicial e do documento n.º 1 junto pela 2.ª R.), que não foram impugnados.
Já as expressões “mais de 27 horas após os primeiros sintomas da síndrome de cauda” e “provocada pela má execução do Dr. J, na 1.ª cirurgia” são, obviamente, conclusivas e encerram juízos de valor, pelo que não podem ser acolhidas entre os factos provados.
Com efeito, a matéria de facto, à qual se irá, em momento posterior, aplicar o direito, não pode conter «qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica» (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, p. 312).
Helena Cabrita, in A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, p. 106-107, refere que «os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta».
Ainda que alguma recente jurisprudência dos tribunais superiores venha admitindo a inclusão, na decisão de facto, de factos com alguma componente conclusiva (cfr., neste sentido, por exemplo, o acórdão do STJ de 14.07.2021, in www.dgsi.pt), a mesma não deixa de exigir que se esteja perante realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, estando vedado ao julgador da matéria de facto a formulação de juízos sobre questões de direito.
E, embora seja certo que o actual Código de Processo Civil não contém norma, absolutamente, equivalente à do art.º 646.º, n.º 4, do anterior Código, a verdade é que o art.º 607.º, n.º 4 do CPC, consagra o mesmo princípio, ao prever que da fundamentação da sentença devem constar os factos julgados provados e não provados. A expressa menção aos “factos” reconduz-se ao velho princípio de que a fundamentação de facto deve ser expurgada de toda e qualquer matéria susceptível de ser qualificada como de direito, conceito que abarca, de igual modo, os juízos conclusivos.
Assim sendo, procede, parcialmente, o recurso nesta parte, determinando-se o aditamento aos factos provados do seguinte facto, que assumirá o n.º 43A: «A 2.ª cirurgia iniciou-se às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014».
5.2.10. «j. O Dr. J violou as mais elementares leges artis, não só na prestação de informação imprescindível a um consentimento livre e informado, como na execução das cirurgias, como, ainda, no acompanhamento pós-operatório – todas estas obrigações que sobre si impendiam».
Consideram os AA. que este facto resulta «da conjugação das provas acima apontadas e dos correspondentes factos, bem como dos depoimentos prestados pelo RR., Dr. G, e pela testemunha, Dr. CH».
As 1.ªas RR. contra-alegaram, defendendo que a matéria em causa constitui uma “asserção meramente conclusiva” e que o depoimento da 3.º R. não pode ser valorado, pelas razões já mencionadas.
A 2.ª R., também, contra-alegou, dizendo que «tais alegações reconduzem-se fundamentalmente a uma repetição exaustiva do que já previamente fora alegado nas suas alegações e que aqui se deixou devidamente impugnado».
Ora, afigura-se-nos irrefutável que toda a matéria contida na referida al. j) é conclusiva e até jurídica, por conter juízos e valorações que pressupõem já uma interpretação e aplicação do direito.
Como tal, não pode ser levada aos factos provados, tal como já se explicitou no ponto 5.2.9.
Repare-se que tal matéria contém já a decisão da própria causa, pelo que, a ser incluída entre os factos provados, resolveria, praticamente, toda a acção!
As conclusões em causa haverão de ser extraídas dos factos concretos e naturalísticos, apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, que foram provados, tarefa que mais à frente se levará a cabo.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
5.2.11. «k. O Dr. J encontrava-se diminuído nas suas capacidades à data das cirurgias realizadas ao AA., o que influenciou a sua execução e o (des)acompanhamento prestado ao doente».
Entendem os AA. que tal facto decorre das declarações de parte da R. D e do depoimento do 3.º R.
As 1.ªs RR. contra-alegaram, defendendo, mais uma vez, que os depoimentos referidos não podem ser valorados, por incumprimento do ónus previsto no art.º 640.º do CPC, e que não ficou demonstrado qual o reflexo da doença oncológica do médico J na sua capacidade de trabalho, nomeadamente ao nível das suas capacidades cognitivas, mobilidade, destreza manual e resistência física e mental, nem que a indisposição que sentiu durante a cirurgia de 17.12.2014 fosse o resultado da doença oncológica.
A 2.ª R., também, contra-alegou, argumentando que das declarações de parte da R. D , filha do médico J, decorre que o mesmo, não obstante padecer de doença oncológica, apenas começou a ficar debilitado depois do Natal de 2014 ou em inícios de 2015, sendo que a R. C , sua mulher, também ouvida em declarações de parte, referiu que o médico faleceu de ataque cardíaco fulminante e não da doença oncológica. Quanto ao depoimento do 3.º R., objectou a 2.ª R. que o mesmo circunscreveu-se à cirurgia de 17.12.2014, onde confirmou ser visível a debilidade do médico J, sendo certo que os danos sofridos pelo A. resultaram, todos eles, da cirurgia de 12.12.2014.
Ora, aqui também, a matéria que os AA. pretendem ver provada sob a al. k) é, claramente, conclusiva e pressupunha que tivessem sido alegados e provados os factos concretos que permitissem preencher os conceitos e expressões em causa, sem os quais não se consegue determinar o que sejam “capacidades diminuídas” ou em que medida resultou “influenciada” a execução das cirurgias realizadas e o acompanhamento do doente.
Valem, portanto, neste lugar as considerações feitas no ponto 5.2.9 a propósito da desconsideração de matéria conclusiva.
Seja como for, as declarações de parte da R. D (assim como, diga-se, as das RR. C  e E  por nós, também, auscultadas) não sustentam a alegação em causa, delas não resultando que, à data das cirurgias sub judice, o médico J estivesse debilitado ou incapaz do exercício da sua profissão, sendo que, tal como bem salienta a 2.ª R., o depoimento do 3.º R. respeita ao estado do colega que lhe foi dado observar no dia 17.12.2014 e que, obviamente, à falta de melhor prova, não pode relacionar-se com a doença oncológica de que padecia desde 2009.
De igual forma, da circunstância de o médico J ter estado sem trabalhar entre 20.12.2014 e 07.01.2015, não pode extrapolar-se que não tinha condições físicas para realizar as cirurgias em causa, como pretendem os AA.
Enfim, a prova indicada pelos AA. não é idónea a abalar a convicção formada em 1.ª instância, a qual, ouvidos na íntegra os depoimentos em causa, se corrobora.
Improcede, assim, o recurso nesta parte.
5.2.12. Em consequência do supra decidido, são os seguintes os factos provados que se altera e adita:
3A. O autor deu entrada no F a 12 de dezembro de 2014, a caminhar pelo próprio pé, com redução da mobilidade no membro inferior direito e com dificuldade na execução de marcha, mas sem recurso a canadianas ou qualquer outro auxiliar de marcha.
36A. A 1.ª cirurgia a que o autor foi submetido iniciou-se às 14h45 e terminou às 15h20 do mesmo dia 12/12/2014.
38A. Pelas 07h00 do dia 13/12/2014, foi verificado que o autor apresentava penso repassado com líquido sugestivo de perda de líquor.
39. Na sequência da intervenção, o Dr. J diagnosticou o autor com “síndrome de cauda completo”, bem como a possibilidade de se verificar uma “fístula de LCR”, ordenou a retirada do dreno e deu indicação para “reintervenção cirúrgica”.
43A. A 2.ª cirurgia iniciou-se às 18h50 e terminou às 20h00 do dia 13/12/2014.
79. Em consequência da cirurgia realizada em 12.12.2014, o autor padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação activa nos territórios de L4-L5 e L5–S1.
5.3 Vejamos, agora, se, em face da matéria de facto provada, a sentença recorrida fez correcta aplicação do Direito aos factos provados.
5.3.1. A primeira questão que, a este respeito, se coloca é a de saber qual o tipo de relação jurídica estabelecida entre o A., por um lado, e o médico J e a 2.ª R., por outro lado, uma vez que o fundamento da eventual responsabilidade civil destes depende da natureza daquelas relações jurídicas.
Nessa tarefa, importa não esquecer que, dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do art.º 5.º, n.º 3, do CPC.
Relembramos que não estão, agora, em causa as relações estabelecidas entre o A. e cada um dos 3.º, 4.ª e 5.ª RR. (todos eles funcionários da 2.ª R.), uma vez que, quanto aos mesmos, a sentença da primeira instância (que os absolveu dos pedidos), transitou em julgado, não sendo, portanto, objecto dos recursos interpostos.
Vejamos, então, se, in casu, a responsabilidade civil médica está sujeita ao regime da responsabilidade contratual (o que ocorrerá se estiver em causa a violação de uma obrigação em sentido técnico) ou ao regime da responsabilidade extracontratual (no caso de se verificar a violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto).
Sendo, embora, certo que ambas as referidas formas de responsabilidade civil assentam, essencialmente,  na verificação dos mesmos pressupostos (o facto; a ilicitude, que no contrato é o incumprimento ou o cumprimento defeituoso; a imputação subjectiva do facto ao lesante ou culpa; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano), a distinção entre ambas revela-se primordial, atentas as diferenças relativas ao ónus da prova da culpa (art.º 799.º, n.º 1 versus art.º 487.º, n.º 1, do Código Civil), aos prazos de prescrição (art.º 309.º versus art.º 498.º do Código Civil), à responsabilidade por facto de outrem (art.º 800.º, n.º 1 versus art.º 500.º do Código Civil), à atenuação equitativa da indemnização em caso de mera culpa (art.º 494.º do Código Civil) - (cfr. Luís Filipe Sousa, O Ónus da Prova na Responsabilidade Civil Médica. Questões Processuais Atinentes à Tramitação deste Tipo de Acções (competência, instrução do processo, prova pericial), in Revista do CEJ, n.º 16, p. 40-41).
Ora, no domínio da medicina privada, o entendimento predominante da doutrina e da jurisprudência é o de que, em regra, existe responsabilidade contratual, uma vez que a prestação de cuidados de saúde por entidades privadas assenta num contrato de prestação de serviços celebrado entre a entidade/médico que os oferece e o doente (que estão, no comum dos casos, ligados por um contrato de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso), constituindo a responsabilidade extracontratual do médico uma excepção que, em geral, ocorre em situações de urgência, onde não se mostra possível obter o prévio acordo ou consentimento do doente quanto à intervenção.
A responsabilidade civil médica pode, em simultâneo, assumir uma natureza extracontratual e contratual, já que o mesmo facto pode corresponder a uma violação do contrato (o não cumprimento por parte do médico dos deveres contratuais a que está obrigado) e a uma violação de direitos absolutos (como a integridade física, a liberdade e a autodeterminação).
A este propósito, têm sido debatidas na doutrina e na jurisprudência diversas questões, como a de saber qual das formas de responsabilidades deve prevalecer e se deve ser admitido o recurso a qualquer uma delas por parte do lesado. Maioritariamente, contudo, tem-se entendido que, gozando o lesado da tutela contratual e da tutela que deriva da responsabilidade extracontratual, poderá optar pelo regime que lhe for mais favorável (cfr., por exemplo, Rui Alarcão, in Direito das Obrigações, p. 209; Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 4.ª ed., p. 356 e segs; Mota Pinto, in Cessão da Posição Contratual, p. 411; António Pinto Monteiro, in Cláusulas Limitativas e Exclusão de Responsabilidade Civil, p. 425/437; Miguel Teixeira de Sousa, in Concurso dos Títulos de Aquisição da Prestação, p. 136).
Sobre esta matéria, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, in A Responsabilidade Médica em Portugal, BMJ n.º 332, 1984, p. 440, escreveram que «(…) se as partes concluíram um contrato, isso significa que querem que para as relações entre elas valham apenas as regras que disciplinam esse contrato; a disciplina particular do contrato absorveria o regime mais geral da lei. Mas, em sentido contrário, pode-se argumentar que o facto de terem concluído um contrato não tem de forma alguma de significar que se presuma terem querido renunciar à proteção que em geral lhes é garantida pela lei; a minore ad maius, dir-se-á até que a proibição geral de lesar os direitos de outrem é individualizada e pelo dever contratual visando o mesmo objetivo (…) na inexistência de uma norma que especificamente venha dizer o contrário, se deve aceitar, como a “solução natural” a da concorrência (rectius, cúmulo) de responsabilidades».
Também a jurisprudência tem vindo a seguir a tese do concurso de responsabilidades, quer admitindo a opção entre ambas, quer reconhecendo o próprio concurso de pretensões por cumulação de responsabilidades (cfr., por exemplo, os acórdãos do STJ de 15.12.2020, de 22.03.2022 e de 31.03.2022 e desta Relação de 02.05.2023, todos em www.dgsi.pt).
Assim, por exemplo, o acórdão do STJ de 07.03.2017, in www.dgsi.pt, decidiu que «em regra a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da responsabilidade extracontratual», por ser a solução mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio da autonomia privada (cfr. no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 28.01.2016, in www.dgsi.pt, e a jurisprudência nele citada).
Seja como for, certo é que, no tratamento jurisprudencial e doutrinal da responsabilidade civil por acto médico, vem sendo apontada a necessidade de superar a doutrina tradicional e de ultrapassar a distinção entre as duas formas de responsabilidade e as referidas diferenças de regime (cfr. acórdão do STJ de 01.10.2015, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, a sentença recorrida considerou a existência de um contrato entre o A. e a 2.ª R., entendimento que fundamentou da seguinte forma:
«Os factos apurados nos autos com relevo para esta questão são:
- O autor, para resolução de um problema discal, aceitou submeter-se a cirurgia;
- Para tanto, dirigiu-se ao Dr. J, que lhe foi indicado, trabalhando este no Hospital da F.
- Aí foram realizadas cirurgias e permaneceu internado por período excedente a um mês;
- As faturas pelos serviços prestados foram emitidas para pagamento pelo F;
- O Dr. J é um médico externo ao F, i.e., não integra o seu quadro de funcionários, tendo celebrado com a ré sociedade hospitalar um contrato de cedência de espaço médico;
- Todo o restante pessoal médico, de enfermagem e auxiliar que participou e acompanhou as cirurgias e o internamento do autor pertence aos quadros do F.
Sendo estes os elementos mais relevantes, a primeira evidência que ressalta, desde logo da simples existência de um pedido de condenação em pagamento de serviços prestados feita pela própria ré sociedade hospitalar, é a existência de um contrato entre o autor e esta.
O autor não deu entrada no hospital em situação de urgência e sem capacidade de entender e querer e, portanto, necessariamente, as contraprestações que teria que pagar ao hospital inseriam-se num contrato de prestação de serviços, não se tratando de mera obrigação assistencial de fonte indeterminada.
Estabelecido isto, i.e., que entre o autor e a sociedade hospitalar existiu um contrato, a dúvida é a de saber o seu âmbito e, em termos simples, saber se abrangeu ou não as obrigações do cirurgião J
Dito de outro modo, a questão é saber se foi o hospital que contratou com o autor a realização de cirurgia à coluna ou se, existindo dois contratos, o autor contratou com o médico a cirurgia propriamente dita e com o “hospital” a prestação de todos os demais serviços conexos.
(…)
A despeito da posição da ré sociedade hospitalar, não se pode considerar senão a existência de um contrato singular celebrado entre o autor e esta.
Para o sustentar deve começar-se por olhar para a normalidade social – o jurídico é um reflexo desta. No quadro social, é artificial sustentar a existência, sem outros elementos, de vários contratos.
O que o autor pretende, e o que qualquer declaratário médio na sua posição pretenderia, é ser submetido a uma cirurgia que lhe “resolva” um problema na coluna. É uma solicitação de prestação de um serviço com tal finalidade. Não se trata, na normalidade dos casos, de uma solicitação ao médico para realização da cirurgia, outra solicitação ao hospital para prestação dos serviços conexos e, no limite, eventualmente outras solicitações a outros profissionais que pudessem estar envolvidos na intervenção ou na recuperação.
Esta normalidade jurídica e social poderia ser infirmada, se existissem elementos que a pusessem em causa. Não os há.
O primeiro argumento apresentado – o facto de o autor ter chegado ao hospital seguindo uma recomendação para consulta com o médico J, ou seja, foi, antes de mais, à procura do médico e não do hospital, não afeta minimamente a conclusão anterior. Uma coisa é a motivação e a genética da contração, outra o contrato propriamente dito.
Será corrente, possivelmente até maioritário, que um doente procure o médico antes de procurar o hospital. Daí, precisamente, que as instituições privadas de saúde pretendam apresentar-se publicamente como tendo associadas a si médicos reputados, independentemente da natureza da ligação, para assim poderem, em termos prosaicos, atrair mais doentes.
Se o autor procurou o J e este lhe foi indicado como trabalhando no F, quando se dirigiu a consulta, e depois a cirurgia, foi com a instituição que contratou.
Importa, a este propósito, considerar uma outra evidência – é a instituição que integra o médico. O hospital é a entidade jurídica mais complexa e de maior dimensão e, por consequência, qualquer declaratário, ao dirigir-se à instituição, objetiva e subjetivamente, é com esta que está a contratar.
É claro, como antes dito, que não se vê que tenha que ser, necessariamente, assim. Para que o não fosse seria necessária uma clara e inequívoca informação ao autor. Poderia sê-lo apresentando-lhe contratos autónomos a assinar, poderia sê-lo, simplesmente, apresentando a ré sociedade hospitalar uma declaração de não assunção de responsabilidade por qualquer ato cirúrgico propriamente dito, necessariamente associada a uma faturação autónoma da cirurgia a efetuar pelo médico.
Nada disso tendo feito, para o paciente, o contrato foi celebrado com o hospital e isso é o suficiente para a conclusão em apreço.
É o que decorre diretamente do facto de a gestão administrativa do contrato, no caso a sua faturação, ser realizada pelo hospital e não pelo médico».
O que entender?
Com relevo para esta questão, provou-se que:
«3. O autor foi encaminhado pelo Dr. J para as instalações do Hospital F, onde foi admitido no dia 12 de dezembro de 2014;
4. O autor foi submetido a intervenção cirúrgica nesse mesmo dia 12 de dezembro de 2014, nas instalações do F, com anestesia geral;
5. O 3.º réu G é médico especialista em cirurgia ortopédica da coluna e exercia, em dezembro de 2014, a sua atividade profissional na Unidade de Cirurgia da Coluna, no Serviço de Ortopedia do Hospital da F;
11. A ré “F” emitiu, e o autor recebeu, a fatura n.º 201501/920, datada de 31.01.2015, no valor global de €15.374,79, cuja cópia consta a fls. 212 a 225 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido;
25. (…) (o autor) procurou aconselhamento foi-lhe indicado, como reputado na especialidade, o Dr. J;
26. Dirigiu-se a consulta, este aceitou acompanhá-lo e declarou ao autor que a sua condição iria melhorar no caso de ser por si intervencionado;
29. O Dr. J era um médico “externo” ao hospital da F, não integrando o quadro de funcionários do hospital;
30. Entre o médico J e a ré F  foi celebrado contrato intitulado de utilização de consultório médico pelo qual, designadamente, a ré sociedade se comprometeu a ceder-lhe uma sala de consultório no Hospital F (e o mais que consta do doc. n.º 3 anexo à contestação da ré F);
31. A intervenção cirúrgica realizada no dia 12/12/2014 foi conduzida por uma equipa constituída pelo médico-cirurgião J, pela médica anestesiologista H e por equipa de enfermagem composta por anestesista, circulante e instrumentista;
40. No dia seguinte, 13 de dezembro de 2014, o autor foi novamente conduzido ao bloco operatório, onde foi novamente intervencionado cirurgicamente, com anestesia geral;
42. Esta intervenção cirúrgica do dia 13/12/2014 foi realizada pelo Dr. J a médica anestesiologista H, aqui 4.ª ré, e uma equipa de enfermagem composta por enfermeira anestesista, enfermeira circulante e enfermeira instrumentista;
43. A equipa de enfermagem e a anestesiologista integram os quadros da ré sociedade hospitalar;
45. Quatro dias depois, a 17/12/2014, o autor foi submetido a uma terceira intervenção cirúrgica no Hospital F;
47. A 3.ª intervenção foi efetuada pelo cirurgião J, assistido pela enfermeira anestesista AL, pela enfermeira circulante LL, pela Enfermeira instrumentista PL e pela médica anestesiologista I, todas funcionárias da ré F;
49. No decurso desta intervenção, o médico J sentiu-se mal, teve um desfalecimento, sentou-se num banco no interior do bloco, pálido, a transpirar e com ar combalido;
50. Tal desfalecimento foi comunicado à Direção Clínica do hospital que, de imediato, solicitou ao réu G que se deslocasse de emergência ao bloco operatório;
51. Foi nesse momento que o réu G teve o seu primeiro contacto com a situação do autor;
53. Nesse momento, o Dr. J solicitou ao Dr. G que terminasse a cirurgia e não concluiu a intervenção;
54. Iniciando a sua intervenção, o réu G procedeu à avaliação do estado do autor e verificou a existência de uma fistula com rutura do saco dural e vazamento de líquido liquor;
55. Usou este cirurgião como técnica cirúrgica uma plastia da dura mater com fáscia e utilização de cola biológica, assim procedendo ao encerramento da fistula céfalo- raquidiana;
56. Após ter participado na cirurgia de 17/12/2014, no dia seguinte (18/12/2014), o R. G deu conhecimento à Direção Clínica do hospital do ocorrido no bloco operatório (doc. n.º 2 anexo à contestação dos RR. G, H e B e doc. n.º 5 anexo à contestação da ré F, S.A., aqui dado por integralmente reproduzido);
59. Na sequência desta cirurgia de 17/12/2014, o autor foi encaminhado para os serviços de Cuidados Intensivos do hospital da F;
62. No dia 18/12/2014, o autor foi transferido dos Cuidados Intensivos para o Internamento, mantendo os sintomas;
63. O autor permaneceu internado até 23/1/2015 no Hospital da F, dia em que recebeu alta;
66. Iniciou fisioterapia no período de internamento;
73. Nesse período (20 de dezembro de 2014 e 7 de janeiro de2015) o autor não recebeu visita médica, recebendo acompanhamento do pessoal de enfermagem e auxiliar da sociedade hospitalar, realizando fisioterapia e tendo a sua situação sido acompanhada pelo corpo clínico do F;
74. Os médicos ao serviço da ré sociedade tomavam conhecimento da situação do autor aquando das suas rondas de serviço;
75. O autor enviou carta à Administração do Hospital, reclamando pelo tratamento que estava a receber invocando, além do mais, falta de acompanhamento médico;
99. A ré sociedade hospitalar apresentou ao autor, para pagamento de serviços prestados, uma fatura final do valor de €15.374,79;
100. O autor não pagou tal fatura;
108. A ré F prestou ao autor os serviços descritos na fatura supra referida».
Deste acervo fáctico, decorre, pois, que o A. procurou o médico J (desconhece-se se o fez nas instalações da 2.ª R., onde se sabe que aquele médico dava consultas privadas - n.º 30 dos factos provados - ou noutro local), que, sendo embora médico externo ao F (isto é, não pertencente ao quadro de funcionários), o encaminhou para as instalações deste hospital para ser sujeito a uma intervenção cirúrgica. Sabemos, também, que o A. foi admitido neste hospital e aí acabou por ser sujeito a três intervenções cirúrgicas, com participação de anestesiologistas, de enfermeiros e, na terceira cirurgia, de um outro médico cirurgião, todos eles pertencentes ao quadro de funcionários do hospital. Finalmente, apurou-se que o A. esteve nos cuidados intensivos daquele hospital, permaneceu internado por período excedente a um mês, recebeu acompanhamento do corpo clínico, da enfermagem e do pessoal auxiliar da 2.ª R. e realizou fisioterapia, sendo que, no final, a 2.ª R. apresentou-lhe, para pagamento dos serviços prestados, uma factura no valor de €15.374,79 (na qual estão incluídos os custos dos seguintes items: Internamento - Diárias; Bloco operatório – cirurgias; Internamento – diárias UCI; Patologia clínica; Ressonância magnética; Medicina física e de reabilitação; Serviço de sangue; Receita diversa; Produtos farmacêuticos; Material de consumo clínico; Material de consumo hoteleiro – cfr. cópia da factura junta com a petição inicial)
Ora, a doutrina mais recente (cfr. André Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 2015, p. 684 e segs., desenvolvendo a proposta de Carlos Ferreira de Almeida, in Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito e Saúde e da Bioética, AAFDUL, 1996, p. 75 e segs.), acompanhada pela jurisprudência nacional, propõe, a respeito do contrato de prestação de serviços médicos privados, a seguinte tipologia: (i) contrato total, que é «um contrato misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confecção de alimentos)»; (ii) contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), que corresponde a «um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações»; (iii) contrato dividido, que é aquele em que «a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é directa e autonomamente celebrado por um médico (actos médicos)».
No primeiro e segundo casos, haverá responsabilidade contratual do hospital/clínica, por todos os danos ocorridos, pois, de acordo com o art.º 800.º do CC, responde pelos actos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares, os quais, por sua vez, não mantêm qualquer relação contratual própria e autonomizável com o paciente. No terceiro caso, o hospital/clínica não é responsável pelos actos médicos, mas, apenas, pelos actos de internamento, pois que, neste caso, existem dois contratos separados, respondendo o médico pelo seu próprio incumprimento.
A mesma doutrina e jurisprudência tem entendido que deve recair sobre o hospital/clínica o ónus de provar que se está perante um contrato dividido e não em face de um contrato total (cfr., por exemplo, o acórdão da RC de 11.02.2020, in www.dgsi.pt), nesse sentido se tendo pronunciado, também, a Entidade Reguladora da Saúde, na Recomendação n.º 1/09, de 19.02, onde se lê, nomeadamente, que:
«(…)
Considerando que a assimetria de informação existente e a eventual ausência de transparência na relação entre o utente e os prestadores de cuidados de saúde não devem resultar em prejuízo, directo ou indirecto, dos direitos dos utentes ou da satisfação das necessidades de cuidados de saúde que os mesmos buscam;
Considerando que no âmbito da prestação de cuidados de saúde por entidades privadas, a eventual responsabilização do prestador por danos, poderá estar dependente da prévia qualificação do contrato de prestação de cuidados de saúde celebrado com o utente como um contrato total – em que a integralidade da relação é estabelecida com uma clínica ou estabelecimento hospitalar, quer seja para um acto isolado e sem necessidade de internamento, quer abranja tanto a prestação de serviços como o internamento – ou como um contrato dividido – em que, perante o utente, se apresentam duas relações contratuais distintas, uma com a clínica ou estabelecimento hospitalar para o internamento e uma com o prestador que presta os concretos cuidados de saúde;
Considerando que em todos os casos deverá ser possível ao utente determinar quem é a entidade prestadora do concreto cuidado de saúde, o que se coloca com especial acuidade nas situações de contrato dividido, em que não existirá coincidência entre o profissional de saúde individual (ou qualquer entidade que preste serviços em espaço cedido por outrem) e a entidade colectiva que celebrou com o utente um contrato de internamento;
Considerando que as garantias de informação e transparência que devem pautar as relações entre o utente e os prestadores de cuidados de saúde determinam o estabelecimento de uma presunção em benefício dos utentes no sentido de, na ausência de esclarecimento quanto ao âmbito do contrato, o mesmo se dever considerar um contrato total;
(…)
A Entidade Reguladora da Saúde recomenda, nos termos da alínea a) do art.º 26.º do Decreto-Lei n.º 309/2003, de 10 de Dezembro, a todos os prestadores de cuidados de saúde: Que nos casos em que existam responsáveis distintos pelo internamento e pela prestação dos cuidados de saúde, todos os prestadores de cuidados de saúde envolvidos deverão, para afastar a assunção de existência de um contrato total com a entidade responsável pelo internamento, esclarecer clara e atempadamente os utentes quanto à dualidade de contratos celebrados, seus âmbitos, objectivos e entidades subjectivamente responsáveis pelo cumprimento dos mesmos, de forma a que os utentes conheçam inequivocamente qual a entidade responsável, em cada momento, por cada acto ou diligência (praticada ou omitida)» (sublinhados nossos).
Vê-se, assim, que a argumentação deduzida pela 2.ª R./recorrente, nos arts. 146.º e segs. das suas alegações, não procede, olvidando a mesma os deveres de informação/esclarecimento a que estava sujeita, no que concerne às relações que estabeleceu com o A., e que estão, claramente, explicitados na Recomendação referida.
Na tarefa de qualificação de cada contrato concretamente celebrado, existem «(…) índices de que o tribunal se pode socorrer para atestar se é uma figura ou outra, a saber: a) a existência de dois recibos separados, um para os cuidados de internamento e outro para tratamento médico, ou pelo menos, um recibo com os honorários discriminados e diferenciados; b) a relação contratual que une o médico à clínica: tratando-se de um contrato de trabalho, ou uma prestação de serviços regular, o médico presume-se um auxiliar da clínica, aplicando-se o regime do contrato total ou total com escolha de médico; já se o médico tem total independência de horários, organização do tempo ao longo do ano, ou se o cliente procura o clínico a pedido do médico, então estaremos perante um contrato dividido» (cfr. acórdão da RC de 11.02.2020, já citado).
Volvendo à situação dos autos, e tendo em conta a matéria de facto provada e supra transcrita, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que a mesma se enquadra na segunda tipologia referida de “contrato total com escolha de médico”.
Com efeito, embora não resulte da matéria de facto provada que o A. tenha emitido declarações negociais expressas tendentes à celebração de um contrato com a 2.ª R., que tinha por objecto a prestação de todos os serviços médicos inerentes e dependentes da intervenção cirúrgica que ia realizar, da sua análise conjugada decorre, inequivocamente, que foi com a 2.ª R. que o A. contratou a prestação de todos esses serviços, reservando, contudo, para si a escolha do médico-cirurgião que iria levar a cabo a cirurgia.
Na verdade, o A. dirigiu-se à 2.ª R. (ainda que o possa ter feito por sugestão/indicação do médico J, o que, diga-se, não decorre, inequivocamente, do n.º 3 dos factos provados) para realizar a intervenção cirúrgica que lhe foi recomendada pelo médico J e para beneficiar dos serviços inerentes que a 2.ª R. prestava, assumindo, claramente, a veste de proponente contratual.
A 2.ª R., por seu lado, aceitou, claramente, tal proposta contratual e levou a cabo actos de execução dos serviços contratados, que, no final, cobrou. Não tinha que haver, como na normalidade dos casos não há, a celebração de um contrato escrito ou expresso, bastando que o mesmo seja revelado de factos concludentes, que, contrariamente ao defendido pela 2.ª R. nas suas alegações, foram sobejamente demonstrados no caso presente.
O que releva é que a 2.ª R. aceitou e assumiu, directa e globalmente, as obrigações correspondentes ao contrato de prestação de serviços médicos, só assim se compreendendo que tenha feito acompanhar o A. pelo seu próprio corpo clínico durante o período de internamento (e não, apenas, pelo médico J) e, inclusivamente, que não tenha hesitado em anuir na substituição do médico J, escolhido pelo A., por outro cirurgião pertencentes aos seus quadros, quando considerou isso necessário ou aconselhável (cfr. n.º 50 dos factos provados) ou quando o mesmo esteve de baixa médica (cfr. n.º 73 dos factos provados).
Destarte, contrariamente ao defendido pela 2.ª R., existiu vontade negocial juridicamente relevante, que foi, de resto, amplamente exteriorizada. E tanto assim é, que a 2.ª R. cobrou ao A. os serviços prestados.
Repare-se que não decorre da matéria de facto provada que o A. tenha pago ou devesse ter pago, autonomamente, ao médico J a execução, propriamente dita, da primeira cirurgia ou dos demais actos por si, subsequentemente, praticados, nem, por outra via, que a 2.ª R. se tenha limitado a ceder e a cobrar a utilização do bloco operatório (como defende a recorrente nas suas alegações e contra-alegações de recurso).
Seja como for, no contrato total com escolha de médico, além do contrato com o hospital/clínica para prestação de serviços médicos e paramédicos, há um contrato adicional com um médico, com quem pode ser acordado um pagamento específico ou extraordinário, pelo que o pagamento de honorários ao médico escolhido não serve, por si só, de argumento para se concluir estarmos em face de um contrato dividido (cfr. acórdãos do STJ de 28.01.2016, de 01.07.2021 e de 31.03.2022, in www.dgsi.pt, no segundo dos quais se escreveu: «No contrato total com escolha de médico (conhecido também como contrato médico adicional), o doente escolhe o médico atendendo às suas qualidades profissionais e acorda com ele um pagamento específico ou extraordinário»).
Consequentemente, só pode concluir-se, como na sentença recorrida, que entre o A. e a 2.ª R. foi celebrado um contrato de natureza consensual, sinalagmático e oneroso, pelo qual a segunda se vinculou a executar os serviços médicos em causa, o que se reconduz à figura do contrato de prestação de serviços médicos – cfr. art.º 1154.º do CC.
Não invalida o exposto o facto de entre o médico J e a 2.ª R. ter sido celebrado o contrato referido no n.º 30 dos factos provados.
É que tal contrato respeita, apenas, à utilização de consultório médico e dos bens e serviços inerentes a consultas médicas privadas, sendo totalmente omisso quanto à utilização de blocos operatórios e aos bens e serviços relacionados com essa utilização (embora a 2.ª R., nas suas alegações e contra-alegações, prefira afirmar que tal contrato respeitava à cedência do gozo das suas “instalações”, para realização de consultas e cirurgias…).
É o que decorre do considerando único do contrato e das respectivas cláusulas 1.ª e 2.ª, que se transcrevem:
«1ª
1- A primeira outorgante concede ao segundo outorgante o direito de utilização de uma sala de consultório no estabelecimento hospitalar F para nela exercer, a título independente, a actividade clínica da sua especialidade.
2. A autorizada utilização poderá ter lugar no horário definido no Anexo II nos termos do regulamento em vigor.

1- No âmbito da autorização referida no número um da cláusula anterior, o primeiro outorgante coloca à disposição do segundo outorgante os Seguintes bens e serviços:
a) mobiliário e equipamentos de apoio à área da sua especialidade, com excepção de equipamentos clínicos;
b) marcação de consultas e atendimento de doentes;
c) apoio administrativo à consulta, incluindo organização e conservação do ficheiro clínico;
d) cobrança de honorários clínicos;
e) limpeza das instalações;
f) segurança
g) telefone».
O mesmo decorre, aliás, do “Regulamento de utilização dos consultórios médicos” anexo ao referido contrato, que versa, apenas, sobre consultórios médicos e sala de pensos, bem como sobre os serviços a estes associados.
Por isso, não pode entender-se que os actos levados a cabo pelo médico J o foram no âmbito desse contrato, nem que a cobrança dos respectivos honorários competisse ao referido médico e, muito menos, que este tenha assumido, exclusivamente, a responsabilidade clínica pelos tratamentos e seguimento do A.
Caso existisse um contrato relativo à utilização de blocos operatórios, à cobrança autónoma de honorários relativos a cirurgias e à assunção de responsabilidade clínica pelos actos praticados, certamente a 2.ª R. tê-lo-ia feito juntar aos autos.
De resto, e salvo melhor opinião, não se mostra suficiente para suprir tal omissão o depoimento do 3.º R., porquanto, pertencendo aos quadros da 2.ª R., não terá celebrado contratos de utilização a partir do quais possa extrapolar o conteúdo de eventual contrato celebrado entre o médico J e a 2.ª R., relativamente à utilização de blocos operatórios (acrescendo que o conhecimento do 3.º R. acerca dos procedimentos da 2.ª R. a este respeito resultou vago, genérico e conjectural, ele próprio referindo que «…no fundo, em termos simples o que fazem é contactam um anestesista, o seu anestesista e alugam às instituições a hotelaria: a cama, o bloco operatório e a enfermagem…» - sublinhado nosso).
Saliente-se que, embora se tenha provado que o médico J era externo ao hospital, no sentido de não pertencer ao seu quadro de funcionários (cfr. n.º 29 dos factos provados), o que decorreu da prova produzida foi que o mesmo aí operava há vários anos, de uma forma regular (por exemplo, a médica anestesiologista H, pertencente aos quadros da 2.ª R., afirmou que realizou centenas de cirurgias com o médico J), o que lhe conferia a aparência de pertencer (lato sensu) a esse hospital ou de a ele estar associado de uma forma estável e duradoura.  
Enfim, e como se concluiu, o A. logrou provar factos que evidenciam a celebração com a 2.ª R. de um contrato de prestação de serviços médicos total. Mas, ainda que assim se não entendesse e se considerasse que a matéria de facto provada ou os elementos juntos aos autos não permitem apurar qual a figura contratual em causa, sempre teríamos que era a 2.ª R. quem estava onerada com a sobredita inversão do ónus da prova. Ou seja, defendendo a 2.ª R. que não existiu qualquer contrato de prestação de serviços médicos consigo, mas sim com o médico J, tinha o ónus de provar essa alegação, como facto impeditivo (art.º 342.º, n.º 2, do CC), para arredar a sua responsabilidade contratual.
Tal como se escreveu no referido acórdão da RC de 11.02.2020, «na realidade, tal critério corresponde ao critério da normalidade, pois aquele que invoca determinada situação jurídica tem de provar os factos que normalmente o integram, enquanto a parte contrária terá de provar os factos não normais que excluem ou impedem a eficácia dos factos constitutivos».
Ora, a este respeito, não podemos deixar de acompanhar a sentença recorrida, quando afirmou que «para o sustentar deve começar-se por olhar para a normalidade social – o jurídico é um reflexo desta. No quadro social, é artificial sustentar a existência, sem outros elementos, de vários contratos. O que o autor pretende, e o que qualquer declaratário médio na sua posição pretenderia, é ser submetido a uma cirurgia que lhe “resolva” um problema na coluna. É uma solicitação de prestação de um serviço com tal finalidade. Não se trata, na normalidade dos casos, de uma solicitação ao médico para realização da cirurgia, outra solicitação ao hospital para prestação dos serviços conexos e, no limite, eventualmente outras solicitações a outros profissionais que pudessem estar envolvidos na intervenção ou na recuperação. Esta normalidade jurídica e social poderia ser infirmada, se existissem elementos que a pusessem em causa. Não os há».
Sendo a 2.ª R. proprietária do hospital, conhecendo as circunstâncias em que ele funciona e em que aí operava o médico J, era ela que, de acordo com a regra da normalidade, estava em posição de melhor demonstrar que o hospital não foi contratado totalmente pelo A., como defende no recurso que interpôs, mas que, ao invés, ocorreu um contrato dividido.
A 2.ª R. não logrou fazer tal prova (nada nos factos provados nos permite concluir que as circunstâncias do acordo contratual para a realização da intervenção ocorreram, apenas, entre o A. e o médico, como afirma a recorrente no art.º 78.º das suas alegações e no art.º 39.º das suas contra-alegações), pelo que a conclusão a tirar é que foi contratada pelo A. para todos os actos médicos praticados.
Não se vê, também, que tal contrato seja nulo por impossibilidade originária (art.º 280.º, n.º 1 do CC), como pretende a 2.ª R./recorrente (arts. 156.º a 158.º das suas alegações). É que, estando-se em face de um contrato total com escolha de médico, resulta evidente que a realização da cirurgia competia ao médico escolhido para o efeito (com a autonomia técnica e científica inerente ao exercício da actividade médica), sendo que a circunstância de este o médico ser externo ao hospital não lhe retira a qualidade de auxiliar, para os efeitos do art.º 800.º do CC.
Na verdade, tendo a relação entre o A. e a 2.ª R. natureza contratual, esta é, naturalmente, responsável pela conduta dos auxiliares (médicos, enfermeiros, e outros), nos termos do disposto no art.º 800.º, n.º 1, do CC (onde se dispõe que «O devedor é responsável perante o credor pelos actos (…) das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor»).
Tal como escreve Vaz Serra, Responsabilidade do Devedor pelos Factos dos Auxiliares, dos Responsáveis Legais ou dos Substitutos, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 72, p. 270, «o devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles».
Diversamente do que se passa no regime do art.º 500.º do CC (aplicável à responsabilidade extracontratual), o art.º 800.º do CC abrange a conduta de auxiliares dependentes e independentes (cfr. Maria da Graça Trigo, in Responsabilidade Civil Delitual por Facto de Terceiro, 2009, p. 242 e segs.), ao contrário do que defende a recorrente (arts. 159.º e segs. das suas alegações e 160.º e segs das suas contra-alegações).
Foi este o entendimento perfilhado no acórdão do STJ de 28.10.2016, já citado, onde se escreveu, a este respeito, que «relativamente à responsabilidade civil do hospital, os pressupostos aferem-se a partir da conduta dos auxiliares de cumprimento, dependentes ou independentes, da obrigação de prestação de serviços médicos, que são todos os agentes envolvidos (cirurgião, anestesista, enfermeiros e outros). A conduta dos auxiliares imputa-se ao devedor hospital “como se tais actos tivessem sido praticados pelo próprio devedor” (art.º 800º, nº 1, do CC)» (cfr., no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 31.03.2022, in www.dgsi.pt).
Mostra-se, por isso, indiferente apurar o tipo de vínculo existente entre o médico J e a 2.ª R., já que «(…) quer se trate de contratos de trabalho quer se trate de contratos de outra natureza, o regime de responsabilidade do R.  Hospital é o mesmo. Nas palavras de André Dias Pereira, “no contrato de internamento com escolha de médico (contrato médico adicional), a clínica também assume a responsabilidade por todos os danos ocorridos, incluindo a assistência médica e os danos causados pelo médico escolhido” (cit., pág. 688). A responsabilização do R. Hospital funda-se na razão de ser do regime do art.º 800º, nº 1, do CC» (cfr. acórdão do STJ de 28.01.2016, já citado).
A recorrente afirma que o médico J não pode ser considerado um auxiliar, porquanto o vínculo existente entre si e esse médico não lhe permitia exercer qualquer tipo de orientação ou fiscalização da sua actividade.
Sucede que nada se provou que permita compreender e qualificar esse vínculo (ónus que, como se viu, competia à recorrente), sabendo-se, apenas, que o médico J era “externo”, isto é, que não pertencia ao quadro de funcionários da 2.ª R., o que, por si só, não significa que “exercesse a sua actividade nas instalações do Hospital F a título inteiramente independente”, como pretende a 2.ª R.
Acresce que se apuraram factos indiciadores da existência de algum controlo, vigilância e até supervisão por parte da 2.ª R., de que são exemplo a substituição do médico J por outro cirurgião do quadro da 2.ª R. no decurso da cirurgia de 17.12.2014, por indicação da Direcção clínica, e o acompanhamento do A., por médicos do quadro da 2.ª R., no período em que o médico J esteve impossibilitado de trabalhar (cfr. n.ºs 72 a 74 dos factos provados).
Aliás, o acórdão da RP de 08.06.2009, disponível em www.dgsi.pt, citado pela 2.ª R. nas suas contra-alegações (art.º 173.º) acolhe, precisamente, o entendimento contrário ao por ela propugnado, ao escrever que «(…) o essencial na caracterização do que seja um “auxiliar”, é que o mesmo tenha sido “…introduzido na execução da obrigação por uma iniciativa do devedor, no amplo sentido de facto recondutível à vontade dele…”, devendo ser “…excluída a existência de uma específica relação entre o terceiro e o credor que – embora com o assentimento do obrigado – implique um directo vínculo entre ambos…,” ainda que não exclua a possibilidade de existir uma qualquer relação entre o credor e o devedor e o terceiro, dando como exemplo, a situação em que o devedor conhece o terceiro e até “…manifesta a sua concordância na sua utilização.”  Também Pinto Monteiro, ao analisar o n.º 1 do artigo 800.º do CC, refere que foram as necessidades objectivas de protecção do credor aliadas a considerações de justiça que levaram ao estabelecimento do princípio da consagração da responsabilidade do devedor perante o credor pelos actos das pessoas que utilize para cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor (…), prescindindo o preceito de qualquer relação de dependência ou subordinação entre o devedor e o auxiliar, característica das relações estabelecidas entre comitente-comissário, à luz do artigo 500.º do CC. (…) O facto do autor ter aceite o cumprimento por parte de um auxiliar da ré, bem como a circunstância de o ter contactado directamente para reparar as deficiências que foi verificando (…), em nada invalida esta conclusão, uma vez que a deficiente execução da prestação debitória por parte do auxiliar reflecte-se na esfera jurídica da ré, responsabilizando-a como se fosse a mesma a efectuar aquele cumprimento» (sublinhados nossos).
Temos, assim que a 2.ª R. responde perante o A., seu credor, pelos actos praticados pelo médico J, seu auxiliar, como se fossem actos seus.
Por outra banda, entre o A. e o médico J não se estabeleceu, autonomamente, qualquer relação contratual, pelo que os pressupostos da sua responsabilidade aferem-se pela sua conduta pessoal e a eventual responsabilidade deste há-de ser delitual.
Como já se viu, na responsabilidade civil por acto médico podem conviver a responsabilidade do Hospital privado, com quem o doente celebrou um contrato para prestação de serviços médicos, que é de natureza contratual, com a responsabilidade extracontratual do médico, quando este, no desenvolvimento da sua actividade médica, pratica acto ou omissão violadores da leges artis ou incumpre deveres inerentes ao exercício da mesma (cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 23.03.2017, de 08.09.2020 e de 31.03.2022, in www.dgsi.pt).
E, sendo assim, impõe-se concluir pela improcedência de todas conclusões aduzidas pela recorrente/2.ª R. a este respeito.
5.3.2. A questão que se coloca de seguida é a de saber se foi ou não perpetrado algum facto ilícito e culposo que possa ser imputado ao médico J e/ou à 2.ª R.
Ora, no que concerne ao cumprimento das leges artis ou ao erro de execução das cirurgias, a sentença recorrida considerou que:
 «quanto ao cumprimento das leges artis na intervenção cirúrgica realizada pelo Dr. J a 12/12/2014, a primeira e que deu origem à manifestação dos problemas subsequentes, nada se apurou que, em concreto, se possa considerar determine uma resposta quanto à correção (ou incorreção) dos procedimentos cirúrgicos adotados. (…)
- Desconhece-se, porque não foi sequer alegada, que técnica cirúrgica foi utilizada pelo médico J, em qualquer das intervenções;
- Desconhece-se também, não tendo sido também alegado, se ocorreu algum erro na execução da técnica pelo cirurgião;
- Sabe-se que, na substituição do Dr. J pelo Dr. G este usou uma técnica cirúrgica para encerramento da fistula que se manifestara e que determinara rutura do saco dural (membrana que envolve a medula espinal e que contém o líquido cefalorraquidiano), com perda deste líquido, procedendo a uma plastia com cola biológica – i.e., em vez de proceder a uma sutura dos tecidos, em linguagem coloquial “tapou” a ferida com um enxerto, que fez aderir ao tecido dural com recurso a um material cirúrgico designado por cola biológica;
- O facto de esta técnica ter sido, no caso, bem-sucedida, não significa, pelo contrário, que outra técnica eventualmente tentada pelo médico J (que, como referido, não foi alegada), não fosse correta para a situação do autor, de acordo com as regras científicas e da arte aplicáveis;
(…)
- Apurou-se, por fim, que as lesões físicas sofridas pelo autor fazem parte da lista de riscos inerentes a uma cirurgia a hérnia discal e que estes que aumentam a cada reintervenção – de acordo com as declarações do R. G acima assinaladas, o risco passa de 1-2% na primeira intervenção, para dez vezes mais, em novas intervenções (proporção referida na fundamentação da convicção, mas não dada por provada, por não alegada);
- Não se apurou, ou foi sequer alegada, qualquer falha técnica específica na execução da cirurgia ou por qualquer das equipas médicas.
A conclusão a tirar é que, em termos exclusivamente técnicos, nada se apurou na preparação ou execução das cirurgias quanto ao respeito das leges artis pelo cirurgião que a executou».
Os AA. discordam deste entendimento, mas assentam as razões dessa discordância nos factos que pretendiam ser provados (cfr. conclusão 42.ª do seu recurso) e que, conforme se analisou no ponto 5.2., não resultaram demonstrados.
Com efeito, as alterações introduzidas na matéria de facto provada (coligidas no ponto 5.2.12) não alteram os pressupostos fácticos em que assentaram as conclusões do tribunal a quo supra transcritas, às quais não podemos deixar de aderir.
Designadamente, a matéria de facto provada não permite concluir, com a segurança requerida, que a fistula de LRC tenha tido origem numa laceração da dura-máter ocorrida durante ou por causa da cirurgia realizada em 12.12.2014 e, por consequência, que a perda de líquor e o síndrome de cauda completo tenham por causa essa cirurgia (factos que, de resto e como se viu, os AA. nunca alegaram ao longo da acção como integradores dos ilícitos cometidos pelos RR. e, por conseguinte, como componentes da causa de pedir).
A mesma factualidade não permite entender que a actuação médica posterior à cirurgia de 12.12.2014 tenha sido tardia e inadequada e, muito menos, que tenha sido por isso que o A. ficou a padecer das sequelas descritas nos factos provados (sendo certo que, aqui também, tais factos não foram, oportunamente, invocados como causa de pedir).
Cai, pois, por terra o argumento, só agora trazido pelos AA. ao processo, de que ocorreu uma violação do dever de intervenção tempestiva por parte do médico J.
No que respeita à alegada falta de diligência do médico J, que, segundo os AA. não se encontrava em condições para realizar as cirurgias em causa, em razão do seu estado de saúde, escreveu-se na sentença recorrida que:
 «Vertendo ao caso, não existe prova ou factualidade que, diretamente, permita concluir que o médico estava (ou não estava) limitado fisicamente e, sabendo-o, aceitou tal risco. Existe, porém, um conjunto de factos relevantes para, de forma indireta, chegar a uma conclusão:
- Tratava-se de um médico cuidadoso e preocupado com os seus doentes;
- Um médico conceituado e reputado;
- Padecia de doença oncológica e, no período em causa, encontrava-se a trabalhar;
- Na terceira cirurgia que realizou ao autor, no curto espaço de cinco dias, desfaleceu;
- Em consequência, não conseguiu concluir a intervenção, tendo que ser substituído;
- Esteve sem trabalhar, em razão de saúde, entre 20/12/2014 e 7/1/2015;
- Veio a falecer, cerca de seis meses mais tarde, segundo a sua mulher na decorrência de ataque cardíaco.
Avançando nas conclusões, será claro que o médico J, a encontrar-se diminuído, não tinha consciência dessa circunstância e não a aceitava. Tal não significa que não estivesse, de facto, com a sua capacidade diminuída.
Em termos objetivos, olhando estes elementos em conjunto, não se pode concluir, com elevado grau de segurança, que o médico estivesse, efetivamente, diminuído nas suas capacidades. Tal conclusão, para ser extraída com certeza, exigiria alegação e prova de outros elementos não apurados.
A diminuição de capacidades poderá colocar-se ao nível da acuidade e precisão dos gestos e ao nível da resistência física.
Uma doença oncológica pode afetar um cirurgião a qualquer destes níveis e um neurocirurgião, que lida com tecidos extraordinariamente sensíveis, não regeneráveis e controladores de funções vitais, tem obrigação de o saber e de agir em conformidade.
Porém, em concreto, há apenas umas referências genéricas a situação de remissão, inexistência de metásteses e tratamentos, desconhecendo-se, efetivamente (e, uma vez mais, não foi sequer matéria alegada e discutida), que cancro afetava o médico, qual o seu estado de evolução e, com grande importância, se estavam em curso alguns tratamentos de radio ou quimioterapia, reconhecidamente enfraquecedores.
É matéria que deveria ter sido alegada, de prova fácil, que os autores não fizeram trazer ao processo.
Neste quadro, é certamente possível concluir pela possibilidade de ter ocorrido alguma redução de capacidades do médico. Mas a decisão do tribunal não se satisfaz com possibilidades, carece de certezas.
Para avançar na avaliação há que analisar a causalidade com os resultados produzidos.
Importa salientar que os sintomas que afetam o autor se manifestaram logo após a 1.ª cirurgia e que as intervenções seguintes foram, basicamente, tentativas de corrigir o problema manifestado e, depois, no limite, salvar a própria vida do doente.
Sendo este o caso, a diminuição de faculdades relevante teria que estar demonstrada, ao nível da acuidade, precisão e atenção, logo nesta intervenção de 12/12.
Caso o desfalecimento do médico tivesse ocorrido na primeira cirurgia, seria relativamente natural concluir, com base em experiência, que não estava, efetivamente, em condições perfeitas para dirigir tal ato. Não foi isso que se apurou.
O que ocorreu foi uma primeira cirurgia mal sucedida, uma tentativa de correção no dia seguinte, também mal sucedida e, por fim, uma terceira cirurgia, em que o médico colapsou fisicamente.
Neste quadro, faltam elementos para se poder, sem margem para dúvidas, sustentar que, na cirurgia onde o problema se manifestou (a primeira) o médico não estava em condições físicas para a realizar e que, ao fazê-lo, atuou negligentemente.
Pode ter ocorrido, de facto, uma situação de temeridade negligente, como poderia o médico estar o médico na plenitude das suas faculdades, a despeito da doença. Como poderá até o desfalecimento ser uma situação que pode afetar qualquer médico, sobretudo ante uma repetição de cirurgias ao mesmo doente em tão curto espaço de tempo, com resultados muito negativos e com o doente a correr risco de vida.
Entre o possível e o provável, dir-se-á que a conclusão pende mais para este lado quanto à verificação de alguma incapacidade física. Daí a concluir-se que tal incapacidade existiu mesmo e, principalmente e que se manifestou logo na primeira cirurgia (aquela que deu origem a todo o problema de saúde do autor) é uma conclusão que, no entender deste tribunal, não é possível retirar».

Mais uma vez, os recorrentes não lograram provar quaisquer factos que abalem estas conclusões do tribunal a quo, que acompanhamos.
Designadamente, desconhece-se qual o estado de evolução da doença oncológica de que o médico J padecia (cfr. n.º 58 dos factos provados) e qual o seu reflexo na sua capacidade de trabalho, sendo certo que a circunstância de se ter sentido mal durante a cirurgia do dia 17.12.2014 (cfr. n.º 49 dos factos provados) não permite, isoladamente, concluir que tal indisposição fosse resultado da doença oncológica.
Tal como bem salientam as primeiras RR. nas suas contra-alegações, «a demonstração de uma situação de incapacidade para o exercício da profissão, ou diminuição das faculdades inerentes à prática de actos exigidos pela mesma, teria de ser demonstrada por prova concreta, mormente decorrente de observação clínica e essa não foi alcançada, resultando dos autos que o Dr. J prosseguia no exercício da sua profissão. Assim, não é possível concluir que o Dr. J, por ser doente do foro oncológico, estivesse incapacitado ou diminuído para a prática de actos da sua profissão, concretamente aqueles que estão em causa neste processo».
Não ficou, pois, demonstrada qualquer omissão de actos médicos que devessem ter sido praticados, nem a comissão de actos médicos que não devessem ter sido praticados, nem, finalmente, que tivessem sido praticados actos médicos de forma ineficiente, com violação das técnicas da profissão integradoras das respectivas leges artis.
Enfim, a matéria de facto provada e não provada não permite detectar, seja nas consultas, nos diagnósticos, nas cirurgias realizadas ou no acompanhamento clínico do A., qualquer desconformidade da actuação do médico J face às leges artis ou qualquer desvio ao padrão de comportamento diligente e competente, seja por ter praticado as intervenções cirúrgicas de forma deficiente, seja ter omitido ou tardado na prestação dos cuidados necessários que se impunham no pós-operatório.
É certo que se provou que, após a cirurgia de 12.12.2014, ocorreram complicações pós-operatórias, que o A. teve que ser sujeito a mais duas intervenções cirúrgicas e que, na sequência dessa intervenção cirúrgica, o A. padece de lesão neurológica irreversível. Todavia, a factualidade que se apurou não permite afirmar a existência de erro médico ou qualquer outro acto ilícito e negligente, que lhes tenha dado origem, nem que tenha sido uma eventual intercorrência da primeira cirurgia que tenha originado a necessidade das cirurgias subsequentes.
Não desconhecemos que, em face das grandes dificuldades que o doente tem de provar o incumprimento dos deveres objectivos de cuidado, da culpa e do nexo de causalidade, tem-se entendido que o princípio da igualdade das partes e do equilíbrio na garantia do direito à prova impõem que se presuma a culpa do causador do dano, quando este surge como um facto excepcional, de acordo com a normalidade da sucessão de acontecimentos e com as regras da experiência, de tal modo que a verificação do dano deva ser tida como manifestação indubitável da escassez da diligência utilizada (cfr. neste sentido, André Dias Pereira, Ob. Cit., p. 780).
Sucede que, no caso que nos ocupa, as circunstâncias não permitem o recurso à prova por primeira aparência (prova prima facie), uma vez que se provou que as lesões físicas sofridas pelo A. fazem parte da lista de riscos inerentes a uma cirurgia à hérnia discal e que esses riscos aumentam a cada intervenção (cfr. n.º 94 dos factos provados), pelo que nada têm de extraordinário ou incomum.
Têm, pois, inteira aplicação ao caso dos autos as seguintes conclusões extraídas no acórdão do STJ de 06.01.2020, in www.dgsi.pt: «V - Estando em causa a realização de uma intervenção cirúrgica com vista à excisão de uma hérnia discal, o médico fica obrigado, não a obter o resultado consistente na sua cura, mas apenas a executar a cirurgia dispensando ao doente os cuidados de saúde adequados à sintomatologia apresentada, fazendo uso das regras que a ciência médica mais recente prescreve para aquela concreta patologia. VI - Só há violação ilícita do direito do doente se o médico executar a cirurgia à revelia das leges artis vigentes, caso em que poderia falar-se em cumprimento defeituoso da obrigação a que estava adstrito. VII - Só a alegação e ulterior demonstração, por um lado, das regras conhecidas pela ciência médica em geral como sendo as apropriadas à execução da intervenção cirúrgica em causa, considerando o estado do doente – as leges artis – e, por outro, da sua não utilização com perícia e diligência por parte do médico, permitiriam que se afirmasse a ilicitude da conduta deste. VIII - Como elemento constitutivo do direito invocado pelo doente, é a ele que cabe a demonstração da ilicitude, enquanto falta de cumprimento, por parte de quem demanda como civilmente responsável, das leges artis ajustadas à sua situação de doença, ou seja, do incumprimento dos deveres tuteladores do seu direito de saúde».
Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões dos AA. a este respeito.
E, sendo assim, subsiste o facto ilícito consistente na violação dos deveres de informação e de recolha de consentimento informado.
Aqui, a sentença recorrida considerou que:
«totalmente diversa é a conclusão a retirar quanto à omissão dos deveres de informação, seja pela ré sociedade hospitalar, seja pelo médico J
 Resultou provado que o autor não assinou qualquer consentimento informado para as cirurgias a que foi sujeito, ou para qualquer ato médico preliminar ou posterior. Resultou igualmente provado que, não apenas ao autor não foi apresentado e devidamente explicado o aludido documento, como não foram indicados os riscos da cirurgia em causa e, muito concretamente, o de paraplegia.
Seguindo de perto a doutrina do STJ constante do acórdão de 8/9/2020 (Maria João Vaz Tomé, dgsi.pt), não só a ausência de consentimento, conforme unanimemente sustentado, constitui ofensa à integridade do doente não justificada, como faz a entidade hospitalar e o médico, que atue como seu auxiliar, em responsabilidade civil, sendo solidária a responsabilidade por todos os danos e presumindo-se verificação de causalidade dos mesmos, a menos que fosse alegado e demonstrado que o doente teria tomado a mesma decisão (i.e., sido submetido a intervenção) caso o dever de informação tivesse sido cumprido.
Essa alegação e prova não fizeram os RR. e, diga-se, mesmo que tal dever fosse cumprido por simples apresentação de um documento com uma referência genérica a um risco de paraplegia, sempre haveria um cumprimento insuficiente do dever de informação se não fosse dito ao doente, de forma clara e objetiva, tratando-se de uma reintervenção a uma hérnia discal, o risco de paraplegia aumenta cerca de dez vezes, ou 1000%, para valores de risco que ultrapassam um caso em dez e aproximam-se de um caso em cinco.
Só perante tal informação estaria o paciente, aqui autor, consciente da verdadeira dimensão do risco que corria e, perante ele, em condições de o balançar com os benefícios potenciais e tomar uma decisão esclarecida.
Não o tendo feito, existe responsabilidade do hospital e do médico pelos danos verificados.
O mesmo se dirá, por maioria de razão, relativamente à total ausência de informação prestada ao autor quanto à necessidade das 2.ª e 3.ª cirurgias, bem como sobre a sua condição nesse período, omissão grave imputável ao cirurgião e à sociedade hospitalar».
A 2.ª R. advoga que, não tendo vigorado entre si e o A. qualquer “contrato singular”, cujo objecto fosse a realização de uma cirurgia, não existe fundamento para lhe imputar um dever de informação/obtenção de consentimento informado em relação ao A., que vincularia, apenas, o médico J. Mais defende que, mesmo a existir tal contrato, o dever de informação vincularia, apenas, o médico perante o doente, razão pela qual não pode ser responsabilizada pelos eventuais danos decorrentes desse incumprimento.
Actualmente, é reconhecido ao doente o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde, assumindo especial acuidade o respeito pelo consentimento informado enquanto fundamento para a intervenção na integridade física das pessoas (direito constitucionalmente consagrado no art.º 25.º da Constituição da República Portuguesa, com repercussão no plano civilístico no art.º 70.º do CC).
A jurisprudência dos tribunais superiores considera que «as normas de direito nacional (os artigos 70.º, n.º 1, 81.º e 340.º, todos do Código Civil, e o artigo 157.º do Código Penal) e internacional (artigos 5.º da Convenção dos Direitos Humanos e Biomedicina e 3.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) impõem, como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes, que estes consintam nessa ingerência e que esse consentimento seja prestado de forma esclarecida, isto é, estando cientes dos dados relevantes em função das circunstâncias do caso, entre os quais avulta a informação acerca dos riscos próprios de cada intervenção médica» (cfr. acórdão do STJ de 01.12.2020, in www.dgsi.pt).
É, portanto, indiscutível que sobre o médico recaem deveres de informação e de obtenção de consentimento informado, que surgem para neutralizar a assimetria de informação que, tipicamente, caracteriza a relação médico-paciente (cfr., por exemplo, Rute Teixeira Pedro, in A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, Centro de Direito Biomédico, número 15, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p.78).
O Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei n.º 117/2015, de 31.08, prevê, no seu art.º 135.º (Princípios gerais de conduta), que: «1. O médico deve exercer a sua profissão de acordo com a leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade (...)» e «11. O médico deve fornecer a informação adequada ao doente e dele obter o seu consentimento livre e esclarecido».
O objectivo principal do dever de esclarecimento é permitir que o paciente faça a sua opção de forma consciente, assumindo uma responsabilidade própria perante a intervenção médica, conhecendo o diagnóstico, a índole, o alcance, a envergadura e as possíveis consequências e riscos da intervenção ou tratamento.
João Vaz Rodrigues, in O consentimento informado para o ato médico no ordenamento jurídico português (elementos para o estudo da manifestação da vontade do paciente), número 3, Centro de Direito Biomédico, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 243, após repudiar a necessidade de o agente médico transmitir informação que abarque quaisquer consequências excepcionais que possam ocorrer, salienta não serem de desprezar «as informações sobre sequelas que, embora excecionais, possam ocorrer em consequência dos meios técnicos utilizados, ou ter especial interesse para o paciente, atendendo, por exemplo, à sua profissão ou aos seus interesses».
O acórdão do STJ de 07.03.2017, in www.dgsi.pt, considerou que «- Na relação que se estabelece entre o médico e o doente, o dever de informar/esclarecer do primeiro confina-se, no momento da assumpção do diagnóstico, em dar a conhecer ao segundo o tipo, a extensão e os efeitos da doença de que é portador e a forma medicamente adequada de a tratar. II - O dever de informar mostra-se, em concreto, adequada e correctamente cumprido, porquanto os clínicos consultados (réus) informaram a doente (autora) (i) da natureza e tipo de patologia diagnosticada, (ii) do tipo de intervenção que deveria ser realizada para que fosse debelada, e (iii) das previsíveis consequências, de acordo com a ciência médicocirúrgica, que poderiam advir do tipo de intervenção a realizar, a nível urológico».
Certo é, também, que tal dever de informar se mantém ao longo de toda a relação contratual e deve respeitar os princípios da simplicidade e da suficiência, visando o esclarecimento efectivo.
O acórdão do STJ de 22.03.2022, in www.dgsi.pt, entendeu que «O consentimento do paciente prestado de forma genérica não preenche, só por si, as condições do consentimento devidamente informado, sendo, além disso, necessário, em caso de repetição de intervenções, que tais esclarecimentos sejam actualizados, tendo em conta, designadamente, que os riscos se podem agravar com a passagem do tempo» (sublinhados nossos).
Aliás, entendido o doente como um consumidor de serviços médicos, assiste-lhe o direito a uma informação suficiente, legível, clara e actual, que permita uma boa utilização do serviço e que inclua os riscos para a saúde e a segurança dos consumidores (cf. art.º 8.º da Lei n.º 24/96, de 31.07 – Lei de Defesa do Consumidor).
Temos, assim, que o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido, pelo que se o consentimento não existe ou é ineficaz, a actuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação, correndo por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada (cfr. André Dias Pereira, Ob. Cit., p. 447, e acórdãos do STJ de 26.04.2016 e de 18.01.2022, in www.dgsi.pt).
Estando-se em face de facto impeditivo do direito da A., compete aos RR. a prova da existência do consentimento informado, por ser este o entendimento que mais promove a igualdade de armas no processo e a igualdade na aplicação do direito (cfr. André Dias Pereira, Responsabilidade Civil em saúde e Violação do Consentimento Informado na Jurisprudência Portuguesa Recente, in Revista Julgar, n.º 42, 2020, e acórdãos do STJ de 02.06.2015, 16.06.2015, de 22.03.2018, 01.12.2020, 18.01.2022, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Voltando ao caso dos autos, é inegável que o médico J estava obrigado, como se viu, a informar o A. dos riscos da cirurgia e a obter o seu consentimento prévio (cfr. arts. 44.º e 45.º do Código Deontológico dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009, de 13.01, em vigor à data dos factos).
E, tendo em conta as conclusões por nós extraídas no ponto 5.3.1, quanto ao efectivo estabelecimento de uma relação contratual entre o A. e a 2.ª R., esta estava, também, vinculada aos mesmos deveres de informação/obtenção de consentimento, por emergirem do referido contrato, que, por isso, são deveres próprios seus, não merecendo acolhimento a tese por si defendida nas alegações de recurso.
Ora, provou-se que o médico J não informou o A. sobre os riscos inerentes à realização da cirurgia realizada no dia 12.12.2014, sendo que o A. não assinou a declaração denominada “consentimento informado para cirurgia” para esse ou para as demais cirurgias que realizou no hospital da 2.ª R., não lhe foram prestados esclarecimentos previamente às cirurgias de 13.12.2014 e 17.12.2014 e nada lhe foi perguntado ou dito antes do início dos procedimentos de anestesia (cfr. n.ºs 33, 34, 41, 46 e 61 dos factos provados).
As primeiras RR., nas suas alegações de recurso (com adesão da interveniente principal Ageas) defendem que a sentença recorrida enferma de erro de Direito ao ter dado como assente a falta de consentimento informado, ante a inexistência de documento escrito, porquanto o consentimento poderia ser prestado por forma oral.
Não lhes assiste razão. É que não se provou, como se impunha, a efectiva existência de consentimento do A., fosse ele oral ou escrito, e tal existência não pode extrair-se, como pretendem as recorrentes, dos factos não provados, posto que, como é consabido, a não prova de um facto não significa que se deva ter por provado o facto contrário. De resto, e tal como bem recordam os AA. nas suas contra-alegações, a norma 015/2013 da Direção-Geral da Saúde, determinou que o consentimento informado deve ser dado por escrito nos casos de actos cirúrgicos e/ou anestésicos.
Enfim, a matéria de facto provada evidencia, tal como se entendeu na sentença recorrida, um claro incumprimento dos referidos deveres, sem que, nomeadamente, a 2.ª R. tenha afastado a presunção de culpa que sobre si recaía (art.º 799.º, n.º 1 do CC), não demonstrando que não devesse, nem pudesse, nas circunstâncias concretas, ter agido de diferente modo.
Refira-se que o acórdão do STJ de 22.03.2018, in www.dgsi.pt, considerou que não pode responsabilizar-se a R. Hospital pela falta de consentimento informado, mas, no caso nele versado, estava-se perante um “contrato dividido”, o que não ocorre nos presentes autos: «identificando-se, da matéria de facto, uma relação contratual entre a A. e o R. médico, que tem como objecto a prestação dos serviços especificamente médicos e uma outra relação contratual entre a A. e a R. Hospital, que não envolve a prestação de serviços médicos em sentido estrito, estamos perante uma situação, denominada pela doutrina, como “contrato dividido” ou autónomo, pelo que tendo-se concluído pela responsabilidade do R. médico com fundamento na falta de consentimento devidamente informado da A., não pode responsabilizar-se a R. Hospital pela conduta do mesmo médico».
A 2.ª R. defende, como se viu, que, mesmo a existir entre si e o A. um “contrato singular” para realização de cirurgia, o dever de informação vincularia, apenas, o médico perante o doente, o que afirma ser reconhecido pela doutrina, que não cita, e pela globalidade da jurisprudência, indicando, nesse sentido, os acórdãos desta de Relação de 27.11.2018 e do STJ de 18.01.2022.
Sucede que os referidos acórdãos, concluindo, é certo, que o dever de informação recai sobre o médico, não debatem a questão de saber se o hospital/clínica está ou não vinculado a semelhante dever (no primeiro acórdão referido, o hospital/clínica nem sequer foi demandado, sendo que, no segundo acórdão, se alude, genericamente, a um dever do “prestador médico”).
De resto, e tal como se escreveu na sentença recorrida, «(…) o cirurgião deve ser qualificado, à luz do que dispõe o art.º 800.º do CC, como um auxiliar de uma organização complexa de meios humanos e materiais. Assim, nunca poderá exonerar-se a entidade que integra os médicos de todos os actos e omissões praticados no seu seio e a ela imputáveis».
Enfim, impõe-se concluir que não foi feita prova bastante da obtenção de um consentimento devidamente informado, quer por parte do médico J, quer por parte da 2.ª R.
Ora, a violação do dever de esclarecimento do paciente é fundamento de responsabilidade médica, independentemente de negligência, no que respeita à intervenção médica em termos técnicos, e independentemente do seu resultado positivo ou negativo (cf. acórdão do STJ de 22.03.2018, já citado), pelo que, tal como se decidiu na sentença recorrida, estão preenchidos os pressuposto da responsabilidade (ilicitude e culpa), improcedendo as conclusões das primeiras RR. (e da interveniente Ageas por adesão), bem como da 2.ª R. a este respeito.
Sustenta, finalmente, a 2.ª R. que não foi estabelecido qualquer nexo causal entre o alegado facto ilícito – “falta de prestação de informação” - e as lesões neurológicas sofridas pelo A. na sequência da cirurgia de 12.12.2014, pelo que a sua condenação no pagamento de indemnizações padece de um manifesto error in judicando.
Afirma a 2.ª R. que o tribunal a quo se limitou a dizer que os danos lhe são imputáveis (bem como a outros réus), sem ilustrar o pertinente nexo causal, enquanto pressuposto da responsabilidade civil contratual, e acrescenta que o tribunal a quo deu por demonstrado que, na hipótese de o A. ter sido cabalmente informado dos riscos potenciais da cirurgia a que foi submetido em 12.12.2014, teria ainda assim, com “alto grau de probabilidade”, optado voluntariamente por realizar essa cirurgia, aceitando os riscos envolvidos na mesma, o que, no entender da recorrente, consubstancia um “consentimento hipotético”, figura estabelecida pela doutrina e reconhecida pela jurisprudência em matéria de responsabilidade por actos médicos (cita o acórdão do STJ de 02.06.2015), que tem o efeito de afastar a eventual causalidade estabelecida entre a violação do dever de informação e as lesões neurológicas sofridas pelo A., nos termos do disposto no art.º 562.º do CC. 
Também as primeiras RR., nas suas alegações de recurso (com adesão da interveniente Ageas) sustentam que inexiste, em relação ao médico J, nexo causal adequado entre a conduta que lhe é imputada (omissão do dever de esclarecimento e não obtenção do consentimento informado) e os danos alegados (nomeadamente, o dano biológico). Consideram estas recorrentes que na responsabilidade civil emergente, apenas, da omissão do dever de esclarecimento e da obtenção do consentimento informado (e em que não esteja em causa a má prática médica ou a violação das leges artis) releva, apenas, aquilo em que tenha atentado contra a autodeterminação do paciente, à sua liberdade de escolha, não podendo ser extensiva, sob pena de violação do princípio da causalidade adequada, a danos que só poderiam ter sido causados por má prática médica, que, no caso, foi excluída.
Advogam, finalmente, que «os artigos 70º, 573º e 483º do Código Civil (quando prevejam que, em caso de omissão do dever de esclarecimento e obtenção do consentimento informado, o médico, que não tenha actuado em má prática, que não esteja por isso incurso na violação das leges artis da sua profissão, mas em que, no final da sua intervenção e em virtude de caso fortuito, tenham ocorrido ou se tenham ampliado danos biológicos, haja que responder por esses danos e não apenas pelos emergentes da violação do princípio da autodeterminação e liberdade de escolha do paciente), violam o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da Lei Fundamental) porquanto, a ser assim, em duas intervenções cirúrgicas que tenham gerado danos, aquela em que não tenha ocorrido má prática e os danos resultem de caso fortuito, mas em que se verifique a omissão referida de esclarecimento e de obtenção do consentimento informado obrigaria a um dever de indemnização igual àquela outra em que tal má prática se tivesse verificado e fosse a causa de tais danos».
Ora, na aferição do nexo causal entre a violação do dever de informação/falta de consentimento informado e os danos verificados, importa atender aos bens jurídicos protegidos pela exigência de tal consentimento, a fim de se perceber quais os danos ressarcíveis.
Contrariamente ao defendido pelas primeiras RR., os bens jurídicos tutelados pelos deveres de informação e de obtenção do consentimento informado são o direito à integridade física e moral e o direito à autodeterminação e à liberdade, pelo que os danos ressarcíveis são, quer os danos não patrimoniais causados por essa violação da liberdade da vontade, quer as lesões, as dores e demais incómodos (cf. art.º 70.º do CC), quer os danos patrimoniais derivados do agravamento do estado de saúde (cfr. André Dias Pereira, Ob. Cit., pp. 459 e 460, e acórdãos da RL de 27.11.2018 e do STJ de 22.03.2018, de 08.09.2020 e de 02.12.2020, in www.dgsi.pt).
No citado acórdão do STJ de 22.03.2018, escreveu-se: «Tendo havido violação do dever de esclarecimento do paciente, com consequências laterais desvantajosas, isto é, a perfuração do colon, e com agravamento do estado de saúde, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, e os danos ressarcíveis tanto são os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais. Por conseguinte, quer se siga a concepção da ilicitude do resultado quer a concepção da ilicitude da conduta, o R. médico e a respectiva seguradora encontram-se solidariamente obrigados a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela A. com fundamento em falta de consentimento devidamente informado para a realização da colonoscopia».
É, aliás, o que é reconhecido pela Direção-Geral da Saúde, na norma 015/2013, relativa ao consentimento informado, esclarecido e livre para actos terapêuticos ou diagnósticos e para a participação em estudos de investigação, onde consta que «o consentimento informado, esclarecido e livre da pessoa, é uma manifestação de respeito pelo ser humano, esteja doente ou não. Reflete, em particular, o direito moral da pessoa à integridade corporal e o direito de autonomia na participação ativa da tomada de decisões conducentes à manutenção da sua saúde e a adesão à terapêutica o que pressupõe a adequada informação e uma decisão livre e esclarecida» e «a Constituição da República Portuguesa consagra, no artigo 25.º, o direito universal à inviolabilidade da integridade moral e física e a Lei de Bases da Saúde 44 operacionaliza este conceito na Base XIV com o direito do cidadão a ser informado sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado, permitindo a decisão de receber ou recusar a prestação de cuidados que lhe é proposta».
De acordo com os ensinamentos de André Dias Pereira, in Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova e nexo de causalidade, «havendo violação do dever de esclarecimento, o consentimento é ineficaz, e assim toda a intervenção médica é tida como ilícita. Basta, pois, a alegação por parte do paciente nesse sentido e o médico tem – como pré-condição da causa de justificação do consentimento – o ónus da prova de que esclareceu adequadamente o paciente. Se o médico não conseguir provar que cumpriu os deveres de esclarecimento e que agiu ao abrigo de uma causa de justificação, recai sobre ele todo o risco da responsabilidade da intervenção médica, bem como os fracassos da intervenção, os efeitos secundários não controláveis e os danos resultantes da intervenção».
O mesmo autor reitera este entendimento no artigo Responsabilidade Civil em saúde e Violação do Consentimento Informado na Jurisprudência Portuguesa Recente, in Revista Julgar, n.º 42, 2020, onde, de forma clara e lapidar, escreve a propósito do decidido no acórdão do STJ de 02.11.2017, que: «(…) a ausência de um consentimento válido (porque insuficientemente informado) — consentimento esse que visa proteger a liberdade e a integridade física — deve ser civilmente sancionada com uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, designadamente decorrentes da lesão corporal. Não há uma simples perda de oportunidade, há um efetivo dano ao direito de decidir (informadamente) e daí resultam, com inequívoca causalidade normativa, os danos referidos. Como diz a doutrina americana: uma “loss of choice” não se deve confundir com uma “loss of chance”. Com efeito, nestes casos, o processo causal é claro: a falta de informação impossibilitou o paciente de refletir e decidir, a informação é requisito necessário do consentimento e só o consentimento justifica a invasão da integridade físico-psíquica do doente. A invasão do corpo é ilícita se não for justificada. O escopo terapêutico e a condição de médico do agente não são, por si só, devido ao respeito pelo princípio da autonomia, causas justificativas da invasão do corpo do cidadão doente. Só o consentimento (ou em casos bem delimitados do n.º 2 do artigo 156.º do CP — urgência e extensão do âmbito operatório) — pode justificar a intervenção médico-cirúrgica. Assim, salvo melhor opinião, temos uma (1) ação (2) ilícita (violadora da integridade física e psíquica) que (3) culposamente (4) causou (5) danos no corpo do paciente. Verificam-se os requisitos da responsabilidade civil, seja extracontratual (artigo 483.º do CC), seja contratual (artigo 798.º do CC). Os danos também são claros! Os danos corporais subsequentes a uma intervenção médica ilícita. Neste caso, os danos decorrentes da extração do siso, que correspondem a riscos conhecidos da referida intervenção. Em suma, chamar ao discurso a tese da perda de oportunidade neste contexto é desnecessário, visto que nem há uma dificuldade em estabelecer o processo causal entre a falta de informação e os danos, nem há necessidade de antecipar o dano da “oportunidade de decidir”. Reforçamos o nosso raciocínio, que, aliás, está presente em todas as decisões do STJ apresentadas neste trabalho. Vejamos, de um ponto de vista lógico e dogmático-jurídico: i. a cirurgia carece de consentimento (artigo 5.º da CDHBio, artigo 156.º do CP); ii. o consentimento apenas é válido se for devidamente informado (artigo 5.º da CDHBio, artigo 157.º do CP); iii. não foi feita a prova de que o médico transmitiu (como era seu dever) informações sobre riscos graves da intervenção cirúrgica; iv. o consentimento do paciente não é válido (artigo 157.º do CP, artigo 340.º do CC); v. logo, a intervenção não se justifica pelo consentimento; vi. consequentemente, a intervenção sobre o corpo é ilícita; vii. se a intervenção no corpo do paciente é ilícita, há o dever de compensar os danos patrimoniais e não patrimoniais causados; viii. não há razão para diminuir a compensação (nem se verificam os pressupostos de aplicação seja do artigo 494.º seja do artigo 570.º)».
Sendo os bens tutelados os referidos, não se vislumbra que possa ser violadora do princípio constitucional da igualdade a interpretação de que o incumprimento dos deveres de informação e de obtenção do consentimento informado dá lugar ao ressarcimento de outros danos, como o biológico. O tratamento distinto que tais casos, indiscutivelmente, merecem relativamente às situações em que os danos decorrem da má prática médica ou da violação da leges artis, centrar-se-á na necessária ponderação sobre as diferentes intensidades do ilícito e da culpa, para efeitos do cômputo das indemnizações.
No caso dos autos, estamos perante intervenções médicas arbitrárias (sem consentimento ou com consentimento ineficaz), em que ocorreram danos para a integridade física do doente e um agravamento do seu estado de saúde.
Certo é, também, que não estamos em face de riscos que devam ser sempre suportados pelo doente, por não serem riscos imprevisíveis e que não devessem ser comunicados pelo médico. Antes pelo contrário, o risco não revelado tinha, in casu, conexão com o risco verificado, pelo que o prestador médico tem que responder pelos danos criados, patrimoniais e não patrimoniais.
Neste sentido, entendeu o acórdão do STJ de 08.09.2020, in www.dgsi.pt, que «perante a violação ilícita e culposa de deveres de informação, por parte do médico, e a ocorrência de danos que aqueles visam prevenir, acolhe-se uma presunção de comportamento conforme à informação, dispensando o paciente da prova da causalidade (preenchedora) que intercede entre o fundamento da responsabilidade invocado e os danos por si sofridos, que o cumprimento correto daqueles deveres visa prevenir (perturbação de decisão esclarecida do paciente)» e «pelos danos verificados respondem, solidariamente, o Hospital e os réus médicos (art.º 497.º, n.º 1, do CC). Os danos pelos quais respondem são os que se ligam causalmente aos ilícitos praticados. Estando em causa deveres destinados à preservação da vida, da saúde e da integridade física, bens fundamentais, justifica-se considerar - pela prevenção da lesão de bens jurídicos fundamentais – a versão negativa, mais rigorosa, da doutrina da causalidade adequada. Isto é: são indemnizáveis todos os danos sobrevindos ao ilícito praticado, devendo excluir-se apenas os decorrentes de factos ou causas anormais positivamente demonstradas» (sublinhado nosso).
Acresce que, ao contrário do afirmado pela 2.ª R., não se provou que o A. teria, com alto grau de probabilidade, optado por realizar a cirurgia em causa, aceitando os riscos inerentes, mesmo que tivesse sido informado desses riscos (sendo, quanto a nós, ilegítima e infundada, por não suportada pela necessária realidade fáctica, a conclusão extraída a este respeito na sentença recorrida, a propósito do cômputo da indemnização por dano biológico), pelo que soçobra a sua argumentação assente no “consentimento hipotético”.
É certo que não se provou, igualmente, que o A. só aceitou submeter-se à intervenção porque não foi devidamente informado quanto aos respectivos riscos, nem que, se tivesse sido, não a teria aceitado. No entanto, e tal como se entendeu no acórdão desta Relação de 27.11.2018, já citado, «não deixa de ser ressarcível o concreto dano consistente na perda da oportunidade de decidir correr os riscos (incontinência urinária, retenção da urina e urgência de micção, associadas à colocação da prótese e necessidade de nova intervenção para alívio da tensão, face à patente dificuldade na concretização dessa aplicação), sendo que a perda dessa oportunidade constitui, em si mesma, um dano causado pela falta de informação devida, em abstracto susceptível de ser indemnizado, e cuja protecção tem como sustentação material o direito à integridade física e ao livre desenvolvimento da personalidade, conforme se referiu (está em causa o poder do titular de decidir em que agressões à sua integridade física consente)».
De resto, o que o acórdão do STJ de 02.06.2015, referido pela 2.ª R., decidiu foi que o consentimento hipotético «(…) obedece aos seguintes requisitos: 1) que tenha sido fornecida ao paciente um mínimo de informação; 2) que haja a fundada presunção de que o paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; 3) que a intervenção fosse: i) medicamente indicada; ii) conduzisse a uma melhoria da saúde do paciente; iii) visasse afastar um perigo grave; 4) a recusa do paciente não fosse objetivamente irrazoável, de acordo com o critério do paciente concreto. O ónus da prova do consentimento hipotético, como forma de mitigar a responsabilidade médica, pertence ao médico e aplica-se aos casos de violações menos graves do dever de informação, mas não aos casos de violações graves do dever de informação, por exemplo, omissão de esclarecimento de riscos significativos de uma operação, e, por maioria de razão, aos casos em que falta de todo a prestação de consentimento (intervenções médicas não autorizadas). De qualquer modo, dados os riscos graves da intervenção médica em causa e a probabilidade de causar dores intensas e incapacidades para manter relações sexuais, andar e trabalhar, como causou, tem que se concluir que a autora, se soubesse dos riscos da mesma, teria recusado a intervenção, pelo que faltam os requisitos do consentimento hipotético. Sendo assim, deve aplicar-se o princípio geral, de que o consentimento deve ser prestado antes do ato médico e de que a informação, sobretudo nas intervenções médicas com riscos significativos, (…), devia ter sido fornecida à paciente com antecedência suficiente para que esta pudesse refletir sobre a sua decisão (“prazo de reflexão), e formar livremente, com serenidade, a sua vontade de aceitar a operação ou de a rejeitar» (cfr., no mesmo sentido, André Dias Pereira, Ob. Cit., p. 485).
No caso dos autos, falham todos os referidos pressupostos do consentimento hipotético, tudo levando a concluir que o A., se soubesse dos riscos da cirurgia, tê-la-ia recusado, ao invés do que se afirma na sentença recorrida.
Para mais, seguindo a jurisprudência do já referido acórdão do STJ de 08.09.2020, «compete à instituição de saúde – e/ou médico – provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão. Não deve admitir-se a invocação da figura do consentimento hipotético quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta da instituição de saúde – e/ou do médico –, como sucede quando aquela omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente».
Enfim, a responsabilidade civil emergente da realização de acto médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do acto médico e na violação do dever de recolha do seu consentimento (cfr., acórdão do STJ de 24.10.2019, in www.dgsi.pt).
Destarte, conclui-se que, não tendo o A. prestado o seu consentimento, escrito ou verbal, expresso ou tácito, presumido ou hipotético, para a prática dos actos cirúrgicos a que foi sujeito, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil: ilicitude (incumprimento do contrato de prestação de serviços e das regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009, de 13.01, em vigor à data dos factos – arts. 44.º e 45.º - nomeadamente, da obrigação de obter um consentimento informado); a culpa; o nexo de causalidade entre o facto – a intervenção médica não consentida – e o dano (patrimonial e não patrimonial).
Soçobram, assim, todas as conclusões dos recursos das primeiras RR. (e, por adesão, da interveniente Ageas) e da 2.ª R. sobre esta matéria.
5.3.3. Atentemos, seguidamente, na responsabilidade das primeiras RR., herdeiras do falecido médico J.
No recurso por si interposto (a que aderiu a interveniente principal Ageas Portugal), as primeiras RR. defendem que não podem ser pessoalmente responsabilizadas por actos que não praticaram, nem por omissão de deveres a que não estavam adstritas, nem podem ser responsabilizadas, enquanto herdeiras, por dívidas que não estavam declaradas antes da abertura da sucessão e que não integravam o passivo da herança. Argumentam que o art.º 2068.º do CC, apenas, permite a responsabilização civil por “dívidas do falecido”, sendo que, no caso, não há decisão judicial transitada, prévia à abertura da herança e à sua aceitação, que reconheça qualquer dívida do de cujus relativa a indemnização fundada em responsabilidade extracontratual. Consideram que o referido art.º 2068.º é claro ao exprimir-se no sentido de que se tratará de uma situação passiva que onere o património do de cuius e a cujo cumprimento ele esteja vinculado em vida, pelo que carece de fundamento que se onere a herança do falecido J e/ou os seus herdeiros com um encargo que não estava assumido no momento em que a herança foi aberta ou a acção foi proposta.
Os AA. contra-alegaram, lembrando que as primeiras RR. intervêm na acção na qualidade de herdeiras de uma herança aceite, mas que, por permanecer indivisa, carecia de  personalidade judiciária (art.º 2091.º, n.º 1 do CC), e que as mesmas não foram condenadas por actos ou omissões seus, mas, antes, a reconhecer a existência do crédito dos AA. e a satisfazê-lo pelas forças/bens da herança indivisa, sendo que, mesmo que a herança tenha já sido partilhada, cada herdeira apenas responderá pela dívida na proporção da respetiva quota, nos termos do art.º 2098.º, n.º 1 do CC. Advogam, ainda, que o seu direito à reparação dos danos sofridos constituiu-se no momento em que se verificaram os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual, que ocorrem antes do falecimento do médico J, visando a ação declarativa de condenação apenas declarar a existência do direito à reparação e condenar os RR. nos seus exactos moldes. Concluem que, constituindo-se a responsabilidade civil extracontratual no momento em que se verificam os respectivos pressupostos, a obrigação de reparação do dano onerava já o património do de cuius à data da abertura da herança e, por isso, transmitiu-se aos respetivos herdeiros com a aceitação da mesma, nos termos dos artigos 2068.º do CC.
E, com efeito, assim é.
As primeiras RR. foram demandadas na presente acção na qualidade de herdeiras do médico J (cfr. intróito da petição inicial) e nessa qualidade foram condenadas na sentença recorrida (cfr. respectivo dispositivo). E assim tinha que ser, posto que na herança ilíquida e indivisa (que é aquela que foi aceite, mas que permanece ainda em situação de indivisão por não ter sido efectuada a partilha) a dívida é ainda da própria herança, ocupando os herdeiros, em conjunto, o lugar do de cujus, sendo demandados como representantes da herança (que, não sendo jacente, não possui personalidade judiciária – cfr. art.º 12.º al. a) a contrario do CPC).
Assim, e desde logo, ao contrário do que as primeiras RR. (e, por adesão, a interveniente principal Ageas) afirmam, as mesmas não foram pessoalmente responsabilizadas por actos ou omissões suas ou, sequer, do médico J.
Note-se que, através da presente acção, os AA. pretendem efectivar a responsabilidade civil extracontratual do referido médico, por actos ou omissões perpetrados pelo mesmo em vida e causadores de danos.
Os pressupostos dessa responsabilidade constituíram-se, pois, em vida do de cujus, momento em que se constituiu a obrigação de indemnizar. A sentença recorrida e, agora, o presente acórdão, visam, apenas, o reconhecimento dessa obrigação e a determinação do seu quantum.
Ora, como é consabido, após o falecimento de uma pessoa singular, dá-se a vocação ou chamamento dos respectivos sucessores à titularidade das relações jurídicas transmissíveis do falecido (art.º 2031.º do CC).
Havendo aceitação da herança, os efeitos da mesma retroagem ao momento da abertura da sucessão, ou seja, o da morte (art.º 2050.º do CC).
São objecto de vocação ou devolução sucessória todas as relações jurídicas ou todas as coisas não exceptuadas por lei, designadamente, para além dos bens patrimoniais, certos direitos pessoais e, bem assim, no lado passivo das relações jurídicas, as obrigações e as dívidas.
Com efeito, a morte do de cujus não extingue as suas obrigações e dívidas, sendo as situações jurídicas passivas integradas no objecto da herança, ocupando os sucessores do falecido a posição jurídica que este detinha. Daí que, nos termos do art.º 2068.º do CC, caiba à herança responder pelo pagamento das dívidas do falecido.
Certo é que a responsabilidade dos herdeiros está limitada às forças da herança, quer esta seja aceita a benefício de inventário ou aceita pura e simplesmente, residindo a única diferença entre as duas espécies de aceitação no ónus da prova relativamente à insuficiência dos bens herdados (cfr. art.º 2071.º do CC).
Não desconhecemos que o n.º 1 do art.º 2025.º do CC afasta do objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei, acrescentando o n.º 2 que podem também extinguir-se à morte do titular, por vontade deste, os direitos renunciáveis.
Consagram-se, desta forma, três causas típicas de intransmissibilidade sucessória: a natural (que integra os chamados direitos, poderes e deveres jurídicos pessoais, como são disso exemplo os direitos parentais e os deveres conjugais, mas também os direitos patrimoniais pessoais), a legal (que compreende, por exemplo, os direitos de uso e habitação, o direito a alimentos, a obrigação de os prestar) e a convencional.
As indemnizações peticionadas na presente acção não se inscrevem em nenhuma das ressalvas previstas no artigo 2025.º, pelo que a obrigação de pagar, isto é, a dívida correspondente do de cujus transmite-se aos seus sucessores.
Neste sentido, veja-se o acórdão da RL, de 04.05.2006, in www.dgsi.pt, onde se entendeu que «I. As dívidas provenientes de crimes e as indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis apenas a um dos cônjuges são da responsabilidade desse mesmo cônjuge. II. Tendo falecido o cônjuge responsável, a sua herança responde pelo pagamento das dívidas. III. O herdeiro pode ser chamado a responder pelas dívidas do autor da herança, mas apenas dentro do valor dos bens herdados (vires hereditatis), incumbindo-lhe, todavia, provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos» (cfr. no mesmo sentido, os acórdãos da RP de 29.04.2014 e da RE de 16.12.2021, in www.dgsi.pt).
Conclui-se, pois, que a função principal da responsabilidade civil extracontratual é a reparação de danos e essa responsabilidade transmite-se com a morte do responsável, improcedendo todas as conclusões das recorrentes/primeiras RR. a este respeito.
Cabe, apenas, salientar que, embora o dispositivo da sentença tenha condenado as três RR. herdeiras tout court, fê-lo, de forma inequívoca, na sua qualidade de herdeiras, pelo que terá que entender-se que tal condenação foi no sentido de aquelas RR. responderem, apenas e naturalmente, na proporção das quotas que a cada uma caiba ou tenha cabido na herança.
5.3.4. Resta-nos aferir da adequação dos montantes indemnizatórios atribuídos pelo tribunal a quo.
O A. discorda dos montantes indemnizatórios fixados a título de dano biológico e danos não patrimoniais e considera que a sentença deve ser alterada «em conformidade com o pedido em sede de petição inicial».
Sustenta que «não poderá deixar de ser considerado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-12-2015, que considerou justa a atribuição de €100.000,00 (cem mil euros) a título de dano biológico e de €50.000,00 a título de danos não patrimoniais, a homem de 60 anos que ficou paraplégico em consequência de procedimento cirúrgico».
Também a A. defende que o montante indemnizatório que lhe foi fixado na sentença foi “essencialmente simbólico”, e que, em face dos n.ºs 95 a 98 dos factos provados e da sua idade, «haverá de atentar-se ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 22/1/2013, que considerou justo o valor de €25.000,00 para o dano de privação sexual de uma mulher com 80 anos».
Já a 2.ª R., nas suas contra-alegações, pronunciou-se no sentido de os valores peticionados serem manifestamente exagerados, desproporcionados e infundados e cita, em seu abono, os acórdãos do STJ de 15.05.2013 e de 09.07.2014, que diz versarem sobre lesões de carácter muito mais gravoso do que as sofridas pelo A.
Cumpre, pois, decidir.
Comecemos pelo “dano biológico”.
Tradicionalmente, a análise dualista – dano patrimonial/não patrimonial – abarcava todo o campo da discussão que os danos corporais comportavam, situando-se todo o debate em torno da parametrização ressarcitória de tal tipo de danos e da autonomização de um ou outro parâmetro de avaliação, sempre inserido num dos termos da referida dualidade.
Posteriormente, passou a aludir-se ao “dano biológico” para referir-se a lesão causada ao corpo e à saúde do lesado ou a lesão causada à integridade física e psíquica, reconhecendo-se que o dano causado por tal lesão merece ser reparado, independentemente de repercussões sobre a sua capacidade de ganho. É que o homem, na sua integridade psicossomática, desenvolve a existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.
Importa, no entanto, evitar “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado), tendo presente que há zonas de tangência e até de intersecção entre vectores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade. Daí que, após um momento inicial, em que alguns chegaram a admitir que o “dano biológico” seria um tertium genus, com um lugar próprio que não caberia no clássico dualismo patrimonial/não patrimonial, se tenha passado a entender que o mesmo (autónomo ou não) cabe em tal dualismo, sem prejuízo de poder ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial, sendo que, quando está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico”.
Em síntese, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo, fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou actuais repercussões patrimoniais de qualquer natureza, mas a sua avaliação tem que ser acompanhada de uma correcta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições (cfr. ac. do STJ de 17.01.2023, in www.dgsi.pt).
No caso que nos ocupa, o A. peticionou, separadamente, uma indemnização por danos relacionados com a perda da sua capacidade de ganho (art.º 455.º e 456.ª da petição inicial), que a sentença da primeira instância não lhe atribuiu por ter ficado por demonstrar essa perda de capacidade de ganho ou de rendimentos.
Não deixou, no entanto, de provar-se que, em consequência das cirurgias efetuadas, o A. padece de lesão neurológica irreversível, com desenervação activa nos territórios de L4-L5 e L5–S1, que determinaram alterações da mobilidade e sensibilidade dos membros inferiores, região do períneo e região nadegueira (zona perineal, peniana e anal). Devido a essa condição, o A. apenas consegue locomover-se com auxílio de canadianas, em deslocações pequenas, carecendo de cadeira de rodas e apoio na generalidade das deslocações, embora se desloque e conduza automóvel, adaptado à sua condição. Ficou totalmente impossibilitado de trabalhar na organização e gestão diária da sua empresa familiar ou em qualquer trabalho equivalente (tendo passado para o filho a gestão da empresa, à qual se desloca, apenas, pontualmente); não faz a sua higiene pessoal, necessitando de ajuda para as tarefas em causa; perdeu toda a capacidade sexual (sendo que, antes das lesões sofridas, tinha uma vida conjugal normal) e não controla a sua função urinária ou excretora, carecendo do uso de fralda e de tomar medicamentos. A sua integridade estética foi afectada num valor quantificável em 4, numa escala de 1 a 7.
O autor nasceu em 21.05.1950 e, à data dos factos, exercia profissionalmente a actividade de comerciante, sendo sócio e gerente de uma sociedade familiar de comércio de produtos agrícolas e pecuários e era pessoa activa e dinâmica.
Relevante é, também, o facto de, já antes das cirurgias em causa, o A. ter uma hérnia discal, o que lhe provocava compressão de nervo sensitivo e motor e lhe causava dor e paresia do pé direito (condição também designada de pé pendente) com o inerente claudicar ao caminhar.
Impõe-se, pois, atribuir ao A. uma indemnização pelas referidas diminuições e limitações físicas e funcionais, tendo em conta as suas repercussões na vida pessoal, familiar e profissional, que a sentença recorrida fixou em €60.000,00.
Conforme se disse, e de acordo, aliás, com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nomeadamente, do Supremo Tribunal de Justiça, a limitação funcional ou o dano biológico em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, sendo que os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da capacidade de trabalho, na medida em que se traduzem, desde logo, numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física.
Ora, o cômputo da indemnização pelo dano biológico assenta em critérios de equidade, devendo atender-se, portanto, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso (art.º 494.º do CC ex vi do art.º 496.º, n.º 3).
Compete, ainda, ter em conta que a aplicação de critérios equitativos não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade e da segurança jurídica, o que aconselha uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, através da consideração dos critérios de valoração e dos montantes que as decisões judiciais vêm encontrando para casos análogos, paralelos ou equiparáveis, sem prejuízo, naturalmente, da consideração das circunstâncias do caso concreto (cfr. art.º 8.º, n.º 3 do CC, e acórdãos do STJ de 07.05.2014, 09.07.2014 e de 23.03.2018, in www.dgsi.pt).
Refira-se, também, que o controlo da fixação equitativa da indemnização deve dirigir-se a averiguar se estão preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria, foram aplicados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, devem ser aplicados, sendo que, em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras  (cfr. acórdãos do  STJ de 01.07.2021 e 07.10.2021, in www.dgsi.pt).
É que o juízo de equidade a que alude o artigo 496.º do CC envolve, necessariamente, uma margem de subjectivismo (que não arbitrariedade) inerente a esse juízo, sendo que a alteração dos montantes indemnizatórios não se justifica quando nos encontramos dentro dessa margem de razoabilidade, só devendo ocorrer perante uma manifesta desproporcionalidade.
No caso sub judice é forçoso ter em conta:
- a intensidade do ilícito em causa, consistente na violação do dever de recolha de consentimento, sem que se tenha provado qualquer erro ou má prática médica na execução das cirurgias e tendo-se apurado que as lesões físicas sofridas pelo A. fazem parte da lista dos riscos inerentes a uma cirurgia à hérnia discal;
- a intensa gravidade das sequelas sofridas e do dano estético associado, sendo certo que não se provou que o estado físico do A. possa melhorar com recurso a fisioterapia (n.º 30 dos factos não provados);
- a idade do A. à data dos factos (64 anos);
- a culpa da 2.ª R. (que foi presumida);
- a culpa do médico J, não podendo deixar de considerar-se muito censurável o facto de o mesmo não ter informado o A. dos riscos conhecidos inerentes às cirurgias, atendendo, precisamente, ao tipo de riscos em causa e às suas possíveis consequências (juízo de censura esse que, contrariamente ao considerado na sentença recorrida e ressalvado o devido respeito, não é minimizado pela circunstância de o referido médico ter feito “o que se pode qualificar como todo o que estava ao seu alcance para recuperar ou diminuir as consequências físicas sofridas pelo autor”, o que, aliás, não encontra respaldo na factualidade provada).
Note-se, tal como já salientamos anteriormente, que não se provou que o A. tivesse, com alto grau de probabilidade, optado por realizar a cirurgia em causa, aceitando os riscos inerentes, mesmo que fosse informado desses riscos, não se mostrando amparada pela necessária realidade fáctica a conclusão extraída a este respeito na sentença recorrida, a propósito do cômputo da indemnização por dano biológico.
Tal como se salientou no acórdão do STJ de 28.02.2013, in www.dgsi.pt, na determinação da indemnização a atribuir ao A., impõe-se diferenciar «para efeitos de cômputo da indemnização, entre o plano objetivo da perda e degradação extrema do padrão de vida do sinistrado, enquanto lesão objetiva de um bem jurídico essencial da personalidade, ligado à própria dignidade da pessoa humana, que ocorre independentemente da perceção cognitiva pelo lesado do estado em que se encontra, envolvendo a drástica carência de autonomia e de eliminação das possibilidades de realização pessoal; e o plano subjetivo, decorrente de – a tal estado objetivo – se ter de adicionar o sofrimento psicológico necessariamente inerente à consciência, ainda que difusa ou mitigada, da total falta de autonomia pessoal e de qualidade de vida e da frustração irremediável de todos os projetos e satisfações alcançáveis no decurso da vida pessoal do lesado».
Percorremos algumas decisões jurisprudenciais com alguma aproximação ao caso dos autos no que concerne à gravidade das lesões sofridas (todavia, nem sempre decorrentes de acto médico), das quais salientamos o acórdão da RL de 16.12.2015, citado pelo A., que considerou uma situação em que o lesado, nascido em 1949 e operado em 2009, ficou paraplégico e perdeu a sua autonomia pessoal, passando a estar confinado à cama e a uma cadeira de rodas, sendo todas as tarefas do seu quotidiano, incluindo a sua higiene pessoal, realizadas com auxílio de terceiros, e atribuiu-lhe as indemnizações de €100.000,00, pelo dano biológico, de €10.000,00, pelo dano estético e de €50.000,00, pelos demais danos não patrimoniais sofridos.
Atentámos, também, no acórdão do STJ de 15.05.2013, citado pela 2.ª R., sobretudo quando nele se refere que «numa síntese da jurisprudência do Supremo Tribunal encontramos decisões que fixam a indemnização por danos morais em montantes superiores a 100.000€em gravíssimos casos de paraplegia, mas não em todos; situações muito graves pelos danos causados e pelos sofrimentos padecidos têm sido indemnizadas em montantes inferiores a tal quantia (…)». Este acórdão cita vasta jurisprudência sobre a matéria e acaba por fixar à lesada a quantia de €100.000,00 por danos morais, por, em consequência de uma intervenção cirúrgica da qual resultou uma lesão, encontrar-se incapacitada para exercer as suas funções profissionais, devido à permanência de alterações na sua função hepática, tendo sido considerada incapacitada para trabalhar.
Já o acórdão do STJ de 09.07.2014, também citado pela R., teve por adequada uma indemnização de €200.00,00, por danos não patrimoniais, no caso de uma lesada menor que, em consequência de um acidente, ficou sem sensibilidade abaixo da zona da lesão vertebral com uma paraplegia flácida sensitivo-motriz e esfincteriana e está impossibilitada de ter qualquer prazer no acto sexual.
Em face do exposto, e sendo nossa convicção que as indemnizações, nos caso de lesões irreversíveis, que implicam um sofrimento continuado até ao fim da vida, não podem assumir características miserabilistas, antes devendo proporcionar um sucedâneo significativo de danos que, por sua natureza, são irreparáveis, afigura-se-nos justa e criteriosa a indemnização de €85.000,00, pelo dano biológico sofrido pelo A., ao invés dos €60.000,00 atribuídos na sentença recorrida.
Passemos, agora, aos danos não patrimoniais sofridos pelo A.
Mais uma vez, não sendo possível aqui a reconstituição natural, impunha-se a fixação da indemnização em dinheiro, nos termos do art.º 566.º do CC.
São de vária ordem os problemas suscitados pela avaliação do prejuízo causado ao nível do dano moral, funcionando, igualmente, o critério da equidade a que alude o art.º 566.º, n.º 3 do CC, por ser impossível, como facilmente se depreende, averiguar do valor exacto do dano, dado o seu cariz não patrimonial e ausência de valor venal.
Conforme decidiu o acórdão de 14.12.2021 do STJ, in www.dgsi.pt, «em acção de responsabilidade civil médica em que a causa de pedir radica na violação do consentimento informado, o cálculo do montante indemnizatório por danos não patrimoniais deverá ser feito com base em critérios de equidade, atendendo, nomeadamente, ao grau de culpabilidade/censurabilidade do responsável médico e bem como do próprio lesado na situação geradora desses danos, à gravidade e dimensão desses mesmos danos e à própria situação económica quer do lesante, quer do lesado».
O método geralmente seguido consiste na consideração de que se o prazer compensa a dor, há que procurar obter a reparação através de prazeres que o dinheiro pode facultar.
A partir daqui, serão a experiência geral da vida e o bom senso que, atentas as circunstâncias do caso e segundo padrões objectivos, permitirá um cálculo indemnizatório.
E, embora seja possível compreender a dor física através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico, já a dor moral, traduzida nas aflições, desgostos, angústias e inquietações, tem de ser aferida através dos dados da experiência, sobretudo quando nem sequer é exteriorizada.
Enfim, o dano moral tem de ser aferido em concreto, estabelecendo-se a sua gravidade em função da sua intensidade, impacto, mal-estar ou ressonância que produzem sobre a sensibilidade do lesado, mas também, da sua duração, sendo certo que a indemnização não visará, nunca, “pagar” o dano, mas atenuar o mal consumado.
No caso sub judice, inexistem dúvidas de que estão provados danos não patrimoniais com gravidade suficiente para serem indemnizáveis (cfr. art.º 496.º, n.º 2 do CC), tendo a sentença recorrida arbitrado, a este respeito, uma indemnização de €40.000,00.
Relembramos que, no espaço de cinco dias, o A. foi submetido a três intervenções cirúrgicas. No pós-operatório, experimentou dores, perda de sensibilidade dos membros inferiores, coxas, nádegas e região perineal, incomodidades e depressão. Esteve internado desde 12.12.2014 até 23.01.2015, sendo alguns dias no serviço de cuidados intensivos, e nesse período necessitou sempre de ajuda para se sentar, levantar, posicionar-se no leito e fazer a transição para a cadeira de rodas. Fez fisioterapia durante o internamento e, aquando da alta, necessitava de ajuda para as actividades de vida diárias, sendo, apenas, autónomo para a alimentação, usava algália, tinha incontinência de esfíncter anal, incapacidade de executar posição ortostática, ausência de capacidade de flexão e extensão dos dedos de ambos os pés e ambos os tornozelos e hipostesia na região perineal, nadegueira e ambos os pés. Após a alta, fez reabilitação física, sem capacidade para se locomover sem apoio de muletas, para reter a urina, para controlar a dejeção e para manter relações sexuais. Ao longo de todo o internamento, e até aos dias de hoje, o A. padece de dores, que foram intensas e prolongadas no período de internamento, sendo quantificáveis em grau 6 numa escala de 1 a 7, e que, após tal período, são permanentes e pontualmente de grande intensidade, não quantificável. Em consequência da sua condição física, o A. sente grande desgosto e frustração, tendo sofrido uma depressão, que ultrapassou, mas tornou-se uma pessoa mais taciturna e triste e socialmente isolada.
É, pois, evidente a intensidade dos danos não patrimoniais sofridos, sendo patentes as dores, as angústias, preocupações, receios, desconforto e mal-estar a que foi sujeito, com repercussões, claramente, relevantes na organização da sua vida pessoal e familiar, merecedores, portanto, de tutela jurídica e, por isso, indemnizáveis.
Não podemos, ainda, esquecer-nos que, à data dos factos, o A. tinha 64 anos de idade e que a esperança de vida à nascença para os homens foi estimada pelo INE em 78 anos.
Também aqui percorremos alguma jurisprudência do STJ, de que salientamos:
- o acórdão de 07.03.2017, que considerou adequada a valoração do dano não patrimonial em €80 000,00, no caso de um lesado, de 24 anos, que foi submetido a várias intervenções cirúrgicas e tratamentos, com internamento hospitalar e imobilização no leito, e que sofreu dores significativas, tendo ficado afectado na sua funcionalidade somática a vários níveis e na sua sexualidade e tendo ficado afectado esteticamente;
- o acórdão de 07.03.2017, que estimou em €120.000,00 o valor da indemnização por danos não patrimoniais, atendendo à idade da lesada (33 anos) e às consequências gravosas no plano da autoestima e da estabilidade físico-psíquica, resultantes da necessidade de auto-algaliação e colostomia, decorrentes de um acto médico que se revelou descaracterizado e desadequado;
- o acórdão de 17.11.2021, que julgou equitativa a compensação de €100.000,00, por danos não patrimoniais, atribuída a uma lesada com 16 anos de idade à data do acidente, que, em consequência das lesões provocadas, sofreu dores de grau 6, dano estético de grau 5, repercussão permanente na atividade sexual de grau 5 e repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 3, em escala de 1 a 7;
- o acórdão de 19.10.2021, que decidiu que «respeita os imperativos de equidade uma indemnização do dano biológico (por dano futuro) no montante de €300 000,00 referente a um sinistrado que à data do acidente tinha 23 anos, que estava a realizar a sua formação universitária na área da segurança informática e ficou afectado com o membro superior esquerdo completamente paralisado e sem funcionalidade e uma IPG de 62,00 pontos» e «respeita igualmente os imperativos de equidade uma indemnização por danos morais no montante de €125 000,00, de acordo com a jurisprudência e seu sentido evolutivo, que atende à circunstância de o autor, pessoa saudável, ter passado a necessitar durante toda a sua vida do auxílio de terceira pessoa para determinadas tarefas; sentir vergonha de si mesmo nas suas relações com outros, nomeadamente por força da afectação da sua actividade sexual fixável no grau 3/7; alterações do sono, instabilidade emocional, diminuição das capacidades de memória e raciocínio, síndroma pós-traumático, perda da libido. E num quadro de dores permanentes que exigem consulta da dor quantificáveis no grau 6/7; com dano estético permanente do grau 5/7 e perda de capacidade e interesse por actividades que anteriormente lhe davam prazer fixável no grau 4/7»;
- o acórdão de 14.07.2021, onde se escreveu que «tendo em consideração os 31 dias de internamento do autor (com 54 anos) , com necessidade de permanecer 10 dias em coma induzido, as 4 cirurgias a que foi sujeito, essencialmente, com referência aos membros inferior e superior, com novo internamento de 28 dias, as 500 sessões de fisioterapia, as sequelas que apresenta no corpo, nomeadamente, múltiplas cicatrizes, as dificuldades de mobilidade e as dores que passou a sofrer de forma permanente, o período de 93 dias de incapacidade temporária total e de 717 de incapacidade parcial, o quantum doloris de 6/7 e o dano estético de 4/7, a que acresce a necessidade de ajudas técnicas (canadiana, meias de compressão elástica) e de tratamento médico regular, a necessidade de auxílio de terceira pessoa para funções básicas durante 90 dias, e, finalmente, o sentimento de revolta que a incapacidade lhe provocou, situação que lhe retira a alegria de viver, afigura-se-nos equilibrado fixar em €50.000,00 a compensação pelo dano não patrimonial sofrido pelo autor»;
- o acórdão de 26.05.2021, que sopesou que «Tendo a autora (de 51 anos de idade e auferindo o salário líquido de €515,00 x 14), em consequência de acidente de viação, sofrido lesões que, para além do coeficiente de incapacidade de que ficou afectada (13 pontos), lhe provocam sérias dificuldades no desempenho da sua actividade profissional habitual ou outra qualquer actividade similar (que implique força, agilidade e mobilidade) e mesmo para as tarefas normais e mais básicas do seu dia-a-dia (vestir-se, calçar-se, higiene pessoal); que essas dificuldades, só atenuadas pelo recurso permanente a ajudas (colete dorso lombar), medicação e tratamentos médicos, para além do esforço acrescido que exigem, se traduzem numa redução acentuada da possibilidade de adaptação e de escolha da actividade profissional, mesmo como trabalhadora indiferenciada, é adequado para ressarcir este dano patrimonial futuro o montante de €50 000,00».
Ora, devendo o montante da reparação ser proporcionado à gravidade do dano, atendendo-se, na sua fixação, a todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida (cfr., por exemplo, o acórdão do STJ de 13.04.2021, in www.dgsi.pt), afigura-se, equitativamente, mais justa e criteriosa a quantia de €50.000,00, a título de indemnização global pelos danos não patrimoniais supra referidos, ao invés dos €40.000,00 arbitrados na sentença recorrida.
Atentemos, finalmente, nos danos não patrimoniais sofridos pela A.
Provou-se que a A. nasceu em 22.11.1953 e que, à data dos factos, exercia a atividade de comerciante na empresa familiar. Após as lesões sofridas pelo A., seu marido, a A. passou a ficar cingida quase exclusivamente a cuidar do mesmo e, desde então, sente tristeza e angústia por tal situação, tendo deixado de ter qualquer vida sexual.
Em face desta factualidade, a sentença recorrida considerou que a A. sofreu danos reflexos, por ter sido afectada pelo facto ilícito perpetrado, que são indemnizáveis, cabendo a sua responsabilidade ao autor do facto ilícito (o médico J), mas já não à 2.ª R., por ser responsável, apenas, em virtude do contrato de prestação de serviços celebrado com o A., cujo incumprimento não pode afectar terceiros.
Ora, de acordo com acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2014, de 16.10.2014, publicado no DR 1ª Série, de 22 de maio de 2014, «Os artigos 483º n.º 1 e 496º n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de forma particularmente grave».
No que concerne, especificamente, à privação da sexualidade, a jurisprudência tem decidido que «I – Deve entender-se como correcta a tese da admissão da tutela dos danos não patrimoniais resultantes da privação do débito sexual, seja pela interpretação extensiva do disposto no nº 2 do art.º 496º, seja pelo recurso à norma do nº 1 do mesmo preceito, encarando o direito à sexualidade como um direito de personalidade. II - O facto de a mulher do autor, por causa da impotência que o ficou a afectar, ter ficado privada de manter com ele relações sexuais, constitui um trauma cuja intensidade e continuidade justificam uma interpretação extensiva do normativo civil onde se contempla o ressarcimento dos danos não patrimoniais (art.496º/1 do C. Civil)» (cfr. acórdão da RC de 22.01.2013, in www.dgsi.pt).
Não havendo razões para divergir desta jurisprudência, a questão que se coloca é a do preenchimento da expressão utilizada na fórmula uniformizadora “danos não patrimoniais, particularmente graves” e apurar os valores atribuídos na jurisprudência mais recente para casos similares.
No caso dos autos, o direito de coabitação, onde se inclui o débito conjugal, ficou, como se viu, seriamente comprometido, como também ficou profundamente abalada a qualidade de vida da A. e afectado o seu casamento com o A., sendo que, à data do acidente, levavam uma vida conjugal normal.
É indiscutível a gravidade dos danos sofridos pela A., que, de resto, nenhuma das partes colocou em causa, apenas a A. se tendo insurgido quanto ao montante fixado (€2.500,00).
No que respeita à justeza desse montante, importa, desde logo, dizer que, estando-se em face de um dano efectivo, não vislumbramos fundamento para considerar, como na sentença recorrida, que a sua compensação se deve “situar a um nível essencialmente simbólico”, nem, de resto, o tribunal a quo explicita os motivos dessa afirmação.
Por outra banda, a sentença recorrida limita-se a avançar com a quantia de €2.500,00, sem fundamentar, minimamente, essa decisão, o que não permite apreender as razões subjacentes ao montante fixado, sobretudo quando comparado com outras decisões dos tribunais superiores sobre esta matéria.
Recentemente, o acórdão da RG de 16.03.2023, disponível em www.dgsi.pt., pesquisou e analisou a jurisprudência existente sobre esta matéria desde 2014, deparando-se com valores que vão desde os €15.000,00 aos €50.000,00, tendo fixado uma indemnização de  €40.000,00, a uma mulher de 49 anos de idade, que, na sequência do acidente de viação de que foi vítima o seu marido, lhe prestou toda a assistência possível e necessária, material e emocional, acompanhou-o em todos os internamentos, consultas médicas, tratamentos e cirurgias, e que se encontra angustiada com a situação do marido, sendo que o facto de não poder ter relações sexuais naturais e espontâneas com o mesmo, lhe causa um grande desgosto e sofrimento.
Regressando ao caso dos autos, em face da factualidade provada sob os n.ºs 95 a 98, e tendo em conta os sobreditos valores atribuídos pela jurisprudência mais recente em casos similares, temos como gritantemente insuficiente a indemnização de €2.500,00 atribuída pelo tribunal a quo, considerando mais equitativo e justo o montante de €30.000,00, a atribuir à A. título de indemnização pelos danos não patrimoniais.
5.4. Aqui chegados, conclui-se pela procedência total do recurso interposto pela interveniente acessória Generali Seguros, S.A. (embora por razões distintas); pela  improcedência total dos recursos interpostos pelas primeiras RR., com a adesão da interveniente principal Ageas Portugal, e pela 2.ª R.; e pela procedência parcial do recurso interposto pelos AA., no que respeita aos montantes indemnizatórios relativos aos danos biológico e não patrimoniais sofridos, devendo manter-se em tudo o mais a sentença recorrida.
Os recorrentes suportarão as custas dos recursos em que ficaram vencidos (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
VI – DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em
a) rejeitar o recurso interposto pelo A./reconvindo em 02.11.2023, por ter por objecto decisão irrecorrível;
b) não admitir a junção de documentos requerida pela 2.ª R. (ponto 1.20);
c) julgar procedente a apelação interposta pela interveniente acessória Generali Seguros, S.A., em 14.06.2022, declarando nula a sentença recorrida na parte em que a condenou, solidariamente, a pagar ao A. as quantias de €60.000,00, de €40.000,00 e de €26.618,92, acrescidas de juros de mora;
d) julgar totalmente improcedente as apelações interpostas pelas primeiras RR. em 20.06.2022 e, por adesão de 20.06.2022, pela interveniente principal Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A.;
e) julgar totalmente improcedente a apelação interposta pela 2.ª R. em 29.06.2022;
f) julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelos AA. em 29.06.2022, no que respeita aos montantes das indemnizações devidas pelos danos biológico e não patrimoniais por ambos sofridos, e, em consequência:
1. condenar solidariamente as primeiras RR.  C , D  e E  (na qualidade de herdeiras de J, na proporção das quotas que a cada uma caiba ou tenha cabido na herança do mesmo), bem como a interveniente Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A. (na qualidade de garante da responsabilidade do referido J) e a 2.ª R. F, a pagarem ao Autor A a quantia de €85.000,00  (oitenta e cinco mil euros), a título de indemnização pelo dano biológico, e de €50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais;
2. condenar solidariamente as primeiras RR. C , D  e E  (na qualidade de herdeiros de J, na proporção das quotas que a cada uma caiba ou tenha cabido na herança do mesmo), bem como a interveniente Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A. (na qualidade de garante da responsabilidade do referido J) a pagarem à A. B  quantia de €30.000,00, (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais;
g) manter em tudo o mais a sentença recorrida na versão que lhe foi conferida pelo despacho de 22.09.2023.
 *
Os AA. suportarão as custas do recurso referido na al. a).
A 2.ª R. suportará as custas do incidente de não admissão de documentos referido na al. b), cuja taxa de justiça se fixa em uma UC.
Os AA. suportarão as custas do recurso referido na al. c), por terem ficado vencidos.
 As primeiras RR. e a interveniente principal Ageas Portugal suportarão as custas do recurso referido na al. d), por terem ficado vencidas.
A segunda R. suportará as custas do recurso referido na al. e), por ter ficado vencida.
Os AA., por um lado, e as primeiras RR., a 2.ª R. e a interveniente principal Ageas Portugal, por outro lado, suportarão as custas do recurso referido na al. f), na proporção dos respectivos vencimentos.
Notifique.
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Lisboa, 22.02.2024
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Cristina da Conceição Pires Lourenço