Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
125/21.9NJLSB.L1-9
Relator: JOSÉ CASTRO
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
CRIME DE INSUBORDINAÇÃO POR DESOBEDIÊNCIA
RELAÇÃO HIERÁRQUICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
- A exigência de fundamentação da sentença impõe – a respeito da motivação da matéria de facto-, em síntese, que, com maior ou menor profusão, o iter percorrido pelo tribunal na formação da sua (livre) convicção é compreensível pelos destinatários e sindicável pelo tribunal ad quem, extraindo-se da motivação quais os meios de prova considerados, bem como a forma como foram sopesados e concatenados;
- O crime de insubordinação por desobediência, p. e p. pelo artº 87º, nº 1, al. g), do Código de Justiça Militar, tem como bem jurídico protegido a autonomia intencional do superior hierárquico do agente, valor particularmente relevante numa estrutura hierarquizada e que para ser eficaz depende essencialmente do cumprimento dos deveres de autoridade, de obediência e de lealdade;
- Para que o tipo objetivo se preencha, a ordem violada pelo agente tem de ser formal e materialmente legitima, emanada por quem tem competência para tal e regularmente comunicada;
- Nessa conformidade, a ordem tem de ser emanada no âmbito de uma relação hierárquica direta ou no âmbito de uma relação hierárquica funcional (neste caso, apesar da ordem não ter sido dada pelo direto superior hierárquico do arguido, a mesma foi dada por um militar de patente superior à do arguido e que chefiava o serviço de eliminação de resíduos, existindo assim entre ambos uma relação de hierarquia funcional);
- O cumprimento da ordem só poderia ter sido recusado pelo arguido se tivesse contrariado ordem expressa do seu direto superior hierárquico ou se o seu cumprimento representasse a prática de um ato ilícito típico (artº 271º, nº 3, da CRP, e artº 12º, nº 1, do RDM), o que não foi o caso dos autos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No âmbito do proc. comum coletivo nº 125/121.9NJLSB.L1, que corre termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que é arguido AA, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 05.06.2023 foi proferido acórdão (refª 426399928) com o seguinte dispositivo (transcrição parcial):
«V. Decisão:
1. Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Tribunal Coletivo em julgar a acusação/pronúncia totalmente procedente, por provada, e, em consequência decidem:
1.1 Condenar o arguido AA, pela prática de 1 (um) crime de insubordinação por desobediência, previsto e punível pelo artigo 87.º, n.º 1, alínea g) do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro, na pena de 5 (cinco) meses de prisão.
1.2 Substituir, nos termos do disposto no artigo 17.º n.º 2 do Código de Justiça Militar e do artigo 45.º do Código Penal, a pena de 5 (cinco) meses de prisão, pela pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 10,00 (dez euros), perfazendo um total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);
1.3 Condenar o arguido AA, no pagamento de custas criminais, fixando-se a taxa de justiça no valor de 3 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e tabela III anexa a este).
(…)»
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Inconformado com tal acórdão, o arguido dele interpôs recurso (refª 36456717), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação, depois de convite a apresentar conclusões, conforme despacho com a refª 429005272 e motivação com a refª 37456117 (transcrição):
«II– DAS CONCLUSÕES
44º
Concluindo, o tribunal recorrido, apreciou e valorou erradamente a prova produzida em sede de audiência de julgamento, interpretando, erradamente conceitos legais, porque por um lado, apesar de ter ficar claramente provado que a BB não era, em termos militares e hierárquicos superior hierárquica do arguido, entendeu, aquele tribunal, que o arguido lhe devia obediência apenas e só por aquela deter uma patente militar superior à patente militar do arguido, o que viola toda a básica relação de subordinação e relação hierárquica militar, ou seja, a relação de subordinação existente entre subordinado
e o correspondente e directo superior hierárquico, pelo que, a ordem dada pela BB, não poderá ser considerada uma ordem legitima, por não ser emanada do superior hierárquico do arguido, conforme aliás já havia sido considerado, com o arquivamento do processo disciplinar proferido pelo Director do ..., motivos pelos quais, não poderia o arguido ser condenado pela prática de um crime de insubordinação por desobediência, por não dever obediência hierárquica à Cap.BB, quer, em termos de subordinação, quer em termos materiais e funcionais.
45º
Cumulativamente, com a violação da relação hierárquica, entre subordinado e superior hierárquico, o tribunal recorrido, jamais, poderia considerar que a ordem dada ao arguido pela BB, seria uma ordem legitima, emanada de superior, por esta ultima,
cfr o alegado não ser superiror hierárquica do arguido e sobretudo por não ser a única responsável pelo encaminhamento dos resíduos que fossem considerados documentos com dados pessoais e com informações médicas dos utentes do ..., uma vez que a BB não tinha, conforme ela própria declarou em sede de audiência de julgamento competência funcional e hieraquica para dar a ordem que deu ao arguido, por os resíduos em causa, não serem resíduos hospitalares comuns, (para os quais a BB era competente) mas sim, por serem documentos com dados pessoais e clinicos dos utentes do hospital, que não se equiparam ao conceito de resíduos comuns hospitalares, cfr é cartão/papel, pelo que, ao contrário do defendido no acórdão recorrido, a entidade que tinha competência para ordenar a eliminação destes documentos com dados pessoais, era apenas e só o departamento de arquivo onde o arguido trabalhava e o seu respectivo superior hierárquico directo ou o superior hieraquico que substituía o superior directo, pelo que, o Tribunal recorrido, errou, claramente, na valoração e interpretação das concretas competências atribuídas à BB, ao entender que esta tinha competência hierárquica e funcional para dar a ordem que deu ao arguido, no exercício legitimo das suas funções, quando, na verdade, quem detinha essa competência hierárquica e funcional era, ao invés, o CC, que foi considerado o superior hierárquico do arguido, enquanto o DD não estivesse presente no ... conforme sucedeu na data dos factos, pelo que, o tribunal recorrido, não valorou correctamente as concretas funções atribuídas à BB, misturando, o conceito de resíduos comuns hospitalares, como é o papel/cartão com o conceito de documentos com dados pessoais e clínicos dos utentes do ... que em função desta diferenciação, tinham formas distintas de eliminação e entidades distintas com competência para odenar a sua eliminação.
46º
Mais, caso o arguido cumprisse a ordem ”ilegítima” (por não ter competência funcional e não exisitir relação hierárquica com o arguido) da BB, que lhe ordenou que depositasse os documentos pessoais que o arguido pretendia levar para destruir na central de resíduos do hopsital, estaria, nesse caso, efectivamente a incumprir a ordem e instrução que havia recebido do seu superior hierárquico, DD, que além de ter ordenado a retirada do papel do arquivo do hospital, deu a especifica instrução para o arguido presenciar a sua destruição, facto este, que a BB se recusou a fazer, pelo que, seria o arguido acusado, igualmente, da prática do crime de insubordinação, por desobediência, por se ter recusado a cumprir a ordem e a instrução dada pelo seu superior hierárquico, deixando, os documentos pessoais no deposito de resíduos comuns do Hospital, estando, neste caso, o arguido perante um claro conflito de interesses, que adveio de um facto que não poderá ser imputável ao arguido, por omissão regulamentar da parte do ..., que à data, não dispunha de qualquer norma regulamentar sobre a matéria em causa, o que levou a que o arguido sentisse a necessidade de pedir ao seu superior hierárquico para assinar uma manifestação de interesses sobre a necessidade de desmaterialização dos documentos pessoais e clínicos dos utentes do hospital, uma vez que a única norma regulamentar que existia no hospital era para a eliminação de resíduos comuns.
47º
Em face do exposto, não poderia o tribunal recorrido considerar que a ordem emanada pela BB, seria uma ordem legitima quanto à sua origem, por ter sido emanada por militar pertencente a outro departamento do hospital, que respondia a cadeias de comando diversas, inexistindo, qualquer relação hierárquica entre ela e o arguido, sendo, ambos, inclusivamente, de forças militares diversas uma vez que o arguido é militar da Marinha e a BB é militar do exército, motivos pelos quais, não poderia o Tribunal recorrido considerar que o arguido tinha o dever de obediência à ordem dada pela BB, violando, assim, o tribunal recorrido, de forma clara e evidente o disposto no do artigo 12º do Regulamento de Disciplina Militar que prevê que o dever de obediência do militar consiste em cumprir, completa e prontamente, as ordens e instruções emanadas de superior hierárquico, o que conforme o exposto não sucedeu “In casu”, porque além do mais, o arguido não violou, também, o dever de zelo previsto no artigo 17º nº2 al. b) do RDM, devendo, nesta matéria, o douto Tribunal da Relação revogar o acórdão recorrido, por valorar erradamente a prova produzida e laborar em erro na interpretação dos factos e na aplicação do direito, absolvendo-se, o arguido da prática do crime de que vem condenado, por não se verificarem os seus pressupostos e requisitos legais, fazendo-se, assim, JUSTIÇA, conforme é apanágio do Tribunal da Relação de Lisboa.
Termos em que,
Atento os factos e os motivos invocados,
Deverá ser admitido o presente recurso, o qual, deverá ser considerado procedente, revogando-se em conformidade o Acordão recorrido, absolvendo-se o arguido da condenação de um crime de insubordinação por desobediência, p. e p. pelo art. 87º, nº 1, al. g) do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15 de Novembro, fazendo, assim, JUSTIÇA!».
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O recurso interposto pelo arguido (depois de completada a motivação com as conclusões) foi admitido a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. despacho com a refª 430019902).
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O Ministério Público junto do tribunal onde foi proferido acórdão sob recurso, por seu turno, apresentou contra-alegações (refª 37880305), sem apresentar conclusões, sustentando o seguinte (transcrição parcial):
«(…)
O Tribunal fez a apreciação da prova de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, que tem expressão no artigo 127º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 107,º do Código de Justiça Militar.
Tal princípio impõe, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, sendo que a valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação.
A este respeito da livre apreciação da prova, afirma Maia Gonçalves "(... ) como uniformemente expendem os autores, livre apreciação de prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”1.
Nesta esteira segue Marques Ferreira quando refere que " (... ) livre apreciação ou apreciação nunca poderá confundir-se com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova" 2.
O ponto de partida para sindicar a observância do princípio da livre apreciação da prova, é a fundamentação da decisão de facto, nomeadamente os motivos de facto entendidos como «os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados em audiência» [Cfr. Marques Ferreira, em «Jornadas de Direito Processual Penal / O novo Código de Processo Penal», 228 e ss.].
Ao analisarmos a fundamentação do acórdão em crise - que cumpriu cabalmente os requisitos exigidos no artigo 374º, nº 2, do Código do Processo Penal, indicando e examinando criticamente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal -, verificamos que nela se explicitou de forma bastante clara o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido que ali se deixou consignado.
O Tribunal analisou de forma crítica as declarações do arguido, bem como os depoimentos das testemunhas, fazendo a sua conjugação e análise crítica também com os documentos constantes dos autos.
O Tribunal explicitou pormenorizadamente o processo que seguiu para a formação da sua convicção, o que permite aferir das regras e critérios de valoração seguidos e se o resultado probatório surge como o mais aceitável.
O Tribunal seguiu um processo lógico e racional, observando regras de experiência comum (regras de probabilidade e razoabilidade), sendo a decisão totalmente convincente pela explicitação do substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse naquele sentido e pela forma como valorou os diversos meios de prova, indicando a razão porque uns merecem credibilidade em detrimento de outros, não merecendo por isso qualquer reparo.
E outra não pode ser a conclusão se não a de que o Tribunal apreciou correctamente a prova produzida e fundamentou com clareza e objectividade a sua convicção, em observância das regras que norteiam a apreciação da prova, sendo por isso, em nosso entender, insusceptível de qualquer crítica.
A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, pelo que aderimos à criteriosa apreciação feita pelo tribunal.
Todos os argumentos apresentados pelo arguido no recurso que interpôs do acórdão foram exaustivamente apreciados na fundamentação do mesmo e com a qual se concorda inteiramente.
Conforme consta da exaustiva fundamentação do acórdão, o arguido não nega que no dia 14.07.2021, depois de ter solicitado à BB a emissão de guia para transporte de duas carradas de papel tendo em vista a sua destruição, BB rejeitou tal pedido, mais tendo ordenado ao arguido que deveria entregar os referidos resíduos de papel junto da Central de Resíduos e que não obstante a ordem que lhe havia sido dada, nos dias 15 e 16 de Julho de 2021, o arguido, em nome da ..., entregou as referidas duas carradas de papel na empresa “...”, que procedeu à sua destruição, antes procura justificá-los, contextualizando-os de forma diferente (…).
O que aquele tenta é fazer passar a ideia de que o que estava em causa sempre foi o cumprimento da ordem dada pelo DD de assistir à destruição do papel, que este era confidencial/classificado e, por esse motivo, não podia ser entregue na Central de Resíduos do ...e ainda que a BB apenas lhe deu uma sugestão e não uma ordem já que, por estar adstrita a outro comando, (Comandante da Unidade de Apoio – Coronel da Força Aérea), não poderia dar ordens ao arguido, que estava adstrito ao comando da unidade do Brigadeiro General do Exército, ou seja, do Director do ...., não lhe devendo, por isso, obediência.
Diz-se e, a nosso ver bem, na fundamentação do acórdão, que o facto de a BB não ser superior hierárquica do arguido não significa que não seja sua superior, sendo que o próprio arguido reconheceu isso mesmo quando disse em julgamento que, atenta a sua patente sempre a tratou de forma cordial e educada, apenas não obedecendo àquilo que designa por “sugestão” e não admite ser ordem, porque a mesma não se comprometeu a assistir à destruição do papel, ordem que, conforme consta do acórdão o arguido nunca recebeu do DD, seu superior hierárquico, nem poderia receber, porque este não sabia os procedimentos a adoptar e, se os conhecesse ordenaria ao arguido para falar com a responsável da gestão de resíduos que era a BB ou, admitindo-se, apenas por hipótese, que dava a ordem que o arguido diz ter recebido, a mesma não seria legítima porque não era dada no âmbito das suas funções (do DD), porque não tinha competência para as emitir e nunca o arguido se veria num conflito de deveres, conforme alega.
Da prova produzida resultou que a BB era a única pessoa em todo o ... responsável pelo encaminhamento e tratamento de resíduos não hospitalares que, no exercício legítimo das suas funções, podia dar aquela ordem – entregar os resíduos de papel na Central de Resíduos do ..., pois nem o superior hierárquico, directo do arguido, o DD o poderia ter feito, porque não cabia no âmbito das suas funções fazê-lo e, se as desse, (tendo-se provado que não deu), extravasaria as mesmas por não ter competência para as dar.
Dúvidas também não restaram ao Tribunal, e bem, de que a BB era, à data dos factos, superior do arguido, a quem o mesmo devia obediência.
Diga-se que, pese embora o enfâse colocado na questão pelo arguido de estar a cumprir a ordem do DD, de assistir à destruição do papel, que se provou também não ter cumprido, a verdade é que quer do depoimento do DD, quer do CC e da EE, todos presentes aquando da ordem dada ao arguido pelo primeiro no seu gabinete, resulta que apenas foi ordenado ao arguido que fizesse desaparecer o papel do corredor, todas acrescentando que tal ordem foi seguida da explicação, também dada pelo DD, de que por ali passavam os utentes e ser indigno aquele cenário.
Nenhuma destas testemunhas corrobora a versão do arguido de que lhe foi dada ordem para destruir o papel ou sequer assistir à sua destruição e retirar o papel ou fazê-lo desparecer do corredor onde o mesmo se encontra, não é a mesma coisa que dizer, assista à destruição do papel.
Refira-se que o CC e a EE foram arrolados como testemunhas pelo arguido porque estavam no gabinete do DD aquando da ordem dada ao arguido por aquele, mas não ouviram o mesmo que o arguido, depondo de forma credível e isenta que apenas ouviram o DD ordenar ao arguido que retirasse os sacos com o papel que se encontravam no corredor, onde o próprio arguido os tinha colocado, antes de ir de férias, porque dava mau aspecto e era indigno, uma vez que por ali passavam os utentes do ....
Ora, não tendo sido dada qualquer ordem para assistir à destruição do papel, não há como compreender a insistência do arguido em transportar o papel para o exterior das instalações do ..., entregando-o a uma empresa que segundo diz encontrou na internet, para destruição do mesmo, acabando ainda por admitir que não assistiu à destruição das últimas duas sacas, não cumprindo integralmente a ordem que entendera ter recebido do DD.
Por outro lado ainda, mal se compreende que o arguido, depois de tantas diligências para saber como proceder em relação ao destino a dar ao papel, não tenha, desde logo sabido que era a BB a responsável pela gestão de resíduos de todo o ....
Não só o arguido não acatou esta ordem, como também não acatou a ordem dada pelo FF, responsável no ... pela gestão dos resíduos hospitalares que lhe disse expressamente para fazer o que a BB tinha ordenado, porque era assim que deveria proceder, não lhe podendo passar qualquer guia de transporte porque era a BB a pessoa para o fazer.
Os depoimentos quer da BB, quer do FF são claros, escorreitos, seguros e com conhecimento directo dos factos de que falaram porque foram os próprios que transmitiram ao arguido, em ocasiões diferentes a forma de proceder.
Das suas palavras se retira que a ordem dada pela BB foi expressa e clara, assumindo-se esta como a responsável por aquele assunto e disponibilizando-se para abrir o portão da Central de Resíduos do ..., para depósito dos resíduos que o arguido já tinha carregado na viatura, como igualmente foi clara e cristalina a conversa com o FF que ordenou ao arguido que obedecesse à BB.
O arguido optou por não o fazer e, agindo de forma autónoma e independente, fazendo valer a sua intenção e assumindo uma posição de força, contrariou as ordens recebidas e prosseguiu com o transporte dos resíduos em papel para uma empresa externa.
No que respeita à distinta natureza dos documentos, conforme consta na fundamentação do acórdão, tanto a BB, como o FF, afirmaram que é do seu conhecimento directo, em virtude do exercício das funções que desempenhavam no ..., à época, que os resíduos classificados/confidenciais são destruídos pela entidade que lhes dá origem, designadamente triturados, não sendo das suas responsabilidades a sua gestão, como se deu por provado em 1.23.
Aliás, se assim fosse, não seriam eles os responsáveis pelo seu encaminhamento, sendo certo que o arguido nunca lhes referiu que tais papéis correspondiam a documentos confidenciais/classificados, quando se lhes dirigiu a pedir a emissão de guias E-GAR para o seu transporte, nem tal circunstância consta dos autos, mais concretamente do processo disciplinar (cfr. fls. 123 a 211) que foi movido ao arguido pela prática dos factos que se discutem nos presentes autos.
Quer a testemunha CC, quer a testemunha DD, embora a contragosto, acabaram por afirmar, o primeiro que o papel em causa era duplicado e desconhece se tinha que ser ou não preservado e o segundo, que o mesmo não se encontrava registado como confidencial/classificado, que eram documentos muito antigos e que não sabia que documentos eram, ou se deviam ser mantidos.
Em boa verdade, mal se compreende que, sendo tais papéis confidenciais, o arguido nunca o tenha referido a ninguém, em especial à BB e ao FF, a quem foi pedir a emissão de guias E-GAR para o seu transporte para o exterior das instalações do ....
Também não se percebe que, sendo confidencial /classificado, o papel tenha permanecido no corredor, onde o próprio arguido o colocou quando limpou o arquivo e aí tenha permanecido durante as suas férias e só tenha sido removido do local depois da ordem do DD que disse ao arguido para desaparecer com o papel dali para fora porque naquele corredor passavam os utentes e era indigno aquele cenário como igualmente causa estranheza, a circunstância do arguido não ter triturado o papel em causa e ter diligenciado para a sua eliminação no exterior do ..., por uma empresa civil que o arguido, segundo o próprio, encontrou na internet, sem ter inclusive, assistido à destruição de toda a carga. Se era confidencial/classificado deveria em primeiro lugar ter procedido à trituração do mesmo e depois assistido à sua destruição, até porque afirmou sempre que essas eram as ordens do DD e toda a sua actuação se resume ao cumprimento dessas ordens o que foi assumido pelo próprio em audiência, que não cumpriu.
A isto acresce a descrição constante das guias de fls. 28 a 30 que referem, na designação do resíduo “Embalagens de papel e cartão”, entregues pelo arguido no dia ........2021 e a que corresponde o talão de pagamento de fls. 32 que identifica o material entregue como “papel para triagem” e designa como “Papel e cartão”, entregue pelo arguido no dia ........2021 e a que corresponde o talão de pagamento de fls. 31 que identifica o material entregue como “cartão”.
Fica demonstrado que o papel em causa não era confidencial/classificado e que tal alegação pelo arguido, mais não é do que a tentativa do mesmo justificar a sua desobediência.
A circunstância do mesmo revestir carácter confidencial ou classificado, entra em contradição com a circunstância de o ter retirado do arquivo, colocado em sacos e depositado no corredor do ..., local por onde passavam os utentes e se quisessem tinham acesso ao mesmo, bem como transportá-lo para uma empresa civil e até deixar lá duas sacas a cuja destruição não assistiu.
O DD disse que desconhecia os procedimentos a adoptar quanto ao encaminhamento do papel quando lhe deu a ordem para o fazer desaparecer do local, mas assegurando que nunca lhe disse para assistir à destruição do papel, até porque não sabia como se procederia naquela situação porque tinha assumido aquelas funções há muito pouco tempo.
A estas afirmações se juntam ainda as afirmações do FF que afirmou em audiência que o DD chefiava um serviço que nada tinha a ver com a gestão de resíduos e que extravasaria as suas funções se tivesse dito ao arguido para encaminhar o papel para o exterior, sendo certo que o arguido não podia interpretar a ordem do DD para fazer desaparecer o papel do corredor, como uma ordem para o transportar para o exterior do ....
Decorre do depoimento do DD, prestado de forma que aos olhos do tribunal pareceu constrangida, que não só não deu a ordem para que o arguido assistisse à destruição do papel que se encontrava depositado no corredor do …, como inclusive tal papel era muito antigo, não se encontrava registado como confidencial, acabando por admitir que não sabia que documentos eram e se deviam ser mantidos ou não.
Não lhe foi dada qualquer ordem para destruir ou assistir à destruição do papel pelo DD que nem sabia que procedimentos seriam necessários para encaminhar tal resíduo, como ainda lhe foi expressamente ordenado pela BB que deveria proceder ao depósito daquele papel na Central de Resíduos do ..., mais o informando ser a responsável pela gestão de resíduos de todo o ... e lhe ter dito que abriria o portão no dia seguinte às 10:00 para assim proceder ao seu depósito.
Tudo isto foi ignorado pelo arguido, bem sabendo estar a receber uma ordem de uma oficial de patente superior à sua que não aceitou e pretendeu interpretar como sendo uma mera “sugestão.”
Resulta das palavras da BB que o arguido nunca lhe disse que tipo de papel estava em causa e também nunca lhe falou na necessidade da sua destruição, esclarecendo ainda que o tratamento de papel confidencial ou classificado é dado pela entidade que o produz, procedendo à sua destruição, triturando-o, o que foi corroborado pelo capitão FF e, nessas circunstâncias não se coloca qualquer questão sobre o seu encaminhamento, uma vez que a confidencialidade dos documentos é assegurada na fonte e jamais são passadas guias para o seu transporte, muito menos para uma empresa externa sem ser triturado e sabe-se que o papel aqui em causa não estava triturado porque tal não foi mencionado nem pelo DD, nem pelo CC, nem pelo GG que afirmaram todos ter visto o papel nos sacos.
Assim, face ao exposto entendemos que o arguido praticou o crime de que vinha pronunciado, não nos merecendo qualquer reparo o acórdão em causa, devendo ser improcedente o recurso apresentado.
Assim, porque nada encontramos que nos mereça censura no acórdão recorrido, deve-se negar provimento ao recurso, confirmando-se o mesmo, sendo que este não violou qualquer princípio ou normativo legal.
Contudo, V.ªs Ex.ªs decidindo farão Justiça!»
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa a Exmª Srª Procuradora-Geral Adjunta acompanhou a argumentação da resposta do MP, emitindo parecer consonante, «no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente, mantendo-se no douto acórdão recorrido» (refª 20961067).
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Notificado nos termos do disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, o arguido não apresentou resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.
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FUNDAMENTAÇÃO
I - Questões a decidir
Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso [quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)], as questões que se colocam são as seguintes:1
a. Saber se há omissão de pronúncia (motivação da convicção) quanto aos factos dados como provados no acórdão recorrido nos pontos 1.5 e 1.6 [alegação constante do artº 32º da motivação, mas que não foi transposta para as conclusões recursórias];
b. Saber se há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova [alegação contida nos artgs 8º e ss. da motivação, mas que não foi transposta para as conclusões recursórias];
c. Saber se a ordem proferida pela BB do Exército BB – que não é diretamente superior hierárquico do recorrente - era ilegítima, por contrariar a ordem dada pelo seu direto superior hierárquico, e se AA, não obstante, lhe devia obediência;
d. Qualificação jurídica da matéria de facto dada como provada em termos de se saber se o arguido cometeu ou não o crime pelo qual foi condenado.
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II – Apreciação das questões acima enunciadas
a) Com vista à apreciação das questões acima enunciadas, aqui transcrevemos a motivação da matéria de facto constante do acórdão recorrido:
«III – Fundamentação de facto:
1. A matéria de facto provada é a seguinte:
1.1 O arguido é … da Marinha e presta serviço junto da Secção de Gestão de Utentes do ... - Polo de Lisboa.
1.2 BB era, à data dos factos, HH, prestando serviço enquanto responsável pela gestão ambiental da ... e responsável pelo encaminhamento e tratamento dos resíduos não hospitalares de todo o ....
1.3 No dia 14.07.2021, depois do arguido lhe ter solicitado a emissão de guia para transporte de duas carradas de papel tendo em vista a sua destruição, BB rejeitou tal pedido, mais tendo ordenado ao arguido que deveria entregar os referidos resíduos de papel junto da Central de Resíduos.
1.4 Posteriormente e não obstante a ordem que lhe havia sido dada, nos dias 15 e 16 de Julho de 2021, o arguido, em nome da ..., entregou as referidas duas carradas de papel na empresa “...”, que procedeu à sua destruição.
1.5 Ao agir conforme descrito, o arguido actuou de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de desobedecer à ordem que lhe havia sido dada por BB, bem sabendo que a mesma era a única responsável pelo encaminhamento e tratamento dos resíduos não hospitalares, que a ordem em causa era legítima e que a mesma lhe havia sido regularmente comunicada pela Capitão, patente superior à sua.
1.6 O arguido sabia ainda que com a sua conduta colocava em causa a autoridade, a hierarquia, a coesão e a disciplina militar inerentes às Forças Armadas e que a sua actuação era proibida e punida por lei.
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Da Contestação provou-se que:
1.7 O arguido foi alvo de processo disciplinar interno que correu termos no ..., instaurado por despacho do Exmo. Sr. Director do ... proferido a 16 de Agosto de 2021, o qual foi arquivado.
1.8 Os resíduos comuns, deverão ser depositados na ...
1.9 O arguido nunca exerceu funções na gestão hoteleira, unidade responsável pela emissão das guias E-GAR, respeitantes aos resíduos do hospital que são depositados na Central de Resíduos do ...
1.10 O DD, à data dos factos não tinha conhecimento de quem era o responsável e quem tinha competência para a gestão dos resíduos.
1.11 O superior hierárquico do arguido e o seu chefe directo era o DD, Chefe do Serviço de Suporte do ...
1.12 O DD, Chefe do Serviço de Suporte do ..., tirou férias nos dias seguintes a ter dado ordem ao arguido, para retirar o papel do corredor.
1.13 Quem substituiu o superior hierárquico do arguido, enquanto, aquele esteve a gozar férias, foi o CC.
1.14 O arguido diligenciou no sentido de averiguar o local e a empresa que poderiam realizar a destruição do papel, tendo encontrado a empresa “...”, que por sinal era a mais próxima do ....
1.15 O arguido, efectuou uma manifestação de necessidade, assinada pelo seu Chefe directo, DD, Chefe do Serviço de Suporte do ... que visava a desmaterialização de papel.
1.16 O arguido contactou o serviço de transportes da ... e requisitou, no dia 13.07.2021, a viatura ..., de matricula ..., pertencente ao ... por dois dias, o que fez, por email (...) conforme as normas, com itinerário... de forma a levar os referenciados documentos para a empresa “...”, Lda., tendo em vista, a sua destruição, que o arguido pretendia presenciar de forma a cumprir escrupulosamente as instruções dadas pelo seu chefe directo e superior hierárquico.
1.17 Para o arguido proceder ao transporte dos referidos documentos, necessitaria de uma guia de transporte, o que lhe foi negado pela BB, exigindo-lhe, ao invés, a entrega do material na central de resíduos da ....
1.18 O arguido, ao longo de 29 anos de serviço efectivo, nunca foi alvo de qualquer processo disciplinar ou de qualquer sanção disciplinar.
1.19 Foi agraciado com a Medalha Militar de Comportamento Exemplar – Grau Prata e sido recompensado com Louvor publicado na Ordem de Serviço nº96/.../18-05-2021.
Mais se provou que:
1.20 O arguido não assistiu à destruição de todo o papel na empresa para onde o transportou.
1.21 O FF, questionado pelo arguido para lhe emitir uma guia de transporte, recusou e disse-lhe que deveria colocar o papel no local adequado e que depois a capitão BB trataria de remover o material.
1.22 O arguido nunca informou o DD ou o seu substituto CC de qualquer problema referente aos resíduos de papel.
1.23 O papel classificado/confidencial é destruído/triturado na origem, pela entidade/serviço que o produz e só depois é encaminhado/eliminado.
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2. Do relatório social do arguido consta, entre o mais que:
“Tal como no período a que se reportam os alegados factos descritos nos autos, AA vive com o cônjuge e dois filhos em casa familiar pertença de uma tia, na morada acima indicada.
AA encontra-se casado desde 2010, tendo deste relacionamento dois filhos menores de idade.
O arguido refere ter um bom suporte familiar, mantido ao longo dos anos.
O arguido concluiu o 11º ano de escolaridade com 18 anos, tendo completado mais tarde, já adulto o 12º ano.
A sua primeira experiência de trabalho foi como ajudante de ... no complexo industrial de ....
Aos 21 anos ingressou no serviço militar obrigatório, na Marinha..., tendo permanecido naquela situação durante dois anos.
Em 1994 ingressou no quadro de pessoal daquela instituição militar, situação que ainda se mantém, estando atualmente a exercer funções como formador na ..., na ....
À data dos alegados factos o arguido exercia funções como … no ..., em Lisboa.
A situação financeira do agregado familiar é descrita pelo arguido como sendo de algum conforto, declarando proveitos económicos no valor de €1530/mês, correspondentes ao seu salário.
O cônjuge aufere um vencimento mensal de €1550 como enfermeira no setor privado.
O arguido tem ainda rendimentos mensais no valo de €800, referente a rendas de dois imóveis.
Referiu ter como despesas fixas a mensalidade escolar referente ao filho mais novo, no valor de €250/mês.
AA mantém um estilo de vida focado no trabalho e na família, passando os tempos livres no convívio com o seu núcleo familiar, bem como com alguns amigos, colegas de trabalho e familiares de ambas as partes, situação que contribuirá para a sua estabilidade emocional.
No plano laboral, o arguido deterá uma imagem positiva, sendo tido como uma pessoa solidária e respeitadora e trato interpessoal adequado.
Em relação ao seu envolvimento nos presentes autos, AA não se revê no papel de arguido, sentindo-se constrangido em relação à existência do processo, nomeadamente perante a família e os colegas de trabalho, ainda que conte com a solidariedade e suporte emocional em ambos os contextos.
Em consequência da emergência dos autos o arguido foi alvo de um processo disciplinar, o qual, segundo o próprio, já terá sido arquivado.
Apesar de não equacionar a possibilidade de ser condenado, AA revela capacidade de adesão e cumprimento da decisão do tribunal que vier a ser tomada.”
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3. Dos antecedentes criminais do arguido:
Inexistem.
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4. Matéria de facto não provada:
4.1 Que a BB era superior hierárquica directo do arguido.
Da contestação:
4.2 Os resíduos em causa nos presentes autos, nunca poderiam ser depositados na ..., por serem documentos confidenciais, que o arguido veio a destruir, cumprindo a expressa instrução recebida pelo seu superior hierárquico, por não se tratarem de resíduos normais, mas sim de documentos com dados confidenciais, ou seja, com a identificação completa dos utentes do hospital e respectivas fichas e informações clinicas dos utentes.
4.3 Os documentos que o arguido tinha na sua posse, são considerados documentos/papel/resíduos que contêm dados clínicos e dados confidencias dos utentes do Hospital que não poderiam ser, por essa razão, depositados na ..., como se tratassem de qualquer resíduo comum, vulgo papel, razão pela qual, foi elaborada um manifestação de necessidades, assinada pelo DD, a fim de justificar a necessidade de eliminação do referidos documentos confidenciais, justamente, por se tratarem de documentos com dados pessoais, e por não existir no ..., qualquer norma a regulamentar os procedimentos a tomar no caso de eliminação de documentos de caracter confidencial.
4.4 O DD, na presença do CC e da EE, voltou a reiterar a mesma ordem, ou seja, de retirar o papel, com a seguinte instrução: “Assistir à destruição do papel”.
4.5 Quem havia anteriormente dado a ordem e a instrução ao arguido, para que este procedesse à destruição do papel, havia sido, justamente, o seu chefe directo, DD, Chefe do Serviço de Suporte do ..., e que, assinou, uma manifestação de necessidade, para que o processo de eliminação da documentação fosse encaminhado para o ... e não a BB, tendo, neste contexto, dado ao arguido a seguinte ordem, acompanhada da seguinte instrução:
a) retirar do corredor e do hospital todos os documentos (etiquetas de actos provenientes do arquivo de facturação referentes a 2015/2016 e anos anteriores e etiquetas provenientes de Imagiologia referentes a 2020, que já tinham expirado o prazo de ressarcimento de seis meses, por não terem a prescrição médica que justificasse o consumo);
b) com a expressa instrução de presenciar a destruição de todos os documentos.
4.6 O arguido, tinha a expressa missão de retirar os documentos da unidade hospitalar e a expressa missão de assistir à eliminação de todos os documentos, uma vez que a unidade não tinha essa especifica valência.
4.7 O arguido desejou cumprir as ordens dadas pelo seu chefe directo e hierárquico, ao invés das sugestões, recebidas, da BB, sobretudo quanto à questão da eliminação dos documentos.
4.8 O arguido após ter recebido as referidas sugestões da BB, questionou-a no sentido de saber se ela presenciaria à destruição da referida documentação, tendo, aquela, desde logo respondido que não o iria fazer.
4.9 A sugestão dada pela BB, implicaria, desde logo, o incumprimento da instrução dada pelo superior hierárquico do arguido.
4.10 A BB, que por estar adstrita a outro comando, (Comandante da Unidade de Apoio – Coronel da Força Aérea) não poderia dar ordens ao arguido, que estava adstrito ao comando da unidade do Brigadeiro General do Exército, ou seja, do Director do ....
4.11 O FF e a BB, por desconhecerem a ordem anterior, expressamente, dada pelo chefe directo do arguido, não diligenciaram no sentido do seu cumprimento, conforme deveriam ter feito.
4.12 O arguido procurou junto da ... e do ... de forma a saber quais os procedimentos a adoptar relativamente à desmaterialização de papel, concluindo não existirem procedimentos nem normas ou regulamentos sobre esta matéria.
4.13 O arguido, apenas, pretendeu cumprir de forma escrupulosa a ordem e a instrução expressamente dada pelo seu superior hierárquico, não tendo, qualquer intenção, de incumprir, muito menos, dolosamente, qualquer ordem ou instrução dada pela BB.
4.14 O procedimento de colocar o papel na ... não se aplica ao transporte e eliminação de documentos, mas sim, de resíduos do ....
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4. Motivação da decisão de Facto:
(…)
Assim os factos descritos em 1.1 e 1.2 decorrem das declarações do arguido, devidamente identificado a fls. 41 e 42, conjugadas com o depoimento claro, seguro e assertivo da BB que esclareceram o tribunal quanto às funções que, à data dos factos, cada um exercia, o posto que ocupavam e patente que exibiam.
Os factos descritos em 1.3 e 1.4 resultam da conjugação das declarações do arguido, com o depoimento da BB, conjugado com as participações de ocorrência de fls. 2 a 7 e de fls. 24 a 27, as cópias das guias E-GAR e documentos internos da empresa ..., de fls. 8 a 12 e fls. 28 a 32, a informação de serviço de fls. 13 a fls. 16 e de fls. 34 a fls. 36 e a cópia do processo disciplinar, respeitante ao AA Ramos, constante de fls. 123 a fls. 212, não restando dúvidas a este Tribunal quanto à prática dos factos pelo arguido, intervenção dos demais participantes directos nos mesmos, designadamente a intervenção da BB, do FF, do DD e dos intervenientes acidentais a saber, o CC, o GG e a EE.
Os factos resultantes da contestação do arguido e descritos em 1.7 decorrem da leitura do processo disciplinar movido contra o mesmo, constante de fls. 123 a fls. 212, o qual acabou por ser arquivado.
O descrito em 1.8 resulta provado pela conjugação das declarações do arguido, com os depoimentos das testemunhas BB, responsável pela gestão de todos os resíduos comuns do ..., do FF, responsável pela gestão dos resíduos hospitalares e do CC, a prestar serviço na Secção de Gestão de Utentes do ....
Estas testemunhas, depuseram de forma segura, consistente e com conhecimento directo dos factos de que falavam, designadamente quanto às funções que cada uma exercia à data dos factos no ... e foram unânimes em afirmar que os resíduos comuns são depositados na ..., em virtude das funções que desempenhavam, sendo certo que o próprio CC afirmou que todos os consumíveis (material informático) ligados à secção onde desempenhava funções eram para ali remetidos, com conhecimento e sob orientação da responsável pela sua gestão a BB, tendo dado essa informação ao arguido antes deste proceder ao transporte do papel para o exterior das instalações do BB, tendo dado essa informação ao arguido antes deste proceder ao transporte do papel para o exterior das instalações do ....
Aliás esta informação foi igualmente dada ao arguido pelo II quando o arguido o abordou na ..., remetendo-o directamente para a BB, conforme o próprio arguido confirma nas suas declarações e decorre ainda do depoimento da testemunha GG que foi abordado pelo arguido, na ..., que lhe perguntou onde, na Gestão Hoteleira, colocavam o lixo, designadamente papel, tendo respondido que apenas tratavam de resíduo hospitalar, mas que tinha, nesse momento, encaminhado o arguido para o DD para melhor esclarecimento e que estava presente quando este último respondeu ao pedido de emissão de guias E-GAR pelo arguido, que o papel tinha que ir para a ... e que seria a BB, a responsável por este assunto, a quem o arguido se deveria dirigir, conforme ficou provado em 1.21.
Estes depoimentos foram espontâneos, seguros e com conhecimento directo dos factos de que falavam, pelo que o Tribunal lhes deu credibilidade.
Para além disto, tanto a BB, como o FF, afirmaram que é do seu conhecimento directo, em virtude do exercício das funções que desempenhavam no ..., à época, que os resíduos classificados/confidenciais são destruídos pela entidade que lhes dá origem, designadamente triturados, não sendo das suas responsabilidades a sua gestão, como se dá por provado em 1.23.
Aliás, se assim fosse, não seriam eles os responsáveis pelo seu encaminhamento, sendo certo que o arguido nunca lhes referiu que tais papéis correspondiam a documentos confidenciais/classificados, quando se lhes dirigiu a pedir a emissão de guias E-GAR para o seu transporte, nem tal circunstância consta dos autos, mais concretamente do processo disciplinar (cfr. fls. 123 a 211) que foi movido ao arguido pela prática dos factos que se discutem nos presentes autos, dando-se assim como provado o facto descrito em 1.22.
Aqui chegados, cumpre referir que, efectivamente, quer a testemunha CC, quer a testemunha DD, embora a contragosto, acabaram por afirmar, o primeiro que o papel em causa era duplicado e desconhece se tinha que ser ou não preservado e o segundo, que o mesmo não se encontrava registado como confidencial/classificado, que eram documentos muito antigos e que não sabia que documentos eram, ou se deviam ser mantidos.
Em boa verdade, mal se compreende que, sendo tais papéis confidenciais, o arguido nunca o tenha referido a ninguém, em especial à BB e ao FF, a quem foi pedir a emissão de guias E-GAR para o seu transporte para o exterior das instalações do ....
Também não se percebe que, sendo confidencial /classificado, o papel tenha permanecido no corredor, onde o próprio arguido o colocou quando limpou o arquivo e aí tenha permanecido durante as suas férias e só tenha sido removido do local depois da ordem do DD que disse ao arguido para desaparecer com o papel dali para fora porque naquele corredor passavam os utentes e era indigno aquele cenário como igualmente causa estranheza, a circunstância do arguido não ter triturado o papel em causa e ter diligenciado para a sua eliminação no exterior do ..., por uma empresa civil que o arguido, segundo o próprio, encontrou na internet, sem ter inclusive, assistido à destruição de toda a carga. Se era confidencial/classificado deveria em primeiro lugar ter procedido à trituração do mesmo e depois assistido à sua destruição, até porque afirmou sempre que essas eram as ordens do DD e toda a sua actuação se resume ao cumprimento dessas ordens o que foi assumido pelo próprio em audiência, que não cumpriu.
A isto acresce a descrição constante das guias de fls. 28 a 30 que referem, na designação do resíduo “Embalagens de papel e cartão”, entregues pelo arguido no dia ........2021 e a que corresponde o talão de pagamento de fls. 32 que identifica o material entregue como “papel para triagem” e designa como “Papel e cartão”, entregue pelo arguido no dia ........2021 e a que corresponde o talão de pagamento de fls. 31 que identifica o material entregue como “cartão”. Fica demonstrado que o papel em causa não era confidencial/classificado e que tal alegação pelo arguido, mais não é do que a tentativa do mesmo justificar a sua desobediência.
Os factos descritos em 1.9 a 1.15 decorrem da conjugação das declarações do arguido com o depoimento prestado em audiência de julgamento pelo DD, sendo que este último confirmou toda a dinâmica já referida pelo arguido e que assim se deu como provada, assumindo o seu desconhecimento dos procedimentos a adoptar quanto ao encaminhamento do papel quando deu a ordem ao arguido para o fazer desaparecer do local, mas assegurando que nunca lhe disse para assistir à destruição do papel, até porque não sabia como se procederia naquela situação porque tinha assumido aquelas funções há muito pouco tempo.
Começou por demonstrar a sua indignação por não ter tido conhecimento através dos Capitães BB e FF das suas intenções de participação do arguido, por conta do episódio que ora se discute, terminando por assumir que, caso tivesse tido conhecimento da actuação do arguido, teria ele próprio e enquanto seu superior hierárquico, instaurado o respectivo procedimento disciplinar, reconhecendo porém que o arguido não agiu de acordo com as ordens legítimas que lhe tinham sido dadas pela BB, devendo ter obedecido às mesmas, uma vez que nunca lhe disse para que assistisse à destruição do papel.
A estas afirmações se juntam ainda as afirmações do FF que afirmou em audiência que o DD chefiava um serviço que nada tinha a ver com a gestão de resíduos e que extravasaria as suas funções se tivesse dito ao arguido para encaminhar o papel para o exterior, sendo certo que o arguido não podia interpretar a ordem do DD para fazer desaparecer o papel do corredor, como uma ordem para o transportar para o exterior do ....
Os factos constantes de 1.16 a 1.20, decorrem das próprias declarações do arguido em audiência de julgamento e que reiteram também o alegado na própria contestação, não se tendo produzido qualquer prova que as infirmasse, como resulta provado o descrito em 1.18 e 1.19, decorrendo tal informação de tempo de serviço e louvores recebidos do próprio processo disciplinar de fls. 123 a fls. 211.
De referir que, as declarações prestadas em audiência pelo arguido AA são, no essencial, coincidentes com todos os factos que constam da douta acusação pública, apenas negando os factos descritos em 1.5 e 1.6.
Na verdade, o arguido não nega os factos descritos em 1.3 e 1.4, antes procura justificá-los, contextualizando-os de forma diferente com constantes avanços, recuos e incongruências, mas sempre tentando fazer passar a ideia de que o que estava em causa sempre foi o cumprimento da ordem dada pelo DD de assistir à destruição do papel, que este era confidencial/classificado e, por esse motivo, não podia ser entregue na ... e ainda que a BB apenas lhe deu uma sugestão e não uma ordem já que, por estar adstrita a outro comando, (Comandante da Unidade de Apoio – Coronel da Força Aérea), não poderia dar ordens ao arguido, que estava adstrito ao comando da unidade do Brigadeiro General do Exército, ou seja, do Director do ...., não lhe devendo, por isso, obediência.
Ora, começa-se, desde logo, por dizer que, se a BB não podia dar ordens ao arguido como o mesmo defende, não se coloca a questão de conflito de deveres que o arguido invoca.
Todavia constata-se que a BB deu, efectivamente, uma ordem ao arguido, por duas vezes e que o arguido não obedeceu.
Como também se constata que a BB era a única pessoa em todo o ... que, no exercício legítimo das suas funções, podia dar aquela ordem pois nem o superior hierárquico, directo do arguido, o DD o poderia ter feito porque não cabia no âmbito das suas funções fazê-lo e, se as desse, (tendo-se provado que não deu), extravasaria as mesmas por não ter competência para as dar.
Dúvidas também não restam de que a BB era, à data dos factos, superior do arguido, a quem o mesmo devia obediência, pelo que supra se referiu.
Diga-se que, pese embora o enfâse colocado na questão pelo arguido de estar a cumprir a ordem do DD, de assistir à destruição do papel, que se provou também não ter cumprido, a verdade é que quer do depoimento do DD, quer do CC e da EE, todos presentes aquando da ordem dada ao arguido pelo primeiro no seu gabinete, resulta que apenas foi ordenado ao arguido que fizesse desaparecer o papel do corredor, todas acrescentando que tal ordem foi seguida da explicação, também dada pelo FF, de que por ali passavam os utentes e ser indigno aquele cenário.
Nenhuma destas testemunhas corrobora a versão do arguido de que lhe foi dada ordem para destruir o papel ou sequer assistir à sua destruição e, salvo o devido respeito, retirar o papel ou fazê-lo desparecer do corredor onde o mesmo se encontra, não é a mesma coisa que dizer, assista à destruição do papel, como insistentemente refere o arguido.
Refira-se que o CC e a EE foram arrolados como testemunhas pelo arguido porque estavam no gabinete do DD aquando da ordem dada ao arguido por aquele, mas não ouviram o mesmo que o arguido, depondo de forma credível e isenta que apenas ouviram o DD ordenar ao arguido que retirasse os sacos com o papel que se encontravam no corredor, onde o próprio arguido os tinha colocado, antes de ir de férias, porque dava mau aspecto e era indigno, uma vez que por ali passavam os utentes do ....
Ora, não tendo sido dada qualquer ordem para assistir à destruição do papel, não há como compreender a insistência do arguido em transportar o papel para o exterior das instalações do ..., entregando-o a uma empresa que segundo diz encontrou na internet, para destruição do mesmo, acabando ainda por admitir que não assistiu à destruição das últimas duas sacas, não cumprindo integralmente a ordem que entendera ter recebido do DD.
Por outro lado ainda, mal se compreende que o arguido, depois de tantas diligências para saber como proceder em relação ao destino a dar ao papel, não tenha, desde logo sabido que era a BB a responsável pela gestão de resíduos de todo o ....
Na verdade, diz que do contacto telefónico com a empresa ... lhe transmitiram que necessitava de guias de transporte e que encontrando o II lhe perguntou quem poderia passar as guias tendo obtido como resposta que seria a BB, motivo pelo qual lhe telefonou, mas não foi atendido e prosseguiu com o carregamento da viatura que também já tinha solicitado para transportar o papel.
Não só não esperou para falar primeiro com a BB para saber se a mesma lhe passava as guias de transporte (E-GAR), isto admitindo que não fazia ideia de que era esta que geria os resíduos não hospitalares do ..., como também já tinha combinado a entrega do papel com a empresa que encontrou na internet, ... e até já tinha solicitado uma viatura para transporte que ele próprio iria conduzir.
E, acima de tudo, não se entende que, contra as ordens dadas pela BB que expressamente lhe disse que era a responsável pela gestão daquele tipo de resíduos e que os mesmos deviam ser depositados na ... que depois ela própria lhes daria destino, por isso não lhe passava a guia de transporte, mas que lhe abriria o portão às 10 da manhã do dia seguinte para que o arguido deixasse os resíduos no local indicado.
Não só o arguido não acatou esta ordem, como também não acatou a ordem dada pelo FF, responsável no ... pela gestão dos resíduos hospitalares que lhe disse expressamente para fazer o que a BB tinha ordenado, porque era assim que deveria proceder, não lhe podendo passar qualquer guia de transporte porque era a BB a pessoa para o fazer.
Os depoimentos quer da BB, quer do FF são claros, escorreitos, seguros e com conhecimento directo dos factos de que falaram porque foram os próprios que transmitiram ao arguido, em ocasiões diferentes a forma de proceder.
Das suas palavras se retira que a ordem dada pela BB foi expressa e clara, assumindo-se esta como a responsável por aquele assunto e disponibilizando-se para abrir o portão da ..., para depósito dos resíduos que o arguido já tinha carregado na viatura, como igualmente foi clara e cristalina a conversa com o FF que ordenou ao arguido que obedecesse à BB.
O arguido optou por não o fazer e, agindo de forma autónoma e independente, fazendo valer a sua intenção e assumindo uma posição de força, contrariou as ordens recebidas e prosseguiu com o transporte dos resíduos em papel para uma empresa externa.
Não deixa de ser caricato a tentativa do arguido justificar a necessidade de assistir à destruição deste papel com a circunstância do mesmo revestir carácter confidencial ou classificado o que, entra em contradição com a circunstância de o ter retirado do arquivo, colocado em sacos e depositado no corredor do ..., local por onde passavam os utentes e se quisessem tinham acesso ao mesmo, bem como transportá-lo para uma empresa civil e até deixar lá duas sacas a cuja destruição não assistiu.
Decorre do depoimento do DD, prestado de forma que aos olhos do tribunal pareceu constrangida, que não só não deu a ordem para que o arguido assistisse à destruição do papel que se encontrava depositado no corredor do …, como inclusive tal papel era muito antigo, não se encontrava registado como confidencial, acabando por admitir que não sabia que documentos eram e se deviam ser mantidos ou não.
Por outro lado ainda, referiu-se, com alguma dificuldade, a uma manifestação de interesses que assinou no sentido de se conseguir obter através de uma empresa contratada para o efeito, a desmaterialização do papel, situação que ocorria antes de ter iniciado a sua prestação de serviço no ... e que evitaria a necessidade de haver papel.
Mas a desmaterialização do papel é diferente da destruição do papel e aquilo que o arguido procurou fazer ao referir a existência de uma manifestação de necessidades para também justificar a saída do papel não corresponde à verdade dos factos porquanto o que se pretendia com a mesma era a desmaterialização, precisamente para evitar o amontoar de papel a que depois teria de ser dado destino.
Acresce ainda que o próprio arguido admite que bem sabendo da existência desta manifestação de necessidades (inócua para o que aqui interessa porque visava a desmaterialização e não se referia à sua destruição), decidiu transportar o papel sem que sobre a mesma recaísse qualquer decisão, tal como decidiu transportar o papel para uma empresa externa sem se fazer acompanhar das respectivas guias E-GAR, mais resultando que afirmou que, se fosse mandado parar pelas autoridades diria que se encontrava numa missão militar e assim conseguiria contornar o facto de não se fazer acompanhar das guias de transporte E-GAR, o que demonstra uma resolução consciente, premeditada e forte determinação em não acatar as ordens de deixar ali o papel, dadas pela BB, sua superior, o que não deixa de ser evidenciado com a procura on line de uma empresa que recebesse tais resíduos e a solicitação de uma viatura que ele próprio conduziu!.
Releva ainda a afirmação do arguido de que se a BB lhe tivesse dito que assistiria à destruição do papel, que o tinha deixado na central de ..., uma vez que não questionaria a sua idoneidade ou a veracidade das suas palavras, sendo ela uma oficial de patente superior à sua.
Ora, esta afirmação é totalmente descabida, não só porque não lhe foi dada qualquer ordem para destruir ou assistir à destruição do papel pelo DD que nem sabia que procedimentos seriam necessários para encaminhar tal resíduo, como ainda lhe foi expressamente ordenado pela BB que deveria proceder ao depósito daquele papel na ..., mais o informando ser a responsável pela gestão de resíduos de todo o ... e lhe ter dito que abriria o portão no dia seguinte às 10:00 para assim proceder ao seu depósito. Tudo isto foi ignorado pelo arguido, bem sabendo estar a receber uma ordem de uma oficial de patente superior à sua que não aceitou e pretendeu interpretar como sendo uma mera “sugestão.”
Mais uma vez, se percebe que a insistência do arguido em dizer ter recebido ordens para assistir à destruição do papel, mais não é do que uma forma de justificar aquilo que sabe ser injustificável nas ... que é a não obediência à ordem dada por um superior, neste caso, pela BB.
Curiosa é também a circunstância do arguido, todas as vezes que relata a conversa com a BB, dizer que a mesma encolhia os ombros quando se referia ao posterior encaminhamento do papel a ser efectuado pela própria e que não assistiria à sua destruição, querendo fazer parecer, subtilmente, que a mesma encarava a situação com displicência e irresponsabilidade.
Também, resulta das palavras da BB que o arguido nunca lhe disse que tipo de papel estava em causa e também nunca lhe falou na necessidade da sua destruição, esclarecendo ainda que o tratamento de papel confidencial ou classificado é dado pela entidade que o produz, procedendo à sua destruição, triturando-o, o que foi corroborado pelo capitão FF e, nessas circunstâncias não se coloca qualquer questão sobre o seu encaminhamento, uma vez que a confidencialidade dos documentos é assegurada na fonte e jamais são passadas guias para o seu transporte, muito menos para uma empresa externa sem ser triturado e sabe-se que o papel aqui em causa não estava triturado porque tal não foi mencionado nem pelo DD, nem pelo CC, nem pelo GG que afirmaram todos ter visto o papel nos sacos.
Aqui chegados, constata-se que o arguido justifica igualmente a sua acção com o facto da BB não ser sua superior hierárquica sendo seu superior e chefe directo o DD que, já se viu, não ordenou que assistisse à destruição do papel.
O facto de não ser sua superior hierárquica não significa que não seja sua superior e o próprio arguido reconhece isso quando diz que, atenta a sua patente sempre a tratou de forma cordial e educada, apenas não obedecendo àquilo que designa por “sugestão” e não admite ser ordem, porque a mesma não se comprometeu a assistir à destruição do papel, ordem que já se viu, o arguido nunca recebeu do DD, nem poderia receber porque este não sabia os procedimentos a adoptar e, se os conhecesse ordenaria ao arguido para falar com a responsável da gestão de resíduos que era a BB ou, admitindo-se, apenas por hipótese, que dava a ordem que o arguido diz ter recebido, a mesma não seria legítima porque não era dada no âmbito das suas funções (do DD), porque não tinha competência para as emitir e nunca o arguido se veria num conflito de deveres.
Também se viu, do depoimento da BB, credível aos olhos do tribunal, que o arguido nunca lhe perguntou se assistiria à destruição do papel e também se retira da prova produzida em audiência de julgamento que o arguido, depois de falar com a BB sabia que era esta a responsável pela gestão daquele tipo de resíduos, que lhe deu ordens expressas para os colocar na ... que depois, no âmbito das suas funções, os encaminharia, mas optou por não obedecer à sua ordem, considerando-a como “sugestão”, não informando nem o DD (que estava de férias, é verdade) e nem o CC que substituía o primeiro na sua ausência, desconhecendo ambos, toda esta situação que os apanhou de surpresa com a notícia da participação do arguido, efectuada pelos capitães BB e FF e que deu origem a um pro cesso disciplinar.
O Tribunal ficou convicto que o arguido se sentiu ferido nos seus pergaminhos por lhe ter sido dada uma ordem por uma pessoa mais jovem e com menos experiência militar que, em virtude das circunstâncias e do normal acontecer das coisas, tinha já uma patente superior à sua, não lhe reconhecendo autoridade para lhe obedecer, como estava obrigado.
Assim, o elemento subjectivo descrito em 1.5 e 1.6 decorre da aplicação das regras de experiência comum aos demais factos dados como provados. O que vem descrito em 2. sobre as condições pessoais e socioeconómicas do arguido decorre do teor do relatório da DGRSP, constante de fls. 395 e fls. 396 e a inexistência de antecedentes criminais conforme se dá como provado em 3. resulta da análise do seu certificado de registo criminal de fls. 392.
Aqui chegados, constata-se que os factos descritos de 4.1 a 4.14, resultam não provados porque contrários à demais prova produzida em audiência de julgamento e não são corroborados pela prova documental junta aos autos e analisada criticamente, salientando-se novamente que a manifestação de necessidades que o arguido diz ter elaborado e o DD confirma ter assinado referia-se à desmaterialização de papel, o que nada tem a ver com a destruição do mesmo, porquanto pretende apenas evitar o acumular de papel, dando-se como não provado o constante de 4.12 uma vez que o arguido em audiência não se referiu à desmaterialização do papel, mas sim às diligências que efectuou para se informar sobre os procedimentos a seguir para a sua destruição.
O demais alegado e supra não referido, depois de análise crítica, revelou-se repetido, conclusivo ou de direito, logo não atendível para a boa decisão da causa ou descoberta da verdade material.»
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b) Da Nulidade do acórdão recorrido por falta fundamentação quanto aos factos dados como provados nos pontos 1.5 e 1.6:
Em síntese, no artº 32º da motivação, sustenta o recorrente que no acórdão recorrido ocorre omissão de pronúncia quanto aos factos referenciados, isto é, que nesse segmento não está fundamentado.
Tal alegação não consta das conclusões recursórias.
Todavia, uma vez que se trata de questão de conhecimento oficioso, ainda assim, é aqui por nós abordada.
Vejamos.
Dispõe o artº 374º, nº 2, do CPP, que «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Ademais, nos termos do artº 205º, nº 1, da CRP, «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei», conferindo-se assim ao legislador ordinário a conformação desse princípio basilar do Estado de Direito Democrático.
Por outro lado, a exigência de fundamentação é também um direito fundamental decorrente de um processo equitativo (due process of law na terminologia da jurisprudência norte-americana), consagrado entre nós no nº 4 do artº 20º da CRP («Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo») e ainda como garantia essencial no âmbito do processo criminal (nº 1 do artº 32º do mesmo diploma legal).
Tal exigência constitucional e direito fundamental prende-se com a possibilidade efetiva de sindicância das decisões judiciais e com a necessidade de convencer os destinatários e cidadãos em geral da sua correção e justiça e tem respaldo no artº 374º, nº 2, do CPP, no que à sentença se refere.
Acresce que uma sentença que não esteja fundamentada de acordo com os ditames previstos no nº 2 do artº 374º do CPP, é nula por força do disposto no artº 379º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal.
Para além disso, «O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada» (nº 3 do artº 410º do CPP).
Entende então o recorrente que o tribunal a quo não motivou a sua convicção quanto aos pontos 1.5 e 1.6 da matéria de facto dada como provada.
A mesma, recordemos, é a seguinte:
«1.5 Ao agir conforme descrito, o arguido actuou de forma livre e consciente, com o propósito concretizado de desobedecer à ordem que lhe havia sido dada por BB, bem sabendo que a mesma era a única responsável pelo encaminhamento e tratamento dos resíduos não hospitalares, que a ordem em causa era legítima e que a mesma lhe havia sido regularmente comunicada pela Capitão, patente superior à sua.
1.6 O arguido sabia ainda que com a sua conduta colocava em causa a autoridade, a hierarquia, a coesão e a disciplina militar inerentes às Forças Armadas e que a sua actuação era proibida e punida por lei.»
Analisado o texto da motivação quanto à matéria de facto exarado no acórdão recorrido, entendemos que o recorrente não tem razão.
A exigência de fundamentação da sentença impõe – a respeito da motivação da matéria de facto, a única que está em causa com referência à questão enunciada -, em síntese, que, com maior ou menor profusão, o iter percorrido pelo tribunal na formação da sua (livre) convicção é compreensível pelos destinatários e sindicável pelo tribunal ad quem, extraindo-se da motivação quais os meios de prova considerados, bem como a forma como foram sopesados e concatenados.
Tal divisa-se no acórdão recorrido.
Na verdade, a matéria em causa reporta-se ao elemento subjetivo do tipo-legal de crime em causa, pelo que, tendo o tribunal a quo dado como provados os pontos 1.1 a 1.4, a matéria referenciada dela decorre naturalmente por apelo às regras da experiência comum, visto que a intenção que preside a um ato deduz-se sempre deste em face do normal acontecer.
É por isso que, a dado passo, na motivação da livre convicção do tribunal a quo consta o seguinte:
«O Tribunal ficou convicto que o arguido se sentiu ferido nos seus pergaminhos por lhe ter sido dada uma ordem por uma pessoa mais jovem e com menos experiência militar que, em virtude das circunstâncias e do normal acontecer das coisas, tinha já uma patente superior à sua, não lhe reconhecendo autoridade para lhe obedecer, como estava obrigado.
Assim, o elemento subjectivo descrito em 1.5 e 1.6 decorre da aplicação das regras de experiência comum aos demais factos dados como provados. (..)».
Para fundamentar uma tal decisão não se tornava necessária qualquer outra dissertação, pois na sua singeleza tal traduz, no fundo, um corolário de tudo o que antes havia sido exposto, desta feita reportado ao processo interno de decisão do arguido na prática dos atos relatados nos pontos precedentes.
Note-se que uma coisa é o recorrente discordar da fundamentação aduzida e outra bem diversa é entender-se que o acórdão não está fundamentado.
Nessa conformidade, s.m.o., consideramos que a fundamentação expressa pelo tribunal a quo no acórdão recorrido cumpre os requisitos ínsitos no artº 374º, nº 2, do CPP, pelo que inexiste a nulidade invocada pelo arguido/recorrente AA, com referência ao artº 379º, nº 1, al. a), do mesmo diploma legal.
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c) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova:
De uma assentada, nos artgs 8º e ss. da motivação e sem que tal esteja transposto para as conclusões recursórias, entende o recorrente que o acórdão recorrido padece de todos os vícios que constam nas diversas alíneas do nº 2 do artº 410º, do CPP.
Não obstante tal alegação não estar expressamente vertida nas conclusões recursórias, as premissas de que parte ali estão presentes.
De todo o modo, tratando-se de vícios de conhecimento oficioso, aqui iremos abordar tal questão.
Vejamos.
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, «Fundamentos do recurso», o seguinte:
«1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»
Salientamos desde logo que qualquer um dos vícios a que se reporta o nº 2 da norma citada tem de resultar do texto da decisão recorrida, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer meios de prova existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.).
Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
Ademais, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. atualizada, pág. 1053, Universidade Católica, 2008, «O propósito do legislador era o de conter a sindicância do tribunal de recurso aos termos estritos da sentença recorrida, embora se admitisse que o texto da decisão recorrida pudesse ser interpretado à luz das regras de experiência comum. Por outro lado, este propósito era o mais consentâneo com a natureza do recurso como um remédio jurídico da sentença e não um reexame da causa. Por outro lado, este propósito assegurava o máximo respeito pelo princípio da imediação, evitando que o tribunal de recurso pudesse fundamentar a sindicância da decisão sobre a matéria de facto em elementos de prova.»
Por seu turno, na lição do Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.), regras da experiência comum, «são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.».
Tendo presente tais premissas, consideremos agora o seguinte:
i) A respeito da al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP, cabe referir que o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. De todo o modo, este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à falta de prova para a decisão da matéria de facto provada (a propósito deste vício veja-se, entre outros, os Acs. do TRP de 15.11.2018 e de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
ii) No que concerne à al. b) do nº 2 do artº 410º do CPP, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão existe sempre que do texto da decisão recorrida resulte que um mesmo facto seja julgado provado e não provado, quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si e que mutuamente se excluem, ou quando do conteúdo da decisão recorrida seja de concluir que a fundamentação nela exposta determina necessariamente conclusão oposta àquela que ali foi tomada (neste sentido, pode ver-se, entre muitos outros, o ac. da RL de 06.07.2023, proc. nº 245/21.0PBOER.L2-9, com texto integral em www.dgsi.pt).
iii) Por fim, com referência à al. c) do nº 2 do artº 410º do CPP, verifica-se o “erro notório na apreciação da prova” quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, o que sucede quando, por exemplo, se dá como provado um facto que notoriamente está errado, que não poderia ter acontecido ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira uma conclusão ilógica, arbitrária ou contraditória de um facto dado como provado (positivo ou negativo) contido no texto da sentença recorrida. Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, não escapando ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., pág. 341).
Ora, s.m.o., nada disto ocorre no acórdão sub judice.
No fundo, o recorrente, ao invocar tais vícios, reporta-se apenas a argumentos jurídicos que têm relevo no que respeita à qualificação jurídica dos factos dados como provados (em síntese, entende que a ordem dada era ilegítima e que o tribunal a quo fez confusão entre os conceitos de superior hierárquico e de militar de patente superior), no sentido de se saber estes permitem a condenação de AA pelo crime de insubordinação por desobediência, mas tal não se reconduz a qualquer vício no apuramento da matéria de facto por erro na construção do silogismo judiciário.
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d) Da qualificação jurídica dos fatos dados como provados:
Antes de mais, cabe referir que o arguido/recorrente não impugnou validamente a matéria de facto dada como provada e não provada (impugnação ampla), pois, se o pretendia fazer, não cumpriu nenhum dos ónus que sobre si recaiam nos termos do artº 412º, nºs 3 e 4, do CPP, segundo o qual:
«(…)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)»
Neste âmbito estamos já no domínio de um erro do julgamento (na apreciação da prova) cuja averiguação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
No domínio da impugnação ampla da matéria de facto visa-se, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Sem olvidar que com a reforma do sistema de recursos operada pela Lei nº 59/98, de 25.08, o legislador pretendeu garantir um recurso efetivo em matéria de facto, densificando assim a garantia constitucional consagrada no artº 32º, nº 1, da CRP («O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»), assegurando pelo menos um efetivo grau de recurso quanto à impugnação da matéria de facto, esta, contudo, tendencialmente não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo, por via de regra, um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como o tribunal a quo apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, o que significa que por regra não lhe basta expressar discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer um segundo julgamento, com base na gravação da prova.
Na esteira deste entendimento, segundo o Professor Germano Marques da Silva (in Forum Iustitiae, Ano I, maio de 1999) «o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância».
Também o Professor José Manuel Damião Cunha segue a mesma linha de pensamento (in O CASO JULGADO PARCIAL, QUESTÃO DA CULPABILIDADE E QUESTÃO DA SANÇÃO NUM PROCESSO DE ESTRUTURA ACUSATÓRIA, pág. 37, Universidade Católica Portuguesa, Porto 2002), bem como, entre muitos outros, os Acs do STJ de 15.12.2005 e 09.03.2006, procs nºs 05P2951 e 06P461, respetivamente, os quais podem ser consultados em www.dgsi.pt.
É justamente por isso que o recorrente tem o ónus de expressamente indicar, de acordo com o disposto no artº 412º, nº 3, do CPP:
i) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados;
ii) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e
iii) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o artº 430º, nº 1, do CPP).
No que tange às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente o ónus de, havendo gravação das provas, as mesmas deverem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do artº 412º, do CPP.
Em sede de sindicância da matéria de facto, por via da sua impugnação ampla, o tribunal ad quem, para além de estar limitado ao objeto recursório e segundo as especificações ali efetuadas, tem a limitação que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o seu contacto com estas ao que consta das gravações e à demais prova existente no processo, como prova documental e pericial, sendo tal limitação particularmente relevante se assumir especial relevo a prova por declarações (do arguido, do assistente e do demandante) e a prova testemunhal.
Trata-se assim, tendencialmente, de uma intervenção cirúrgica, no sentido de que está restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso, sendo certo que só é possível alterar o decidido pelo tribunal a quo se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, conforme decorre da al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do CPP, decisão essa que muitas vezes imporá a audição ou visualização de outras passagens não indicadas pelo recorrente, quando se afigurem relevantes para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa (nº 6 do artº 412º do CPP), já que o tribunal ad quem não está adstrito – nem poderia estar - à visão parcelar do recorrente acerca da prova produzida, antes devendo concatenar o conteúdo global da prova indicada com outra que eventualmente tenha sido produzida e que seja relevante para apreciar o objeto do recurso tal como definido nas conclusões recursórias.
Já vimos que a intervenção deste tribunal, no que à sindicância da matéria de facto impugnada concerne, constitui apenas um “remédio jurídico” que só atuará quando se imponha decisão diversa da adotada, sendo certo que «(…) erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas» (citação do ac. TRL de 04.02.2016, desta secção, proc. nº 23/14.2PCOER.L1, o qual pode ser consultado em www.dgsi.pt).
Explicados nos seus traços gerais o regime da impugnação ampliada da matéria de facto e os poderes de cognição deste tribunal a esse respeito, com as limitações assinaladas, no caso sub judice, conforme já referido, o arguido, na sua peça recursória, não cumpre nenhum dos ónus que sobre si pendiam, conforme acima foram explicitados, pelo que a matéria de facto não pode ser por nós modificada nos termos do artº 431º, al. b), do CPP.
Destarte, iremos partir da matéria de facto dada como provada para abordar a questão de se saber se a qualificação jurídica efetuada na decisão sob recurso foi ou não a correta.
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Ora, em ordem a saber se a qualificação jurídica dos factos dados como provados foi a correta, tal passa por responder às seguintes questões:
- a ordem proferida pela BB do Exército– que não é diretamente superior hierárquico do recorrente - era ilegítima, por contrariar a ordem dada pelo seu direto superior hierárquico?
- AA, não obstante, devia obediência a tal ordem?
Mas antes de mais, vejamos o respetivo tipo legal.
Dispõe o artº 87 do Código de Justiça Militar (aprovado pela Lei nº 100/2003, de 15.11), doravante designado por CJM, o seguinte:
«1 - O militar que, sem motivo justificado, recusar ou deixar de cumprir qualquer ordem que, no uso de atribuições legítimas, lhe tenha sido dada por algum superior é punido:
a) Com pena de prisão de 15 a 25 anos, em tempo de guerra, se a desobediência consistir na recusa de entrar em combate;
b) Com pena de prisão de 8 a 16 anos, em tempo de guerra e na área de operações, fora do caso referido na alínea anterior;
c) Com pena de prisão de 5 a 12 anos, em tempo de guerra, em ocasião a bordo de veículo, navio ou aeronave, que afete a segurança dos mesmos;
d) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, em tempo de guerra, fora dos casos referidos na alínea anterior;
e) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, em tempo de paz, se for na ocasião referida na alínea c);
f) Na pena de 1 a 4 anos de prisão, em tempo de paz e em presença de militares reunidos;
g) Com pena de prisão de 1 mês a 1 ano, em todos os demais casos.
2 - Quando a recusa ou incumprimento forem cometidos por dois ou mais militares a quem a ordem tenha sido dada, as penas são agravadas de um quarto do seu limite máximo.
3 - Havendo recusa, seguida de cumprimento voluntário da ordem, as penas são reduzidas a metade na sua duração máxima e mínima.
Por outro lado, nos termos do nº 1 do artº 2º do CJM, «As disposições do Código Penal são aplicáveis aos crimes de natureza estritamente militar em tudo o que não for contrariado pela presente lei.»
Citando o sumário do ac. do TRL de 27.01.2016, proc. nº 1/14.1FCOLH.L1-3, com texto integral em www.dgsi.pt (citação parcial):
«I—O Direito Penal militar parte do conceito de Ordem jurídico militar, afirmando que todas as normas militares se organizam à volta de um núcleo de princípios fundamentais que lhe dão uma unidade que deriva da mesma razão de ser da instituição militar.
II—Assim reconhece-se que as ... estão dotadas de um verdadeiro e próprio sistema de normas jurídicas: o ordenamento militar. Há uma categoria de interesses e bens jurídicos que lhe é privativa por natureza, a saber: hierarquia e disciplina militar — pilares sobre os quais se organizam as Forças Armada
III—Este ordenamento interno derivado da instituição militar, tem, em suma, duas características fundamentais: é complementar da legislação comum e insere-se no quadro general da legislação do Estado respeitando o princípio da unidade do ordenamento jurídico.
IV—À justiça militar, como sistema especial substantivo e adjetivo, é reconhecida pelos especiais «critérios indeterminados» que juridicamente tutela: maxime valor e disciplina.
V—A missão de qualquer Governo exige a existência de uma força — militar —, cuja organização se ancora na lei da honra, na lei da obediência e na lei de disciplina, que se conserva através da justiça militar.
VI—Assim, o Direito Penal militar apresenta-se como um ramo do Direito Penal que assegura as condições essenciais para que as ... existam, sejam subordinadas e eficazes, atuando estritamente no âmbito dos fins do Estado de direito democrático (cf. art. 2.º da Constituição da República Portuguesa).
VII—A lei penal militar é especial porque é complementar da lei penal comum, na medida em que a maioria das suas normas regulam uma determinada categoria de pessoas (os militares) e porque muitas das suas normas contêm elementos especiais em relação às normas comuns. E tal especialidade deriva do facto da lei penal militar ter como finalidade a tutela de interesses jurídicos especiais.»
O crime de insubordinação por desobediência está inserido no CJM no capítulo VI (crimes contra a autoridade), secção 1 (insubordinação).
O bem jurídico protegido é assim o da autonomia intencional do superior hierárquico, valor particularmente relevante numa estrutura hierarquizada e que depende essencialmente, além de outros, do cumprimento dos deveres de autoridade, obediência e lealdade para ser eficaz.
A ordem tem de ser formal e materialmente legítima, emanada por quem tem competência para tal e regularmente comunicada.
O crime consuma-se com a prática do ato cuja omissão foi ordenada ou com a omissão do ato cuja prática foi ordenada, consoante os casos.
Trata-se de um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera atividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação).
Ao nível do elemento subjetivo, a prática do crime em causa é compatível com qualquer uma das formas que o dolo pode revestir – direto, necessário ou eventual (artº 14º, nºs 1 a 3, do Código Penal).
Ora, além do mais, o militar tem o dever geral de, em todas as circunstâncias, pautar o seu procedimento pelos princípios da ética e da honra, conformando os seus atos pela obrigação de guardar e fazer guardar a Constituição e a lei e ainda cumprir e fazer cumprir a disciplina militar [nºs 2 e 3, al. b), artº 11º do Estatuto dos Militares das ..., aprovado pelo DL nº 90/2015, de 29.05, doravante designado por EMFA].
Entre um dos deveres especiais do militar está o da obediência [(al. a) do nº 1, do artº 12º do EMFA; e artº 2º, nº 2, al. a), do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica nº 2/2009, de 22.07, doravante designado por RDM].
Por seu turno, entre os valores militares fundamentais contam-se os da hierarquia e da coesão (artº 1º do RDM), sendo a disciplina militar elemento essencial no funcionamento regular das ... (artº 3º nº 1, do RDM).
Tal importância dada à disciplina militar compreende-se na medida em que as ... têm a incumbência da defesa da República, nos termos do nº 1 do artº 275º da Constituição da República Portuguesa, doravante designada de CRP.
Assim, nos termos do nº 4 do RDM, «A disciplina militar consiste no cumprimento pronto e exato dos deveres militares decorrentes da Constituição, das leis e dos regulamentos militares, bem como das ordens e instruções dimanadas dos superiores hierárquicos em matérias de serviço.»
Por seu turno, dispõe o artº 12º do RDM, na parte que releva para o caso dos autos, o seguinte:
«1 – O dever de obediência consiste em cumprir, completa e prontamente, as ordens e instruções dimanadas de superior hierárquico, dadas em matéria de serviço, desde que o seu cumprimento não implique a prática de um crime.
2- Em cumprimento do dever de obediência incumbe ao militar, designadamente:
a) Cumprir completa e prontamente as ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos em matéria de serviço;
(…)».
Para além disso o militar tem dever de lealdade, dever esse que, no que para aqui releva, traduz-se no guardar respeito pelos seus superiores hierárquicos [al. e) do artº 11º e artº 16º, ambos do RDM].
Decorre do artigo 10.º, da Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, que «Aos militares é atribuído um posto hierárquico, indicativo da sua categoria, e uma antiguidade nesse posto. O exercício dos poderes de autoridade, o dever de subordinação e a responsabilidade de cada militar decorrem das posições que ocupam na escala hierárquica e dos cargos que desempenham. (...) Quando, por razões de serviço, os militares desempenhem funções de posto superior ao seu, consideram-se investidos dos poderes de autoridade correspondentes a esse posto».
Ademais, «A hierarquia militar tem por finalidade estabelecer, em todas as circunstâncias, relações de autoridade e subordinação entre os militares e é determinada pelos postos, também designados por patentes, antiguidades e precedências previstas na lei» (nº 1 do artº 26º do EMFA), sendo certo que a «Hierarquia funcional decorre dos cargos e funções militares e respeita a hierarquia dos postos e antiguidade dos militares, ressalvados os casos em que a lei determine de forma diferente« (nº 2 do mesmo artigo).
Por seu turno, «A função de chefia técnica consiste no exercício de autoridade conferida a um militar, assente na experiência profissional e na habilitação com especiais qualificações técnicas inerentes ao quadro especial a que pertence, que lhe permite assumir a responsabilidade pelo funcionamento, coordenação e controlo de serviços e estruturas de natureza técnica» (artº 3º, nº 1, do EMFA).
Como no âmbito do dever de obediência as normas que regem o direito militar são as mesmas aplicáveis ao direito administrativo e o ordenamento militar não estabelece normas especiais, o dever de obediência militar equipara-se ao dever de ordem geral.
Isto significa que o militar pode recusar-se a cumprir uma ordem emanada pelo seu superior hierárquico se dela resultar a prática de um ato ilícito típico (cfr. o nº 3 do artº 271º da CRP, o nº 2 do artº 4º da Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar e do nº 1 do artº 12º do RDM), o que se compreende em face dos militares prestarem juramento à Constituição e à Lei (cfr. o artº 7º do EMFA).
Dispõe o artº 271º, da CRP, na parte que para aqui releva, o seguinte:
«1. Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a ação ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.
2. É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que atue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas do legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito.
3. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime.
(…)».
A Constituição exige que a ordem ou instrução seja emanada do legítimo superior hierárquico e que versem sobre matéria de serviço.
A norma constitucional vinda de referir tem uma abrangência mais ampla no sentido de que o conceito de “matéria de serviço” pode não coincidir com o de “competência do superior hierárquico”, mas não pode ser de tal modo lato que ultrapasse o conjunto das atribuições da pessoa coletiva na qual se integra a relação hierárquica.
Nada disso está em causa nos autos.
A ordem, ou melhor, as ordens dadas (pelo Capitão de Fragata NA DD e posteriormente pela Capitã do Exército BB) versaram sobre “matéria de serviço” da entidade militar respetiva (atinente à eliminação de resíduos).
Os grandes conjuntos de unidades militares, caso do Estado-Maior-General das Forças Armadas, das ... ou, neste caso, do ..., têm normalmente uma Unidade de Apoio, que se destina a centralizar diversos serviços comuns, de modo a poder fornecer apoio às várias unidades sediadas no complexo onde estão incluídas. Isso inclui normalmente a segurança, os transportes, o secretariado-geral e a manutenção de infraestruturas.
É por isso que, naquele âmbito, os protagonistas pertencem a ramos distintos das ... (o arguido pertence ao ramo da Marinha e a BB ao ramo do Exército).
Embora no caso em apreço não seja evidente se a destruição ou entrega de papel está incluída nesses serviços comuns, a viatura de transporte e a emissão de guias são da responsabilidade dessa unidade, motivo que levou a que o arguido tivesse necessidade de pedir um transporte a outra entidade e tivesse levado o material sem guia de transporte.
O cumprimento da ordem dada pela BB não levava o arguido ao cometimento de um crime (nem sequer à violação da proteção de dados pessoais de utentes que eventualmente se encontrassem em tais documentos), pelo que, nesse aspeto, não era uma ordem ilegítima a que se pudesse recusar a cumprir [se levasse à prática de crime, a ordem seria um ato nulo nos termos do artº 161º, nº 2, al. c), do Código de Procedimento Administrativo (Lei nº 4/2015, de 07.01)].
Por outro lado, em face da matéria dada como como provada, a ordem dada pela BB ao arguido não contrariava a ordem que também lhe havia sido dada pelo seu direto superior hierárquico, o DD (que era de cariz mais genérico, sendo grosso modo lacunar quanto à forma de execução).
Sendo a unidade de apoio daquela estrutura chefiada pela BB e tendo ela patente superior à do arguido, naquele contexto existia entre ambos uma relação hierárquica funcional.
Assim, em síntese, na medida em que existia essa relação hierárquica funcional e dado que a ordem dada pela BB não contrariava a ordem antes dada pelo DD – direto superior hierárquico do arguido -, AA devia obediência à ordem que lhe foi transmitida por aquela.
Respondendo agora às duas questões acima enunciadas, concluímos que a ordem em causa não era ilegítima (foi devidamente transmitida por quem tinha competência para o efeito e não contrariava ordem anterior), à qual o arguido devia assim obediência (dada a relação de hierarquia funcional, visto que quem transmitiu a ordem era militar de patente superior e, para além disso, chefiava a unidade de apoio responsável pela eliminação dos resíduos).
Note-se que o arguido não se viu confrontado com uma situação de conflito de deveres, pois as duas ordens que recebeu, no fundo, complementavam-se.
Nem nos autos se coloca qualquer questão de conflito de deveres entre o dever de obediência e o dever de lealdade, não estando em causa a prática de crime em caso de cumprimento da ordem em causa, nem aliás a ordem provinha de ato administrativo nulo.
Em suma, tendo desobedecido à ordem dada pela BB, sem motivo justificado e ainda que dela discordasse, tratando-se de ordem formal e materialmente legítima, salvo o devido respeito por diverso entendimento, entendemos que o arguido cometeu o crime pelo qual foi condenado.
Nessa conformidade, improcede o recurso interposto.
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III – Das custas
Dispõe o artº 513º do CPP o seguinte:
«1. Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2. O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3. A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4. (…)».
Assim, uma vez que o arguido/recorrente decaiu totalmente no presente recurso e tendo em conta que as questões suscitadas não são complexas, fixa-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidades de conta (cfr. ainda a Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
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DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, pelo que, consequentemente, mantêm o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
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Custas pelo arguido/recorrente, com 3 (três) UC de taxa de justiça (cfr. o artº 513º, nºs 1 e 3, do CPP, e o artº 8º, nº 9, do RCP, em conjugação com a tabela III anexa).
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Registe e notifique (artº 425º, nºs 3 e 6, do CPP).
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Lisboa, 22 de fevereiro de 2024.
José Castro
Amélia Carolina Marques Dia s Teixeira
David José Gaspar

1. Não necessariamente pela ordem pelas quais são colocadas pelo recorrente, mas segundo a sua precedência lógica.