Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4136/15.5T8FNC-F.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Os documentos particulares que, à data da sua emissão, se subsumiam ao conceito de título executivo por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC-1961, continuaram com a mesma qualidade em ação executiva instaurada na vigência do CPC-2013 (na medida em que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 408/2015, declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do artigo 703.º do CPC-2013 quando aplicada a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC-1961).
II. O documento particular com força de título executivo à luz do disposto no artigo 46.º, n.º 1, al. c), do CPC-1961, tinha de se mostrar assinado pelo devedor, e de, per se, importar a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com o conteúdo do mesmo documento.
III. Não cumprindo, por si, os referidos requisitos cumulativos, e prevendo a constituição de obrigações futuras cuja determinação do montante carecia de outro(s) documento(s), o documento apenas seria exequível se se tratasse de documento autêntico ou autenticado (artigo 50.º do CPC-1961, cuja disposição se mantém no artigo 707.º do CPC-2013), ou se disposição especial lhe atribuísse força executiva (artigo 46.º, n.º 1, al. d) do CPC-1961).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Ares Lusitani, STC, S.A., exequente nos autos intentados contra «B» e outros, notificada do despacho proferido em 28/09/2023, que julgou verificada a exceção dilatória de falta de título executivo e indeferiu liminarmente o requerimento executivo de cumulação apresentado em 01/09/2023, e com essa decisão não se conformando, interpôs o presente recurso.
 
O processo principal é uma ação executiva para pagamento de quantia certa, com forma sumária, intentada por Novo Banco, S.A. (na qualidade de sucessor do Banco Espírito Santo, S.A., que figura como credor nos títulos executivos que servem de base à execução) contra «B» e outros.
Foram dados à execução os seguintes contratos:
i. «Financiamento n.º …86» até ao montante máximo global de €275.000,00 (para fundo de maneio à atividade empresarial) celebrado em 21/12/2012 com «B» e «C», com entrega imediata e única da indicada quantia aos mutuários;
ii. «Financiamento em Regime Multiusos BES Express Bill 2.0 Exclusive n.º …87», nas modalidades de (a) abertura de crédito em conta-corrente e (b) abertura de crédito para emissão de garantias bancárias BES Express Bill, até ao montante máximo global de €50.000,00 (para apoio de tesouraria), também celebrado em 21/12/2012 com «B» e «C», com utilização em regime de conta-corrente;
iii. Em 21/02/2013, o contrato referido em ii. foi alterado para a quantia máxima de €75.000,00, com a designação «Financiamento em Regime Multiusos BES Express Bill 2.0 Exclusive n.º …31», com a mesma utilização em regime de conta-corrente.
No requerimento executivo inicial foi, ainda alegado, que:
- As últimas prestações pagas pelos executados foram as vencidas em 21/12/2013 e 16/09/2014, respetivamente para o primeiro e segundo contratos (mais nenhuma tendo sido paga, apesar das interpelações, pelo que a dívida estaria toda vencida nos termos do artigo 781.º do CC;
- Para garantia dos capitais referidos, respetivos juros e despesas, constituíram os executados mutuários a favor do mutuante hipotecas voluntária sobre sete frações autónomas, imóveis nomeados à penhora, que garantem o bom pagamento dos empréstimos assumidos pelos mutuários até ao montante máximo de €445.250,00, encontrando-se devidamente registadas pelas Ap. 2283 de 2012/12/27;
- Foi estabelecido no Contrato de Financiamento …86 que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à EURIBOR a 3 meses, arredondada à milésima, acrescida de um spread de 6.50000 pontos percentuais e de sobretaxa de 3% no caso de mora, alteráveis em função da variação que viessem a sofrer no decurso do contrato;
- A dívida em capital é, à data do requerimento executivo inicial, de €264.231,36, a que acrescem juros vencidos desde a data de entrada em mora, 21/12/2013 e até 15/05/2015, à taxa 9,792% ao ano (6,792%, taxa de juros remuneratórios praticada de acordo com o critério fixado no título executivo + 3%, sobretaxa de mora), o que perfaz €291.362,87.
- Foi estabelecido no Contrato de Financiamento n.º …87 que o capital mutuado venceria juros à taxa correspondente à EURIBOR a 1 mês, arredondada à milésima, acrescida de um spread de 7.50000 pontos percentuais e de sobretaxa de 3% no caso de mora, alteráveis em função da variação que viessem a sofrer no decurso do contrato;
- A dívida em capital é, à data do requerimento executivo inicial, de €74.953,02, a que acrescem juros vencidos desde a data de entrada em mora, 16/09/2014 e até 15/05/2015, à taxa de 10,506% ao ano (7,506%, taxa de juros remuneratórios praticada de acordo com o critério fixado no título executivo + 3% sobretaxa de mora), o que perfaz € 78.869,95.

Primeiros embargos (Apenso A)
Os executados embargaram e, em 03/04/2019, no apenso A, os embargos de executado foram julgados parcialmente procedentes, reduzindo-se a quantia exequenda de modo a deixar de abranger os montantes respeitantes ao contrato de €75.000,00.
Ou seja, os embargos foram improcedentes no que respeita ao contrato de financiamento n.º …86, cujo montante máximo global era de € 275.000,00, tendo a execução prosseguido quanto ao mesmo.
Excluído ficou o Financiamento em Regime Multiusos BES Express Bill 2.0 Exclusive n.º …31 (que tinha alterado o Financiamento em Regime Multiusos BES Express Bill 2.0 Exclusive n.º …87), até ao montante máximo global de €75.000,00 (para apoio de tesouraria), com utilização em regime de conta-corrente.
O fundamento da exclusão do referido contrato foi a não junção, em tempo oportuno, dos extratos bancários que documentavam a disponibilização das verbas pelo mutuante aos mutuários:
«Ora o exequente apresentou como título executivo apenas e tão-só o contrato e escritura de hipoteca.
Isto é, no que concerne ao capital exequendo de €75.000,00, os documentos juntos pelo exequente apenas atestam que as obrigações assumidas no mesmo se encontram garantidas por hipotecas, sem que daí resulte que a quantia exequenda foi, efetivamente, disponibilizada e usada pelos mutuários.
Só agora, nos presentes embargos de executado, enxerto declarativo do processo executivo, com a dedução da contestação, o exequente juntou extratos bancários dos quais resulta os montantes que disponibilizou aos mutuários.
Não poderá, assim, considerar-se colmatada a falta de título executivo com a junção desses extratos bancários em requerimento apresentado em virtude de ter sido deduzida oposição à execução mediante embargos de executado.
Até, pelo menos, à citação dos executados o exequente tem de juntar aos autos de execução o título executivo. Este é um dos pressupostos da mesma, sem o qual a execução não poderá prosseguir.
Nos termos do disposto no artigo 812.º-E, n.ºs 3 e 4, do referido Código de Processo Civil na redação anterior a 2013, se não for imediatamente oferecida e efetuada a prova complementar do título, o juiz deve proferir despacho de aperfeiçoamento e, só no caso do exequente não aperfeiçoar o requerimento executivo, é que se procede a indeferimento liminar.
Sucede que se entende que tal aperfeiçoamento só pode acontecer na fase introdutória pois que o título executivo é condição/pressuposto necessário da ação executiva».
Da sentença de 03/04/2019 houve recurso para o TRL, que a confirmou, por acórdão de 24/05/2022, da 7.ª Secção.

Execução cumulada e segundos embargos (Apenso E)
Na sequência, e porque a exceção de falta de título executivo apenas implica a absolvição da instância, em 04/12/2020, o exequente intentou nova execução, a cumular com a execução inicial (cf. artigo 711.º do CPC), tendo oferecido os extratos bancários em complemento dos documentos iniciais que titulavam o contrato de financiamento em conta-corrente.

Novamente deduzidos embargos, em 10/05/2023, foi proferido saneador-sentença (apenso E), que julgou verificar-se a exceção dilatória de falta de título, com a consequente extinção da execução cumulada deduzida em 04/12/2020. O principal argumento foi o de que a exequibilidade dos documentos particulares mencionados na alínea c) do artigo 46.º do velho Código de Processo Civil têm de ser fonte de um direito de crédito de modo a neles se poder reconhecer a existência de uma obrigação anteriormente constituída, e não prestações futuras. Para estas seria necessária prova complementar que, nos termos consignados no artigo 50.º do mesmo Código de Processo Civil, apenas seria possível para documentos exarados ou autenticados por notário.
Não obstante, continuou nos seguintes termos:
«Mas ainda que assim não se entendesse, sempre seria de considerar que os extratos juntos não comprovam a entrega efetiva de quantias pecuniárias, desde logo porque as partes acordaram que a utilização do crédito seria efetuada “mediante pedidos do Cliente até ao Montante Máximo Global sob duas modalidades: a) Utilização mediante pedidos escritos do cliente e prévia autorização do BES; e b) Pedidos de utilização eletrónicos efetuados ao abrigo do Serviço BES Express Bill sujeitos à condição suspensiva de a conta D/O não ter saldo suficiente na Data de Vencimento das Ordens de Pagamento”.
 Tendo as partes acordado que a entrega e utilização do crédito seria titulada por documentos (pedidos escritos/pedidos eletrónicos) subscritos pelos devedores, sempre seria de concluir – caso não se adotasse a tese de que a prova complementar está vedada no caso de documentos particulares – que seriam estes os documentos de suporte a juntar.
Isto mesmo decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 25/03/2021, acessível em www.dgsi.pt. Embora não subscreva a tese que aqui propugnamos em relação à interpretação do artigo 50.º do VCPC (707.º do CPC), este aresto defende o seguinte: «O contrato de abertura de crédito em conta corrente dos autos prevê expressamente a forma do pedido de utilização do crédito: mediante ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à instituição bancária, as quais têm de ser subscritas pela parte devedora ou por quem a represente; daqui resulta que seriam estes os documentos de suporte a juntar para que o documento particular em causa formasse um título executivo perfeito, o que no caso não se verificou.»
Ora, não foram juntos os pedidos escritos do cliente nem as respetivas autorizações, pelo que, neste caso concreto, também nunca seria possível considerar que os extratos bancários – nos quais os embargantes não tiveram nenhuma intervenção e que, de resto, nem permitem associar as entradas/saídas de dinheiro à operação concretamente aqui em causa – constituíssem meio idóneo para provar a entrega do dinheiro.
A falta de título executivo consubstancia exceção dilatória de conhecimento oficioso e implica a absolvição da instância, ficando consequentemente prejudicado o conhecimento das restantes questões invocadas pelas partes. A falta de título executivo fere a execução na sua génese, pelo que as demais questões são inelutavelmente secundárias.»

O despacho de 10/05/2023, transitou em julgado sem recurso.

Segunda execução cumulada, indeferimento liminar e presente recurso (Apenso F)
Por requerimento de 01/09/2023, Ares Lusitani, STC, S.A., cessionária dos créditos do primitivo exequente em causa na execução, e habilitada nos autos, apresentou requerimento alegando os factos já constantes do requerimento executivo inicial e esclarecendo, ainda, que:
- Os pedidos NB EXPRESS BILL são inseridos diretamente no Novo Banco online, não havendo para tal, qualquer autorização ou intervenção do Banco Cedente e da sua organização/Estrutura Comercial (artigo 12.º);
- Os pedidos e confirmações são feitos eletronicamente (artigo 13.º);
- Assim, os executados inseriam diretamente na plataforma os pedidos, os quais eram confirmados pelo banco Cedente e pagos em conformidade, nos montantes e datas em causa (artigo 14.º).
Juntou documento com o n.º 12, com o extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco.

Por despacho de 11/09/2023, a exequente foi notificada para esclarecer o alegado nos artigos 12.º a 14.º do RE, nomeadamente se tem ou não cópia dos pedidos eletrónicos que refere terem sido feitos pelos executados.

A exequente respondeu que o documento comprovativo das ordens de pagamento autorizadas foi junto sob o n.º 12; que tal documento certifica o ordenante, a data do pedido e a data da liquidação, bem como os montantes em causa. Termina pugnando pelo prosseguimento dos autos com a notificação dos executados.

Em 28/09/2023, foi liminarmente indeferido o requerimento executivo de cumulação apresentado em 01/09/2023, com o seguinte argumentário:
«Centrando-se apenas nesta parte da decisão, e olvidando a restante argumentação, a exequente intentou uma terceira execução com base nos mesmos contratos, juntando, desta feita, um documento elaborado pelo Novo Banco, SA, com a data de 24/05/2023, que não está assinado por ninguém e do qual não consta nenhum pedido escrito – eletrónico ou não – dos executados.
Escudando-se em a falta de título executivo conduzir apenas à absolvição da instância, e contornando o caso julgado com a junção de novos documentos, a exequente persiste (ilegitimamente, a nosso ver) na demanda executiva.
Vejamos então se os escritos particulares acima mencionados, conjugados com os extratos bancários juntos e o documento n.º 12 do RE, configuram ou não título executivo.
No acórdão n.º 408/2015, o Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil de 1961, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição).
Atento o teor do acórdão do Tribunal Constitucional, a nossa reflexão será feita à luz do artigo 46.º n.º 1 c) do VCPC.
A ação executiva visa a reparação efetiva de um direito violado, tendo por base um título que determina o seu fim e os seus limites.
O título executivo, cais de partida da ação, encerra o acertamento, ou seja, a definição dos elementos subjetivos e objetivos da relação jurídica subjacente. Como assinala Lebre de Freitas, o título permite aferir se a obrigação é certa, líquida e exigível.
Nos termos do artigo 46.º n.º 1 c) do VCPC, constituem títulos executivos “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.
Tomando como premissa este preceito, entendemos que os documentos juntos pela exequente não constituem título válido para a execução.
Subjaz aos escritos particulares dados como título executivo um contrato de abertura de crédito, que, como sustenta Engrácia Antunes, pode ser definido como aquele “pelo qual o banco (creditante) se obriga a colocar à disposição do cliente (creditado) uma determinada quantia pecuniária (acreditamento ou “linha de crédito), por tempo determinado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos juros e comissões”.
Trata-se de um contrato consensual cuja formação e conclusão se completa com o mero acordo das partes e não depende de haver uma entrega de qualquer capital, ao invés do que sucede com o contrato de mútuo.
A efetiva concessão ou disponibilização do crédito já é, todavia, necessária para a constituição da obrigação de reembolso do capital que venha a ser utilizado, ou seja, a obrigação de reembolso de qualquer capital tem a sua génese no momento em que algum capital seja disponibilizado ou utilizado nos termos acordados pelas partes.
No caso em crise, os escritos particulados assinados pelos executados não comprovam, por si só, a entrega/utilização de quantias pecuniárias.
Será que, no caso vertente, é possível fazer prova complementar das prestações futuras, ou seja, da entrega/utilização das quantias?
Entendemos que não, desde logo porque não está em causa um documento autêntico ou autenticado. Com efeito, a possibilidade de efetuar prova complementar do título, nos termos a que se referem os artigos 804.º do VCPC e 715.º n.º 1 do NCPC, está vedada nos casos em que o título é um documento particular simples, uma vez que tal disposição deve ser conjugada com o artigo 50.º do CPC (correspondente ao atual artigo 707.º), o qual apenas prevê essa possibilidade para os documentos autênticos ou autenticados.
Embora não desconheçamos opinião diversa, certo é que a redação deste preceito legal é inequívoca: “Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras, podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes”.
E se não fosse esta a vontade do legislador, certamente o regime teria sido alterado com a reforma de 2013, o que, como é consabido, não aconteceu (cf. artigo 707.º do NCPC).
Observe-se ainda que a ampliação do crédito e a constituição de garantias reais, por escritura pública, também não é suficiente para integrar a previsão do artigo 50.º do pretérito CPC, até porque não certificam a entrega de dinheiro

A exequente não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A. Por despacho liminar foi proferida decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo de cumulação, apresentado em 01.09.2023, por julgar verificada a exceção dilatória de falta de título executivo e é com esta decisão que a aqui recorrente não se pode conformar.
B. Foram dados, como títulos executivos, dois escritos particulares (outorgados pelo BES – Banco Espírito Santo, SA e pelos executados), complementados por extratos bancários e extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco, documentos esses que aqui se dão por reproduzidos.
C. Do primeiro escrito particular (doc. n.º 2 do RE), datado de 21/12/2012, com a epígrafe “Financiamento em regime Multiusos BES Express Bill n.º …87”, resulta a concessão de um crédito no montante máximo global de 50.000€, em conta-corrente, para apoio de tesouraria, pelo prazo renovável de 30 dias, aos executados «B», «C» e do segundo escrito particular (doc. n.º 1 do RE), datado de 21/02/2013, com a epígrafe “Alteração a Contrato de Financiamento n.º …87” resulta que o montante máximo global do crédito passou a ser de 75.000 € e o prazo de 90 dias, igualmente renovável.
D. Os contratos em questão, complementados por extratos bancários comprovativos da disponibilização dos montantes em causa e com um extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco foram considerados insuficientes e o Tribunal julgou verificada a exceção dilatória de falta de título executivo.
E. Mais foi considerado que “Tendo as partes acordado que a entrega e utilização do crédito seria titulada por documentos (pedidos escritos/pedidos eletrónicos) subscritos pelos devedores, sempre seria de concluir – caso não se adotasse a tese de que a prova complementar está vedada no caso de documentos particulares – que seriam estes os documentos de suporte a juntar. […] Ora, não foram juntos os pedidos escritos do cliente nem as respetivas autorizações, pelo que, neste caso concreto, também nunca seria possível considerar que os extratos bancários – nos quais os executados não tiveram nenhuma intervenção e que, de resto, nem permitem associar as entradas/saídas de dinheiro à operação concretamente aqui em causa – constituíssem meio idóneo para provara entrega do dinheiro.”
F. Certos da tese seguida pelo douto Tribunal, foi feita nova cumulação à execução, desta feita procedendo-se à junção de comprovativo das ordens de pagamento autorizadas, em concreto, foi junto o extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco (junto sob o Doc. n.º 12) que certifica o ordenante, a data do pedido e a data da liquidação, bem como os montantes em causa.
G. Atento o conjunto da alegação e prova documental, ainda assim, o Tribunal julgou verificada a exceção dilatória de falta de título executivo e indeferiu liminarmente o requerimento executivo de cumulação.
H. Do requerimento de cumulação resulta expressamente nos pontos 12.º a 14.º que “os pedidos NB EXPRESS BILL são inseridos diretamente no Novo Banco online, não havendo para tal, qualquer autorização ou intervenção do Banco Cedente e da sua organização/ Estrutura Comercial. Os pedidos e confirmações são feitos eletronicamente. Assim, os executados inseriam diretamente na plataforma os pedidos, os quais eram confirmados pelo banco Cedente e pagos em conformidade, nos montantes e datas em causa.” (destaque nosso).
I. Aliás, veja-se que dos contratos juntos, mais concretamente no ponto 3 do Título II, resulta precisamente a essa previsão: “A utilização da modalidade de abertura de crédito para emissão de Garantias bancárias BES Express Bill é efetuada mediante pedidos eletrónicos do Cliente, e aprovação pelo BES de cada emissão de garantia bancária ao abrigo do Serviço BES Express Bill 2.0 Exclusive”. (destaque nosso).
J. A junção do novo documento impunha-se, no seguimento das anteriores decisões proferidas, e para efeitos de descoberta da verdade material motivo e de complementaridade dos documentos dados à execução, pelo qual foi junto com o novo requerimento de cumulação.
K. Sobre o novo documento, junto com o requerimento de cumulação, o Meritíssimo Juiz a quo considerou que “a exequente intentou uma terceira execução com base nos mesmos contratos, juntando, desta feita, um documento elaborado pelo Novo Banco, SA, com a data de 24/05/2023, que não está assinado por ninguém e do qual não consta nenhum pedido escrito – eletrónico ou não – dos executados.”
L. Nessa sequência, considera ainda o Meritíssimo Juiz a quo que “Entendemos que não, desde logo porque não está em causa um documento autêntico ou autenticado. Com efeito, a possibilidade de efetuar prova complementar do título, nos termos a que se referem os artigos 804.º do VCPC e 715.º n.º 1 do NCPC, está vedada nos casos em que o título é um documento particular simples, uma vez que tal disposição deve ser conjugada com o artigo 50.º do CPC (correspondente ao atual artigo 707.º), o qual apenas prevê essa possibilidade para os documentos autênticos ou autenticados.”
M. Conforme resulta do indicado supra e do requerimento de cumulação os pedidos feitos pelos clientes, de concessão/ disponibilização do crédito ao abrigo destes contratos de crédito são inseridos diretamente no Novo Banco online, não havendo para tal, qualquer autorização ou intervenção do Banco Cedente e da sua organização/ Estrutura Comercial.
N. Desta feita, o mesmo é dizer que não existem pedidos escritos dirigidos pelos clientes, ao Banco pois tudo acontece informaticamente, por meio de “cliques”, assim as confirmações são processadas eletronicamente, na plataforma.
O. Os executados inseriam diretamente na plataforma os pedidos, os quais eram confirmados e pagos em conformidade, nos montantes e datas em causa.
P. O documento ora junto tem data de 24/05/2023 por ser a data de extração do sistema e não está assinado por ninguém e, salvo o devido respeito, não carece de qualquer assinatura uma vez que se trata de um documento obtido através do sistema.
Q. Mais indica o Meritíssimo Juiz a quo que do documento não “consta nenhum pedido escrito – eletrónico ou não – dos executados” e, de facto, não consta, pois, conforme já se deixou amplamente esclarecido, os pedidos não são escritos: são feitos por meio de “cliques” na plataforma online do Banco.
R. Tais meandros foram ainda esclarecidos por requerimento de 25.09.2023, na sequência da notificação para esclarecimento do alegado nos artigos 12.º a 14.º do RE.
S. Desta feita, com o requerimento de cumulação pretende-se o exercício de um direito legítimo por parte do credor/ exequente, tendo o mesmo sido instruído com o conjunto dos elementos factuais e probatórios considerados bastantes para tal.
T. Por tal motivo, e atento o teor do novo documento, impunha-se o prosseguimento dos autos, com a notificação dos executados para deduzirem embargos de executado, querendo, e não o indeferimento liminar como aconteceu.
U. Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto foram excluídos da enunciação das espécies de títulos executivos no preceito equivalente, o art.º 703.º do CPC.
V. À luz da decisão do Tribunal Constitucional, mantém-se a exequibilidade de um título emitido antes da entrada em vigor da reforma de 2013, que, ao tempo da sua emissão, era título executivo por força do sobredito art.º 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC, ou seja, desde que esse título, estando assinado pelo devedor, importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.
W. Os valores monetários disponibilizados não foram concomitantes com o momento da celebração dos contratos, ou seja, estamos perante uma prestação futura para conclusão de negócio, o que se verificou.
X. A existência da dita dissociação temporal torna necessário que se equacione o problema da admissibilidade, para efeitos de formação do título executivo, de documentos complementares ao contrato constante de documento particular.
Y. Claro está que de financiamento tem de ser feito mediante documentos complementares, como são os extratos bancários e o extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco ora juntos.
Z. A recorrente não só junta os extratos bancários como o extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco em que se indicam o ordenante, a data do pedido e a data da liquidação, bem como os montantes em causa.
AA. Assim, estamos perante um título executivo complexo ou compósito, porque está corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra  geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos assegurarem eficácia a todo o complexo documental como título executivo.
BB. Essa complementaridade resulta, por norma, do cotejo dos documentos apresentados, deles resultando a força executiva suscetível de assegurar que o devedor assumiu aquela sua obrigação pecuniária.
CC. In casu, o instrumento particular constitutivo de um contrato de mútuo, com as assinaturas dos devedores, e a prova complementar resultante do extrato bancário e do extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco certificativa das quantias pecuniárias que lhes foram disponibilizadas e dos pagamentos das prestações que efetuaram, constituem o título executivo de natureza compósita ou complexa, que viabiliza ao creditante a instauração imediata da ação executiva.
DD. Assim, resta concluir que, nos termos e para os efeitos do art.º 46.º, n.º 1, alínea c) do antigo CPC, aplicável ao caso dos autos, os documentos particulares dados à execução, complementado pelos extratos bancários juntos e o agora junto extrato integrado de ordens de pagamento confirmadas pelo Novo Banco, importam o reconhecimento de obrigação pecuniária de “montante determinado”, quanto ao capital, e “determinável”, quanto ao mais, “por simples cálculo aritmético”.
EE. E assim sendo, não se verifica a exceção dilatória de falta de título executivo pelo que deveria ter sido proferido despacho a ordenar a notificação dos executados para os efeitos do disposto no art.º 726.º, n.º 6 do CPC e, consequentemente, terem os autos prosseguido os seus regulares termos.
FF. Foram violadas, entre outras disposições, os artigos46.º, n.º 1 a. c) do antigo CPC e arts. 703.º, al. b), 707.º, 713.º. 726.º, n.º 6 do CPC.»

Os executados contra-alegaram, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida, com as seguintes conclusões:
«1º Como expressamente resulta da própria Alegação do Exequente (onde se refere “que não existem pedidos escritos dirigidos pelos clientes” e ainda que “os pedidos não são escritos: são feitos por meio de “cliques” na plataforma online do Banco”), as supostas ordens de pagamento e inerentes utilizações de crédito não se corporizaram em qualquer documento.
2º O que significa a efetiva ausência de título executivo, porquanto a respetiva substanciação – mesmo no que respeita à prova complementar – é, necessariamente, documental (cfr. douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08/10/2015, proferido no proc. nº. 221/13.6TBSCR.L1-8).
3º Tem, ademais, toda a razão e fundamento o douto Despacho recorrido, para cujos termos, acima transcritos, se remete – e que inclusivamente assenta no caso julgado formado pelo anterior Despacho proferido, neste mesmo processo, em 10/05/2023.
4º O Recurso de Apelação interposto pela Exequente deve, como tal, ser julgado integralmente improcedente, de modo a se fazer Justiça.»

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) Verifica-se a exceção de caso julgado?
b) Os documentos dados à execução constituem títulos executivos?

II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos:
A. Foram dados, como títulos executivos, dois escritos particulares (outorgados pelo BES – Banco Espírito Santo, SA e pelos executados), complementados por extratos bancários, documentos esses que aqui se dão por reproduzidos.
B. Do primeiro escrito particular (doc. n.º 2 do RE), datado de 21/12/2012, com a epígrafe «Financiamento em regime Multiusos BES Express Bill n.º …87, resulta a concessão de um crédito no montante máximo global de 50.000 €, em conta-corrente, para apoio de tesouraria, pelo prazo renovável de 30 dias, aos executados «B», «C».
C. Do ponto n.º 3 do Título III deste escrito particular, consta, além do mais, que «A utilização do crédito é efetuada mediante pedidos do Cliente até ao Montante Máximo Global sob duas modalidades: a) Utilização mediante pedidos escritos do cliente e prévia autorização do BES; e b) Pedidos de utilização eletrónicos efetuados ao abrigo do Serviço BES Express Bill sujeitos à condição suspensiva de a conta D/O não ter saldo suficiente na Data de Vencimento das Ordens de Pagamento».
D. Do segundo escrito particular (doc. n.º 1 do RE), datado de 21/02/2013, com a epígrafe «Alteração a Contrato de Financiamento n.º …87», resulta que o montante máximo global do crédito passou a ser de 75.000€ e o prazo de 90 dias, igualmente renovável.
E. Manteve-se neste escrito particular, mais concretamente no ponto 5 do Título III, a seguinte previsão: «A utilização do crédito é efetuada mediante pedidos do Cliente até ao Montante Máximo Global sob duas modalidades: a) Utilização mediante pedidos escritos do cliente e prévia autorização do BES; e b) Pedidos de utilização eletrónicos efetuados ao abrigo do Serviço BES Express Bill sujeitos à condição suspensiva de a conta D/O não ter saldo suficiente na Data de Vencimento das Ordens de Pagamento».
F. «D» outorgou os referidos escritos particulares na qualidade de «Prestador de Garantia», no caso a hipoteca sobre imóvel.
G. O documento n.º 12 do RE, que se dá por integralmente reproduzido, consubstancia um quadro em que se indicam: ordens emitidas; estado; liquidação; beneficiários; datas; montantes.
H. Tal documento ostenta no canto superior esquerdo o logotipo do Novo Banco, SA e não contém nenhuma assinatura.
I. No canto superior do documento, consta a seguinte data «24/05/2023».

Além destes factos, são relevantes os que constam do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
1. Do caso julgado
Tenhamos presente que:
Está em causa apenas o contrato de financiamento em Regime Multiusos BES Express Bill 2.0 Exclusive n.º …31, nas modalidades de (a) abertura de crédito em conta-corrente e (b) abertura de crédito para emissão de garantias bancárias BES Express Bill, até ao montante máximo global de €75.000,00 (para apoio de tesouraria), celebrado em 21/02/2013 com «B» e «C», com utilização em regime de conta-corrente, e que alterou o anterior contrato da mesma espécie que tinha o n.º …87;
- O outro contrato dado à execução – Financiamento n.º …86 até ao montante máximo global de €275.000,00 – não está em causa, prosseguindo quanto a execução por sentença proferida em 03/04/2019 no apenso A, transitada em julgado;
- Tudo quanto a seguir se diz reporta-se, portanto, ao contrato de financiamento em regime de conta-corrente n.º …31 e ao contrato que este alterou, o financiamento em regime de conta-corrente n.º …87;
- Na execução originária (processo principal) tinham sido oferecidos como títulos apenas os contratos de financiamento em conta-corrente;
- Em relação a estes contratos foram juntos os extratos de conta bancária com as quantias que foram sendo mutuadas, apenas com a contestação aos embargos de executado;
- Na sentença que julgou os primeiros embargos (apenso A) foi decidido que os contratos em causa não eram suficientes como título executivo, porque faltavam os extratos dos quais decorriam as entregas, e que o facto de os ditos extratos apenas com a contestação aos embargos terem sido entregues não supria a falta de título;
- Foi então proposta nova execução, a cumular com a execução inicial (cf. artigo 711.º do CPC), tendo sido oferecido os extratos bancários em complemento dos documentos iniciais que titulavam os contratos de financiamento em conta-corrente;
- Nos embargos a esta oposta (apenso E) decidiu-se que os documentos particulares mencionados na alínea c) do artigo 46.º do velho Código de Processo Civil têm de ser fonte de um direito de crédito já constituído, o que não sucederia com as prestações futuras. Para estas seria necessária prova complementar que, nos termos consignados no artigo 50.º do mesmo Código de Processo Civil, apenas seria possível para documentos exarados ou autenticados por notário, o que não foi o caso dos ditos contratos;
- Mais se disse que, ainda que assim não se entendesse, o contrato e os extratos não chegariam para título executivo, que faltariam as ordens, pedidos dos clientes;
- Foi então proposta segunda execução cumulada (cf. artigo 711.º do CPC), tendo sido oferecidos, além dos anteriores documentos (contratos e extratos bancários), uma relação com os pedidos NB EXPRESS BILL, que foram inseridos diretamente no Novo Banco online pelos mutuários;
- Em 28/09/2023, foi proferido o despacho objeto do presente recurso, que indeferiu liminarmente o requerimento executivo de cumulação apresentado em 01/09/2023, por se entender os contratos de financiamento em regime de conta-corrente – que não demonstram as entregas de quantias, que apenas futuramente serão feitas –, sendo meros documentos particulares não autenticados, nunca se subsumiram ao conceito de título executivo.
A exceção de caso julgado relativo à exequibilidade do título é de afastar uma vez que o requerimento executivo de 01/09/2023 não tem exatamente o mesmo título executivo complexo ou composto que foi oferecido com o requerimento executivo de 04/12/2020. O acervo documental que constitui o título executivo complexo do requerimento de 01/09/2023 contém um documento novo, constituído por uma relação das ordens de pagamento autorizadas, com a identidade do ordenante, as datas dos pedidos e as datas de liquidação, bem como os montantes em causa. Logo, a decisão que julgou insuficiente, como título executivo, o acervo documental oferecido com o requerimento de 04/12/2020 não preclude a possibilidade de se apreciar requerimento executivo em que é oferecido como título um conjunto de documentos diferente (ainda que apenas parte dos documentos sejam diferentes).

2. Da exequibilidade do título
Mantenhamos presentes os dados referidos em III.1.
Conforme já firmado nas anteriores decisões e que agora repetimos por razão de ordem, a exequibilidade dos títulos dados à execução em apreço afere-se à luz do CPC anterior à Lei 41/2013.
Assim é porque o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 408/2015, de 14 de outubro, declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do CPC-2013 a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961.
Com o citado Acórdão tornou-se indiscutível que os documentos particulares que à data da sua emissão eram título executivo continuariam com essa força e qualidade em ação executiva instaurada na vigência do novo Código de Processo Civil.
Assim, o que importa decidir é se, à luz do anterior Código de Processo Civil, o contrato de financiamento em regime de conta-corrente dado à execução (acompanhado dos respetivos extratos e ordens) constituía título executivo.
Nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC aplicável (CPC-1961, anterior a 2013), os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, podem servir de base à execução.
O título ora dado à execução é um conjunto formado pelos seguintes documentos:
i. Contrato de financiamento até ao valor de €75.000,00, a efetivar mediante créditos em dada conta bancária, e a liquidar em regime de conta-corrente;
ii. Extratos bancários da respetiva conta desde a celebração do contrato referido;
iii. Pedidos de disponibilização de verbas, feitos pelos mutuários ao mutuante.
Pelo contrato de financiamento em causa, o banco obrigou-se a colocar à disposição dos clientes as quantias pecuniárias que estes fossem solicitando, até um determinado montante, durante certo período de tempo, ficando os mutuários obrigados ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respetivos juros e comissões. Deste contrato não resulta, por si só, a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético. Com efeito, do mesmo apenas resulta a obrigação da instituição de crédito (creditante) disponibilizar montantes que lhe sejam solicitados no futuro. Só ocorrendo a futura e incerta disponibilização de verbas, nascerá a obrigação de as restituir e de pagar remuneração pela sua disponibilização (juros).
Os extratos e as ordens servem para provar que a relação contratual se desenvolveu de determinada maneira; a disponibilização de verbas feita na sequência dos pedidos dos mutuários gera obrigações pecuniárias de restituição (do tantundem) e de remuneração dessa disponibilidade, mas os documentos que provam essa disponibilização não são assinados pelo devedor. Serão úteis ou imprescindíveis em sede de ação declarativa, mas não constituíam título executivo à luz do artigo 46.º, n.º 1, alínea c) do CPC-1961.
O CPC-1961 previa expressamente em que situações documentos em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução. Lia-se no artigo 50.º que «os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes».
Não tendo sido o contrato de crédito em conta-corrente exarado ou autenticado, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, não podia o mesmo constituir título executivo relativamente às obrigações que se vieram a constituir à sua sombra, mas por via de atos futuros, sendo certo que essas obrigações ulteriores ao dito contrato de crédito não eram de montante determinável perante o mesmo contrato.
Certo que na vigência do CPC-1961, como na vigência do CPC-2013, há títulos executivos complexos ou compostos por vários documentos. Disso era exemplo a previsão do artigo 50.º do CPC-1961, que hoje se mantém no CPC-2013.
Havia e há no ordenamento outros exemplos. Valendo-nos dos indicados no Ac. do STJ de 05/05/2011, proc. 5652/9.3TBBRG.P1.S1:
«Ainda o legislador no art.º 860º, nº 3, do CPC [artigo 777.º, n.º 3, do CPC-2013], relativo à penhora de títulos de crédito, impõe como título executivo um título complexo, uma vez que não satisfazendo o terceiro-devedor a prestação na data do vencimento, pode o exequente ou o adquirente compeli-lo a fazê-lo, servindo como título executivo: 1) a declaração de reconhecimento do devedor; 2) a notificação efetuada; 3) a falta da declaração.
Igualmente impressivo o que se verifica com o art.º 15º nºs 1 e 2 do NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano), mencionado no acórdão impugnado, em que à exceção da previsão da al. b) do nº 1, o título executivo terá sempre de ser complexo. Quase sempre o contrato de arrendamento (não no caso da al. f)) tem de ser complementado por um outro comprovativo.»
Estes títulos previstos na lei, não se subsumindo na alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC-1961, são dotados de exequibilidade pelas disposições que os preveem (alínea d) do mesmo número e artigo). Também assim é face à alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC-2013.

O mero documento particular admissível como título executivo à luz do disposto no artigo 46.º, n.º 1, al. c) do CPC-1961, tinha de se mostrar assinado pelo devedor, e de, per se, importar a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas do mesmo documento. Não cumprindo, por si, todos estes requisitos – prevendo a constituição de obrigações futuras cuja determinação do montante carecia de outro(s) documento(s) –, apenas seria exequível se se tratasse de documento autêntico ou autenticado. Para estes, e apenas para estes, o artigo 50.º do CPC-1961 (hoje artigo 707.º do CPC-2013), dispunha que, se convencionassem prestações futuras ou previssem a constituição de obrigações futuras, podiam servir de base à execução, desde que se provasse, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
É vasta a jurisprudência neste sentido, reproduzindo-se em seguida a sumariada na sentença proferida em 10/05/2023, no apenso E:
«Como se decidiu recentemente no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/02/2023 (Mário Rodrigues da Silva), acessível em www.dgsi.pt: «O contrato de abertura de crédito, porque admite prestações futuras, não certifica, por si só, uma dívida, necessário se mostrando a existência da apresentação de prova complementar, que está vedada no âmbito do documento particular enquanto título executivo.»
Esta mesma síntese foi acolhida no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/10/2013 (Ana Resende), acessível em www.dgsi.pt.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/10/2016 (Teresa Prazeres Pais), acessível em www.dgsi.pt, lê-se: «Sendo convencionadas prestações futuras, como no caso de abertura de crédito, para que o documento pudesse constituir título executivo, necessário se mostrava que fosse provado que alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio, já na situação de constituição de obrigações futuras, importava que ficasse demonstrado que a obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes, sendo tal prova realizada nos termos do art.º 50 do CPC, cuja aplicação se mostrava restrita a documentos exarados ou autenticados por notário, ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, afastada ficando assim dos documentos particulares.»
No mesmo sentido, atente-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/05/2017 (Francisca Mendes), acessível em www.dgsi.pt: «Os contratos de abertura de crédito em conta-corrente titulados por documento particular não representam qualquer constituição ou reconhecimento de dívida e não constituem, só por si, título executivo. No âmbito do regime jurídico do pretérito CPC, a prova complementar só poderia ser efetuada ao abrigo do disposto na norma do artigo 50.º do referido diploma legal. A ampliação da linha de crédito bancário e a constituição de garantias reais, por escritura pública, não é suficiente para integrar a previsão do artigo 50.º do pretérito CPC.»
Neste particular, acompanhamos ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/02/20163: «Não é esse, como vimos, o caso do documento (contrato de abertura de crédito) que serve de base à presente execução porque o mesmo não incorpora a constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária que está aqui a ser exigida (…). Ora, o que está em causa nos presentes autos é a própria constituição da obrigação que é objeto da execução. A prestação a executar pela Exequente (efetiva concessão do crédito ou disponibilização de fundos) não é condição de exigibilidade de uma obrigação dos aqui Executados previamente constituída e existente, cuja prova pudesse ser feita nos termos do citado art.º 804º (mediante documento ou, não sendo isso possível, por qualquer outro meio de prova); tal prestação assume-se como um facto do qual depende a constituição da obrigação de reembolso do capital mutuado e que, como tal, só admitiria prova documental, nos termos do art.º 50º, se o documento onde foi prevista a constituição dessa obrigação fosse um documento autêntico ou autenticado. Estando em causa – como está – um documento particular, não é admissível essa prova complementar, sendo que, como decorre do disposto no art.º 46º, al. c), o documento particular apenas pode servir de base à execução se dele resultar a efetiva constituição ou reconhecimento de uma obrigação cujo valor esteja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, o que, manifestamente, não ocorre com o documento (contrato) que serve de base à execução, documento este que, além de não importar a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, nem sequer permitiria, só pelas suas cláusulas, a determinação do seu valor.»
Em igual sentido, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão de 21/03/2013: «O documento particular, para valer como título executivo, tem que nos indicar não só que a quantia definida é “x” mas também que é devida, e deverá fazê-lo em termos autossubsistentes, ou seja, que dispensem demonstração complementar não coincidente com meras operações de liquidação. Os contratos de abertura de crédito em conta-corrente de utilização simples não representam qualquer constituição ou reconhecimento de dívida dos executados, mas apenas representam os termos e condições em que estes podem utilizar o dinheiro que a exequente lança na conta de depósitos à ordem aí identificada, a débito e a crédito, e para utilização no desenvolvimento da atividade empresarial do executado e sempre a pedido deste. Só surgindo a obrigação deste – o creditado - no momento em que o crédito é concedido, nascendo, consequentemente, a dívida quando levanta o dinheiro ou recebe os bens a consumir. Assim sendo necessária a prova complementar a fazer ao abrigo do disposto na norma do artigo 50º do Código do Processo Civil. Se a tese, de quem defendia estender a letra da norma aos documentos particulares, já era difícil de aceitar na altura, diante da expressa restrição a “escrituras públicas” com que o preceito abria - justamente, alguma jurisprudência enunciava que “o art.º 50º do CPC não é aplicável, por interpretação extensiva, dos documentos particulares”- Acórdão do STJ 21.2.2002, in www.dgsi.pt -, depois da reforma, com várias alterações ao artigo 50º em que o legislador veio alargar o âmbito formal do preceito a qualquer documento autêntico ou documento autenticado, tornou-se patente que não estava na sua vontade admitir os documentos particulares simples.»
Veja-se ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/01/2010, acessível em www.dgsi.pt: «Para se poder afirmar a exequibilidade dos documentos particulares mencionados na alínea c) do artigo 46.º do Código de Processo Civil, os mesmos têm de formalizar “a constituição de uma obrigação”, ou seja, serem “fonte de um direito de crédito” ou, deles se poder reconhecer a “existência de uma obrigação já anteriormente constituída”. No caso de se convencionarem prestações futuras, impõem-se ainda uma obrigação suplementar, a apresentação de prova complementar do título executivo, nos termos consignados no artigo 50.º do Código de Processo Civil, cuja aplicação é circunscrita aos “documentos exarados ou autenticados por notário”, não sendo, pois, de aplicação aos casos em que tais obrigações futuras se contenham em documentos particulares.»
Porquanto exposto, conclui-se que o contrato dado à execução objeto deste recurso – contrato de financiamento em Regime Multiusos BES Express Bill 2.0 Exclusive n.º …31, nas modalidades de (a) abertura de crédito em conta-corrente e (b) abertura de crédito para emissão de garantias bancárias BES Express Bill, até ao montante máximo global de € 75.000,00 (para apoio de tesouraria), celebrado em 21/02/2013 com «B» e «C», que alterou o anterior contrato da mesma espécie que tinha o n.º …87 –, ainda que acompanhado dos extratos bancários e das ordens de disponibilização de quantias, não constitui título executivo.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão objeto de recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 22/02/2024
Higina Castelo
Inês Moura
Paulo Fernandes da Silva