Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
524/20.3PCRGR.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
MENOR
PENAS ACESSÓRIAS
INCONSTITUCIONALIDADE
NÃO TRANSCRIÇÃO NO CRC
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. A criminalização da conduta de formulação de propostas de teor sexual dá-se pela L. 83/2015, de 05/08 que visou dar cumprimento ao art.º 40º da Convenção de Istambul, sob a epígrafe «assédio sexual», e rompe com um status quo de tolerância em relação a um certo estereótipo de comportamento essencialmente masculino culturalmente enraizado, que choca com os valores adotados pelas sociedades hodiernas da igualdade de género e da luta contra todas as formas de violência, em especial sobre as mulheres.
II. Traduz proposta de teor sexual integradora do crime de importunação sexual previsto pelo art.º 170º do Código Penal, e não um piropo, a expressão «dava-te uma foda» dirigida pelo arguido a uma menor.
III. A aplicação das penas acessórias previstas sob os art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2, do Código Penal, é obrigatória nos casos de condenação por crime de importunação sexual praticado contra menor de 18 anos de idade, não bulindo essa obrigatoriedade com o princípio da proibição do efeito automático das penas consagrado sob o art.º 30º/4 da Constituição da República Portuguesa.
IV. A menoridade da vítima para efeitos de aplicação destas penas acessórias é aferida objetivamente, independentemente do conhecimento pelo arguido dessa idade.
V. É de recusar a aplicação dos art.ºs 69º-B/2 e 69º/C-2, do Código Penal, com referência ao crime de importunação sexual previsto no art.º170º do Código Penal, na modalidade de formulação de propostas de teor sexual, por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no art.º 18º/2 da Constituição da República Portuguesa, na vertente da proibição do excesso, por via da fixação em 5 anos do limite mínimo da moldura daquelas penas acessórias, não permitindo ao juiz dosear a sua medida temporal dentro de limites razoáveis, especialmente em situações que se encontrem no limiar da justificação da punibilidade.
VI. Ressalvadas as situações em que o certificado de registo criminal é solicitado para finalidades de validação da idoneidade para o exercício de profissões, funções ou atividades que implicam contactos com menores, não está vedado, verificados os respetivos requisitos formais e material, determinar a não transcrição para o certificado de registo criminal para os fins indicados no art.º 10º/ 5 e 6 da L. 37/2015, de condenação pela prática de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA da sentença proferida em processo comum singular, pela qual foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de importunação sexual, previsto e punido pelos art.º 170º do Código Penal, nas seguintes penas:
• 100 (cem) dias de multa de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), num total de €650,00 (seiscentos e cinquenta cêntimos euros);
Proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado em cinco anos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 69º-B do Código Penal.
Proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco anos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 69º-C do Código Penal.
2. O arguido recorrente peticiona a sua absolvição e, subsidiariamente, a não aplicação das penas acessórias, formulando para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
i. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes atos, de um crime de Importunação Sexual p. e p. pelo artigo 170.º do Código Penal (de ora em diante CP) e das penas acessórias constantes nos artigos 69.º B e C, n.º 2 do CP.
ii. O Tribunal a quo considerou, no nosso entender, erradamente como provado o facto n.ºs 2, 3 e 4 da douta sentença objeto deste recurso.
iii. Em primeiro lugar, considerou provado o facto n.º 2 que "No dia 12 de julho de 2020, (...) o arguido AA, de 22 anos de idade, abeirou-se de BB, de 13 anos de idade, que se encontrava com CC, de 14 anos de idade, e dirigiu-se à primeira com as seguintes expressões, enquanto olhava para ela e para os amigos, apontando na sua direcção e se aproximava, aparentando estar sob o efeito de bebidas alcoólicas: "Ela dá tesão, não dá ?! Tens um belo cu! Dava-te uma foda!"
iv. Na formação da sua convicção, o Tribunal teve em consideração as declarações do arguido e do assistente, os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, as declarações para memória futura, prestadas pela menor em sede de inquérito e a prova documental junta aos autos e o relatório social do arguido.
v. No entanto, apenas relevou para efeitos de sentença as declarações do Assistente, DD.
vi. Se ouvirmos com atenção as declarações do arguido (cujo depoimento, reproduzido em sede de audiência de julgamento, ficou gravado através do sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início às 13 horas e 59 minutos e terminus às 14 horas e 12 minutos (duração de - 00:00:01 até 00:10:44), por referência à ata de julgamento de 26 de junho de 2023, constamos inequivocamente que o arguido não se aproximou da menina BB, nem a viu passar.
vii. Acresce que, em momento algum, o arguido confessou que tinha emanado a alegada expressão.
viii. O arguido afirmou que se encontrava de costas para a rua a conversar com os amigos sobre ex-namoradas, que já tinha bebido e da sua consciência não tinha dito nada.
ix. Ainda sobre este facto dado como provado, importa referir que a testemunha arrolada pelo Ministério Público, CC, que prestou juramente legal e o seu depoimento foi gravado, com início às 14 horas e 42 minutos e o seu termo pelas 14 horas e 49 minutos (duração de - 00:00:01 até 00:06:37).
x. Este é no nosso entender um depoimento essencial, uma vez que esta testemunha era a que se encontrava junto da Vítima no momento do referido acontecimento a que o recorrente é acusado e condenado pela douta sentença que apresentamos recurso.
xi. A testemunha CC declarou que, o aqui recorrente não se dirigiu a BB quando proferiu as expressões, mas sim aos amigos.
xii. Não podem, assim, restar dúvidas que, das declarações do Arguido e do depoimento da testemunha CC, não é possível provar que o arguido se aproximou e dirigiu a sua conversa diretamente à menina BB e não apenas aos amigos, em jeito de comentário.
xiii. Assim, o tribunal a quo devia ter julgado como não provado o facto n.º 2, constante da sentença ora objeto de recurso.
xiv. Não se compreende, porque é que o douto tribunal desconsidera o depoimento da única testemunha que estava junto à menor. Pelo que, consideramos, para efeitos da al. a), n.º 3, do artigo 412.º, do Código do Processo Penal (de ora em diante CPP), que o mesmo foi incorretamente julgado.
xv. Em segundo lugar, o tribunal também considerou provado o facto n.º 3: "AA agiu com propósito concretizado de constranger a BB a contato de natureza sexual, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela, e de que ao agir de modo descrito atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e que punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual."
xvi. Se ouvirmos com atenção as declarações do assistente (cujo depoimento, reproduzido em sede de audiência de julgamento, ficou gravado através do sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início às 14 horas e 11 minutos e terminus às 14 horas e 21 minutos (duração de - 00:00:01 até 00:10:17), por referência à ata de julgamento, constamos inequivocamente que o Assistente, afirma que se o arguido soubesse que se tratava da menina BB, não teria proferido qualquer tipo de comentário;
xvii. E por isso o mesmo não agiu com propósito concretizado de constranger a menor a contacto de natureza sexual visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela, e de que ao agir de modo descrito atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e que punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual.
xviii. Nas suas declarações iniciais, o Assistente, afirma que o que tinha acontecido tinha sido uma "coisa de rapazes".
xix. Tanto o Assistente como a testemunha EE, cujo depoimento, reproduzido em sede de audiência de julgamento, ficou gravado, com início às 14 horas e 21 minutos e terminus às 14 horas e 31 minutos (duração de - 00:00:01 até 00:09:29), afirmam que o Recorrente não reconheceu a menor.
xx. Adicionalmente, a testemunha EE afirmou que o arguido não teve o propósito de ofender, como também CC que ele se encontrava a falar com os amigos.
xxi. Dessa forma, não nos parece que estes elementos de prova testemunhal sejam aptos a demonstrar que existia a intenção e o propósito de constranger a menor a contato sexual, muito menos satisfazer os seus instintos libidinosos, desrespeitando a sua liberdade e autodeterminação sexual.
xxii. Pelo que também o facto n.º 3 devia ter sido julgado como não provado e incorretamente julgado, para efeitos da al. a), n.º 3, do artigo 412.º do CPP.
xxiii. Por último, também foi considerado como provado o facto n.º 4, "0 arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo da sua conduta era proibida e punida por lei "
xxiv. Nas suas declarações e em resposta às questões do Juiz e do Ministério Público, o aqui recorrente, declarou que nunca se aproximou da miúda e que não lhe disse nada. Que tinha bebido, no entanto, acha que estava sóbrio e que da sua consciência, não tinha dito nada à miúda.
xxv. De acordo com as declarações do arguido e das testemunhas ele já tinha bebido algumas bebidas alcoólicas. Por esse motivo, não nos parece correto que seja provado que o recorrente tenha agido de forma deliberada e consciente.
xxvi. Sendo este facto n.º 4 dado como não provado e também como incorretamente julgado, segundo al. a), n.º 3, do artigo 412.º, do CPP.
xxvii. No caso em apreço, é claro que assistimos a versões distintas dos factos, apenas ambas com um denominador comum, que é: o Arguido nunca quis praticar qualquer crime e, muito menos, o quis praticar na pessoa da BB.
xxviii. Prova disso é que os pais da menor afirmaram que se o recorrente soubesse quem era, não teria proferido essas expressões, como também CC, referiu que o Arguido se dirigiu foi aos amigos com quem estava.
xxix. No entanto, parece-nos erróneo, tendo em conta a prova produzida, que o tribunal tenha dado como provados os factos n.º 2, 3 e 4 da sentença objeto deste recurso.
xxx. Ao contrário do que a sentença diz, as testemunhas não foram unânimes, existindo duas versões distintas dos factos.
xxxi. Apesar disso, todos foram genéricos sobre o facto do Arguido só se ter apercebido da passagem das meninas pela rua no momento da sua passagem, o que não permite sequer o tempo para querer praticar algum facto, para saber de quem se tratava, ou para ter a intenção de constranger a contato sexual, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual da menor.
xxxii. Ao considerar como provados a prática dos factos n.ºs 2, 3 e 4, os quais defendemos, que não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal violou, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP.
xxxiii. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.10.2008 refere que, "A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência."
xxxiv. Ora, se os factos em apreço, não tivessem sido dados como provados o recorrente teria necessariamente de ser absolvido.
xxxv. Aqui também se aplicaria a violação do Princípio in Dubio Pro Reo, uma vez que a testemunha EE, afirmou não ter a certeza de que o arguido se dirigiu à sua filha e a testemunha CC declarou com certeza que o Arguido estava era a falar com os amigos.
xxxvi. Também esta violação levou à consequente condenação do recorrente, não resultando da prova produzida, mas apenas de prova que criou dúvidas sobre a veracidade dos factos, tornando-se notória a insuficiência probatória, para a decisão da matéria de facto provada.
xxxvii. O que também constituiu uma violação do disposto no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, dado que este preceito devia ter sido interpretado e aplicado no sentido da sua absolvição.
xxxviii. O ora recorrente foi condenado pela prática de um Crime de Importunação Sexual, em uma pena de 100 dias de multa, o que se consubstancia em uma aplicação excessiva, tendo em conta que este crime em ultima ratio vêm criminalizar os chamados "piropos", que é o caso em concreto.
xxxix. De uma forma mais abrangente, existe um bem jurídico protegido, que é o "constrangimento à prática de ato sexual" e é manifesto que ficou em dúvida, qual era o objetivo do Arguido e se este era dirigir-se à menor, uma vez que não ficou provada uma aproximação física ou uma conversa direta com a mesma.
xl. Importa ainda citar o Acórdão do STJ de 22.02.2018, que deixa claro que "As conversas com as expressões "foda" e "espetar até ao fundo", nas circunstâncias do caso, carecem de autonomia e idoneidade para prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, ou, dito de outro modo, tal conversa não tem virtualidade para tentar satisfazer com a menor, ou através dela, interesses ou impulso de relevo, pelo que não se encontra também preenchido o crime de abuso sexual, p. e p. pelo art.º171.º, n.º 3, al. b), do CPP.".
xli. Entenda-se que, nessa circunstância, o STJ absolveu o arguido do crime, com a particularidade que no processo em específico, existia um contato direto entre Arguido e Vítima, o que não aconteceu no caso sub judice.
xlii. Ficou claro que o recorrente não sabia com quem estava a falar, ou de que se tratava de uma menor e muito menos de alguém que até podia conhecer de vista.
xliii. Por esse motivo, na situação em apreço, consideramos que estamos longe de preencher os requisitos do crime.
xliv. Uma vez que como assegura o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.06.2018, "A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal. Pelo contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal."
xlv. Defendemos, por isso, que o aqui recorrente deverá ser absolvido da prática do crime, como também da excessiva aplicação das sanções das penas acessórias decorrentes dos artigos 69.º B e C, n.º 2 do CP. Uma vez que esta aplicação nos parece manifestamente abusiva, já que à data da prática dos factos, o Arguido tinha apenas 22 anos.
xlvi. Este facto deve relevar, assim como não ter ficado provado que vítima à data dos factos tinha 13 anos, até porque nessa altura, faltavam apenas, dois meses para a mesma, fazer 14 anos. Como também não ficou provado, se esta apresentava uma compleição física semelhante aquela que têm outras jovens com idades superiores a 14 anos.
xlvii. O que torna manifesto a não verificação do elemento da estatuição criminal que é pressuposta da estatuição da pena acessória, nem a verificação da consciência da ilicitude que conduz à aplicação da pena acessória.
xlviii. Por esse motivo, entendemos que além da absolvição do Crime e das penas acessórias, o recorrente não deve ser sujeito à sua transcrição para o seu Registo Criminal atendendo à sua idade e à sua situação social, uma vez que para um jovem de 25 anos, consideramos que já é suficientemente vexatório todo o processo a que esteve sujeito em Tribunal.
(…)».
3. O recurso foi admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
4. Notificado o Ministério Público do mesmo, veio em resposta pugnar pela confirmação da sentença recorrida, argumentando o seguinte [transcrição]:
«(…)
Verifica-se que a sentença contém a explicação detalhada do processo lógico racional utilizado na apreciação das provas, que determinou a formação da convicção do tribunal, e que não existe qualquer contradição entre a prova produzida em audiência de julgamento e a decisão sobre a matéria de facto.
Resulta ainda do texto da sentença ora recorrida que o julgador não sentiu qualquer dúvida razoável na fixação da matéria de facto, nem a mesma enferma de qualquer insuficiência, contradição ou erro notório na apreciação da prova.
Pelo que não se vislumbra que a factualidade provada tivesse sido incorretamente julgada, conforme pretende o recorrente, nem que se verifique qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
No mais, limita-se o recorrente a discordar da apreciação da prova feita pelo tribunal, desvalorizando os depoimentos que convenceram o tribunal, sendo certo que na sentença vem justificada a credibilidade de cada um dos depoimentos prestados em audiência.
De todo o modo, sempre se dirá que o arguido foi absolvido do crime de abuso sexual de criança, por não se ter provado que o mesmo sabia que a ofendida tinha menos de 14 anos de idade, o que não significa que não soubesse que se tratava de uma menor (com menos de 18 anos de idade), sendo a aplicação das penas acessórias, neste caso, obrigatória (aliás, tal como o é a proibição de conduzir no crime de condução de veículo em estado de embriaguez).
Quanto à não transcrição da sentença no registo criminal, tal não é possível, atenta a ressalva efetuada no art.º 13.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio.
Em conclusão, não violou a sentença proferida nos autos qualquer preceito.
(…)».
5. Subidos os autos a este Relação, pelo Senhor Procurador Geral Adjunto do Ministério Público junto desta Relação foi emitido Parecer mediante o qual subscreveu no essencial a resposta ao recurso apresentada na primeira instância, entrando em maior detalhe quanto à apreciação da prova realizada na primeira instância e chamando a atenção para o facto de no recurso se ignorar a prova valiosa decorrente da tomada de declarações para memória futura à menor e credibilidade que a mesma mereceu ao Tribunal.
6. Cumprido o disposto no art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
7. Realizado o exame preliminar, foi o processo remetido aos vistos e para julgamento em conferência, nos termos do preceituado no art.º419º/3, c) do Código de Processo Penal.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art.º410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art.º379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
As provas indicadas pelo recorrente impõem diversa decisão em relação aos pontos 2, 3 e 4 da matéria dada como provada, que devem considerar-se incorretamente julgados?
2.ª Verifica-se dúvida razoável quanto à prova desses factos, tendo o Tribunal a quo violado os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo?
3.ª Os factos provados preenchem o tipo legal de crime de importunação sexual previsto pelo art.º170º do Código Penal?
4.ª Atentas as circunstâncias pessoais do arguido e do crime, é excessiva a pena principal aplicada e abusiva a aplicação das penas acessórias?
5.ª Da não transcrição da condenação para o registo criminal do arguido.
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. A decisão da matéria de facto
É do seguinte teor a sentença recorrida na parte relevante para a apreciação do recurso relativa à matéria de facto [transcrição]:
«(…)
A) DOS FACTOS PROVADOS
Factos provados
1. BB nasceu em 16 de Setembro de 2006, e é filha de DD e de EE.
2. No dia 12 de Julho de 2020, pelas 00h00, quando se encontravam na ..., em ..., o arguido AA, de 22 anos de idade, abeirou-se de BB, de 13 anos de idade, que se encontrava com CC de 14 anos de idade, e dirigiu à primeira as seguintes expressões, enquanto olhava para ela e para os amigos, apontando para sua direcção e se aproximava, aparentando estar sob o efeito de bebidas alcoólicas: “Ela dá tesão, não dá?! Tens um belo cu! Dava-te uma foda!”
3. AA agiu com o propósito concretizado de constranger a BB a contacto de natureza sexual, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela, e de que ao agir do modo descrito atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e que punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual.
4. O arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que:
5. O arguido não tem antecedentes criminais.
6. À data dos factos, tal como no presente, AA, de 25 anos, habilitado com o 12.º ano de escolaridade, empregado em unidade fabril, residia com o agregado de origem, de média-baixa condição social, constituído pelos pais, FF, de 49 anos, e GG, de 45 anos, ambos Assistentes Operacionais, em conjunto com a irmã de 12 anos, estudante, e com a namorada do arguido, HH, de 23 anos, ..., em casa própria com boas condições de habitabilidade.
7. O agregado beneficia de boa imagem social, descritos como organizados e cumpridores das suas obrigações, destacados como pessoas sérias e confiáveis.
8. O arguido é natural da freguesia de residência, tendo seu processo de socialização decorrido em ambiente familiar coeso e protetor, com a existência de laços afetivos, com os pais dedicados ao trabalho, assegurando as necessidades básicas dos seus elementos, e que exerciam adequada supervisão e cuidados aos filhos.
9. Integrou a escola em idade normal, tendo apresentado um percurso regular, sem problemas de comportamento ou aprendizagem, ocupando os tempos livres integrado em ..., atividade que vem mantendo, e da qual retira satisfação.
10. Descreveu uma infância e adolescência feliz, centrada na escola e na zona de residência, ocupando-se com as brincadeiras normais da idade, mantendo um comportamento pró-social, e, segundo o próprio, sem qualquer contacto com substâncias psicoativas.
11. Veio a concluir o 12.º ano de escolaridade na ..., ao abrigo de curso profissionalizante na área da contabilidade, o qual lhe proporcionou a integração em Programa de Emprego designado Estagiar T, sendo colocado na ... como Assistente Operacional, local onde permaneceu durante 36 meses, sendo descrito como educado e de fácil trato, terá desenvolvido as suas funções de forma assertiva e empenhada, desenvolveu relações de amizade com as pessoas com quem se relacionou.
12. Obteve-se confirmação através da ... em relação à referida experiência laboral ao abrigo de Programa de Emprego, tendo acrescentado que se encontra empregado desde ...-...-2022.
13. O arguido conseguiu, por iniciativa própria, novo emprego na área da grande distribuição, tendo, entretanto, e com o objetivo de melhorar a sua situação laboral, abraçado novo desafio profissional, na ..., onde se mantém desde há 3 meses ao abrigo de contrato de trabalho.
14. Mantém a prática de Futebol integrado em Clube que disputa o campeonato da ilha de ..., referindo que os tempos livres são passados na companhia de amigos e familiares, que em casa se ocupa a ver TV e a jogar no computador, a par do tempo de convivência com a namorada, que com ele reside há 2 anos.
15. Como fatores de proteção destaca-se o ambiente familiar coeso e protetor, um quotidiano estruturado em função do trabalho e da prática regular de atividade física, uma imagem social positiva, uma condição económica estável, a par de competências pessoais e sociais.
*
Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos para além dos supra descritos, nomeadamente, que o arguido soubesse que a BB tinha, à data dos factos, 13 anos.
Motivação
O tribunal formou a sua convicção conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, a prova documental junta aos autos [mormente, auto de denúncia de fls. 3 a 4 para a circunstância de tempo e lugar, assento de nascimento de fls. 20 e 21, CRC e relatório social do arguido]; as declarações prestadas pelo arguido; os depoimentos das testemunhas ouvidas [EE, CC e II] e as declarações para memória futura, prestadas pela menor em sede de inquérito.
Por último, relevou-se as declarações do assistente DD.
Todos os elementos de prova supra referidos foram apreciados à luz do disposto no artigo 127º do Código Processo Penal, ou seja, segundo as regras da experiências e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação que se impõe.
O artigo 127º do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.
A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc n0 3105/00-53, SASTJ, nº 47,88).
Tal como diz o Prof Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol II, pág 131 "... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.
Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II, pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. (...) Um tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 203 a 205).
Concretizando.
O arguido, confirmando que se encontrava num encontro com uns amigos e que já teria ingeridos algumas bebidas alcoólicas, não negou, peremptoriamente, a prática dos factos, afirmando que na “sua consciência nada disse, mas pedindo desculpa e mostrando arrependimento caso o tivesse feito.
Relativamente à factualidade vertida no ponto 1) dos factos provados, o tribunal relevou o teor do assento de nascimento de fls. 20 e 21.
Já no que concerne à factualidade vertida nos pontos 2) dos factos provados, o tribunal sobrelevou os depoimentos, não totalmente coincidentes (no que concerne às expressões proferidas pelo arguido, mas com palavras unânimes), mas congruentes das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, as quais revelaram conhecimento directo dos factos, uma vez que os presenciaram, prestando depoimentos escorreitos, objectivos e verosímeis.
Todas as testemunhas foram unânimes ao referir que foi o arguido quem proferiu as expressões dadas como provadas, uma vez que o visualizaram a proferir tais expressões; o assistente acrescentou que viu o arguido a dar três ou quatro passos em direcção à BB, não tendo dúvidas de que tais expressões eram dirigidas à sua filha, até porque a mesma trajava uns calções nessa ocasião; também a testemunha II referiu que viu o arguido a dirigir-se a BB, tendo proferido tal expressão para a BB, uma vez que era ela que estava mais próxima do arguido; também CC dúvidas não teve em afirmar que viu o arguido a apontar para a sua amiga BB, enquanto proferia tais expressões.
No mais, o tribunal valorou as declarações para memória futura prestadas pela adolescente em sede de inquérito; destarte, BB descreveu de forma coerente e verosímil as circunstâncias de tempo e lugar bem como o teor das expressões proferida pelo arguido. Destarte as declarações para memória futura merecem-nos inteira credibilidade pela forma como foram prestadas, revelando a adolescente segurança e objetividade, não existindo o mínimo indício de discursos efabulados ou afastados da lógica e experiência comum.
Já no que toca à facticidade inserta nos pontos 3) e 4) dos factos provados, o tribunal atendeu aos factos objectivos dados como provados em conjugação com as regras da experiência e da normalidade do acontecer; destarte, o arguido não podia ignorar, como não ignorar qualquer cidadão, que, ao actuar da forma descrita, além de satisfazer os seus impulsos sexuais, ofendia a liberdade sexual da BB, formulando propostas de carácter sexual.
Acresce que, quanto à intencionalidade e voluntariedade das condutas do arguido relevaram os factos objectivos dados como provados descrevendo as suas condutas e regras de experiência comum, sendo que ao actuar da forma dada como provada, não pode o arguido deixar de o ter feito de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo - como sabe a generalidade dos cidadãos - que os seus comportamentos eram passíveis de serem punidos criminalmente.
No que concerne à ausência de antecedentes criminais do arguido, relevaram os CRC juntos aos autos, mormente, o de fls. 315- ponto 5) dos factos provados.
No que concerne à situação pessoal e económica do arguido, atentou-se, desde logo, nas declarações pelo próprio prestado em conjugadas com o teor do relatório social de fls. 302 a 304 - pontos 6) a 15) dos factos provados.
Relativamente aos factos não provados, cumpre começar por dizer que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram, desde logo mercê de nenhum dos ouvidos ter revelado conhecimento ou o conhecimento revelado se ter limitado ao que resultou provado, contraditando o considerado não provado, não resultando distinto resultado probatório dos demais elementos juntos aos autos.
Com efeito, o arguido negou que soubesse que BB teria 13 anos de idade à data dos factos, sendo certo que, conforme foi referido pela progenitora desta e pela testemunha II, a mesma apresentava um desenvolvimento físico superior ao normal para um adolescente de 13 anos.
(…)».
2. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
2.2.1 Critérios e limites
Enquanto concretização do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, consagrado no art.º428º do Código de Processo Penal, segundo o qual os tribunais da Relação conhecem não só de direito mas também de facto, o erro de julgamento resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
O recurso visa, então, a reapreciação da prova gravada em primeira instância, impondo-se a sua audição pelo Tribunal de recurso, cujos poderes de cognição não se restringem ao texto da decisão recorrida, como acontece com os vícios previstos no art.º410º/2, do Código de Processo Penal, alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos nºs 3 e 4 do art.º412º do Código de Processo Penal.
Assim, quando o recurso tem como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente em cumprimento desse ónus de especificação, indicar:
a) - os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) - as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) - as provas que devem ser renovadas.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, indicando concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, como resulta dos n.ºs 4 e 6 do art.º412º do Código de Processo Penal.
O recurso da matéria de facto assim formulado permite que os poderes de cognição do tribunal de recurso se estendam à matéria de facto, e que, sendo o recurso, nessa parte, procedente, venha a ser modificada a decisão quanto a ela tomada na 1.ª instância, conforme preceitua o art.º 431º/1,b) do Código de Processo Penal).
Todavia, conforme tem vindo a entender-se de forma pacífica na jurisprudência, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse; antes se destina a uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo do tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do art.º 412º do Código de Processo Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Nessa reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º127º do Código de Processo Penal e o princípio in dubio pro reo, princípios que valem também para o tribunal de recurso quando se debruça sobre a prova.
Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Nessa reapreciação, terá que atender-se à forma como se formou a convicção do julgador vertida na decisão sob recurso, tendo presente o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127º do Código de Processo Penal, a qual deve assentar numa análise lógica e motivada da prova, segundo regras de experiência e com bom senso.
Daí a importância da fundamentação da decisão sobre os factos, exigindo-se do julgador a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito.
Por isso, a decisão recorrida só será de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a de forma lógica e racional. Ou seja, o tribunal da Relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. [1]
Nessa análise, o tribunal de recurso há-de usar igualmente do princípio da livre convicção na sua valoração autónoma das provas dentro dos já falados limites impostos pela especificação exigida ao recorrente nos termos do art.º 412º/3 e 4 do Código de Processo Penal, e da não imediação que beneficia a primeira instância. [2]
Em suma: o tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa, num exercício de reapreciação dessa concreta prova também segundo o princípio da livre apreciação consagrado no art.º 127º do Código de Processo Penal e o princípio in dubio pro reo, decidindo em caso de dúvida razoável a favor do arguido.
2.2.2 O caso em mãos
Postas estas premissas, é patente que o recorrente vem em busca de um segundo julgamento da causa, atendo-se no essencial ao que o arguido e a testemunha CC declararam, numa leitura muito própria dessas declarações e depoimento.
Ora, além de não se divisar no texto da decisão recorrida qualquer erro, contradição ou insuficiência relativa à análise da prova e fundamentação da decisão de facto, a conclusão a que se chega na sentença quanto aos factos provados ora questionados, assoma razoável e conforme com as regras da experiência, em estrita observância da regra da livre apreciação da prova inscrita no art.º127º do Código de Processo Penal.
Mas vejamos um pouco mais em detalhe.
Invoca o recorrente a verificação de erro de julgamento quanto aos seguintes factos indicados em 2., 3. e 4., dos factos provados, especialmente quanto ao que se assinala a negrito:
«(…)
2. No dia 12 de Julho de 2020, pelas 00h00, quando se encontravam na ..., em ..., o arguido AA, de 22 anos de idade, abeirou-se de BB, de 13 anos de idade, que se encontrava com CC de 14 anos de idade, e dirigiu à primeira as seguintes expressões, enquanto olhava para ela e para os amigos, apontando para sua direcção e se aproximava, aparentando estar sob o efeito de bebidas alcoólicas: “Ela dá tesão, não dá?! Tens um belo cu! Dava-te uma foda!”
3. AA agiu com o propósito concretizado de constranger a BB a contacto de natureza sexual, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela, e de que ao agir do modo descrito atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual da mesma e que punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual.
4. O arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
(…)».
Vejamos então o que, segundo o recorrente, contraria a prova destes factos, um por um.
Factos descritos em 2. (conclusões i. a xiv.)
Alega, no essencial o recorrente que o tribunal valorou apenas as declarações prestadas pelo assistente DD, não tendo atendido às declarações prestadas pelo arguido e ao depoimento de CC, dos quais resulta que:
• o arguido não se aproximou da menina BB nem a viu passar;
• o arguido não confessou que tinha dito a expressão que lhe é atribuída;
• não é possível provar que o arguido a dirigiu diretamente a BB e não aos amigos em jeito de comentário.
Diga-se antes de, mais que como resulta expressamente da motivação da decisão de facto, o Tribunal não se ateve exclusivamente às declarações do assistente, nem desconsiderou o declarado pelo arguido, antes sopesou estas declarações e todos os depoimentos testemunhais numa análise crítica que encontrou um denominador comum na matéria de facto dada como provada.
Acresce que nem umas nem outros impõem decisão diversa da tomada pelo Tribunal recorrido quanto aos factos sob o ponto 2..
Senão vejamos.
O recorrente afirma não ter confessado ter dito a expressão que lhe é atribuída.
Mas a decisão recorrida também não diz o contrário.
O que se escreve a este propósito na motivação é apenas que o arguido «não negou, peremptoriamente, a prática dos factos, afirmando que na sua consciência nada disse, mas pedindo desculpa e mostrando arrependimento caso o tivesse feito.».
E de facto assim é.
Tendo sido expressamente instado pelo Mm.º Juiz a quo sobre o que queria dizer quando, espontaneamente disse que «podia ter dito isso» e que «estava sob o efeito do álcool», não deixou margem para dúvidas: «podia ter dito isso, podia estar embriagado» - 05m22s da gravação; na parte final dessas declarações, a instâncias da Sra. Procuradora do Ministério Público que o indagou como poderia ter isso acontecido se dissera estar virado de costas e não ter visto a menor passar, ainda disse que podia-se ter virado e ter dito isso – 10m27s da gravação.
Ou seja, o arguido não nega que pudesse, no estado alcoolizado em que se encontraria, ter dito as palavras que lhe estão atribuídas; o que, não constituindo uma confissão desses factos, não deixa de ter um significado probatório, qual seja:
o arguido não exclui que pudesse ter proferido aquelas palavras;
o arguido justifica ambos os factos, o de poder ter dito essas palavras e o de não poder afirmá-lo com certeza, com a circunstância de se encontrar sob o efeito do álcool.
O Tribunal a quo, pela forma como fundamenta a decisão da matéria de facto, mormente quanto a este concreto ponto, não vai além do que assim decorre do declarado pelo arguido.
E por isso, se produziu toda a prova indicada na acusação e vêm indicados na fundamentação da decisão de facto todos os elementos de prova em que o Tribunal faz assentar a sua convicção, tarefa desnecessária se se considerasse estar perante uma confissão – art.º344º/1 e 2 do Código de Processo Penal.
Mas da possibilidade admitida pelo arguido de ter dito aquelas palavras, resulta ainda, como deixou exposta a resposta dada àquela última instância da Sra. Procuradora, que, nesse caso, terá visto a menor passar e se terá voltado para ela, dirigindo-se-lhe, pois só assim fariam as mesmas sentido.
Aduz ainda o recorrente que, como declarou, não se aproximou de BB.
Os depoimentos, neste ponto unânimes, das testemunhas presenciais EE, II e do assistente DD, que seguiam uns escassos metros atrás das duas menores, ao ponto de terem escutado as palavras dirigidas a BB, também não deixam aqui qualquer margem para dúvidas – o arguido, que estava num grupo de rapazes, saiu do grupo que se reunia junto do balcão de uma casa, e deu uns passos à frente para o passeio, aproximando-se das menores que iam a passar, o que permitiria ainda não ficassem dúvidas que foi ele, e não qualquer outro dos jovens que aí estavam, quem perpetrou estes factos.
Diga-se ainda que, escutados estes depoimentos, assomam os mesmos como isentos e objetivos, tendo inclusivamente partes favoráveis ao arguido, que o mesmo agora usa no seu recurso, como quando afirmaram que caso soubesse tratar-se de BB, filha do assistente, que já conhecia previamente do futebol – teria jogado futebol com o seu pai e veio depois dos factos a treiná-lo a si como jogador de futebol -, não o teria feito, dando ainda ensejo a que se concluísse não saber ter a menor 13 anos de idade ao referirem a sua constituição física desenvolvida para a idade que tinha.
O assistente declarou ainda não pretender indemnização do arguido nem querer que lhe acontecesse nada de mal.
EE ainda acrescentou acreditar que o arguido não quisesse ofender.
Mas se têm estes depoimentos que merecer credibilidade também por esta razão, não se lha pode retirar quando dos mesmos resulta um facto menos favorável ao arguido.
Assim é que, pese embora o depoimento de CC, tivesse de facto sido no sentido indicado no recurso, ou seja, de ter o arguido emitido as referidas palavras dirigindo-se aos amigos, importa enquadrá-lo na globalidade dos esclarecimentos que prestou e no conjunto da prova produzida, assim como da factualidade dada como provada.
Isto porque, atentando no teor das expressões que terão sido proferidas, mormente nas formulações verbais adotadas, percebe-se que elas contemplam dois interlocutores, mas uma única destinatária:
«Ela dá tesão, não dá?» - falando com terceiros, possivelmente os outros jovens que ali se encontravam, sabendo, no entanto, não poder deixar de ser ouvido por “Ela”;
«Tens um belo cu! Dava-te uma foda!» - dirigindo-se a BB.
Ou seja, o arguido estar-se-ia de facto a exibir – como disse CC, «foi uma maneira de se achar à frente dos amigos» - perante os rapazes que ali se encontravam, mas isso não é incompatível com ter em simultâneo dirigido palavras especificamente à “vítima” escolhida para essa sua exibição.
E isso explica como é que tendo CC referido que o arguido falava com os amigos, disse também de forma muito natural e espontânea, saber que aqueles comentários eram dirigidos a BB, e não a si, por ter o arguido apontado na direção dela enquanto falava.
Note-se que CC tinha à altura de 14 anos de idade, tendo perfeito 17 anos quando chegou a depor em julgamento, sendo que, além disso, como decorre da dinâmica dos acontecimentos que forneceu (condizente com os depoimentos das já referidas testemunhas) seguia à frente de BB, tendo apenas visto o arguido quando, ouvindo aquelas palavras, se virou para trás.
Acresce que nas declarações prestadas por BB para memória futura, em momento mais próximo dos acontecimentos – .../.../2021 -, esta disse com toda a segurança que as palavras proferidas se referiam a si, corroborando que o arguido apontou e olhou diretamente para si, e se dirigiam aos amigos na parte em que disse: «ela dá tesão, não dá?» e diretamente a si na parte em que disse: «dava-te uma foda» - minuto 29 da gravação.
Assim, a perspetiva de BB, diretamente visada por tais palavras, e dos adultos que seguiam atrás, com visão ampla e direta para a ocorrência, todos consentâneos quanto a este ponto, será sempre de valorizar como a mais fidedigna.
Foi o que fez o Tribunal a quo.
Fê-lo ainda quanto a estar o arguido a dirigir-se a BB e não a CC, apesar de alguma dúvida manifestada por EE; isto porque, além de BB, quer o assistente, quer II, quer ainda, como vimos, CC, não tiveram qualquer dúvida em o afirmar, fosse porque CC seguia à frente de BB (segundo o assistente), fosse porque o arguido apontou para BB quando falou e só aí CC se voltou para trás, constatando esse facto (segundo CC), fosse ainda porque seria BB, não CC, quem vestia uns calções e teria uma constituição física que chamava mais a atenção (II).
Inexiste, nessa medida, qualquer situação de dúvida que impusesse o recurso ao princípio geral de avaliação da prova em processo penal traduzido na máxima in dubio pro reo - conclusão xxxv..
Por último, não pode deixar aqui de se salientar o menor relevo da questão se assentarmos em que, mesmo que o arguido estivesse a falar para os seus amigos, o conteúdo do seu discurso tinha BB por objeto e era a BB que o arguido se referia, sabendo que esta não podia deixar de o escutar, o que, como se deu como provado, quis.
Nada há, pois, a censurar ao decidido quanto a este ponto da matéria de facto provada.
*
Factos descritos em 3. (conclusões xv. a xxii.) e em 4. (conclusões xxiii a xxviii)
No que tange a estes factos, entende o recorrente não conferir a prova produzida, nomeadamente as declarações do assistente, pai da BB, assim como o depoimento da mãe da mesma, EE, suporte à conclusão extraída de que o arguido «agiu com o propósito concretizado de constranger a BB a contato de natureza sexual, visando satisfazer os seus instintos libidinosos», tão pouco quanto a ter agido de «forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei».
Entende que não pode dar-se tal como provado tendo em conta o declarado pelo assistente, que qualificou a conduta do arguido como “uma coisa de rapazes” e por EE, mãe da menor, de que o arguido não teria tido o propósito de ofender, sendo que não terá reconhecido a menor, pois se o tivesse feito, não se teria comportado daquele modo; refere ainda, de novo, o depoimento de CC para afirmar que estava a falar com amigos.
Pois bem.
Estão em causa, no geral, factos relativos à disposição interior do arguido, os quais, não havendo, como não houve, confissão, têm que extrair-se por dedução doutros factos objetivos, numa leitura conforme às regras da experiência comum e normalidade do acontecer.
Assim procedeu o Tribunal a quo, como se denota no seguinte trecho da fundamentação:
«(…)
Já no que toca à facticidade inserta nos pontos 3) e 4) dos factos provados, o tribunal atendeu aos factos objectivos dados como provados em conjugação com as regras da experiência e da normalidade do acontecer; destarte, o arguido não podia ignorar, como não ignora qualquer cidadão, que, ao actuar da forma descrita, além de satisfazer os seus impulsos sexuais, ofendia a liberdade sexual da BB, formulando propostas de carácter sexual.
Acresce que, quanto à intencionalidade e voluntariedade das condutas do arguido relevaram os factos objectivos dados como provados descrevendo as suas condutas e regras de experiência comum, sendo que ao actuar da forma dada como provada, não pode o arguido deixar de o ter feito de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo - como sabe a generalidade dos cidadãos - que os seus comportamentos eram passíveis de serem punidos criminalmente.
(…)».
O conteúdo sexual das expressões dirigidas à ofendida BB, menor de 13 anos de idade, associado ao vernáculo grosseiro usado para a ela se dirigir, além de a objetificarem sexualmente diante uma plateia masculina, com tudo o que tal representa para a pessoa coisificada, no caso uma adolescente – pela BB foi expressado esse sentimento de desconforto por se sentir objetificada, sendo que nos dias seguintes deixou de vestir calções e roupas curtas, tendo ficado com medo de se encontrar com o arguido -, não deixam margem para dúvidas quanto à satisfação sexual extraída pelo arguido dessa sua abordagem; é significativa a este propósito e muito visual a expressão «ela dá tesão, não dá?».
Além disso, mesmo não se tendo provado ter o arguido conhecimento da idade da menor, não podia deixar de saber tratar-se de uma jovem que, deste modo, estava a expor publicamente a uma linguagem vernácula sexualizada reveladora dos seus intuitos libidinosos, desrespeitando a liberdade daquela na forma de se determinar sexualmente.
A esta conclusão não obsta o facto de os pais da menor, o assistente DD e EE, dizerem que se o arguido soubesse de quem se tratava não teria certamente procedido deste modo – referindo-se ao conhecimento que existia entre o assistente e o pai do arguido, e também com este, por serem todos praticantes de futebol -, pois que não é a BB destes autos que a incriminação da importunação sexual pretende proteger, mas todas as “BB” e pessoas em geral, homens e mulheres, que são sujeitas a este tipo de tratamento tipificado como crime.
A invocação deste argumento pela defesa levado até às últimas consequências levaria ao absurdo de que o arguido só pudesse responder criminalmente pelo que disse se soubesse estar a dirigir-se à filha do assistente, um seu conhecido e colega da prática desportiva do futebol.
De igual modo, não se vê como possa relevar nesta sede, que é a dos factos integradores do elemento subjetivo típico do crime de importunação sexual, o declarado pela mãe de BB, de que o arguido não pretenderia ofender, pois que também não é esse genérico intuito de ofender que lhe está atribuído, senão o de satisfazer os seus instintos libidinosos.
E se o assistente DD referiu de facto que teria sido uma coisa de rapazes, uma opinião que em nada vincula o juízo objetivo a realizar pelo Tribunal, também se reservou quanto à intenção do arguido ao dizer aquelas palavras, percebendo-se na forma como o fez que não encarou o sucedido como uma qualquer brincadeira inconsequente, tendo, ao contrário, valorizado essa ocorrência, dizendo mesmo não querer «que aconteça nada ao rapaz», mas «não quero que a minha filha ou outra rapariga passe pelo mesmo».
Ademais, a lei criminal, que espelha o sentir da comunidade em relação aos bens jurídicos que merecem essa proteção mais intensa, é indicativa de que este tipo de condutas, que seria noutros tempos tolerada e desvalorizada, deixou de o ser.
Diga-se, ainda que o facto de o arguido estar em simultâneo a dirigir-se (exibir-se) para um público masculino de jovens com os quais se encontrava, em nada interfere com o exposto, antes reforçando a ilicitude da conduta, também pelo grau de humilhação acrescido assim infligido à vítima.
O mesmo se diga em relação ao facto de o arguido poder ter atuado sob efeito do álcool, facto que este menciona, como tinha bebido, sem deixar de ressalvar, achar que estava sóbrio – conclusão xxiv.; a ofendida BB fez referência a estarem o arguido e amigos com cervejas na mão, mas dizendo que estavam conscientes do que estavam a fazer.
Mesmo admitindo que o arguido estivesse a ingerir álcool, desconhece-se qual a quantidade álcool ingerida e presente na sua corrente sanguínea, assim como e em que medida isso interferiu na sua capacidade de avaliação da ilicitude da sua conduta e na sua capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação.
Não procede, deste modo, o argumento da defesa que, sem o nomear, parece pretender arguir uma imputabilidade diminuída, com previsão no art.º 22º, do Código Penal – conclusões xxiv. e xxv..
Nenhum facto foi, porém, alegado ou dado como provado de suporte a tal putativa arguição.
*
Dito isto, somos, porém, a entender que a prova produzida não confere de facto suporte à afirmação em 3. dos factos provados de que AA agiu com o propósito concretizado de constranger a BB a contacto de natureza sexual.
Ante a factualidade provada quanto à concreta atuação atribuída ao arguido na dinâmica e interação com a ofendida, será, desde logo, de rejeitar o conteúdo objetivo consistente na afirmação de que foi concretizado o propósito de constranger a menor a contacto de natureza sexual.
Não foi.
De acordo com os factos provados e com a prova produzida, não existiu, de facto, qualquer contacto físico, nem a aproximação física havida terá ido ao ponto de quase toque entre o corpo do arguido e o da menor.
É a BB quem de forma muito clara e objetiva refere que o arguido ficou a uma distância de si que indicou na sala de audiências onde estava a ser inquirida e que, consensualmente entre a Mm.ª Juíza que presidia, a Sra. Procuradora do Ministério Público e os Senhores Advogados intervenientes, definiram como sendo de cerca de 3 metros.
Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque[3], «o contacto de natureza sexual é a ação com conotação sexual realizada na vítima, que não tem a gravidade do ato sexual de relevo», podendo incluir «o toque (com objetos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés, da vítima», mas também uma «aproximação física do corpo do agente ao da vítima de modo que quase se toquem».
Ora, esse toque ou quase toque entre o corpo do arguido e o corpo da BB, como se viu, esteve longe de se concretizar.
De igual forma, a matéria de facto provada e a prova produzida não permitem concluir que fosse efetivamente propósito do arguido constranger a menor a ter consigo contacto sexual, considerando que além da aproximação encetada com a vinda do arguido para a rua, saído da casa onde se encontrava, não foi a mesma acompanhada de qualquer gesto ou manifestação de intenção que fizessem prever a iminente ou previsível concretização imediata de um contacto físico de natureza sexual.
Ouvida a menor, também não relatou que tivesse sentido como estando em risco de acontecer essa aproximação física mais intensa; de resto, nas declarações para memória futura apenas se reporta a essa aproximação quando, após o sucedido entre si e o arguido, tendo o seu pai, aqui assistente, chamado a atenção com algo do género: «cuidado com as bocas», o arguido entraria em diálogo e conflito com aquele.
Nestes termos, afigura-se-nos ser de alterar a matéria de facto inserida sob o ponto 3., eliminando o trecho: com o propósito concretizado de constranger a BB a contacto de natureza sexual, e tudo quanto excede o âmbito subjetivo subjacente à conduta objetivada nos termos já referidos, passando a ter a seguinte redação:
3. Agiu o arguido visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitar a liberdade sexual de BB ao formular perante ela propostas de teor sexual.
No mais, e em razão do já exposto, é de manter o decidido.
*
Em suma:
As provas indicadas no recurso foram também aquelas que se ponderaram na decisão recorrida, com observância das regras da experiência comum, apontando no sentido que ali se adotou, nenhum outro se impondo a partir delas, salvo quanto ao âmbito definido para os factos sob o ponto 3..
Neste quadro, a decisão sobre a matéria de facto, além de devidamente fundamentada, contendo exame crítico das provas, reflete uma leitura adequada da prova produzida de acordo com a livre convicção do tribunal e as regras da lógica e da experiência, nada havendo a modificar com exceção daquele inciso constante do ponto 3..
Não foi, pois, violado o disposto no art.º127º do Código de Processo Penal, tão pouco o princípio da presunção da inocência; isto porque ao contrário do propugnado não decorre da prova que existam duas versões distintas dos factos, antes se mostrando todas elas compagináveis, nos termos expostos supra, de tal forma que o Tribunal não ficou em situação de dúvida,, não tendo por isso aqui aplicação o invocado princípio in dubio pro reo plasmado no art.º32º/2 da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto quanto ao inciso da parte inicial do ponto 3. - «com o propósito concretizado de constranger a BB a contacto de natureza sexual», improcedendo no mais, por inexistir qualquer erro de julgamento quanto à restante matéria dos factos sob esse ponto, e sob os assinalados pontos 2. e 4..
*
2.3. DO DIREITO
2.3.1 Das consequências de Direito resultante da alteração introduzida na matéria de facto provada
Em face da alteração acabada de introduzir nos factos provados, e mais especificamente da eliminação da matéria de facto provada da afirmação de que o arguido agiu com o propósito concretizado de constranger a BB a contacto de natureza sexual, importa antes de mais aferir se haverá alguma consequência de Direito a extrair.
Entendemos que não.
Nos termos do disposto no art.º 170º do Código Penal, comete o crime de importunação sexual «Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual (…)».
Assim, para que seja preenchido este tipo legal de crime não tem que verificar-se constrangimento a contacto de natureza sexual, pois que esta reconduz-se somente uma das modalidades da ação típica, que contempla ainda a prática perante a vítima de atos de carácter exibicionista e a formulação de propostas de teor sexual.
Conforme se entendeu na decisão recorrida, os factos provados encaminham-nos para a subsunção da conduta do arguido a esta última conduta típica, de formulação de propostas de teor sexual.
Como nos diz Paulo Pinto de Albuquerque «A formulação de propostas de teor sexual inclui palavras ou sons exprimidos ou comunicados pelo agente, tais como piadas, questões, considerações, exprimidas oralmente ou por escrito, bem como expressões ou comunicações do agente que não envolvam palavras ou sons, com por exemplo, expressões faciais, movimentos com as mãos ou símbolos.». [4]
A formulação, através de qualquer destas formas de expressão, de repto, convite ou proposta de cariz sexual, é o que basta, pois, à configuração da ação típica do crime de importunação sexual sob esta modalidade.
Ora, ficou demonstrado ter o arguido formulado através de palavras uma intenção e proposta de manter trato sexual com a BB ao dizer-lhe «dava-te uma foda».
De resto, as palavras proferidas pelo arguido, ao contrário do que parece sugerir a defesa no recurso, estão muito longe do que pode considerar-se um simples piropo, que tem no seu significado comum uma natureza elogiosa, e não contempla qualquer ação de natureza sexual sobre a vítima, ainda como mera possibilidade.
Com efeito, um piropo consiste numa expressão ou frase dirigida a alguém, geralmente para demonstrar apreciação física [5].
Não sendo manifestamente um piropo, a expressão usada pelo arguido assume a forma de uma proposta de teor sexual, atingindo o bem jurídico protegido pela incriminação.
Com efeito, a razão de ser da criminalização da formulação de propostas de teor sexual, reside no perigo para a liberdade sexual da vítima, isto é, na possibilidade séria da prática de um ato sexual posterior que ofenda a liberdade sexual da pessoa visada, verificando-se, assim, uma antecipação da tutela penal. [6]
Ora, no caso em apreço, a forma como o arguido se dirigiu a uma menor de 13 anos de idade (apesar de não provado o seu conhecimento dessa exata idade), acompanhada de jovem da mesma idade, à noite e na via pública, induz, e induziu na mesma, a possibilidade de vir o mesmo a tentar concretizar o ato sexual proposto, atingindo-a, por esse modo, na sua liberdade sexual.
De resto, o que resulta provado do ponto de vista dos factos atinentes à disposição interior do arguido é suficiente para se concluir que:
3. Agiu o arguido visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitar a liberdade sexual de BB ao formular perante ela propostas de teor sexual.
Assim como será suficiente para concluir pelo preenchimento do tipo legal de crime de importunação sexual, na modalidade de formulação de propostas de teor sexual, com dolo direto, como se entendeu na sentença recorrida.
O facto de se haver eliminado o trecho que apontava, objetiva e subjetivamente, para a modalidade da prática do crime mediante constrangimento a contacto de natureza sexual, acaba assim por não surtir qualquer efeito na integração jurídico-penal realizada, que terá que se manter nos termos ora expostos.
De igual modo, não vemos razão para, em função dessa alteração, introduzir qualquer modificação no tocante às penas aplicadas, visto que a sentença recorrida tratou tal questão sempre no pressuposto de que a modalidade de ação típica verificada era a da formulação de propostas de teor sexual, nunca havendo considerado ou valorado nessa sede qualquer constrangimento de natureza sexual, concretizado ou sequer intencionado.
Com efeito, aí se expendeu a este propósito o seguinte [transcrição]:
«(…)
No caso sub judice, vejamos o que de relevante nesta sede se apurou relativamente a ao arguido: a ilicitude dos factos é elevada, tendo em conta a concreta forma de agir do arguido, o teor da expressão proferida e a idade da vítima; a culpa do agente é acentuada uma vez que o arguido quis e conseguiu proferiu formulação de carácter sexual; por outro lado, milita a favor do arguido a sua inserção social e familiar e a ausência de antecedentes criminais.
As exigências de prevenção especial são diminutas tendo em conta que o arguido, além da estar integrado na sociedade (familiar e socialmente), não apresenta qualquer antecedente criminal, pelo que se nos afigura que estamos perante um acto isolado que não se irá repetir.
Sopesados estes elementos, atendendo (1) às exigências de prevenção geral e especial suscitada no caso em apreço e (2) e tendo em conta a pena de multa aplicável ao ilícito típico em apreço afigura-se-nos como justa, adequada e proporcional a aplicação o arguido AA, pela prática de um crime de importunação sexual, a pena de 100 dias de multa.
*
Do quantitativo diário da pena de multa
No que concerne à tarefa metodológica da determinação do quantitativo diário da pena de multa, importa salientar que aqui relevam, exclusivamente, a situação económico-financeira e os encargos pessoais do agente - cfr. artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal.
Assim, em conformidade com o estatuído no n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5,00 e €500,00, a fixar em função da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, considerando, nomeadamente, a totalidade dos seus rendimentos próprios, a que serão deduzidos os gastos e despesas que tenha de suportar.
Neste contexto, importa realçar que a pena de multa só cumprirá a sua finalidade político-criminal, se constituir um verdadeiro sacrifício para a condenada (salvaguardando-se o indispensável para garantir um nível existencial mínimo).
No que concerne à situação económica do arguido, atentos os factos dados como provados e que aqui damos por reproduzidos, resulta provado que o mesmo vivência uma situação económica satisfatória.
Nestes termos, mostra-se adequado e suficiente fixar o quantitativo diário a pagar pela arguida em €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos).
Das penas acessórias.
O artigo 69.º-B do Código Penal, epigrafado de “Proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual” prescreve que: 1 - Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre dois a 20 anos, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima não seja menor. 2 - É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. 3 – É condenado na proibição de exercer funções ou atividades públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, nos estabelecimentos previstos no n.º 1 do artigo 166.º, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto no artigo 166.º
Por sua vez, o artigo 69.º-C do Código Penal, epigrafado de “Proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais” estabelece que: "1 - Pode ser condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre dois e 20 anos, atenta a concreta gravidade do fato e a sua conexão com a função exercida pelo agente, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima não seja menor. 2 - É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor. 3 - É condenado na inibição do exercício de responsabilidades parentais, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, praticado contra descendente do agente, do seu cônjuge ou de pessoa com quem o agente mantenha relação análoga à dos cônjuges.
A sanções previstas nestes artigos são uma punição adicional do agente e não uma medida de protecção de menores. Esta sanção é uma verdadeira pena acessória, pois a sua aplicação depende da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime de da valoração dos critérios gerais de determinação das penas e a pena é graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei.
O pressuposto formal da pena acessória é a condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, independentemente da pena principal aplicada. O pressuposto material da pena acessória é a conexão do facto criminoso com a função exercida pelo agente e a concreta gravidade do facto. Dito de outro modo, o facto criminoso não tem de ter ocorrido no exercício da função do agente. A lei exige apenas que a concreta gravidade da sua conduta contra a liberdade ou autodeterminação sexual revele a indignidade do agente para assumir a confiança de menores ou exercer as suas responsabilidades parentais.
Quando a vítima não seja menor, a pena acessória é facultativa; quando a vítima é menor a pena acessória é obrigatória.
A determinação da duração das penas acessórias depende dos critérios gerais de determinação das penas, ponderando-se a prevenção especial em particular.
No caso concreto, encontra-se preenchido o pressuposto formal, sendo a vítima menor de 14 anos, pelo que a aplicação da pena acessória é obrigatória.
Nessa medida, determino a proibição do arguido AA de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco anos, por um período fixado de cinco anos bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de cinco anos.
(…)».
Como resulta do acabado de transcrever, o Tribunal a quo não se serviu do facto expurgado da matéria de facto provada para fundamentar a escolha e determinação da medida das penas aplicadas.
Nada há, pois, a modificar quanto ao enquadramento jurídico-penal, escolha e determinação da medida da pena por força da alteração introduzida na matéria de facto provada.
2.3.2 Da falta de fundamento do recurso quanto ao Direito
Sem indicar que concreta norma entende ter sido violada, em observância do disposto no art.º 412º/2, do Código de Processo Penal, o ora recorrente queixa-se genericamente da excessividade da pena de multa de 100 dias e da aplicação das penas acessórias, «tendo em conta que este crime em ultima ratio vem criminalizar os chamados "piropos", que é o caso em concreto» e «já que à data da prática dos factos, o Arguido tinha apenas 22 anos.».
Mais invoca a dúvida sobre qual era o objetivo do arguido, se era dirigir-se à menor, uma vez que não ficou provada uma aproximação física ou uma conversa direta com a mesma, e cita jurisprudência que, afasta do preenchimento típico do crime de abuso sexual previsto e punido pelo art.º171º/3,b) do Código de Processo Penal, o uso de expressões como as consideradas na decisão recorrida.
Alegando ter ficado claro que o recorrente não sabia com quem estava a falar, ou de que se tratava de uma menor e muito menos de alguém que até podia conhecer de vista, considera não estarem preenchidos os requisitos do crime.
Remete ainda para uma ideia de inconsciência da ilicitude, sem o afirmar, citando o acórdão da Relação de Évora de 26/06/2018 por desconhecimento que se estava a dirigir a uma menor, o que tornaria manifesto a não verificação do elemento da estatuição criminal que é pressuposta da estatuição da pena acessória, da verificação da consciência da ilicitude que conduz à aplicação da mesma.
Insurge-se, por fim, contra a sua condenação nas penas acessórias previstas nos art.ºs 69º-B e 69º-C, do Código Penal, aludindo à sua situação pessoal, pois que à data da prática dos factos tinha apenas 22 anos, parecendo-lhe aquela aplicação manifestamente abusiva.
Que dizer?
Desde logo que o recorrente é muito vago e inconsequentemente nas questões assim suscitadas, e, apesar de aludir a recurso em matéria de direito, nem na motivação nem nas conclusões do recurso, indica, em observância do disposto no art.º 412º/2 do Código de Processo Penal:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Ora, analisada a decisão quanto à aplicação do Direito, diga-se que, sem prejuízo do que infra se discorrerá acerca da inconstitucionalidade da previsão legal das penas acessórias para o crime de importunação sexual na modalidade de formulação de propostas de teor sexual, por violação do disposto no art.º18º/2 da Constituição da República Portuguesa, não se divisa que haja sido violada qualquer outra norma jurídica atinente às concretas questões colocadas.
Vejamos brevemente.
Quanto à alegada dúvida sobre qual era o objetivo do arguido, se era dirigir-se à menor, uma vez que não ficou provada uma aproximação física ou uma conversa direta com a mesma, mostra-se a mesma resolvida na decisão sobre a matéria de facto, nos termos que vimos de sancionar; ou seja, não ficou dúvida de que o arguido se estava a dirigir à menor quando formulou a proposta: “dava-te uma foda”, mas também quanto a ter existido uma aproximação mas não um contacto físico.
A jurisprudência citada a este propósito com o intuito de afastar o preenchimento típico do crime de abuso sexual previsto e punido pelo art.º 171º/3, b) do Código Penal, diz respeito a situações e crime diversos, com contornos distintos [7].
Por outro lado, vimos já na apreciação dos factos, a irrelevância da circunstância (alegada) de o recorrente não saber com quem estava a falar.
Mostra-se identicamente irrelevante, desta feita, para o preenchimento típico do crime de importunação sexual, o conhecimento pelo arguido de que se estava a dirigir a uma menor, porquanto a menoridade da vítima não configura elemento do tipo de crime de importunação sexual previsto no art.º170º do Código Penal; em contrataste, aliás, com a previsão do crime de abuso sexual de crianças previsto pelo art.º171º/3,a), do Código Penal, indicado na acusação, mas cuja aplicação foi afastada pelo Tribunal a quo, precisamente com base na não prova de que o arguido soubesse estar a dirigir-se a menor de 13 anos de idade.
Nesta consonância, está votada ao insucesso a tentativa de invocação (não expressa) de inconsciência da ilicitude por desconhecimento que se estava a dirigir a uma menor, raciocínio que se estende à estatuição das penas acessórias.
Assim, a exigência para a aplicação da pena acessória de consciência por parte do agente da menoridade da vítima, não tem qualquer sustentação jurídica, nem ela é indicada, sendo irrelevante para a verificação do requisito da menoridade da vítima exigido para aplicação das penas acessórias dos nºs 2 dos art.ºs 69º-B e 69º-C, do Código Penal, que é objetivo - a idade a considerar será a que resulta da sua identificação legal [8] -, a circunstância, diga-se, não alegada em sede de contestação nem constante dos factos provados, de a menor vítima do crime aparentar ter 14 anos ou mais.
Não colhe, por fim, a crítica dirigida às penas, principal e acessórias, por excessividade.
Quanto à pena principal, depois de fazer a opção pela pena de multa, em alternativa à pena de prisão, o Tribunal a quo justificou [transcrição]:
«(…)
No caso sub judice, vejamos o que de relevante nesta sede se apurou relativamente a ao arguido: a ilicitude dos factos é elevada, tendo em conta a concreta forma de agir do arguido, o teor da expressão proferida e a idade da vítima; a culpa do agente é acentuada uma vez que o arguido quis e conseguiu proferiu formulação de carácter sexual; por outro lado, milita a favor do arguido a sua inserção social e familiar e a ausência de antecedentes criminais.
As exigências de prevenção especial são diminutas tendo em conta que o arguido, além da estar integrado na sociedade (familiar e socialmente), não apresenta qualquer antecedente criminal, pelo que se nos afigura que estamos perante um acto isolado que não se irá repetir.
Sopesados estes elementos, atendendo (1) às exigências de prevenção geral e especial suscitada no caso em apreço e (2) e tendo em conta a pena de multa aplicável ao ilícito típico em apreço afigura-se-nos como justa, adequada e proporcional a aplicação o arguido AA, pela prática de um crime de importunação sexual, a pena de 100 dias de multa.
(…)».
Não indica o recorrente o que nesta operação de determinação da medida concreta da pena foi incorreto e deveria ser alterado, e em que sentido, falando genericamente em excessividade.
Como ensina o Professor Figueiredo Dias[9] «Na determinação da medida da pena o modelo mais equilibrado é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.».
Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de atuação do julgador que é difícil, se não mesmo impossível, de sindicar, embora o cumprimento do dever de fundamentação vise precisamente tornar possível o controlo da decisão sobre a determinação da pena.
Acerca da questão da cognoscibilidade e controlabilidade da determinação da pena no âmbito do recurso, refira-se que a intervenção do tribunal superior quanto à concretização do seu quantum e ao controlo da sua proporcionalidade, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não é ilimitada.
Nessa senda, pode e deve sindicar-se nesta sede a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considera-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como à forma de atuação dos fins das penas no quadro de prevenção. Mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada. [10]
Ora, na consideração global de todas as circunstâncias indicadas na decisão recorrida, não divisando outras que aí pudessem atender-se (nem no recurso são indicadas), devidamente valoradas pelo Tribunal a quo, e tendo presente que a pena de multa não pode deixar de representar uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada, não se vê qualquer fundamento para alterar a medida da pena aplicada, por se mostrar adequada e necessária às elevadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir e que o caso reclama, sendo igualmente consentida pelo grau de culpa do agente.
Cai, por isso, a invocação genérica de excessividade da pena principal de multa.
Quanto à excessividade apontada também às penas acessórias aplicadas, de 5 anos para cada uma das proibições, importa dizer-se que sendo de aplicação obrigatória in casu por ser a vítima menor, como decorre do disposto nos arts. 69º-B/2 e 69º-C/2, do Código Penal, mais uma vez sem prejuízo do que infra se consignará no tocante à sua conformidade constitucional, foram as mesmas aplicadas pelo mínimo legal, tendo em conta a menor gravidade dos factos em causa e a idade do arguido, acreditando-se, como é dito na sentença, que se terá tratado de um episódio isolado na sua vida.
Não se compreende, por isso, a censura pretendida, por excessividade destas penas, na certeza de que ao contrário do que vem argumentado também a este propósito, e como já analisado, a conduta do recorrente não se resume a um piropo, antes integrando sem qualquer dúvida o tipo objetivo de crime de importunação sexual sob a forma de formulação de proposta de teor sexual.
Assim e por tudo o que se expôs, por infundado, o recurso é, nesta parte, improcedente.
2.3.3 Da inconstitucionalidade da previsão dos art.ºs 69º-B e 69º-C do Código Penal
Como já referido, o recorrente insurge-se ainda contra a sua condenação nas penas acessórias previstas nos art.ºs 69º-B e 69º-C, do Código Penal, aludindo à sua situação pessoal, pois que à data da prática dos factos tinha apenas 22 anos, parecendo-lhe aquela aplicação manifestamente abusiva.
Vejamos.
Em face da condenação do arguido pela prática do crime de importunação sexual, previsto pelo art.º 170º do Código Penal, sendo a vítima menor, entendeu o Tribunal a quo, por ser obrigatório, aplicar as penas acessórias previstas nos art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2, do Código Penal, de:
• proibição de o arguido assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco anos;
• proibição de o arguido exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de cinco anos.
Podia o Tribunal recorrido ter decidido de forma diferente, nomeadamente não aplicando estas penas acessórias ao arguido?
A nosso ver sim, ainda que por fundamento distinto do invocado - como vimos, improcedente -, qual seja, por desaplicação das ditas normas em virtude da sua inconstitucionalidade.
Vejamos.
*
O nosso sistema penal, fundado no axioma constitucionalmente consagrado sob o art.º 30º/4 da Constituição da República Portuguesa de que nenhuma pena envolve como efeito necessário e automático a perda de direitos civis, profissionais ou políticos, permite que a lei possa fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões, como decorre do disposto no art.º 65º do Código Penal.
Ponto é que essas proibições sejam aplicadas não como efeitos necessários da aplicação da pena principal, mas sob a forma de verdadeiras penas, acessórias porque com função adjuvante das penas principais, de cuja aplicação dependem.
Consistindo, assim, numa consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável sempre em cumulação com a pena principal, a sua autonomia resulta desde logo da exigência de alegação e prova de pressupostos autónomos relacionados com a prática do crime, mas também da previsão de uma moldura legal específica, dentro da qual se encontrará a sua medida concreta.
Como verdadeiras penas, que são, cumprem as mesmas finalidades das penas principais, nomeadamente na tutela de bens jurídicos, sendo que a sua aplicação e doseamento se encontram limitados pelo princípio da culpa, como estabelecido pelo art.º40º do Código Penal; obedecem igualmente aos critérios gerais de determinação da medida concreta daquelas penas principais, plasmados no art.º71º/1 e 2, do Código Penal. [11]
No caso que nos ocupa estão em causa as penas acessórias consagradas sob os art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2 do Código Penal, como dependência da condenação pela prática de crimes de natureza sexual, concretamente os previstos sob os art.ºs 163º a 176º-A, do Código Penal, e de aplicação obrigatória por ser a vítima menor; sendo a vítima do crime de importunação sexual previsto no art.º 170º do Código Penal, maior de idade, será já facultativa a aplicação destas penas acessórias.
Estipula, assim, o art.º69º-B/2 do Código Penal, com a epígrafe Proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual, que «É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.».
Por seu lado, estabelece o art.º69º-C/2 do Código Penal, sob a epígrafe Proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais, que «É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.».
Estes preceitos resultaram de aditamento ao Código Penal introduzido pela L. 103/2015, de 24/08, que, por sua vez, transpôs a Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011.
Alteraram-se, então, os pressupostos de aplicação das penas acessórias nos crimes de natureza sexual, anteriormente consagrados sob o art.º 179º do Código Penal, [12] que foi nessa sequência revogado.
Na base da previsão destas penas acessórias e sua obrigatoriedade sendo a vítima menor, encontram-se, pois, razões de defesa do interesse dos menores, enquanto potenciais vítimas deste tipo de crimes de natureza sexual, pela sua, natural, maior fragilidade, prevenindo e protegendo-os da repetição criminosa.
Assim é que a previsão do art.º 10º da referida Diretiva 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, erige a prevenção do risco de reincidência como fundamento da tomada de medidas pelos Estados para garantir que o condenado por crime de natureza sexual seja impedido, temporária ou permanentemente, de exercer atividades pelo menos profissionais que impliquem contactos diretos e regulares com crianças.
Postas estas premissas, vejamos, então, o caso em mãos.
In casu, ante a factualidade que ficou assente, estando verificados todos os requisitos para a aplicação das penas acessórias previstas nos art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2, do Código Penal, tendo em consideração a idade da ofendida visada pela conduta do arguido – 13 anos -, entendeu o Tribunal como obrigatória a aplicação das referidas penas, e aplicou-as em medida correspondente ao respetivo limite mínimo, de 5 anos.
Sustenta o recorrente a excessividade, não da medida concreta destas penas, que de facto se encontra reduzida aos respetivos mínimos legais, mas da aplicação das mesmas, considerando abusiva em face das suas circunstâncias pessoais favoráveis.
Todavia, conforme entendeu o Tribunal a quo, estando em causa uma vítima menor, essa aplicação mostra-se obrigatória nos termos dos nºs 2 respetivos.
E é preciso neste ponto notar que se mostram hoje, praticamente de forma pacífica[13], ultrapassadas as reservas suscitadas por esta aplicação obrigatória das penas acessórias, e a sua compatibilização constitucional, nomeadamente considerando o estatuído no art.º30º/4 da Constituição da República Portuguesa, sob o qual se consagra o principio da proibição do efeito automático das penas.
Isto porque, em bom rigor, não está em causa a imposição da proibição decorrente da aplicação da pena acessória como mero efeito de qualquer condenação anterior; estamos, outrossim, perante a aplicação de uma verdadeira pena que constitui, ela própria, à semelhança da pena principal, consequência jurídica da prática do crime.
Como já referido, a sua aplicação, dependente de decisão judicial, mostra-se, como a pena principal, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente, sendo a sua medida concreta encontrada dentro de uma moldura penal própria, com limites mínimo e máximo, permitindo e impondo a tarefa judicial de consideração das circunstâncias particulares de cada caso.
Configura-se, assim, como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última [14].
Neste sentido se tem vindo a pronunciar o Tribunal Constitucional, embora a respeito da automaticidade da sanção acessória prevista sob o art.º 69º do Código Penal, de proibição de conduzir veículos com motor. [15]
De igual forma, a Jurisprudência de Estrasburgo tem vindo a afirmar a compatibilidade destas penas associadas a infrações estradais com os art.º 4º do Protocolo 7 à CEDH (Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez) [16] e com o art.º 6º da CEDH (Direito a um processo equitativo). [17]
Nada há, pois, a apontar ao Tribunal recorrido por ter considerado de aplicação obrigatória as penas acessórias previstas nos arts. 69º-B/2 e 69º-C/2, do Código Penal.
Sendo certo que, como já referido supra, esta menoridade da vítima, não constituindo elemento típico do crime pelo qual vai o arguido condenado, mas apenas requisito de que depende a obrigatoriedade de aplicação da pena acessória, é de apreciação objetiva, não dependendo, pois, da alegação e prova de que estava o agente ciente desse facto quando da prática do crime; naturalmente, sempre sem prejuízo de valoração de factualidade atinente em sede de doseamento da pena acessória, que como se disse, tem a culpa como limite inultrapassável, à semelhança da pena principal.
Ou seja, com os factos dados como provados, e face ao respetivo enquadramento jurídico-penal no crime de importunação sexual, previsto pelo art.º 170º do Código Penal, contido, portanto no catálogo enunciado nos art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2, o Tribunal recorrido não podia ter deixado de aplicar as penas acessórias que aplicou, sendo que nessa aplicação considerou já a particular situação pessoal do arguido – jovem idade, inserção social e profissional e ausência de antecedentes criminais -, fixando as penas no mínimo legal.
E assim sendo, o recurso nesta parte pareceria sempre votado ao insucesso.
*
Sucede que, se não nos ficam dúvidas acerca da conformidade constitucional e com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da aplicação obrigatória destas penas acessórias estando em causa vítimas de menor idade de algum dos crimes de natureza sexual previstos nos art.ºs 163º a 176º-A, o mesmo não podemos dizer quanto ao limite mínimo da moldura penal aplicável, fixado em 5 anos.
Com efeito, confrontados com o caso concreto que temos em mãos, considerando a factualidade provada, assoma em nosso entender claramente excessivo este limite legal mínimo de 5 anos, conflituando nessa medida com o princípio constitucional da proporcionalidade consagrado sob o art.º18º/2 da Constituição da República Portuguesa, na dimensão de proibição do excesso na restrição de direitos, liberdades e garantias.
Expliquemos melhor.
Norma nuclear na definição do regime constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias, e a propósito da força dos mesmos na ordem jurídica, dispõe o art.º 18º da Constituição da República Portuguesa que:
«1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.» (negritos nossos).
Dos citados nºs 2 e 3 do art.º 18º decorre que podendo haver por via de lei ordinária restrição aos direitos, liberdades e garantias, para que seja a mesma constitucionalmente legítima tem que cumprir cumulativamente as seguintes condições:
a. ser a restrição, ela própria, expressamente admitida ou imposta pela Constituição – nº 2, 1ª parte;
b. visar a restrição salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido – nº 2, in fine;
c. ser a restrição exigida por essa salvaguarda, apta para alcançar esse efeito e limitar-se à medida necessária para alcançar esse objetivo – nº 2, 2ª parte;
d. não aniquilar o direito restringido, atingindo o seu conteúdo essencial – nº 3, in fine.
A condição indicada em c) corresponde ao princípio da proporcionalidade, também chamado de princípio da proibição do excesso, que se desdobra em três subprincípios:
princípio da adequação ou da idoneidade - as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos;
princípio da exigibilidade, da necessidade ou da indispensabilidade - essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias para alcançar o mesmo desiderato;
princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida - não poderão adotar-se medidas legais restritivas excessivas, desproporcionadas em relação aos fins obtidos.
Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias que consiste no respeito do conteúdo essencial do preceito que os consagra. [18]
Como decorre ainda do disposto no nº 1 do citado art.º 18º, inserido nos poderes públicos acometidos ao Estado, o poder jurisdicional, ou seja, o juiz, está obrigado a decidir o direito para o caso em conformidade com as normas garantidoras de direitos liberdades e garantias.
Assim é que nos termos do disposto no art.º 204º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais têm constitucionalmente o direito e o dever de fiscalização da constitucionalidade das leis, desaplicando-as caso estejam em contradição com as normas e princípios constitucionais. [19]
A previsão legal da punição penal, constituindo uma das mais significativas restrições do direito à liberdade, em homenagem a razões de segurança, como decorre do disposto no art.º 27º da Constituição da República Portuguesa, está imediata e diretamente sujeita à regra de que depende de norma constitucional habilitante, por um lado, e por outro, tem que limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, segundo o indicado princípio da proibição do excesso, em todas as dimensões elencadas.
Com a aplicação das penas acessórias previstas nos art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2 do Código Penal está em causa a restrição ao exercício de direitos pessoais de cidadania e capacidade civil, como o direito a exercer uma profissão ou o direito de assumir a confiança de menores, por adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar ou apadrinhamento civil, entrega ou guarda.
Nos termos do preceituado no nº 4 deste art.º 26º, «a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.».
Um dos casos é o da aplicação da lei criminal, em obediência ao princípio da legalidade, segundo o disposto no art.º 29º da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se a aplicação das penas e medidas de segurança regulada depois no art.º 30º.
Esta restrição é realizada para salvaguarda do direito das potenciais vítimas ao desenvolvimento da personalidade, especialmente sensível em vítimas menores, com previsão também sob o art.º26º/1 da Constituição da República Portuguesa, mas igualmente para tutela do direito à integridade pessoal, consagrado no art.º25º, em cujo nº 1 se preceitua: «a integridade moral e física das pessoas é inviolável».
A questão que se põe, então, é a de saber se é necessária para o fim de salvaguardar estes direitos constitucionalmente protegidos das potenciais vítimas, e em particular dos menores, a restrição imposta aos agentes de todos os crimes de natureza sexual previstos sob os art.ºs 163º a 176º-A do Código Penal, com um mínimo temporal de 5 anos, ou se a imposição deste limite mínimo se revela excessiva e desproporcional à obtenção desse desiderato, mormente nos casos como o vertente, em que o crime cometido é o de importunação sexual, a que corresponde pena até um ano de prisão ou multa até 120 dias, consistindo a conduta criminosa na verbalização de proposta de teor sexual.
Ora, afigura-se-nos que nestes casos particulares a salvaguarda daqueles direitos das vítimas e dos menores que constituam potenciais vítimas resultará assegurada mediante a aplicação de uma pena acessória de duração inferior àquele mínimo legal de 5 anos, ou poderá até mesmo mostrar-se desnecessária essa aplicação.
Importa considerar neste conspecto que a criminalização das propostas de teor sexual ocorre entre nós em 2015, pela L. 83/2015, de 05/08 que visou dar cumprimento ao art.º40º da Convenção de Istambul, epigrafada com a expressão «assédio sexual»[20], e rompe com um status quo de tolerância em relação a um certo estereótipo de comportamento essencialmente masculino culturalmente enraizado, em especial nos países latinos, e que choca com os valores adotados pelas sociedades hodiernas da igualdade de género e da luta contra todas as formas de violência sobre as mulheres.
Ou seja: até recentemente, este tipo de conduta traduzida em verbalizações de pendor sexual, não tinha lugar entre os crimes tipificados no Código Penal, que continha neste plano tão somente o crime de atos exibicionistas (com previsão no art.º171º do Código Penal), de cujo âmbito de aplicação estavam excluídas as condutas traduzidas em meras palavras proferidas perante outra pessoa , ainda que as mesmas a levassem a recear que se lhe seguisse a prática de qualquer ato sexual contra a sua vontade.[21]
A discussão despoletada então na sociedade portuguesa acerca da criminalização do que se apelidou vulgarmente (inexatamente) de “piropo”, e a mais recente discussão relativa à criminalização do assédio sexual, levam-nos, pois, a concluir que estamos perante condutas que se encontrarão muitas vezes no limiar da punibilidade.[22]
De outra banda, não será despiciendo notar que o art.º 10º da Diretiva 2011/93/UE acima referida, que, lembre-se, inspirou o nosso legislador na introdução das penas acessórias como constam dos art.ºs 69º-B e 69º-C do Código Penal, não prevê as condutas típicas do crime de importunação sexual.
Neste quadro, mostra-se indispensável para assegurar a constitucionalidade da aplicação daquelas normas penais, com respeito pelo princípio da proibição do excesso, que o juiz tenha a possibilidade de dosear a medida temporal da pena acessória dentro de limites razoáveis.
Isto porque, conforme já referido, as penas acessórias têm, em regra, uma função coadjuvante da pena principal, dependendo a respetiva medida concreta de razões de prevenção geral e especial e da culpa; pelo que, à semelhança da pena principal, a pena acessória deve revelar-se necessária, adequada e proporcional, proibindo-se o excesso na determinação da sua medida concreta.
E tendo de ser determinada a respetiva duração em função do facto praticado e da culpa do agente, dentro da moldura abstrata prevista, o limite mínimo imposto – de 5 anos – tenderá a mostrar-se desproporcional em situações que se encontrem no limiar da justificação da punibilidade, como pode ocorrer no caso específico do crime de importunação sexual, a que corresponde uma pena principal que tem como mínimo legal um mês e máximo 1 ano, admitindo multa até 120 dias.
Acompanhamos, por isso, o acórdão desta Relação de Lisboa de 19/04/2022[23], quando conclui: «se para as penas principais aplicáveis aos diversos tipos criminais abrangidos sob a designação de «crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual» é possível – por via das diferentes molduras penais legalmente consagradas – a modelação da reação penal face aos diferentes comportamentos suscetíveis de integrar tais ilícitos, ajustando-a à concreta gravidade dos factos praticados e permitindo uma resposta que se mostre adequada face à necessidade de reafirmação comunitária da validade das normas violadas, e que constitua um eficaz instrumento de prevenção da reincidência – impõe-se que também as penas acessórias destinadas a acompanhar tal reação penal permitam tal adequação ao caso concreto e à efetiva necessidade da pena [acessória], nomeadamente na vertente da proteção das vítimas potenciais do agente em causa.».
Não escamoteando, pois, a gravidade intrínseca das condutas que em geral afetam a liberdade e autodeterminação sexual, a verdade é que o legislador faz abranger por esta moldura das penas acessórias, com um mínimo fixado em 5 anos, uma grande variedade de condutas, todas as tipificadas nos art.ºs 163º a 176º-A, do Código Penal, às quais correspondem distintos níveis de desvalor axiológico.
E se consagrou molduras das penas principais aí previstas que permitem ao julgador graduar a sanção concreta em consonância com as exigências de prevenção e a culpa do agente, já assim não ocorre no que respeita às sanções acessórias, mormente por referência ao respetivo limite mínimo.
É certo que não pode esperar-se ter a pena acessória idêntica duração à da pena principal, e não é disso que se trata.
Na verdade, não pode descurar-se a diferente natureza da pena principal – que importa a privação da liberdade na sua forma mais intensa - e da pena acessória – que importa mera restrição de exercício de direitos.
Assim como sabemos estarem subjacentes à previsão e aplicação destas penas acessórias, fundamentos de política criminal, finalidades e lógica de funcionamento distintos dos que regulam a pena principal, pois que, como já referido, têm na sua génese razões que se prendem com uma especial perigosidade do agente decorrente de um maior risco de reincidência, sabido como é que, amiúde, se encontram na génese destes ilícitos parafilias, deficiências na formação da personalidade e total desconsideração da pessoa que deles é vítima.[24]
Todavia, e tendo tudo isso presente, verificamos que, em casos como aquele que temos em mãos, em que a gravidade e inerentes ilicitude e desvalor da conduta, assumem pouca intensidade, espelhados na punição a título principal com uma pena de multa, num quadro de circunstâncias pessoais totalmente favorável ao agente, o mínimo legal de 5 anos de pena acessória assoma como manifestamente desproporcional.
Fica, assim, o Tribunal impossibilitado de cumprir a sua tarefa de modelar e ajustar as reações penais acessórias, de forma adequada e proporcional à gravidade da conduta e culpa do agente, mas também na vertente da proteção das vítimas potenciais deste tipo de crimes e da prevenção da reincidência.
Não permitindo, no caso concreto, a moldura penal das penas acessórias, em razão do elevado limite mínimo das mesmas, fixado em 5 anos, graduá-las de forma proporcional, justa e adequada, a norma em causa mostra-se contrária à Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18º/2 da Constituição da República Portuguesa, devendo ser recusada a respetiva aplicação. [25]
Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade material dos art.ºs 69º-B/2 e 69º-C/2, do Código Penal com referência ao art.º170º do mesmo diploma, e ao crime de importunação sexual na modalidade de formulação de propostas de teor sexual, por violação do art.º18º/2 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que não permite uma graduação proporcional – não excessiva – das penas acessórias em causa, recusando-se, nos termos do art.º204º daquele diploma fundamental a sua aplicação.
Nestes termos e nesta parte, ainda que por distintas razões das invocadas, procede o recurso, sendo de revogar a sentença recorrida na parte em que procedeu à aplicação das penas acessórias.
2.3.4 Da não transcrição da condenação no certificado de registo criminal do arguido
Defende, por fim, o recorrente que não deve ser sujeito à transcrição da condenação para o seu Registo Criminal «atendendo à sua idade e à sua situação social, uma vez que para um jovem de 25 anos, consideramos que já é suficientemente vexatório todo o processo a que esteve sujeito em Tribunal.».
Foi requerida a não transcrição da condenação para fins profissionais em alegações finais realizadas pelo Defensor do arguido na audiência julgamento.
A sentença recorrida contém a este propósito a fórmula dispositiva tabelar: «Remeta boletins à Direcção dos Serviços de Identificação Criminal nos termos do artigo 374º, nº 3, alínea d) do Código Penal e artigo 6º, alínea a) da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio.».
Pelo Ministério Público foi contraposto inexistir fundamento legal para tanto, considerando que o disposto no art.º 13º/1 da L. 37/2015, de 5 de maio, que impõe essa transcrição nestes casos.
No entanto, não será exatamente assim.
Senão vejamos.
Como nos diz o art.º2º/1 da L. 37/2015, de 05/05, a chamada Lei da Identificação Criminal, «A identificação criminal tem por objeto a recolha, o tratamento e a conservação de extratos de decisões judiciais e dos demais elementos a elas respeitantes sujeitos a inscrição no registo criminal e no registo de contumazes, promovendo a identificação dos titulares dessa informação, a fim de permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes.».
Nos termos dos art.ºs 6º/a) e 7º/2, deste diploma, estão sujeitas a inscrição no registo criminal, entre outras, as decisões transitadas em julgado que apliquem penas e medidas de segurança.
O acesso a esta informação é assegurado às entidades públicas enumeradas no art.º8º e exclusivamente para as finalidades aí previstas, que se prendem essencialmente com Justiça - investigação criminal, instrução de processos de natureza criminal, aferição de idoneidade em processos de família e menores e de insolvência, -, Administração Pública - procedimentos administrativos para concessão de emprego ou obtenção de licença, autorização ou registo de carácter público, ou de contratação pública -, segurança interna e internacional, investigação científica e fins estatísticos.
O conhecimento da informação inscrita no registo criminal é garantido mediante a emissão de certificado de registo criminal – art.º9º -, o qual, na sua forma integral, contém todas as inscrições vigentes no registo, regulando-se, porém, no art.º10º o nível de informação a fazer constar do certificado, o seu concreto conteúdo, consoante a finalidade a que se destine.
Aí se preceitua, sob a epígrafe «conteúdo dos certificados», nomeadamente, o seguinte:
«(…)
1. O certificado de registo criminal identifica a pessoa a quem se refere e certifica os antecedentes criminais vigentes no registo dessa pessoa, ou a sua ausência, de acordo com a finalidade a que se destina o certificado, a qual também é expressamente mencionada.
(…)
3. Os certificados do registo criminal requisitados pelas entidades referidas nas alíneas a) a f), h) e i) do n.º 2 do artigo 8.º para as finalidades aí previstas contêm a transcrição integral do registo criminal vigente.
(…)
5 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, devem conter apenas:
a) As decisões de tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício;
b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo;
c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respetivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis.
6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, com exceção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12.º ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13.º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou atividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido.
(…)» (negrito nosso).
Nos termos do art.º13º/1 desta L. 37/2015, de 05/05 «Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º.» (negrito nosso).
Conforme decorre deste quadro legal, a regra é a de que o certificado de registo criminal deve apresentar a transcrição de todas as inscrições vigentes, para um conhecimento integral dos antecedentes criminais da pessoa visada.
Razões que se prendem, por um lado, com princípios de necessidade e proporcionalidade, e, por outro, com a não estigmatização e integração social do condenado, levam, porém, o legislador a restringir o nível de informação apresentado no certificado de registo criminal consoante a finalidade ao qual se destina, por forma a que dele não conste mais do que a informação necessária para a finalidade visada.
Como se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/09/2019[26], «(…) a normalidade em matéria de registo criminal é a transcrição, sendo a não transcrição a excepção, pois visando o registo criminal permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes, a não transcrição só pode mesmo ser considerada uma excepção, a qual tem na base razões de não estigmatização do condenado, já que se reporta a certificados para fins do exercício de profissão e sempre associadas a crimes de pequena gravidade (…)».
Na verdade, são conhecidas as repercussões negativas que a publicidade ou divulgação de uma condenação criminal acarretam na imagem social do condenado, especialmente na obtenção de emprego, as quais poderão ser evitadas quando a condenação criminal assuma diminuta gravidade ou não se revista de gravidade significativa, em homenagem a finalidades de integração social do condenado. [27]
A limitação do acesso à informação resultante de condenações criminais assegurada pela não transcrição prevista no referido art.º13º, funda-se assim em exigências de concordância prática entre a ressocialização do condenado e os fins de defesa da comunidade, ditando que essa informação se cinja ao estritamente indispensável para satisfação destes fins, de modo a que a informação disponibilizada não se transforme num fator de estigmatização e contrarie, assim, a desejada inserção social.[28]
*
No caso em análise, o crime pelo qual vai condenado o recorrente, de importunação sexual, apresenta-se inserido no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual», e teve por vítima uma menor, pelo que importa nos termos da ressalva feita no citado nº1, do art.º13º da L. 37/2015, ab initio, atentar na L. 113/2009, de 17 de setembro, que estabelece medidas de proteção de menores, em cumprimento do art.º5º da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças.
Nos termos do art.º 2º destoutro diploma prevê-se como medida de prevenção de contacto profissional com menores que:
«1- No recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, a entidade recrutadora está obrigada a pedir ao candidato a apresentação de certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do certificado na aferição da idoneidade do candidato para o exercício das funções.
2 - Após o recrutamento a entidade empregadora ou responsável pelas atividades está obrigada a pedir anualmente a quem exerce a profissão ou as atividades a que se refere o número anterior certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do mesmo na aferição da idoneidade para o exercício das funções.
3 - No requerimento do certificado, o requerente especifica obrigatoriamente o fim a que aquele se destina, indicando a profissão, emprego, função ou atividade a exercer e indicando ainda que o seu exercício envolve contacto regular com menores.
4 - O certificado requerido por particulares para os fins previstos nos nºs 1 e 2 tem a menção de que se destina a situação de exercício de funções que envolvam contacto regular com menores e deve conter, para além da informação prevista nos n.ºs 5 a 8 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio:
a) As condenações por crime previsto nos artigos 152.º, 152.º-A ou no capítulo V do título I do livro II do Código Penal;
b) As decisões que apliquem penas acessórias nos termos do n.º 1 do artigo 69.º-B, do artigo 69.º-C e do artigo 152.º do Código Penal, ou medidas de segurança que interditem a atividade;
c) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas nas alíneas anteriores e não tenham como efeito o cancelamento do registo.
(…)» (negrito nosso).
Ainda nos termos dos nº 1, 3 e 6 do art.º 4º deste diploma:
« 1 - Tratando-se de condenação por crime previsto no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, o cancelamento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, ocorre decorridos 25 anos sobre a extinção da pena, principal ou de substituição, ou da medida de segurança, e desde que entretanto não tenha ocorrido nova condenação por crime.
(…)
3 - Estando em causa o exercício de emprego, profissão ou atividade que envolva contacto regular com menores, o cancelamento provisório de decisões de condenação por crime previsto nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, só pode ocorrer nas condições previstas nos números seguintes e no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio.
4- A decisão de não transcrição de condenação prevista nos n.ºs 1 e 3, proferida ao abrigo do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, apenas opera relativamente a certificados que não se destinem aos fins abrangidos pelo artigo 2.º da presente lei.» (negrito nosso).
*
Deste quadro legal resulta que a decisão de não transcrição de uma condenação no certificado de registo criminal, opera, em termos gerais, apenas em relação a certificados emitidos nos termos e para os efeitos do nºs 5 e 6 do artº 10 da citada L.37/2015, ou seja, nos certificados emitidos para fins administrativos e particulares relacionados com o exercício da atividade profissional, em vista da avaliação da idoneidade profissional, e pressupõe a verificação dos seguintes requisitos (dois formais e um material:
• a pena aplicada tem de ser não privativa da liberdade ou, sendo de prisão, terá de se fixar até 1 ano;
• o arguido não pode ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza;
• não decorrer das circunstâncias do crime o perigo de prática de novos crimes.
Da ressalva feita no citado nº1, do art.º 13º da L. 37/2015, ab initio para a L. 113/2009, de 17 de setembro, e do jogo normativo entre o preceituado nos art.ºs 2º/1 e 2 e 4º/6 deste último diploma, decorre ainda que, em casos como o presente, de condenação por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, tendo por vítima menor, a não transcrição da condenação para o registo criminal não opera quando o certificado de registo criminal for solicitado no âmbito de recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores – art.º 2º/1 -, ou aferição anual da idoneidade para o seu exercício – art.º 2º/2.
Ou seja, ressalvadas as situações em que o certificado de registo criminal é solicitado para estas finalidades de validação da idoneidade para o exercício de profissões, funções ou atividades que implicam contactos com menores, não está vedado, verificados os respetivos requisitos formais e material, determinar a não transcrição da presente condenação, ainda que por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, para o registo criminal do arguido para os fins indicados no art.º10º/ 5 e 6 da L. 37/2015.
Ponderemos então o caso concreto.
Nos presentes autos, o recorrente foi condenado em pena de 100 dias de multa, portanto, não privativa da liberdade, não lhe sendo conhecidas quaisquer outras condenações.
Por outro lado, contava apenas 22 anos de idade à data dos factos tendo admitido em audiência que podê-los-ia ter praticado sob o efeito do álcool, manifestando arrependimento; encontra-se profissional e socialmente integrado, beneficiando de boa imagem social, como resulta dos factos provados de 7. a 15.; ocupa os tempos livres com a prática desportiva de futebol, decorrendo das declarações prestadas por si e pelo assistente que este último foi seu treinador já por duas vezes, encontrando-se a relação entre ambos restabelecida de forma pacífica.
A conduta adotada pelo arguido e o desvalor respetivo não assumem significativa gravidade, conforme acima se explanou.
Neste quadro, podemos concluir que todos os dados relativos ao caso apontam para que este tenha sido um episódio isolado na vida do arguido, o qual não se revestiu de significativa gravidade, não se divisando razões para considerar haver perigo de prática de novos crimes.[29]
Pelo que se encontram verificados todos os requisitos, formais e material, da não transcrição da presente condenação no certificado de registo criminal do arguido para os fins indicados no art.º10º/5 e 6 ex vi do art.º13º/1, da L. 37/2015, a qual não deve, porém, operar quando o certificado de registo criminal for solicitado no âmbito de recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores ou da aferição anual da idoneidade para o seu exercício, nos termos do disposto nos arts. 2º/1, 2, 3 e 4º/6, da L. 113/2009, de 17/09.
Nestes termos, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, embora com fundamento diferente, procede parcialmente o recurso quanto a esta questão.
*
III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente:
alterar a matéria de facto provada sob o ponto 3., que passará a ter a seguinte redação:
3. Agiu o arguido visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitar a liberdade sexual de BB ao formular perante ela propostas de teor sexual.
recusar a aplicação dos art.ºs 69º-B/2 e 69º/C-2, do Código Penal, com referência ao crime de importunação sexual previsto no art.º170º do Código Penal, na modalidade de formulação de propostas de teor sexual, por violação do princípio da proporcionalidade consagrado no art.º18º/2 da Constituição da República Portuguesa, revogando a sentença recorrida na parte em que condena o arguido nas penas acessórias aí previstas de proibição pelo período de 5 anos de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, bem como a de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de cinco anos;
Determinar a não transcrição da presente condenação para o certificado de registo criminal do arguido quando solicitado com as finalidades indicadas no art.º10º/5 e 6 da L. 37/2015, de 05/05, exceto se se destinar a recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores ou à aferição anual da idoneidade para o seu exercício, nos termos do disposto nos art.ºs 2º/1, 2, 3 e 4º/6, da L. 113/2009, de 17/09.
julgar no mais improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
*
Sem custas - art.ºs 513º do Código de Processo Penal “a contrario”.
*
Notifique.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2024
Ana Cláudia Nogueira
Sandra Ferreira
Maria José Machado
_______________________________________________________
1.[] Cfr. o acórdão do STJ de 25/03/2010, relatado por Raul Borges no processo 427/08.OTBSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt .
2. [] Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/01/2010 relatado por Henriques Gaspar no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt .
3. [] In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDU, UCE, 5ª ed. atualizada, 2022, pág. 758, nota 11.
4 [] In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, UCE, 5.ª ed., 2022, pág. 758.
5. [] In Dicionário Priberam online.
6. [] Paulo Pinto de Albuquerque in ob e loc cit..
7. []O acórdão do STJ de 22/02/2018 que vem citado, reporta-se ao tipo legal de crime de abuso sexual de crianças previsto e punido pelo art.º171º/3,b), do Código Penal, com elementos objetivos típicos diferentes do crime de importunação sexual, sendo que, além do mais, o entendimento aí sufragado, que não subscrevemos considerado em geral e abstrato, ressalva expressamente que «as conversas com as expressões "foda" e "espetar até ao fundo", nas circunstâncias do caso, carecem de autonomia e idoneidade para prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, (…)».
8. [] É menor para este efeito quem tiver idade inferior a 18 anos, como decorre do disposto no art.º130º do Código Civil que define essa como a idade da maioridade e da plena capacidade de exercício de direitos.
9. [] In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3º, Abril/Dezembro, pág. 186,
10. [] Neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 196, e os acórdãos do STJ de 14/10/2015, proferido no processo 439/14.4PBSXL.S1, e de 12/07/2018, proferido no processo 116/15.9JACBR.C1.S1; mais recentemente o acórdão do STJ de 19/05/2021, relatado por Ana Barata Brito no processo 10/18.1PELRA.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt .
11. []Neste sentido, veja-se a fundamentação subjacente ao entendimento fixado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Uniformizador de Jurisprudência 2/2018, publicado no DR de 13/02/2018, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, UCE, 5.ª ed., 2022, pág. 380.
12. [] Aí se previa: «Quem for condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser:
a) Inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela; ou
b) Proibido do exercício de profissão, função ou actividade que impliquem ter menores sob sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância;
por um período de dois a quinze anos.».
13. [] Veja-se o que, em resumo, é expendido por Paulo Pinto de Albuquerque in ob. cit. pág. 383.
14.[] Argumentação utilizada no acórdão do Tribunal Constitucional 53/97, de 23/01, publicado no DR, II Série, de 05/03/1997.
15. [] Cfr. nomeadamente os acórdãos do Tribunal Constitucional com os números 149/2001, 53/2011 e 742/2021, que não julgaram inconstitucional a norma constante do art.º69º/1, a), do Código Penal quando interpretada no sentido segundo o qual, com a condenação pela prática dos crimes previstos nos art.ºs 292º e 291º/1, a), tem lugar, sem necessidade de se apurar qualquer outro requisito, a aplicação da sanção acessória consistente na inibição de conduzir.
16. [] Vide acórdão do TEDH Maszni v. Roménia, de 21/09/2006, acessível na plataforma online HUDOC, com o link https://hudoc.echr.coe.int/?i=001-76940 .
17. [] Vide acórdão do TEDH Malige v. França, de 21/09/2006, acessível na plataforma online HUDOC, com o link https://hudoc.echr.coe.int/?i=001-58236 .
18. [] Seguindo de perto a lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4ª ed. revista, 2007, págs. 388 e 392.
19. [] Gomes Canotilho e Vital Moreira, in ob. cit., pág. 383.
20. [] Aí se prevê que: «As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que qualquer conduta indesejada verbal, não-verbal ou física, de carácter sexual, tendo como objetivo violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando esta conduta cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo, seja objeto de sanções penais ou outras sanções legais.».
21. [] Neste sentido a anotação de Anabela Miranda Rodrigues ao antigo art.º171º do Código Penal no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 533.
22. [] Veja-se, entre muitos outros dados à estampa, o artigo da autoria de Fernanda Câncio publicado no Diário de Notícias em 28/12/2015, acessível no link https://www.dn.pt/portugal/piropos-ja-sao-crime-e-dao-pena-de-prisao-ate-tres-anos-4954471.html/ ; ainda Parecer emitido em 18/06/2021 pelo CSM acerca do projeto de lei 852/XIV/2ª (PAN), contendo proposta de criminalização do assédio sexual, acessível em https://app.parlamento.pt/ .
23. [] Relatado por Sandra Oliveira Pinto no processo 3007/16.2T9CSC.L1-5, acessível em www.dgsi.pt .
24. [] Cfr. referência extraída da decisão recorrida, no acórdão do STJ de 05/11/2020, relatado por António Clemente Lima, no processo 114/18.2TELSB.S1,acessível em www.dgsi.pt .
25. [] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in ob cit., pág. 396, e acórdãos da Relação de Lisboa, de 19/04/2022, relatado por Sandra Pinto no processo 3007/16.2T9CSC.L1-5, e de 09/01/2024, relatado por Mafalda Sequinho dos Santos no processo 715/19.0GAALQ.L1-5, em que a aqui relatora, foi segunda adjunta, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .
26. [] Relatado no processo 171/17.7PBMTA-A.L1-9 por Abrunhosa de Carvalho, e acessível em https://jurisprudencia.pt/acordao/190680/ .
27. [] Cfr. acórdão da Relação de Évora de 05/12/2017, relatado por Renato Barroso no processo 1580/14.9PBSTB-A.E1, acessível em www.dgsi.pt .
28. [] Cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 06/05/2020, relatado por Helena Bolieiro no processo 71/18.3GAMMV-A.C1, citando por sua vez acórdão da Relação de Évora de 26/06/2018 proferido no processo n.º 1646/14.5GBABF.E1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .
29. [] Como se escreve no acórdão da Relação de Coimbra de 02/02/2022, relatado por Paulo Guerra no processo 174/19.7T9CTB-A.C1, acessível em www.dgsi.pt , «só não se decide pela não transcrição da sentença, quando, das circunstâncias que rodearam a prática do ilícito dos autos em causa, se não puder concluir que não existe perigo da prática de novos crimes, exigindo apenas a lei que não seja efectuado um juízo de prognose desfavorável ao arguido, diverso do juízo de prognose favorável ínsito, por exemplo, na análise dos requisitos para a aplicação de uma pena de suspensão da execução de uma pena de prisão.».