Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
663/21.3S5LSB.L1-9
Relator: FERNANDA SINTRA AMARAL
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
CRIME DOLOSO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. O crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, da Lei n.º 5/2006, de 23/02 é um crime doloso, ou seja, terá que se apurar se o agente do crime tinha conhecimento e vontade de praticar o acto de detenção ou guarda, da arma que sabia ser proibida (por estar fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente).
II. Assim, se as armas estavam escondidas no interior de um barracão, de pouco vale a prova de que o barracão onde se encontravam as armas estava na esfera de disponibilidade do arguido, porquanto, face ao crime em análise, o que tinha que se demonstrar ao tribunal é que as armas estavam na disponibilidade do arguido (e não apenas o barracão…), sendo que o crime em apreço consuma-se com a disponibilidade da arma por parte do agente.
III. Se o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica, ponderada e bastante, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a prova produzida em audiência, e, da respectiva fundamentação decorre que ficou com dúvidas sérias, no que respeita à versão acusatória, cumpria-lhe fazer uso do princípio in dubio pro reo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 663/21.3S5LSB, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos, foi proferida sentença, na qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
Pelo exposto, decido:
A) Absolver o arguido AA do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao art.º 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
B) Declarar perdidos a favor do Estado os objectos apreendidos à ordem dos presentes autos, determinando a sua remessa ao Comando Geral da P.S.P., nos termos do artigo 78.º, da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
C) Sem custas.
(…)”
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I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
V. CONCLUSÕES
1. O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida pelo douto tribunal a quo, nos termos da qual se decidiu absolver o arguido AA do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao artigo 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
2. Salvo melhor opinião, porém, o Ministério Público é do entendimento de que da audiência de julgamento resultou provado que o arguido praticou o crime pelo qual vinha acusado, tendo sido realizado pelo Tribunal uma interpretação errónea da prova produzida em incumprimento do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
3. Com efeito, nos presentes autos o que releva é a existência, ou não, de elementos probatórios que consubstanciam a prática de um crime de detenção de arma proibida, relevando apenas apurar se da produção de prova realizada em sede de audiência de julgamento e da matéria probatória carreada para os presentes autos, resulta que o arguido tinha na sua esfera de disponibilidade, ainda que de forma esporádica ou transitória, os objectos descritos no ponto 1 da matéria de facto dada como provada;
4. E entende o Ministério Público que sim, visto que a prova produzida em audiência de julgamento conjugada com as regras da experiência comum, impunham que se desse como provado os pontos 1 a 5 da matéria de facto dada como não provada, não tendo sido feita uma avaliação da prova documental e testemunhal na sua globalidade à luz das regras da experiência comum.
5. Com efeito, e no que tange à prova documental entende este Ministério Público que resulta do auto notícia por detenção de fls. 2 e ss, mais concretamente de fls. 4 parte final, assim como da autorização dada pelo arguido para as buscas realizadas de fls. 13 e ss, que o barracão onde se encontravam as armas em apreço estava na esfera de disponibilidade do ora arguido.
6. Por sua vez, o tribunal a quo fundamentou a sua decisão na versão do arguido, assim como no depoimento das testemunhas BB e CC, Agentes da PSP, e no depoimento da testemunha DD, vizinho do arguido à data dos factos.
7. Sucede, porém, que resulta dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD – melhor identificados no corpo das presentes alegações e para onde remetemos desde já por uma questão de economia processual – que o arguido não só tinha conhecimento da existência das armas apreendidas como as mesmas se encontravam na sua esfera de disponibilidade.
8. Com efeito, esclareceu a testemunha BB em sede de audiência de julgamento, que: “Fizemos [uma busca] à casa e no quintal tinha um barracão, estava algum entulho, procurámos ali e encontrámos um saco dentro do armário, saco de plástico que tinha cerca de quatro ou cinco carregadores de arma” (aos 02:40 segundos da audiência de 18-10-2023)
9. Mais refere a mesma testemunha “Na altura pelo menos o lesado nos abordou ele informou-nos que possivelmente a arma podia estar nesse barracão, porque ele dentro da casa tinha visto a esconder alguma coisa no barracão (...) um dos arguidos” (aos 04:53 segundos da audiência de 18-10-2023);
10. Por sua vez, a testemunha CC, agente da PSP, às perguntas do Ministério Público esclareceu que: “O arguido autorizou a busca, perguntámos se isto era dele, ele negou e ainda disse que quem lhe tinha dado foi um segundo suspeito”. (aos 03:10 segundos da audiência de 18-10-2023)
11. Mais esclareceu a referida testemunha: “Porque o senhor AA se me lembro na altura disse que o barracão era dele, como estava contíguo à casa nós até lhe perguntámos e ele disse que sim”. (aos 03:47 segundos da audiência de 18-10-2023),
12. Uma vez questionado pela Mma. Juiz sobre o circunstancialismo do arguido ter dito que quem lhe deu as armas foi o outro arguido, a mesma testemunha refere que:
“Sim, porque nós perguntamos e ele disse isso não é meu quem me deu foi o... acho que na altura até disse, foi o meu sobrinho.” (aos 06:30 segundos da audiência de 18-10-2023).
13. Com efeito, da análise conjugada dos excertos elencados sai reforçado, de acordo com juízos de normalidade e com as regras da experiência comum, que o arguido tinha acesso ao barracão ora em apreço encontrando-se as armas apreendidas na sua esfera de disponibilidade.
14. De facto, atendendo a que o arguido vivia numa casa não licenciada, por si construída, a qual tinha um logradouro no qual se encontrava uma casota para animais, igualmente por si construída e cuja manutenção era realizada por si, dificilmente se compreende que o arguido ignorasse por completo o barracão que se encontrava imediatamente aí ao lado.
15. A este respeito sempre se dirá ainda que mal se compreende que uma pessoa que realizava a manutenção não só da sua casa como da casa do seu vizinho – situação que levou à quezília existente entre ambos – desconhecesse por completo o interior de um barracão que se encontrava no logradouro da sua casa.
16. Com efeito, e conforme consta dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo: “1. A casa do arguido situa-se num aglomerado de casas construídas todas muito próximas umas das outras, aparentemente sem licenciamento”.
17. O circunstancialismo destas casas serem todas construídas de forma muito próxima originou desentendimentos entre o arguido e o seu vizinho, e tendo presente esta proximidade, e a forma como o arguido procurou arranjar uma casa que não era a sua, parece muito pouco verosímil que o mesmo fosse totalmente alheio ao barracão ora em apreço. Barracão esse situado exactamente no logradouro da sua casa.
18. Não podendo ser outra a conclusão de que o arguido tinha conhecimento e a disponibilidade das armas em apreço que se encontravam armazenadas no interior do referido barracão, devendo o douto tribunal a quo ter ponderado tais afirmações, contextualizadas pelas demais declarações produzidas pelas referidas testemunhas – que analisou e valorou – e com a prova documental supra enunciada, por forma a dar como provado os factos constantes nos pontos 1 a 5, e daí concluir pela procedência da acusação.
19. Por outro lado, a interpretação que o tribunal recorrido fez da prova constante dos autos, não é a que melhor se adequa às regras hermenêuticas que presidem à elaboração do silogismo judiciário, olvidando-se as regras da experiência comum e da lógica, não se mostrando compatível com a função de julgar “segundo as regras da experiência”, preconizada no artigo 127.º do mesmo Código (cf. Acórdão da Relação do Porto de 01-10-2008, nos âmbito do Processo nº 0811541).
20. Já quanto ao crime de detenção de arma proibida previsto e punido nos termos do artigo 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao artigo 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, importa atender ao perfilhado em Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no âmbito do Processo n.º 10/09.2GFMMN.E1, datado de 17-09-2013, o qual esclarece que o que releva para imputação do crime de detenção de arma proibida é a disponibilidade, ainda que de forma esporádica ou transitória, de uma arma.
21. Ora, nos presentes autos, é forçoso concluir que o arguido AA tinha as armas apreendidas na sua esfera de disponibilidade.
22. Nestes termos e com o mui douto suprimento de V.Exªs deve ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao artigo 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02, em pena que se julgue justa e adequada, ponderados que sejam todos os factores e circunstâncias dados como provados e influentes na determinação da medida da pena, à luz dos critérios definidos no artigo 71.º do Código Penal
Assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!
(…)”
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I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, alegando o seguinte [transcrição]:
“(…)
CONCLUSÕES
I) Nos presentes autos o arguido foi absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea e), com referência ao artigo 2º, nº 2, alínea l), da Lei nº 5/2006, de 23/02.
II) Não se conformando com a decisão proferida veio o Ministério Público recorrer da mesma.
III) Discorda o recorrente da apreciação da prova efectuada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida pois entende que deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 1. a 5. dos factos dados como não provados e, em consequência, ser o arguido condenado pelo crime pelo qual vinha acusado.
IV) No nosso direito penal existe o princípio da livre apreciação da prova.
V) O modelo caracterizado pelo princípio da livre apreciação da prova implica que o julgador não se encontre sujeito a regras fixas, quanto ao modo como deve valorar a prova, mas é necessário que “extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.”
VI) A decisão sobre a matéria de facto constante da sentença é a solução consentânea com a prova produzida, a lógica, as regras da experiência e bem ainda com as regras do direito penal e processual penal português, motivo pelo qual não deve ser alterada.
VII) Nesse sentido o explanado do Ac. do TRC de 03-06-2015, proferido no processo nº 12/14.7GBSRT.C1, in www.dgsi.pt em cujo sumário se dispõe: “I – Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.”
VIII) Entendemos que a decisão sobre a matéria de facto plasmada na sentença recorrida deve ser mantida uma vez que é consentânea com a prova produzida em audiência de julgamento (nomeadamente as declarações do arguido e das testemunhas) com a demais prova constante dos autos e com as regras da lógica e da experiência comum, e entendemos que as concretas partes dos depoimentos transcritas pelo recorrente nas suas alegações de recurso não levam a concluir de modo diverso do decidido.
IX) Considerou o tribunal a quo, terem ficado provados os factos constantes da matéria de facto provada e não provada – aqui dados por reproduzidos para os devidos e legais efeitos.
X) Nada se tem a apontar à d. sentença recorrida quanto aos factos provados e não provados, nem quanto à fundamentação da decisão de facto, porque conformes com a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
XI) In casu, da fundamentação da sentença consta que o tribunal estribou a sua convicção, no que concerne aos factos pelos quais o arguido vinha acusado, na prova documental constante dos autos e nas declarações produzidas pelo arguido e pelas testemunhas.
XII) Conforme referido na d. sentença recorrida, verificamos que “Da conjugação de todos estes meios de prova, não logrou o Tribunal formar a sua convicção para além da dúvida razoável que o arguido era detentor dos objetos apreendidos, pelo que se impunha que a tais factos tivessem sido julgados não provados como o foram.”
XIII) In casu, da análise da motivação da sentença, temos que a factualidade dada por provada e por não provada resultou de forma manifesta da prova pessoal e documental analisada.
XIV) A decisão sobre esta matéria encontra-se devidamente motivada, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal a quo, nenhuma delas proibida por lei e todas de livre apreciação do julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção, operando a sua análise crítica.
XV) Da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, constam de forma
clara e exaustiva a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e o respetivo processo lógico e racional que foi seguido na apreciação dessas provas, não se vislumbrando a existência de qualquer arbitrariedade nessa apreciação, nem contradição, não violando as regras da experiência comum e da adequação social, pelo contrário, estas regras são o seu suporte.
XVI) O arguido concorda com a douta sentença proferida quanto à fixação da matéria de facto dada como provada e não provada, sendo que aquela se encontra devidamente fundamentada, tendo sido efetuado o exame crítico da prova produzida, como se impunha.
XVII) A Mmª Juiz a quo valorou as provas perante si produzidas ou por si examinadas, indicando o sentido de tal valoração, tendo a decisão de facto sido fruto de um processo lógico e racional na apreciação da prova.
XVIII) Na fundamentação da sentença encontra-se bem explicitado o processo de formação da convicção do Tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido.
XIX) Fundamentação que, de resto, se encontra alicerçada nas regras de experiência e adequados juízos de normalidade, não se vislumbrando a violação de qualquer regra lógica.
XX) Em face das dúvidas quanto à prática dos factos pelo arguido, sendo a análise da prova clara e objetiva, bem como as conclusões dela extraídas, pelo que a absolvição se impõe.
XXI) Na fundamentação da sentença encontra-se bem explicitado o processo de formação da convicção do Tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido, bem como a extensão da credibilidade que mereceram os depoimentos das testemunhas.
XXII) Com o presente recurso pretende na verdade o recorrente impugnar a convicção adquirida pelo tribunal sobre os factos, em contraposição com a que aquela adquiriu em julgamento.
XXIII) Desde logo, cumpre salientar que a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
XXIV) Daqui resulta como salienta MARQUES FERREIRA, um sistema que obriga a uma correta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objeto do processo, de modo a permitir-se um efetivo controlo da sua motivação (“Jornadas de Direito Processual Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, pág. 228).
XXV) Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, coerência do raciocínio e de atitude, serenidade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos. Trata-se de um acervo de informação não verbal, rica, imprescindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
XXVI) Neste sentido, é de atender ao Acórdão da Relação de Lisboa de 18/07/2013 (proferido no processo 1/01.2JFLSB.L1-3, constante de dgsi.pt) onde se explica (...): “V- São os Juízes de 1ª instância quem de forma direta e “imediata” podem observar, as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversas testemunhas presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas.
XXVII) A congruência das testemunhas entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, quer dizer, a apreciação conjunta das provas, são elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro.
XXVIII) Para tal, a convicção do Tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento de outra. Não existindo prova legal ou tarifada que se impusesse ao Tribunal, o Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art.º 127.º do Código de Processo Penal).”
XXIX) A reapreciação da prova na segunda instância limita-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão.
XXX) Pelo exposto, não tendo o tribunal ficado convencido da demonstração da factualidade elencada em 1. a 5. outra não poderia ser a decisão que não a absolvição do arguido.
XXXI) Como os referidos factos não estão provados não se podem considerar preenchidos os elementos do tipo do ilícito pelo qual vinha o arguido acusado devendo este ser, necessariamente, absolvido do mesmo
XXXII) Com efeito, na dúvida resta a absolvição do arguido em obediência ao princípio in dúbio pro reo.
XXXIII) O princípio in dúbio pro reo apresenta-se como uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
XXXIV) In casu, a Mma Juiz do Tribunal a quo teve dúvidas pelo que bem decidiu pela absolvição do arguido.
XXXV) Em conformidade com os argumentos acima elencados, entende-se não assistir razão ao recorrente, pelo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Nestes termos, e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, V. Exas farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
(…)”
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, ao que acrescentou, o seguinte [transcrição]:
“(…)
Do mérito do recurso:
O arguido havia sido acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao art.º 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
Na sentença proferida em 29 de novembro de 2023 (refª Citius nº 430871183), foi entendimento da Exmª juiz “a quo”, que da matéria de facto que resultou provada, é manifesto que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime pelo qual o arguido fora acusado, impondo-se, pois, a sua absolvição.
Inconformado com o teor da decisão, dela recorre o Ministério Público, em 11 de janeiro de 2024 (refª Citius nº 38128717), por entender que da audiência de julgamento resultou provado que o arguido praticou o crime pelo qual vinha acusado, tendo sido realizado pelo douto Tribunal a quo uma interpretação errónea da prova produzida, em incumprimento do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Em suma, a questão em causa será apurar se o arguido tinha a detenção dos objetos apreendidos.
Foi dado como provado que:
No dia 8 de Maio de 2021, pelas 11H00, num barracão anexo à residência sita na ..., foram apreendidos os seguintes objectos: quatro carregadores de arma de fogo G3 FMP, um guarda mão de metralhadora G3, um mira-laser para arma de fogo e um carregador de arma AK-47 Kalashnikov.
Por sua vez, aquando da identificação do arguido, verificou-se que o mesmo reside na ..., sendo as apreensões efetuadas no barracão anexo à referida residência.
As buscas efetuadas pela PSP, com consentimento do arguido, foram-no, não só à residência, mas ao barracão.
As testemunhas, BB e CC, agentes da PSP relataram as diligencias que no âmbito das suas funções empreenderam, confirmando o teor dos documentos que serviram de suporte à sua intervenção (auto de notícia e autos de apreensão).
Aquando das buscas e apreensões, o arguido não se insurgiu quanto à posse dos objetos apreendidos, não negando que o barracão fosse seu, antes consentiu em tais diligências (busca e apreensão).
Consequentemente, só podemos concluir que o barracão, anexo à residência do arguido, lhe pertence e assim sendo, os objetos apreendidos eram detidos por si ou, em última instância, encontravam-se na sua esfera de disponibilidade.
“Para efeitos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23/02, pratica a ação típica na modalidade de detenção quem tenha a arma consigo ou quem a tenha na sua esfera de disponibilidade, ainda que de forma esporádica ou transitória, sem prejuízo da eventual verificação de causas comuns de justificação ou de exclusão da culpa” – neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no âmbito do Processo n.º 10/09.2GFMMN.E1, datado de 17-09-2013, citado pela Exmª Magistrada do MP junto da 1ª instância.
Para preencher aquele tipo legal de crime [detenção de arma proibida] basta a detenção do carregador, como fazendo parte de uma arma da classe A, com consciência da sua proibição.
Assim sendo, devem considerar-se como provados, os factos dados como não assentes, pela Exmª senhora juiz de 1ª instância:
“1. O arguido AA era o detentor dos objectos referidos em 1. dos factos provados.
2. O que fazia sem que fosse titular de licença de uso e porte de arma ou de outro título que lhe permitisse deter tais objectos.
3. Sabia o arguido que para possuir aqueles componentes de arma e carregadores naquelas circunstâncias necessitava de possuir a respectiva licença de uso e porte de arma.
4. Não obstante, o arguido quis ter na sua posse os mencionados objectos nessas condições.
5. O arguido agiu de forma consciente e voluntária, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei e tendo a necessária liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação.”.
Aderindo, no mais, aos fundamentos da Exmª Magistrada do Ministério Público, junto da 1ª instância, bem como aos elementos em que os mesmos se suportam, somos do Parecer De que deve a Sentença impugnada ser revogada e substituída por outra que condene o arguido numa pena justa e adequada.
(…)”
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I.5 Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.
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I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
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II.2- Apreciação do recurso
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, veio o mesmo recorrer da matéria de facto e da matéria de direito.
As questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- se o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação errónea da prova documental e testemunhal produzida em audiência, em incumprimento do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, impondo aquela prova, conjugada com as regras da experiência comum, que se dessem como provados os pontos 1 a 5 da matéria de facto não provada;
- se, em consequência, o arguido deverá ser condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao artigo 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
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Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:
“ (…)
II - FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto provada
De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 8 de Maio de 2021, pelas 11H00, num barracão anexo à residência sita na ..., foram apreendidos os seguintes objectos: quatro carregadores de arma de fogo G3 FMP, um guarda mão de metralhadora G3, um mira-laser para arma de fogo e um carregador de arma AK-47 Kalashnikov.
Mais se provou que:
2. A casa do arguido situa-se num aglomerado de casas construídas todas muito próximas umas das outras, aparentemente sem licenciamento.
3. O arguido é ... da construção civil e declarou retirar desta actividade cerca de €1500,00 mensais.
4. Vive numa casa que construiu que não se encontra licenciada não pagando qualquer valor pela sua utilização.
5. Ao nível de habilitações literárias completou o 9º ano da escolaridade.
6. Vive em Portugal desde os 4 anos de idade e tem nacionalidade cabo-verdiana.
7. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.
Matéria de facto não provada
1. O arguido AA era o detentor dos objectos referidos em 1. dos factos provados.
2. O que fazia sem que fosse titular de licença de uso e porte de arma ou de outro título que lhe permitisse deter tais objectos.
3. Sabia o arguido que para possuir aqueles componentes de arma e carregadores naquelas circunstâncias necessitava de possuir a respectiva licença de uso e porte de arma.
4. Não obstante, o arguido quis ter na sua posse os mencionados objectos nessas condições.
5. O arguido agiu de forma consciente e voluntária, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei e tendo a necessária liberdade para se determinar de acordo com essa avaliação.
Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
O arguido AA prestou declarações negando que os objectos apreendidos lhe pertencessem. Construiu a sua casa num espaço que lhe foi cedido por “um cigano” (sic). A sua casa tem à frente um espaço (logradouro/jardim/quintal) e por uma questão de segurança colocou ali um portão e deu uma chave do mesmo ao proprietário do terreno. O barracão fica no quintal junto à sua casa. Tem vindo a fazer melhorias na sua casa e se o barracão lhe pertencesse, já o teria arranjado.
Testemunhas BB e CC, agentes da PSP relataram as diligencias que no âmbito das suas funções empreenderam, confirmando o teor dos documentos que serviram de suporte à sua intervenção (auto de notícia e autos de apreensão).
Testemunha DD, cuja inquirição foi determinada pelo Tribunal nos termos do disposto no art.º 340º do C.P.Penal, disse ter tido um conflito com o arguido em data anterior aos factos em causa nos autos, relacionado com uma rede que colocavam entre as duas casas como protecção para a chuva.
Viveu ali cerca de 6 meses e nunca viu o arguido ir ao referido barracão.
O arguido tinha-lhe dito que havia construído a casa aos poucos.
Resulta do depoimento da testemunha BB que o barracão se situa, tal como referido pelo arguido, no espaço exterior, mas envolvente à casa do arguido. Referiu a testemunha que a casa se encontra arranjada, mas o barracão não. Estava degradado, mesmo a porta assim se encontrava. O arguido disse na altura não ter qualquer conhecimento sobre os objectos que ali foram encontrados e apreendidos.
A testemunha DD, de uma forma isenta e objectiva referiu que quem empunhou na sua direcção uma arma de fogo foi uma outra pessoa que não o arguido. E que o arguido acabou por intervir dizendo para ele guardar o objeto. O arguido nas suas declarações havia dito que “eu salvei a vida do DD”, referindo que quando viu o outro individuo com uma arma empunhada, lhe baixou a mesma.
Resulta ainda da matéria de facto provada, que o local onde se situa a casa do arguido integra um conjunto de casas construídas todas muito próximas umas das outras, aparentemente sem licenciamento.
Resultou das declarações do arguido, depoimento da testemunha BB e DD, que o arguido cuidava da sua casa e do espaço que se situava em frente, encontrando-se arranjado e que o barracão onde os objectos apreendidos se encontravam, não estava arranjado.
Por outro lado, resulta dos autos que foi apreendido num local aparentemente utilizado por outro cidadão (entretanto falecido) que não o arguido, munições idênticas àquelas que foram apreendidas no referido barracão.
Da conjugação de todos estes meios de prova, não logrou o Tribunal formar a sua convicção para além da dúvida razoável que o arguido era o detentor dos objectos apreendido, pelo que se impunha que a tais factos tivessem sido julgados não provados como o foram.
Atendeu-se às declarações do arguido no que respeita à sua situação pessoal, familiar e económica.
Quanto à inexistência de antecedentes criminais, teve o Tribunal em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos.
III - DO DIREITO
O arguido encontra-se acusado da prática em autoria material, na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. e), com referência ao art.º 2.º, n.º 2, al. l), da Lei n.º 5/2006, de 23/02.
São elementos constitutivos do tipo objectivo do crime em análise a detenção, uso e posse de armas proibidas fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes.
O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas.
Tendo em conta a matéria de facto que resultou provada, é manifesto que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime pelo qual o arguido se encontra acusado, impondo-se, assim, sem necessidades de ulteriores considerações, a absolvição do mesmo.
(…)”
»
II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir.
Em matéria de facto, veio o Ministério Público recorrente alegar que o Tribunal a quo procedeu a uma interpretação errónea da prova documental e testemunhal produzida em audiência, em incumprimento do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, impondo aquela prova, conjugada com as regras da experiência comum, que se dessem como provados os pontos 1 a 5 da matéria de facto não provada.
Vejamos se assiste razão ao Ministério Público recorrente.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento4. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-20085, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do Código de Processo Penal].
Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Germano Marques da Silva6 que “o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância”.
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha7, ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros8.
Descendo ao caso concreto dos autos e analisando as conclusões de recurso, que, como vimos, são o que define e delimita o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, e sendo certo que o mesmo resulta também de toda a motivação recursiva, logo se conclui que o que o recorrente pretende é invocar um erro do julgamento, ao abrigo do disposto no art.º 412º, nºs 3 e 4 do CPP, ao aduzir que o Tribunal a quo fez uma interpretação errónea da prova documental e testemunhal produzida em audiência, em incumprimento do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, considerando o recorrente que aquela prova, conjugada com as regras da experiência comum, impunha que se dessem como provados os pontos 1 a 5 da matéria de facto não provada.
Pretende, assim, o recorrente uma apreciação que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, tendo cumprido o ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar.
Começa o recorrente por alegar que resulta do auto notícia por detenção de fls. 2 e ss, mais concretamente de fls. 4 parte final, assim como da autorização dada pelo arguido para as buscas realizadas de fls. 13 e ss, que o barracão onde se encontravam as armas em apreço estava na esfera de disponibilidade do arguido.
Cremos, no entanto, que esta conclusão a que chega o recorrente, da análise da indicada prova documental, é precipitada, maxime porque a demais prova que veio a ser produzida em audiência, como veremos adiante, não a sustenta de forma certa e segura, como é suposto, na fase de julgamento.
Acresce, por outro lado e de todo o modo, que de pouco valeria a prova de que o barracão onde se encontravam as armas estava na esfera de disponibilidade do arguido, porquanto, face ao crime em análise, o que tinha que se demonstrar ao tribunal é que as armas estavam na disponibilidade do arguido (e não apenas o barracão…), sendo que o crime em apreço consuma-se com a disponibilidade da arma por parte do agente.
Ainda mais quando, das declarações do arguido, assim como dos depoimentos de algumas testemunhas, nos moldes que infra explanaremos, resulta a possibilidade de o barracão poder estar na disponibilidade de outrem, que não apenas o arguido.
Note-se que o crime em análise é um crime doloso, ou seja, terá que se apurar se o agente do crime tinha conhecimento e vontade de praticar o acto de detenção ou guarda, da arma que sabia ser proibida (por estar fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente).
Argumenta o recorrente que resulta dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, ouvidas em audiência, que o arguido não só tinha conhecimento da existência das armas apreendidas como as mesmas se encontravam na sua esfera de disponibilidade. Não vemos, no entanto, como pode o recorrente sustentar uma tal conclusão, retirada de tais depoimentos, como explanaremos adiante.
Para fundamentar a sua conclusão, alega o recorrente que a testemunha BB, agente da PSP, referiu, em audiência de julgamento, que: “Fizemos [uma busca] à casa e no quintal tinha um barracão, estava algum entulho, procurámos ali e encontrámos um saco dentro do armário, saco de plástico que tinha cerca de quatro ou cinco carregadores de arma” (aos 02:40 segundos da audiência de 18-10-2023) e que “Na altura pelo menos o lesado nos abordou ele informou-nos que possivelmente a arma podia estar nesse barracão, porque ele dentro da casa tinha visto a esconder alguma coisa no barracão (...) um dos arguidos” (aos 04:53 segundos da audiência de 18-10-2023).
E mais alega o recorrente que, por sua vez, a testemunha CC, agente da PSP, afirmou que: “O arguido autorizou a busca, perguntámos se isto era dele, ele negou e ainda disse que quem lhe tinha dado foi um segundo suspeito”. (aos 03:10 segundos da audiência de 18-10-2023); e que: “Porque o senhor AA se me lembro na altura disse que o barracão era dele, como estava contíguo à casa nós até lhe perguntámos e ele disse que sim”. (aos 03:47 segundos da audiência de 18-10-2023).
Refere, ainda, o recorrente que, uma vez questionado pela Mmª Juiz sobre o circunstancialismo de o arguido ter dito que quem lhe deu as armas foi o outro arguido, a mesma testemunha referiu que: “Sim, porque nós perguntamos e ele disse isso não é meu quem me deu foi o... acho que na altura até disse, foi o meu sobrinho.” (aos 06:30 segundos da audiência de 18-10-2023).
Concluiu o recorrente que, da análise conjugada dos excertos elencados sai reforçado, de acordo com juízos de normalidade e com as regras da experiência comum, que o arguido tinha acesso ao barracão em apreço, encontrando-se as armas apreendidas na sua esfera de disponibilidade.
E acrescenta que, atendendo a que o arguido vivia numa casa não licenciada, por si construída, a qual tinha um logradouro no qual se encontrava uma casota para animais, igualmente por si construída e cuja manutenção era realizada por si, dificilmente se compreende que o arguido ignorasse por completo o barracão que se encontrava imediatamente aí ao lado; mais acrescentando que mal se compreende que uma pessoa que realizava a manutenção não só da sua casa como da casa do seu vizinho – situação que levou à quezília existente entre ambos – desconhecesse por completo o interior de um barracão que se encontrava no logradouro da sua casa.
Conclui, assim, o recorrente que não podia ter sido outra a conclusão do Tribunal recorrido senão a de que o arguido tinha conhecimento e a disponibilidade das armas em apreço que se encontravam armazenadas no interior do referido barracão, devendo o douto tribunal a quo ter ponderado tais afirmações, contextualizadas pelas demais declarações produzidas pelas referidas testemunhas – que analisou e valorou – e com a prova documental supra enunciada, por forma a dar como provado os factos constantes nos pontos 1 a 5, e daí concluir pela procedência da acusação.
Recordemos o que a este propósito diz a decisão recorrida: “(…)
O arguido AA prestou declarações negando que os objectos apreendidos lhe pertencessem. Construiu a sua casa num espaço que lhe foi cedido por “um cigano” (sic). A sua casa tem à frente um espaço (logradouro/jardim/quintal) e por uma questão de segurança colocou ali um portão e deu uma chave do mesmo ao proprietário do terreno. O barracão fica no quintal junto à sua casa. Tem vindo a fazer melhorias na sua casa e se o barracão lhe pertencesse, já o teria arranjado.
Testemunhas BB e CC, agentes da PSP relataram as diligencias que no âmbito das suas funções empreenderam, confirmando o teor dos documentos que serviram de suporte à sua intervenção (auto de notícia e autos de apreensão).
Testemunha DD, cuja inquirição foi determinada pelo Tribunal nos termos do disposto no art.º 340º do C.P.Penal, disse ter tido um conflito com o arguido em data anterior aos factos em causa nos autos, relacionado com uma rede que colocavam entre as duas casas como protecção para a chuva.
Viveu ali cerca de 6 meses e nunca viu o arguido ir ao referido barracão.
O arguido tinha-lhe dito que havia construído a casa aos poucos.
Resulta do depoimento da testemunha BB que o barracão se situa, tal como referido pelo arguido, no espaço exterior, mas envolvente à casa do arguido. Referiu a testemunha que a casa se encontra arranjada, mas o barracão não. Estava degradado, mesmo a porta assim se encontrava. O arguido disse na altura não ter qualquer conhecimento sobre os objectos que ali foram encontrados e apreendidos.
A testemunha DD, de uma forma isenta e objectiva referiu que quem empunhou na sua direcção uma arma de fogo foi uma outra pessoa que não o arguido. E que o arguido acabou por intervir dizendo para ele guardar o objeto. O arguido nas suas declarações havia dito que “eu salvei a vida do DD”, referindo que quando viu o outro individuo com uma arma empunhada, lhe baixou a mesma.
Resulta ainda da matéria de facto provada, que o local onde se situa a casa do arguido integra um conjunto de casas construídas todas muito próximas umas das outras, aparentemente sem licenciamento.
Resultou das declarações do arguido, depoimento da testemunha BB e DD, que o arguido cuidava da sua casa e do espaço que se situava em frente, encontrando-se arranjado e que o barracão onde os objectos apreendidos se encontravam, não estava arranjado.
Por outro lado, resulta dos autos que foi apreendido num local aparentemente utilizado por outro cidadão (entretanto falecido) que não o arguido, munições idênticas àquelas que foram apreendidas no referido barracão.
Da conjugação de todos estes meios de prova, não logrou o Tribunal formar a sua convicção para além da dúvida razoável que o arguido era o detentor dos objectos apreendido, pelo que se impunha que a tais factos tivessem sido julgados não provados como o foram. (…)”
Ora, ouvidas, por este Tribunal de recurso, as declarações do arguido, das mesmas resulta que este negou totalmente que as armas apreendidas fossem suas, esclarecendo que o barracão “era dos ciganos” (sic), e que costumava estar aberto, nunca o tendo utilizado. Referiu que no dia em que os agentes policiais fizeram a busca ao barracão, ele ficou junto deles, e, quando encontraram as armas, ele ficou “parvo” (sic), referindo que nada tinha a ver com as mesmas.
Referiu que nunca utilizou o barracão, esclarecendo que este ficava no quintal da casa dele, mas que tinha sido “um cigano” que lhe deu esse “espaço” para ele poder fazer a casa dele (habitação não licenciada), mas era para ele “não mexer no barracão”, que “era dele” (do referido indivíduo de etnia cigana).
Referiu que usa o quintal, onde até tem os seus cães, mas que nunca usou o barracão, acrescentando que, aliás, a dada altura, pôs uma porta a vedar o acesso ao quintal e deu uma chave ao tal indivíduo de etnia cigana, precisamente para ele poder ter acesso ao barracão.
Ouvidos os agentes da PSP, as testemunhas BB e CC, que tiveram intervenção na busca ao barracão, estes descreveram a diligência, bem como as circunstâncias que os levaram inicialmente a dirigir-se ao local (alguém ligou para a esquadra a queixar-se de ter sido ameaçado com arma). O primeiro, no decurso da sua descrição, referiu que, quando encontraram as armas, no barracão, devoluto, em mau estado, este logo disse que o barracão não era dele e que as armas também não eram dele; o segundo esclareceu que ficou junto entrada da casa do arguido, para dar protecção ao colega, BB, que foi este quem foi dentro do barracão. Esta segunda testemunha também afirmou que o arguido negou que as armas fossem suas, mas que disse que quem lhe tinha dado as armas foi o outro suspeito (o arguido entretanto falecido); disse, ainda, que o arguido lhe disse que o barracão era dele, “se bem se lembra”. A primeira destas testemunhas referiu que assumiram que o barracão seria do arguido, por estar no quintal da casa do mesmo e que tinha um ar degradado, mas a casa não. A segunda referiu que o barracão estava fechado.
Por fim, ouvida a testemunha DD, vizinho do arguido, este esclareceu que, na altura dos factos, tinha tido um conflito com o arguido, ligado com a colocação de uma rede entre as respectivas habitações, e o arguido terá pegado numa faca e o ameaçado com ela. A testemunha fechou-se em casa e nesse dia, de madrugada, o arguido e outro indivíduo foram bater-lhe à porta, a ameaçá-lo. Referiu que, a dada altura, viu o outro indivíduo entrar no espaço exterior da casa do arguido e quando saiu veio com uma arma tipo metralhadora, a dizer que o matava. Referiu que o arguido tinha, naquele espaço exterior, uma casota de um cão e uma espécie de barraco de madeira.
Referiu que viveu naquela casa cerca de meia dúzia de meses, e que o arguido até lhe chegou a emprestar a tal rede, para fazer sombra. Viu o arguido, várias vezes, a usar o espaço exterior, mas nunca o viu a entrar no barracão.
Ora, aqui chegados, numa análise crítica da prova produzida em audiência, desta feita por este Tribunal ad quem, a única conclusão segura que retiramos, é que as armas apreendidas estavam num barracão localizado no logradouro da habitação do arguido. A partir daqui, temos que acompanhar as dúvidas do Tribunal a quo.
Com efeito, para além de o arguido ter negado quer a posse do barracão, quer das armas, temos ainda que tudo indica que a habitação do mesmo se situa numa área de construção não licenciada, tendo o arguido referido ao tribunal que o espaço onde construiu a sua casa foi-lhe oferecida por um indivíduo de etnia cigana, o qual tinha uma espécie de logradouro, ou quintal, onde existia um barracão, e que tal indivíduo lhe disse que não poderia mexer no mesmo, ou seja, mantendo o seu uso exclusivo - o que não é despiciendo no âmbito das relações sociais estabelecidas em determinados extractos sociais e culturais, como parece ter sido o caso.
A testemunha DD, que, na altura dos factos, vivia numa casa junto à do arguido, referiu ao tribunal que nunca viu o arguido a usar o tal barracão.
Esta mesma testemunha descreveu que foi o outro co-arguido (entretanto falecido) e não o arguido, que lhe dirigiu uma arma de fogo (metralhadora) e que, imediatamente antes, tinha visto essa mesma pessoa a dirigir-se ao espaço exterior da habitação do arguido (onde estava o barracão onde vieram a ser encontradas as armas apreendidas nos autos), de onde, depois, voltou com a dita arma.
Temos, por outro lado, os agentes da PSP um pouco desalinhados entre si, em termos dos depoimentos prestados, sendo que, enquanto um (a testemunha BB) afirmou que assumiram que o barracão seria do arguido, por estar no quintal da casa do mesmo e que tinha um ar degradado, devoluto, enquanto que a casa estava em bom estado e que logo que encontraram as armas no barracão, o arguido negou que as mesmas fossem suas, assim como também tinha negado que o barracão fosse seu; o outro (testemunha CC) afirmou que o arguido disse que o barracão era dele (“se bem se lembra” (sic), que estava fechado e que negou que as armas fossem suas, mas que disse que quem lhe tinha dado as armas foi o outro suspeito (o arguido entretanto falecido) – depoimento que se estranha, nesta parte, não só pela antítese da afirmação (o arguido nega que as armas sejam suas e, ao mesmo tempo diz que as mesmas lhes foram dadas por alguém ?!...), que teria exigido melhor esclarecimento, mas também porquanto a testemunha referiu ao tribunal que não acompanhou o seu colega ao interior do barracão, tendo ficado na entrada da casa do arguido, para dar protecção ao colega….
Aqui chegados, analisada a prova produzida em audiência de julgamento, nos moldes que acabámos de expor e lendo a fundamentação de facto do tribunal recorrido, logo se conclui que não incorreu este, no exame crítico da prova, em qualquer erro de julgamento.
A análise da prova e a exposição das dúvidas que a mesma lhe suscitou foram claramente expostas pelo Tribunal a quo, que, elencando a prova produzida em audiência e a valoração que a mesma lhe mereceu, fê-lo forma clara e lógica, tudo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, decorrente do art.º 127º do Código de Processo Penal.
Como se escreveu no acórdão do TRC de 19.02.2009, disponível in www.dgsi.pt “Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. (…). A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos”, devendo, com vista a valorar, ou não, um dado meio de prova, designadamente um depoimento, o julgador aferir da credibilidade dos factos relatados pela testemunha/depoente, para o que deverá socorrer-se de raciocínios lógicos e dedutivos, pautados nas regras decorrentes da experiência comum.
In casu, decorre da motivação da matéria de facto a razão pela qual o tribunal a quo entendeu dar como não provados os factos aqui controvertidos – pontos 1) a 5) dos factos não provados - explicando, de forma razoável, lógica, racional e plausível, fazendo bom uso do princípio da livre valoração da prova – art.º 127º do CPP - porque assim o fez.
A análise crítica da prova produzida em audiência é clara e fiel à prova produzida em audiência, sendo que o grau de credibilidade, ou de descrédito, atribuído à mesma mostra-se devidamente exposto e motivado, de acordo com a percepção própria permitida pelo imediatismo que acompanhou a produção daqueles meios de prova.
Veio o Ministério Público recorrente invocar que da análise da prova produzida em audiência, de acordo com juízos de normalidade e com as regras da experiência comum, teria que se concluir que o arguido tinha acesso ao barracão em apreço, encontrando-se as armas apreendidas na sua esfera de disponibilidade.
Ocorre que o recorrente não logrou demonstrar, em recurso, que a decisão do Tribunal a quo se mostra desajustada ou incoerente face à prova produzida no julgamento e, neste sentido, não demonstrou a existência de provas produzidas em audiência, que impusessem decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido.
O que realmente resulta das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou, e que no entendimento do recorrente não deveria ter firmado, sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, do qual decorre que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
Relembre-se que rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal. Sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
A apreciação da prova não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela (deve ser) uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”9
A convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.10
Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova não se impõe decisão diversa, nos termos do art.127.º do Código de Processo Penal, deve manter a decisão recorrida.
Ou seja, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.
Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”11
“Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos”12, sendo as declarações indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, dos seus olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reações comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjectiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade de um depoimento, é insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova, e, no presente caso, o tribunal a quo fê-lo.
O Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou, de forma lógica, ponderada e bastante, as razões da sua convicção, explicou a formulação do juízo que formou sobre a prova produzida em audiência, e, da respectiva fundamentação decorre que ficou com dúvidas sérias, no que respeita à versão acusatória, pelo que lhe cumpria fazer uso do invocado princípio in dubio pro reo, o que fez e bem.
Não interessa, assim, neste recurso, o que os juízes desta Relação decidiriam se tivessem efectuado o julgamento em primeira instância. Também não está em causa o modo como decidiria o recorrente se fosse o Juiz a quo. Na verdade, o recurso em matéria de facto não tem por finalidade a realização de um segundo julgamento, mas tão só a apreciação da decisão proferida na 1ª instância, apreciação essa limitada ao exame [controlo] dos elementos probatórios valorados pelo tribunal recorrido e feita à luz das regras da lógica e da experiência, mas sempre sem colidir com os fundamentos da decisão que só a imediação e a oralidade permitem atingir - imediação e oralidade que não estão presentes no julgamento do recurso, porque aos juízes do tribunal superior apenas são facultados registos [em suporte magnético].
Por isso ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório [nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica] cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431.º do Código de Processo Penal.
Assim, o que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso [precisamente porque o seu propósito é, essencialmente, o de remédio jurídico], é verificar, controlar, se o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, verificar, ponto por ponto, se os concretos erros de julgamento indicados pelo recorrente, de facto, existem e, na afirmativa, proceder à sua correção.
Por tudo o que supra se disse, impõe-se concluir que a sentença recorrida não se encontra ferida de qualquer erro de julgamento, nos termos do art.º 412º, nº 3 do C.P.P, tendo feito bom uso do princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP, convocando o princípio in dubio pro reo de forma acertada, não tendo tão-pouco incorrido em qualquer um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal (que, como se sabe, são de conhecimento oficioso).
Improcede, pois, o recurso, permanecendo intocada a matéria fáctica impugnada.
Resulta, em consequência, prejudicada a apreciação da segunda questão decidenda, sendo certo que, mantendo-se a factualidade não provada, nos seus exactos termos, necessariamente, como o decidiu o Tribunal a quo, terá de se manter a absolvição do arguido.
Por tudo quanto foi dito, improcede, pois, o recurso do Ministério Público, devendo manter-se a decisão recorrida.
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III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Sem custas.
Notifique nos termos legais.
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Lisboa, 11 de Abril de 2024
(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
Fernanda Sintra Amaral
José António Gonçalves Castro
Maria Ângela Reguengo da Luz
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1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
5. Proc. nº 07P4375, acessível in www.dgsi.pt
6. In Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999.
7. In «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37.
8. Cfr, neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt
9. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º volume, Coimbra, ed. 1974, pág. 203 a 205.
10. Cfr. Acórdão do TRC, de 16-09.2015, in www.dgsi.pt.
11. Cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.11.2021, Processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, disponível em www.dgsi.pt.
12. Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-02-2008, Processo nº 07P4729, acessível em www.dgsi.pt.