Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
143/11.5JFLSB-B.L3-5
Relator: SARA ANDRÉ DOS REIS MARQUES
Descritores: CORRUPÇÃO PASSIVA
CRIME INSTÂNTANEO
CONSUMAÇÃO FORMAL E CONSUMAÇÃO MATERIAL
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I- Uma vez que o crime de corrupção passiva é um crime instantâneo, a consumação ocorre logo que se pratica qualquer um dos atos típicos (consumação formal), mas esta constatação não esquece que a este momento se pode seguir a prática dos mesmos ou de outros atos típicos e estes atos novos são também eles atos de consumação do crime e confluem no «mercadejar do cargo».
II- A persistência na ação ofensiva do bem jurídico desloca o ponto de consumação material para a realização do último facto lesivo.
III- qualquer agravação da lei ocorrida após a data da consumação formal e antes do término da consumação material não pode ser retroativamente aplicada.
IV- o n.º 1 do artigo 119º do Código Penal, ao estatuir que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, não pode deixar de ser interpretado e aplicado como tendo em vista, neste crime, a consumação material do crime ou terminação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- Relatório:
No Tribunal Central de Instrução Criminal- Juiz 5, foi proferido o seguinte despacho, datado de 24 de outubro de 2023: (transcrição)
“O condenado AA veio requerer a declaração de prescrição do procedimento criminal, defendendo que os factos por que foi condenado prescreveram antes de transitar em julgado o acórdão condenatório.
Importa considerar que a condenação do requerente ocorreu nos seguintes termos:
Pela prática de 4 (quatro) crimes de corrupção passiva para prática de acto ilícito (corrupção passiva), p. e p. pelo art.ºs 372º, nº 1, e 373º, nº 1, ex vi do art.º 386º, nº 1, al. b), e 28º, dos do Código Penal, foi condenado na pena única de 5 anos e 3 meses de prisão, a qual operou o cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:
- 2 anos e 9 meses de prisão, por força da factualidade elencada sob os pontos 141 a 151 do conjunto de factos provados – os quais dizem respeito a acordo corruptivo firmado com BB em 2004 que ocasionou, para o condenado, vantagens que auferiu até Maio de 2011;
- 2 anos e 6 meses de prisão, por força da factualidade elencada sob os pontos 152 a 165 do conjunto de factos provados – os quais dizem respeito a acordo corruptivo firmado com CC/ DD em 2009 que ocasionou, para o condenado, vantagens que auferiu até Abril de 2011;
- 2 anos e 9 meses de prisão, por força da factualidade elencada sob os pontos 166 a 169 do conjunto de factos provados – os quais dizem respeito a acordo corruptivo firmado com EE em Maio de 2009 que ocasionou, para o condenado, vantagens que auferiu em Junho de 2011; e
- 3 anos de prisão, por força da factualidade elencada sob os pontos 170 a 192 do conjunto de factos provados – os quais dizem respeito a acordo corruptivo firmado com FF em 2004 que ocasionou, para o condenado, vantagens que auferiu até Dezembro de 2011.
Ao crime em apreço, na redacção legal aplicável por força do disposto no art.º 2º, nº 4, 1ª parte, do Código Penal, corresponde o prazo prescricional de 10 anos. Tal prazo conta-se desde o momento da consumação dos crimes, o qual corresponde ao último acto de recebimento das vantagens, todos eles ocorridos, no caso em apreço, no ano de 2011 (art.º 119º, nº 1, do Código Penal).
Verificaram-se, nos autos, diversas causas suspensivas e interruptivas da prescrição (designadamente, as previstas nos art.ºs 120º, nº 1, al. b), e nºs 2 e 3, e 121º, nº 1, alíneas a) e b), e nºs 2 e 3, do Código Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro). Tais causas de suspensão e de interrupção da prescrição tiveram por efeito, por um lado, que a prescrição ficasse suspensa pelo período da respectiva duração (no máximo de 3 anos, atento o disposto no art.º 120º, nº 2, do Código Penal) e, por outro, que, ressalvado o tempo de suspensão, tenha de ser acrescentado metade do prazo normal da prescrição (nos termos do art.º 121º, nº 3, do Código Penal). Tal implica, forçosamente, que o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal seja de 18 anos.
Ora, tendo em conta que, desde 2011 (data da consumação dos crimes), e até o trânsito em julgado da condenação, não decorreram os referidos 18 anos, é forçoso concluir que não ocorreu a prescrição do procedimento criminal imputado ao condenado.
Por conseguinte, improcedendo o requerido, impõe-se o cumprimento da pena de prisão em que AA foi condenado nos presentes autos.
Emitam-se os necessários mandados de detenção, bem como os referentes aos demais condenados em pena de prisão efectiva.
Notifique.”
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Não se conformando com este despacho, o arguido veio dele recorrer, formulando as seguintes conclusões, apresentadas após convite para o efeito (transcrição):
a) A verificação da prescrição é de conhecimento oficioso e pode ter lugar a todo o tempo, pois que é causa de extinção do procedimento criminal.
b) Nos quatro crimes de corrupção passiva em que o Rte foi condenado, em todos eles, quer a alegada promessa quer a entrega são nos seguintes anos:
BB – 2004, CC e DD – 2009, EE – 2009 e GG – 2004
c) Ou seja, anteriores á alteração do prazo de prescrição, pelo que se aplicaria o prazo de 5 anos considerando a versão do art.º 373º do C Penal anterior à Lei 32/2010 de 02.09.
d) Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional plasmada no acórdão 90/2019, deve-se ainda interpretar os art.ºs 119º, nº 1 e 374º, nº 1 do Código Penal no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção é contado a partir da data em que ocorra a promessa de uma vantagem ao funcionário.
e) Ora o douto despacho manifesta um entendimento diferente, afirmando que
“Tal prazo conta-se desde o momento da consumação dos crimes, o qual corresponde ao último acto de recebimento das vantagens, todos eles ocorridos, no caso em apreço, no ano de 2011 (art.º 119º, nº 1, do Código Penal).”
f) No caso em apreço, aplicando-se a jurisprudência do Tribunal Constitucional supra referida e considerando, portanto, as datas das promessas das vantagens, os crimes estarão prescritos.
g) Mas , mesmo sem aplicar a jurisprudência do Tribunal Constitucional supra identificada, isto é contando a data do último ato de recebimento de vantagem, a simples aplicação ao Rte da lei mais favorável – o art.º 373º do Código Penal na versão anterior à Lei 32/2010 – conduziria a que com o prazo de prescrição de 5 anos , todos os crimes se encontrem prescritos porque de 2011 até agora se passaram mais de 10 anos e meio.
h) Assim, o douto despacho ao interpretar os art.ºs 119º, nº 1 e 374º, nº 1 do Código Penal no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção é contado a partir da data do último ato de recebimento das vantagens, violou o disposto nos art.ºs 1º , 29º e 202º da CR Portuguesa.
i) E o douto despacho, ao não aplicar ao Rte a lei mais favorável, violou grosseiramente o art.º 2º nº 4 do C Penal e também o art.º 29º do CR Portuguesa.
Em conclusão:
1. Contando a data do último ato de recebimento de vantagem ( ano de 2009 ) , a simples aplicação ao Rte da lei mais favorável – o art.º 373º do Código Penal na versão anterior á Lei 32/2010 – conduziria a que com o prazo de prescrição de 5 anos , todos os crimes se encontrem prescritos porque de 2011 até agora se passaram mais de 10 anos e meio.
O douto despacho, ao não aplicar ao Rte a lei mais favorável, violou grosseiramente o art.º 2º nº 4 do C Penal e também o art.º 29º do CR Portuguesa.
3. Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional plasmada no acórdão 90/2019, deve-se ainda interpretar os art.ºs 119º, nº 1 e 374º, nº 1 do Código Penal no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção é contado a partir da data em que ocorra a promessa de uma vantagem ao funcionário.
4. O douto despacho manifesta um entendimento diferente, afirmando que “Tal prazo conta-se desde o momento da consumação dos crimes, o qual corresponde ao último acto de recebimento das vantagens “.
5. Ora, no caso em apreço, aplicando-se a jurisprudência do Tribunal Constitucional supra referida e considerando, portanto, as datas das promessas das vantagens, os crimes estarão prescritos.
6. Assim, o douto despacho ao interpretar os art.ºs 119º, nº 1 e 374º, nº 1 do Código Penal no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção é contado a partir da data do último ato de recebimento das vantagens, violou o disposto nos art.ºs 1º , 29º e 202º da CR Portuguesa.
Termos em que, com o douto suprimento de V.Exas., deve a decisão ora recorrida ser alterada, declarando- se a extinção do procedimento criminal nos termos peticionados.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – artigos 401º, nº 1, al. a), 406º, nº 2, 407º, nº 2, al. b), 408º, nº 3, a contrario, 411º, nº 1, al. a), e nº 3, todos do Código de Processo Penal (CPP).
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O MP apresentou resposta ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e apresentando as seguintes conclusões:
1º- Por recurso de 13.11.2023, com a Ref.ª 37573428, o recorrente, discordando do despacho proferido defende que, o Tribunal “a quo” ao entender que o prazo de prescrição do procedimento criminal do crime de corrupção é contado a partir do último acto de recebimento das vantagens, viola o disposto no art.º 1.º, 29.º e 202.º da CRP e ao não lhe aplicou a lei mais favorável, viola grosseiramente o art.º 2º/3 do CP e o art.º 29.º da CRP.
2º- Ora sucede que, a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, é rigorosa quanto aos seus pressupostos de facto e mostra-se igualmente acertada relativamente à solução de direito, sendo que, os factos do acórdão da 1º Instância mostram-se fixados, por decisão transitada em julgado.
3º- Acresce que, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre a partir da data em que o facto ilícito se considera consumado (art.º 119.º/1 e 4 CP).
O recorrente foi constituído arguido a 04.01.2012, foi notificado da acusação em 27.05.2016 e notificado da pronúncia em 21.02.2017.
4º- Da matéria de facto assente nos pontos 141 a 165, 170 a 192, permite concluir que a consumação do(s) crime(s) ocorreu depois da entrada em vigor da 25.ª Alteração ao Código Penal, por força da lei 32/2010 de 02.09, publicada no DR nº171/2010, Série I de 2010-09-02 (início da vigência em 01.03.2011); já o mesmo não aconteceu quanto aos factos enunciados nos pontos 166 a 169, dos factos assentes, cuja consumação ocorre em junho de 2009.
5º- Assim, com referência à data da prática dos factos (consumação formal e material) e ao máximo das respetivas molduras legais e em conformidade com o disposto no art.º 118.º/1, al. b) do CP, o prazo de prescrição do procedimento criminal, mais favorável ao recorrente, é de dez anos, correndo desde o dia em que o facto se tiver consumado (art.º 119.º/1 e 4 CP).
6º- Porém, independentemente da data de consumação material dos crimes, atenta a acusação e subsequente o acórdão condenatório, não há dúvidas que os ilícitos imputados ao recorrente, na data dos factos, tinham uma moldura penal abstracta de 1 a 8 anos de prisão.
7º- Assim, com referência à referida data e ao máximo das respetivas molduras legais, em conformidade com o disposto no artigo 118.º/1, al. b) do CP, o prazo de prescrição do procedimento criminal, correndo desde o dia em que o facto se tiver consumado (art.º 119.º/1 e 4 CP), é de 10 (dez) anos, para os pontos 141 a 165, 166 a 169, 170 a 192 (art.º 372.º/1 e 373.º/1 do CP, ex vi do art.º 386.º, nº 1, al. b), e 28.º, do CP, versão da Lei 59/2007).
8º- No caso concreto, o início e o fim do prazo de prescrição do procedimento criminal, tem as seguintes datas:
. Factos 141 a 151- maio de 2011 (+18 anos) = Maio de 2029;
. Factos 152 a 165 – 06 de Abril de 2011 (+18 anos) = 06.04.2029;
. Factos 166 a 169- 09 de Junho de 2009(+18 anos) = 09.06.2027;
. Factos 170 a 192 –14.12.2011(+18 anos) = 14.12.2029
9º- Do que se conclui que, nas datas das notificações da acusação e pronúncia e na data de trânsito em julgado do acórdão (01.03.2023), os ilícitos penais em causa, não tinham o procedimento criminal prescrito, pelo decurso do prazo máximo de prescrição (10 Anos+5 Anos=15A) e ressalvado o período da suspensão da prescrição (3Anos), nos termos do previstos no art.º 118.º/1, al. b), c), 120.º/1, al. b) e 121.º/ 1, al. a), b), 2 e 3 do CP.
10º- O Recorrente invoca, ainda, a violação do princípio da legalidade criminal, que sustenta na concreta pronúncia do Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 90/2019, de 06.02.2019, porém fá-lo sem qualquer razão.
11º- O referido princípio, com assento no art.º 29.°/1 da CRP, significa que, não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, consagrando-se nesse preceito a máxima latina nullum crimen, nulla poene sine lege; o mesmo exige que uma infração criminal tenha necessariamente de estar claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os atos ou omissões que determinam responsabilidade penal e as respetivas consequências.
12º- O recorrente foi condenado pela prática de quatro crimes de corrupção passiva, consumado na data do recebimento da vantagem, pois, verificou-se uma sucessão de actos corruptivos, que encontra respaldo explicito na letra da lei, sem que se mostre violado o princípio da legalidade criminal, garantia fundamental prevista no art.º 29.º/1 da CRP.
13º- Quanto à violação da aplicação da lei mais favorável ao recorrente, cumpre referir que, o apuramento do regime concretamente mais favorável, perante sucessão de leis penais, de acordo com o art.º 2.º/4, do CP, é feito do cotejo dos regimes em bloco da lei vigente e da lei pré-vigente ao caso em julgamento, ou seja, pondo em confronto a globalidade daqueles dois regimes, e não apenas partes ou segmentos dos mesmos.
14º- No caso concreto, o recorrente entende que lhe deve ser aplicado regime mais favorável do art.º 373.º/1 do CP na Versão da lei 59/20078, em termos de moldura penal do ilícito, pugnando que pela aplicação do regime de prescrição do procedimento criminal (5 anos) corresponde à moldura penal anterior à referida alteração.
15º- In casu, do confronto a globalidade dos regimes jurídicos, regista-se uma dupla alteração, quer no regime de punição (sendo que na nova lei tem uma moldura superior), quer no prazo da prescrição do procedimento criminal (na nova lei é de 15 anos).
16º- Atento a análise global do novo regime punitivo, o regime mais favorável ao recorrente – quer em termos de punição, quer em termos de contagem de prazo da prescrição - é o anterior à aplicação da Lei 32/2010, que lhe foi aplicado em concreto, pelo que o despacho recorrido não merece qualquer reparo ou censura
17º- No despacho recorrido, foi aplicado o regime mais favorável ao recorrente, previsto nos art.º 118.º/1 al. b), 372.º/1 e 373.º/1 do CP, na versão da Lei 59/2007, que permite inferir que, o prazo de prescrição do procedimento criminal mais favorável ao arguido, é o de 10 anos de prescrição, em face da sucessão nas normas processuais materiais, só assim se conferindo adequada eficácia ao art.º 2.º/4 do CP, de idêntica redacção em ambos os regimes em causa.
18º- Por fim entendemos que, não se mostra violado o disposto no 1.º e 202.º da CRP e os art.º 2/3 e 4, 118.º/ 1, 119.º/1 e 4 e 372.º, 373.º ex vi art.386.º e 28.º todos do CP, pelo que o recurso deve improceder na integra.
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Uma vez remetido a este Tribunal, foi proferido despacho convidando o recorrente a apresentar as conclusões do recurso, o que este fez.
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O Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs o visto.
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Proferido despacho liminar, foram os autos aos “vistos” e teve lugar a conferência.
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III– Questões a decidir:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões (já supra mencionadas) da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância – artigos 403º e 412º, nº 1, do Código do Processo Penal.
In casu, a questão a decidir prende-se com saber se o procedimento criminal referente ao recorrente se mostrava extinto pela prescrição à data do trânsito em julgado do acórdão condenatório.
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II - Factos relevantes para a decisão do recurso:
1 – O arguido AA foi condenado, por Acórdão proferido a 11/12/2020 e transitado em julgado a 1/3/2023, nas seguintes penas e pela prática, na forma consumada e em concurso efectivo, dos seguintes crimes:
- pela prática do crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.º 1 e 373, n.º 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.º 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 141. a 151., na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
- pela prática do crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.º 1 e 373, n.º 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.º 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 152. a 165., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- pela prática do crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.º 1 e 373, n.º 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.º 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 166. a 169., na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
- pela prática do crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.º 1 e 373, n.º 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.º 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 141. a 151., na pena de 3 (três) anos de prisão;
- em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
2- O recorrente foi constituído arguido a 4/1/2012.
3- A acusação foi notificada ao arguido a 27/5/2016.
III – Fundamentação:
A primeira das questões a resolver prende-se com a da determinação do prazo de prescrição dos crimes em causa nos autos: o juiz a quo, no despacho recorrido, entendeu que tal prazo é de 10 anos, ao passo que o recorrente aponta para 5 anos, por ser o prazo que, defende, resulta da aplicação da lei mais favorável ao arguido, que é o art.º 373 do CP, na versão anterior à Lei 32/2010.
Para tanto, há que dar resposta a uma outra, que é a de saber se devemos estender o princípio da legalidade criminal, nomeadamente na vertente da proibição da retroatividade, ao regime da prescrição, o que nos obriga à análise da natureza deste instituto.
O procedimento criminal – o modo de afirmação instrumental do jus puniendi do Estado – significa, em geral, tudo quanto cabe no próprio iniciar e desencadear da acção penal, enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal.
O Estado, porém, não guarda para si, ilimitadamente no tempo, a actuação do seu direito de punir. Decorrido que seja certo lapso de tempo sobre o facto criminoso, maior ou menor consoante as situações previamente definidas na lei, não poderá ser desencadeada ou prosseguir a acção penal por esses factos passados porque o procedimento criminal prescreve.
A prescrição tem vindo a ser historicamente justificada por razões quer processuais, que de natureza substancial e material.
Lê-se no Ac. STJ de 6/8/2008, processo 07P2604, in www.dgsi.pt:
Assim, para além de certos limites temporais, haveria que considerar os efeitos negativos sobre a produção das provas, especialmente tratando-se de prova testemunhal, não só no esquecimento sobre os factos, mas principalmente pelo perigo de deturpação inconsciente na transmissão do testemunho. Ainda, não haveria possibilidade de movimentar todos os processos, por mais antigos que fossem; por isso, a certeza imporia um limite para o passado que não fosse o acaso a determinar quais os casos antigos que poderiam vir a ser movimentados.
O pequeno valor destas razões processuais leva a considerar as razões de natureza substancial como fundamentalmente justificadoras da ocorrência da prescrição do procedimento criminal, nomeadamente as que se relacionam com os fins das penas: «a acção do tempo torna impossível ou inútil a realização destes fins», «o decurso do tempo apaga a exigência de justiça, a necessidade da retribuição penal para a satisfazer»; «passados anos o crime esqueceu, a reacção social, a inquietação, por ele provocada foram-se desvanecendo, até desaparecer; a pena perdeu o interesse e o significado» - cfr. Prof. BELEZA DOS SANTOS, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 77°, p. 321 e segs.
Também o decurso do tempo apaga a utilidade preventiva geral e preventiva especial das penas.
Estes fundamentos da prescrição do procedimento criminal são comuns a todos os ordenamentos que reconhecem o instituto (v.g. JESCHECK, “Tratado de Derecho Penal”, p. 1238 e segs.; CUELLO CALÓN, Derecho Penal, vol. II, pp. 758 e segs.; ROGER 3MERLE e ANDRÉ VITU, Traité de Droit Criminel, II vol., pp. 50 e segs.; PIERRE BOUZAT e JEAN PINATEL, Traité de Droit Pénal et de Criminologie, tomo II, pp. 1008 e segs.).”
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, edição de 1993, páginas 699 e 700:
«A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva (…). Por um lado, a censura comunitária (…) esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer» pelo «mero decurso do tempo». Por outro lado, as exigências de prevenção especial (…) tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos (…). Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitária, já apaziguadas ou definitivamente frustradas».
«Também do ponto de vista processual (…), o instituto geral da prescrição encontra pleno fundamento. Sobretudo (…) na medida em que o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados mais duvidosos a investigação (e a consequente prova) do facto e, em particular, da culpa do agente, elevando a cotas insuportáveis o perigo de erros judiciários».
A sua inserção no Código Penal, e não no Código de Processo Penal, denuncia, entendemos, a natureza substantiva deste instituto, que se traduz na renúncia do Estado ao direito de punir, condicionada pelo decurso de um determinado lapso temporal desde a data da prática do facto, que faz com que este se torne “não carenciado de punição” (neste sentido Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, pág. 701 e 702).
O STJ, de resto, tem afirmado abundantemente a natureza substantiva das normas sobre prescrição do procedimento criminal – cfr. Assento de 19-11-1975, BMJ 251.º/75.
E também o TC se vem pronunciando no sentido de que, considerando as dimensões em que esteja em causa a efetividade da prescrição enquanto garantia jurídico-penal, este instituto é merecedor da cobertura de princípios normativos coevos ao Direito criminal, concretamente da proibição de retroatividade de Lei desfavorável, também refração do princípio da legalidade – cfr. artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa
Neste sentido, escreve-se no AC TC n.º 370/2023, in www.dgsi.pt:
“a extensão do princípio da legalidade criminal, nomeadamente na vertente da proibição da retroatividade, ao regime da prescrição, encontra a sua razão de ser e o seu limite natural numa segurança jurídica específica, que não coincide integralmente com a que subjaz à exigência de legalidade das normas concretizadoras de modelos de incriminação (v.g., tipos-de-ilícito e molduras penais): “[A] confiança de que o regime da prescrição vigente no momento da prática do facto é merecedor não é a que se traduz na possibilidade de o agente, com base em cálculos mais ou menos esdrúxulos, estimar a probabilidade de evitar a punição. A confiança legítima traduz-se na definição antecipada do horizonte temporal máximo em que o agente pode gozar de um estado de absoluta paz jurídica, consumada na condenação, na absolvição ou na prescrição do procedimento”. (declaração de voto do C. Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro ao Acórdão n.º 500/2021)”.
Ultrapassada a questão, vejamos quais os crimes em causa nos autos e se há efetivamente uma sucessão de regimes legais a considerar, para depois determinarmos qual o “regime mais favorável ao arguido”, tal como o impõe o disposto na primeira parte do n.º 4 do artigo 2º do Código Penal.
Ora, é entendimento unânime do STJ que esta determinação da lei mais favorável obriga ao cotejo dos regimes em bloco da lei vigente e da lei pré-vigente ao caso em julgamento, ou seja, pondo em confronto a globalidade destes dois regimes e não apenas de partes ou segmentos dos mesmos, confronto que há-de ser feito em concreto, tendo em consideração as circunstâncias específicas do caso em apreciação, visto que o texto legal ao estabelecer que é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável apenas admite a aplicação de um dos regimes. A doutrina dominante, de resto, pronuncia-se no mesmo sentido (cfr. Eduardo Correia, Actas das Sessões Comissão Revisora do Código Penal (1965), I, 61M; Baptista Machado, Sobre a Aplicação da Lei Penal no Tempo, 1968
In casu, o arguido foi condenado, por Acórdão transitado em julgado, pela prática dos seguintes crimes:
- um crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.° 1 e 373, n.° 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.° 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 141. a 151, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
- um crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.° 1 e 373, n.° 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.° 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 152. a 165., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
- um crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.° 1 e 373, n.° 1, ex vi do disposto no artigo 386, n.° 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 166. a 169., na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
- um crime de corrupção passiva para prática de ato ilícito (corrução passiva) previsto e punível (sucessivamente) pelos artigos 372, n.° 1 e 373, n.° 1, ex w do disposto no artigo 386, n.° 1, alínea b), e 28, todos do Código Penal, referente aos factos provados em 170. a 192., na pena de 3 (três) anos de prisão;
Ou seja, está claramente fora da equação o normativo invocado pelo recorrente - o art.º 373 do CP, na versão anterior à Lei 32/2010 - que punia a corrupção passiva para facto lícito e que tinha, uma moldura mais baixa -, pois o arguido não foi condenado (nem sequer pronunciado) por tal crime.
Temos outrossim de ter em conta o crime de corrupção (art.º 373º do CP na versão atualmente em vigor) e o crime de corrupção para facto ilícito (artigo 372, n.° 1, na redação anterior).
Ora, dizia-nos o Artigo 372.º do CP (corrupção passiva para acto ilícito), na versão anterior à Lei n.º 32/2010, de 02/09, que:
“O funcionário que por si, ou por interposta pessoal, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 – (…)
3- (…)”
Já o art.º 373º do CP, na redação atualmente em vigor, estipula que:
“ 1 - O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o acto ou omissão não forem contrários aos deveres do cargo e a vantagem não lhe for devida, o agente é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”
Para o caso, o que releva é saber qual a moldura penal abstrata, prevista pelos dois regimes em confronto, para os crimes pelos quais o arguido foi condenado, pois desta depende o prazo de prescrição.
Ora, tal moldura penal, como vemos, manteve-se inalterada: 1 a 8 anos de prisão.
Mas as normas referentes aos prazos de prescrição dos crimes em causa nos autos também sofreram sucessão de regimes, designadamente com a Lei n.º 32/2010, de 02/09. E, aqui, já houve uma alteração que pode ser relevante para o caso: considerando a moldura penal, o prazo de prescrição era de 10 anos, à luz da alínea d) do nº 1 do artigo 118.º do Código Penal, na redação dada pela Lei 59/2007, de 4/9 e passou a ser de 15 anos, com a redação dada pela Lei 32/2010, de 2/9 ao art.º 118º.
Esta alteração pode relevar porque, analisando os factos provados, vemos que em relação a três dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, se provaram pagamentos de subornos ao arguido em 2011, ou seja, após a entrada em vigor da referida Lei 32/2010, de 2/9:
- Factos 141 a 151- o último pagamento ocorreu em maio de 2011;
- Factos 152 a 165 – o último pagamento ocorreu em 06 de Abril de 2011;
- Factos 170 a 192 – o último pagamento ocorreu em 14 de dezembro de 2011.
Assim, perguntamos: qual é a lei do momento da prática dos factos criminosos (artsº 2º e 3º do CP)? A lei do pacto criminoso? A lei do primeiro pagamento? A lei do último pagamento? O prazo de prescrição dos crimes praticados pelo arguido é de 10 ou de 15 anos?
Atualmente, é pacífico na doutrina e na jurisprudência que o decisivo para a determinação do “tempus delicti” é o momento da conduta.
Contudo, em crimes de estrutura complexa, como é o caso do crime de corrupção, em que a conduta “duradoura” (naturalisticamente) se pode desenvolver no tempo, não fica circunscrita a um único acto, a determinação desse momento não se mostra de solução imediata.
O crime de corrupção é um crime estrutura bilateral e sinalagmática, que se caracteriza pela convergência de vontades (acordo-corrupção) e por atos executórios. Está neste crime em causa um suborno, que se apresenta como contrapartida de um concreto ato ou omissão do agente público, futuro (corrupção antecedente) ou passado (corrupção subsequente).
Por outro lado, trata-se ainda de um crime de realização instantânea, dado que a prática de qualquer um dos atos que assumem relevância típica implica per se, imediatamente, a realização do facto ilícito típico: do lado passivo, a solicitação da vantagem, a aceitação de promessa de vantagem ou a aceitação de entrega de vantagem e do lado ativo, a promessa de vantagem ou a entrega de vantagem.
Na corrupção passiva, que é a que aqui está em causa, o agente público pode cometer o crime por várias vias: ou mediante solicitação de uma vantagem; ou mediante aceitação de uma vantagem, já entregue ou ainda só prometida. Estas diferentes condutas típicas podem suceder-se (cumulativamente) no tempo.
Para parte da doutrina e da jurisprudência, atenta a natureza de crime instantâneo, o crime de corrupção consuma-se logo com o pedido ou a oferta da vantagem conhecidos pelos destinatários. Todas as eventuais condutas subsequentes são tidas como irrelevantes, mesmo que integrem as previsões típicas dos crimes de corrupção (neste sentido, pronunciou-se Cláudia Cruz Santos, Os crimes de Corrupção Notas Críticas a partir de um Regime Jurídico-penal sempre em expansão, Revista Julgar n.º 28, ano 2016, e, na jurisprudência, Ac. do TRL de 13.07.2010, processo 712/00.9JFLSB.L1-5, in www.dgsi.pt)
Em sentido divergente - e contando com a nossa adesão - outra parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que ambos os momentos do crime, quer o do pacto corruptivo, quer o do momento da entrega do suborno, são relevantes, socorrendo-se da distinção feita por Jescheck entre o conceito de «consumação material ou terminação» e o conceito de «consumação formal».
Neste sentido, escreve Nuno Brandão, in Corrupção: a questão da consumação material e as suas consequências, in Corrupção em Portugal, Univ. Católica Ed., Lisboa, 2021, p. 184-185):
É igualmente possível, e por certo até o mais frequente, que os atos de entrega da peita e de aceitação do seu recebimento representem o derradeiro passo de um processo corruptivo já em curso, seguindo-se a anteriores solicitações da vantagem por parte do próprio agente público e/ou as prévias aceitações de promessas de vantagem que lhe foram dirigidas pelo corruptor. (…)
A circunstância de se dever entender que os crimes de corrupção passiva e ativa assumem a de infrações instantâneas em nada afeta (…) a possibilidade de um mesmo agente praticar sucessivos atos que integram a tipicidade dos crimes de corrupção passiva e ativa: do lado do agente público, começando por solicitar a vantagem e mais tarde acabando por aceitar a sua entrega; e do lado do particular, começando por prometer a vantagem que aquele solicitou e acabando efetivamente por dá-la. E cada um deste tipo de atos pode também ser levado a cabo diversas vezes (v. g., o agente público apresenta vários pedidos de suborno, cada vez mais elevados; o particular parcela a entrega da vantagem).
(…)
Situações com esta configuração deverão ser enquadradas no tópico da subsidiariedade implícita da problemática da unidade e pluralidade criminosa, dada a incorporação nos tipos legais de corrupção passiva e ativa de estádios evolutivos da consumação material da ofensa ao bem jurídico tutelado e o crescendo de ofensividade que lhes está associado. Deparamos, com efeito, com delitos de estrutura iterativa, por se tratar de tipos legais que incorporam uma pluralidade de atos individuais, aos quais é inerente a contraposição entre consumação formal e consumação material.
. Se é certo que para a consumação (formal) bastará a solicitação ou a aceitação de promessa de vantagem e a realização dessa promessa, não estando os efeitos jurídicos das estatuições dos tipos legais dependentes nem da entrega da vantagem nem da sua aceitação, deve igualmente convir-se que quando um tribunal se depare com um cenário factual que agrega aqueles vários atos e momentos de forma sucessiva e interligada será a todo este quadro complexivo que deverá aplicar as normas incriminadoras respetivas.
(…)
Em geral, perante crimes cuja execução se pode processar através de uma reiterada prática de atos típicos de carácter instantâneo, é pacífico que se pode afirmar que já existe consumação logo que a primeira conduta típica seja praticada e há uma renovação da consumação sempre que o agente realize uma nova ação típica que não deva ser normativamente dissociada da anterior”.
No mesmo sentido, escreve-se no Ac. TC n.º 370/2023, in www.dgsi.pt, a cuja argumentação aderimos:
“Será possível, com inteira propriedade, afirmar que essa alternatividade e autonomia entre normas incriminatórias, dotando ambas de ilicitude jurídico-penal, como se diz, impõem se qualifique a entrega de vantagem subsequente à sua promessa como um segundo facto criminal que importa a qualificação da conduta apurada como pluralidade de atos típicos de corrupção.
(…)
Nesse pressuposto, teremos uma duplicidade de factos compreendidos no ilícito-típico praticados enquadrados por uma única resolução criminosa, caracterizando uma conduta jurídico-penal complexa (neste sentido, um processo) integrada por atos dotados de uma única unidade de sentido e de resultado (-perigo): estaremos perante, pois, um único crime que será, como tal, punível, localizando a sua consumação no ato final que finalize a ação ofensiva do bem jurídico.
Nestas situações, de sucessivos atos, teremos uma duplicidade de factos compreendidos no ilícito-típico praticados enquadrados por uma única resolução criminosa, caracterizando uma conduta jurídico-penal complexa (neste sentido, um processo) integrada por atos dotados de uma única unidade de sentido e de resultado (perigo): estaremos perante, pois, um único crime que será, como tal, punível, localizando a sua consumação no ato final que finalize a ação ofensiva do bem jurídico.
Dito de outra forma, o registo de ilicitude do segundo facto (a entrega) que se extrai do desenho do tipo-de-crime e, bem assim, o diferente e superlativo registo de anti-juridicidade que o conjunto projeta na singularidade da sua estrutura complexa (quando perante os atos que a integram, isoladamente considerados), oferece inteiro respaldo a que as normas sejam interpretadas desta forma, assim em desabono de uma leitura que espartilhe o iter criminis e que dissipe o registo de ilicitude do segundo ato praticado, antes sublinhando a sua indiscutível integração na norma incriminatória e o timbre de anti-juridicidade que manifesta na economia da infração penal.
(…)
O exposto convoca a distinção, com grande tradição na doutrina e jurisprudência penais, entre consumação formal e consumação material. Perante um crime praticado por via da execução de uma multiplicidade de factos previstos no tipo, ainda que a infração se tenha por típica ou formalmente consumada com a prática do primeiro, a persistência na ação ofensiva do bem jurídico deslocará o ponto de consumação material para a realização do último facto lesivo.”
(no mesmo sentido, Ac. STJ de 30/10/1997, processo 97P230 e Ac RL de 23/3/ 2022, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Em suma: se perguntarmos quando se consuma o crime de corrupção passiva, quando se mostram preenchidos os elementos do tipo, tratando-se este de um crime instantâneo, a consumação ocorre, pois, logo que se pratica qualquer um dos atos típicos (consumação formal). Evidentemente que esta constatação não esquece que a este momento se pode seguir a prática dos mesmos ou de outros atos típicos e estes atos novos não são irrelevantes: todos esses atos são pertinentes, são também eles atos de consumação do crime e confluem no «mercadejar do cargo».
E em casos como o dos presentes autos, em que a execução do crime (de corrupção) se processa através de uma reiterada prática de atos típicos de carácter instantâneo, que atravessam vários regimes legais, a melhor doutrina, considerando o princípio da segurança jurídica e o princípio da culpa - que fundamentam a irretroatividade da lei penal desfavorável - parece-nos ser a de que qualquer agravação da lei ocorrida após a data da consumação formal e antes do término da consumação material não pode ser retroativamente aplicada (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo -I, Coimbra Editora, pg. 183; Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, pg. 53 – 61; Pedro Caeiro, Aplicação da lei penal no tempo e prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues — I, Coimbra Editora, 2001).
Daqui resulta que, no caso dos autos, deve ser aplicada a lei anterior, que prevê um prazo de prescrição de dez anos, porquanto a aplicação da lei nova seria desfavorável ao arguido.
A questão seguinte, que tem também ela dividido doutrina e jurisprudência, prende-se com o início da contagem do prazo prescricional.
Uma, a defendida pelo arguido, entende que o início do prazo da prescrição ocorre no momento do acordo corruptivo e que todos os comportamentos que tiverem lugar depois deste primeiro acto são completamente irrelevantes para efeitos de prescrição.
Esta tese tem respaldo jurisprudencial no Ac. RL de 13.07.2010, proc. 712/00.9JFLSB.L1-5, in www.dgsi.pt e no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/2019, citado pelo recorrente, que julgou inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, os artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na versão posterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem.
Outra, que é a tese do despacho recorrido, defende que o n.º 1 do artigo 119º do Código Penal, ao estatuir que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, não pode deixar de ser interpretado e aplicado como tendo em vista, neste crime, a consumação material do crime ou terminação.
Esta última tese parte da distinção, a que já aludimos supra, entre consumação formal – com o acordo corruptivo - e consumação material – com o pagamento/recebimento – e entende que o início do prazo da prescrição ocorre a partir do último ato de recebimento de vantagem, nos casos em que estes não foram simultâneos.
Em defesa desta tese, que merece a nossa adesão, vejamos a argumentação do Ac. STJ de 21/3/2018, in www.dgsi.pt, onde se lê que:
“Conquanto o crime de corrupção activa se tenha por formalmente consumado com a mera promessa de vantagem e que o crime de corrupção passiva se considere formalmente consumado com a solicitação ou aceitação (ou a sua promessa), suposto (aquando) o seu conhecimento pelo corruptor activo, a verdade é que o início do prazo prescricional, em ambas as modalidades do crime, não se verifica desde o dia da sua consumação formal. A lei, mais concretamente o n.º 1 do artigo 119º do Código Penal ao estatuir que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado não pode deixar de ser interpretado e aplicado como tendo em vista, em situações como a ocorrente nos autos, a consumação material do crime ou terminação.
(…)
Aliás, a não ser assim, como bem se consignou no acórdão recorrido, permitir-se-ia que os arguidos continuassem a praticar actos de execução do crime, continuando a pagar e a receber subornos em perfeita impunidade. Correr-se-ia o risco, no limite, de o crime já estar prescrito ainda antes da sua consumação material ou terminação, o que, obviamente, precludiria toda e qualquer possibilidade de perseguição e punição do criminoso, conduzindo não só à impunidade[20], como ao total descrédito do Estado de direito, em particular dos tribunais e da administração da justiça.
Certo é, pois, que o prazo prescricional dos crimes de corrupção objecto dos autos só corre a partir da data do pagamento dos subornos ou do acto ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo do crime no caso de corrupção passiva antecedente.”
(no mesmo sentido, Ac. RL de 11-04-2023, processo n.º 5261/12.0JFLSB.L1-5 e Ac. RE de 27/9/2022, processo 248/12.5TAELV.E, in www.dgsi.pt).
Também a doutrina se tem pronunciado no sentido de que os referidos pagamentos/recebimentos não podem deixar de ser relevados no que concerne ao início da contagem do prazo de prescrição.
Neste sentido se pronunciaram Nuno Brandão, na obra já referida e Lamas Leite, in “Algumas notas sobre a consumação dos crimes de corrupção (no fenómeno desportivo) e sobre a prescrição do procedimento criminal“, in Academia.ed (updates@academia-mail.com).
O Ac. TC n.º 370/2023, de 7/6/2023, em oposição ao Acórdão n.º 90/2019, ambos acima referidos, dissipou as dúvidas de constitucionalidade desta interpretação, dizendo que:
Perante um crime praticado por via da execução de uma multiplicidade de factos previstos no tipo, ainda que a infração se tenha por típica ou formalmente consumada com a prática do primeiro, a persistência na ação ofensiva do bem jurídico deslocará o ponto de consumação material para a realização do último facto lesivo:
“A consumação típica ou formal verifica-se logo que o comportamento doloso preenche a totalidade dos elementos do tipo objetivo de ilícito. A consumação material, terminação ou conclusão dá-se apenas com a realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação, desde que o agente tenha atuado com o dolo de o realizar; dá-se, por outras palavras, com a verificação do resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por diretamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de proteção da norma. (…) Como exemplos desta dessintonia entre consumação formal e material se pode deparar, p. ex., em crimes de consumação antecipada (…) e em crimes de estrutura interativa ou reiterada crimes duradouros (…) ou crimes com pluralidade de atos típicos).”
(J. FIGUEIREDO DIAS, com colaboração de MARIA JOÃO ANTUNES, SUSANA AIRES DE SOUSA, NUNO BRANDÃO e SÓNIA FIDALGO, op. cit., p. 805)
Este arquétipo constitui condição da realização da função tutelar do Direito criminal e repele paradoxos que decorreriam de outra forma de compreender as normas incriminatórias. Trata-se de um fator da coerência do sistema penal e da sua aptidão para a realização dos objetivos de política criminal a que se dirige: ainda que verificada a consumação típica (formal), a consumação material entender-se-á verificada apenas quando se esgote a atividade que sinaliza e convoca a anti-juridicidade inerente à incriminação, assim em consonância com o “mandato (também ele jurídico-constitucional) da esgotante valoração da matéria ilícita” (J. FIGUEIREDO DIAS, com colaboração de MARIA JOÃO ANTUNES, SUSANA AIRES DE SOUSA, NUNO BRANDÃO e SÓNIA FIDALGO, Direito Penal, Tomo I, 3.ª Ed., 2019, Gestlegal, p. 1151):
(…)
Ora, tendo nós concluído que se mostra compatível com o princípio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) a interpretação normativa dos artigos 374.º, n.º 1, do CP, e 18.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, segundo a qual o crime se tem por (materialmente) consumado aquando da prática do último ato caracterizável nos termos das respetivas normas típicas (a promessa ou, bem assim, a dação/entrega), a interpretação conjugada com o disposto no artigo 119.º, n.º 1, do CP, que nesse facto encontre o início do prazo de prescrição, possui também indisputável suporte no elemento literal desta última norma, mantendo à distância qualquer forma de colisão com o princípio da legalidade recenseado na Lei Fundamental.
Esta observação, só por si, impõe o juízo de não-inconstitucionalidade dos conjuntos dispostos pelos artigos 374.º, n.º 1, e 119.º, n.º 1, ambos do CP e 18.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho e 119.º, n.º 1, do CP, quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do procedimento por crime de corrupção ativa se inicia com a entrega da vantagem e não aquando da promessa de entrega que a haja precedido, importando, por necessária deriva, o insucesso dos dois recursos interpostos
Deste modo, revertendo ao caso dos autos à luz desta tese, vemos que o prazo de prescrição, nos termos do disposto no artigo 119º, nº 1, do Código Penal, se iniciou nas datas da prática do pagamento da peita ou do último pagamento, quanto a cada um dos crimes praticados pelo arguido:
- Factos 141 a 151- em maio de 2011
- Factos 152 a 165 – em 06 de Abril de 2011
- Factos 166 a 169- em 09 de Junho de 2009
- Factos 170 a 192 –em 14 de dezembro de 2011
Vemos ainda que o prazo de prescrição dos crimes em causa, de dez anos, ainda não decorreu, por efeitos de causas de interrupção e/ou de suspensão previstas nos artigos 118 e 119 do CP, na redação anterior (sendo que o regime se tem de aplicar em bloco), que são as seguintes:
- o recorrente foi constituído arguido (art.º 121º n.º 1 al. a) do CP).
- o arguido foi notificado da acusação (art.º 121º n.º 1 al. a) e 120º n.º 1 al. b) e n.º 2 do CP).
O prazo de suspensão da prescrição, atento o disposto no art.º 120 n.º 2 do CP, na redação da Lei 65/2008, não pode ultrapassar 3 anos
E, de acordo com o disposto no art.º 121 n.º 3 do CP, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
Assim, à luz destes normativos, temos de contar, 10 anos+ 5 anos+ 3 anos.
Assim, no caso dos autos, considerando as datas acima referidas do início da contagem do prazo de prescrição, que é de dez anos, bem assim como as datas das causas de interrupção (constituição como arguido e notificação da acusação) e de suspensão da prescrição (notificação da acusação), constatamos que o prazo de prescrição do procedimento criminal (10 anos+ 5 anos + 3 anos) ainda não tinha decorrido na data em que o Acórdão condenatório transitou em julgado, pelo que não se mostra sequer necessário considerar as eventuais suspensões estabelecidas pelas chamadas “leis Covid”.
Tudo para concluir que o despacho recorrido não violou nenhuma norma legal nem constitucional, designadamente o disposto no artigo 2º n.º 4, 119 n.º 1 e 374º do CP e nos artigos 1º, 29º e 202 da CRP, não merecendo acolhimento o recurso do arguido.
V– Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, em confirmar o despacho recorrido nos seus precisos termos.
*
Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.
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Lisboa, 20 de fevereiro de 2023
Sara André dos Reis Marques
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira