Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2209/22.7T8PDL.L1-6
Relator: JORGE ALMEIDA ESTEVES
Descritores: OBRIGAÇÃO NATURAL
PAGAMENTO VOLUNTÁRIO
CUMPRIMENTO DE SENTENÇA CONDENATÓRIA
SENTENÇA POSTERIORMENTE REVOGADA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- O pagamento voluntário de uma quantia na qual a parte foi condenada por sentença que ainda não transitou em julgado, não configura o cumprimento de uma obrigação natural, mas sim o cumprimento de uma obrigação jurídica, declarada por sentença.
II- Tendo a autora, que era a demandada cível num processo crime decorrente de um acidente de viação, efetuado o pagamento aos réus-recorridos da quantia na qual havia sido condenada na sentença, assiste-lhe o direito de reaver o que pagou em virtude de aquela sentença ter sido revogada em sede de recurso instaurado exclusivamente pelo arguido, que acabou absolvido, tendo a demandada cível sido também absolvida do pedido de indemnização por decisão do Tribunal da Relação, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
III- O fundamento da devolução é o enriquecimento sem causa, nos termos do artº 473º/1 e 2 do CCivil, uma vez que as quantias foram recebidas em virtude de uma causa que deixou de existir.
IV- Não existe abuso de direito, na vertente de venire contra factum próprio, quando as condutas contraditórias da parte decorrem do facto de a realidade exterior se ter alterado de forma também contraditória.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Recorrente:
Autora: GS, S.A, pessoa coletiva nº xxx, com sede em Lisboa
Recorridos:
Réus: SB e MC, residentes nos Açores
A autora recorrente instaurou ação de condenação sob a forma comum de declaração peticionando a condenação de cada um réus no pagamento, solidariamente, da quantia de 26 419,73€ (vinte e seis mil quatrocentos e dezanove euros e setenta e três cêntimos), o que traduz o valor total de 52 839,46€ (cinquenta e dois mil oitocentos e trinta e nove mil euros e quarenta e seis cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a data da interpelação a 15/03/2022.
Para fundamentar o pedido a autora alegou que por sentença judicial de 22/09/2022 – proferida no âmbito de um processo crime cujos factos decorriam de um acidente de viação, sendo a autora demandada cível em virtude de ser a seguradora do veículo conduzido pelo arguido -, foi condenada a pagar aos réus a quantia de 52.500,00€, acrescida de juros de mora. A autora não recorreu da decisão e fez o pagamento de tal quantia, apesar de a decisão ter sido objeto de recurso por parte do arguido. Na sequência do recurso do arguido, a decisão da 1ª instância foi revogada pelo Tribunal da Relação, que absolveu o arguido do crime pelo qual vinha acusado e tinha sido condenado, absolvendo também a demandada cível, aqui autora. Tal decisão foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Em face deste desfecho da ação em sede recursiva, a autora entende que a quantia que pagou aos autores lhe deve ser restituída.
Os réus contestaram, pugnando pela improcedência do pedido. SB alegou que a autora procedeu ao pagamento da indemnização sem acautelar o trânsito em julgado da decisão, bem sabendo que a Ré é uma pessoa de fraca escolaridade e que não tinha consciência dos trâmites do processo. MC alegou que a autora efetuou o pagamento na sequência de um acordo celebrado com os réus segundo o qual aquela efetuaria o pagamento da quantia determinada na sentença e os réus renunciariam ao recurso da decisão do Tribunal, o que efetivamente aconteceu.
Realizou-se a audiência prévia na qual proferido despacho saneador tabelar a julgar verificados os pressupostos processuais. Mais foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizou-se a audiência final.
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 Foi proferida sentença cujo trecho decisório é o seguinte:
Nestes termos, julgo a ação improcedente por não provada, e, em consequência, absolvo os Réus dos pedidos contra si formulados”.
*
Inconformada com o decidido, apelou a autora, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
QUANTO À REVISÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
1- Entendemos que, para resolução do presente pleito torna-se necessário, aditar ao facto n. 9, a data em foi lida e depositada a sentença proferida no processo termos correram no Tribunal da Comarca da Ribeira Grande sob o n. 159/18.0 PGRGR.
2- Ainda e no que concerne à matéria assente descrita em 12 e 13 dos factos provados, a mesma deve ser alterada e complementada com a prova junta aos autos:
3- Na verdade, os RR assinaram os recibos juntos com a PI como docs 6 e 7 nos quais se encontra declarada a razão do pagamento daquelas quantias, e passamos a citar: “O titular aceita receber a quantia indicada como indemnização fixada na decisão judicial (…)”
4- Pelo que, fazendo fé nestes documentos assinados pelos RR que não foram impugnadas e foram aceites pelos mesmos, o número 12 e 13 dos factos provados deverá sofrer alteração e passar a ter a seguinte redação:
“12. Em consequência da sentença proferida e descrita em 9, a 30/11/2020 a Autora procedeu à transferência bancária de 26 419,73€ para o Réu MC.
13.Em consequência da sentença proferida em 9., a 31/12/2020 a Autora procedeu à transferência de 26 419,73€ para a Ré SB.”
5- Com esta alteração a matéria provada ficará de acordo com a prova documentada junta aos autos e consequentemente de acordo com o direito, devendo o tribunal ”ad quem“ proceder a esta alteração nos termos do disposto no Art. 662 do C. Processo Civil.
QUANTO AO DIREITO:
6. Ainda, entende a douta sentença que os RR não devem repetir o indevido e devolver os montantes recebidos por estarmos perante uma obrigação natural.
7. Ora, parece-nos ser esta uma interpretação errónea na medida em que tal obrigação pressuporia que a obrigação cumprida não fosse judicialmente exigível, e sabemos que era.
Senão vejamos,
8. A X/Y/2018, pelas 19h45m, ocorreu um acidente de viação entre um veículo ligeiro de passageiros e um ciclomotor no Caminho da Furna, Pico da Pedra, Ribeira Grande.
9. Do embate dos dois veículos resultou a morte de DC que era filho dos RR, SB e de MC, os quais constituíram-se assistentes e deduziram pedido cível no processo comum singular já referido. A responsabilidade pelos danos causados a terceiros em virtude da circulação do veículo conduzido por AD (viatura com a matrícula 00-00-XX) estava, à data do evento, transferida para a recorrente, seguradora, por força do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel
10. Quanto ao pedido de indemnização civil formulado por SB e MC (aqui RR), o Tribunal julgou-o parcialmente procedente, condenando a seguradora (aqui A.) ao pagamento:
i.da quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) a SB e MC, na qualidade de herdeiros da vítima DC, pela lesão do direito à vida de DC;
ii.da quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a cada um, SB e MC, pelo desgosto que cada  um sofreu pela morte de DC;
“tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados da prolação da presente decisão até efetivo e integral pagamento.”
11. Inconformado com a decisão, a 27/10/2020, AD interpôs recurso da sentença proferida
12. Em consequência da sentença a 30/11/2020 a A. procedeu à transferência bancária dos valores devidos ao R. MC, e a  31/12/2020 a A. procedeu à transferência bancária dos valores devidos à R. SB, (conforme consta dos recibos juntos aos autos)
13. A 19/05/2021 o Tribunal da Relação de Lisboa (3ª Secção) concedeu provimento o recurso interposto pelo arguido, revogando a decisão proferida em 1º Instância no âmbito do processo nº 159/18.0PCRGR que correu os seus termos no Juízo Local Criminal da Ribeira Grande do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, absolvendo o ali recorrente, AD, do crime por negligencia pelo qual foi condenado e, consequentemente, absolvendo a demandada cível (ora A.), da condenação no pedido de indemnização cível.
14. Inconformados com a decisão proferida em 2ª instância, SB e MC interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e tendo o Supremo Tribunal de Justiça concluído (vide doc. 11):
«Nos termos do artigo 402º, nº2, alínea b) do Código de Processo Penal – “Salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto: Pelo arguido, aproveita o responsável cível;” Assim, a absolvição do réu (segurado) implica, necessariamente, que a seguradora não tenha nenhuma responsabilidade e, consequentemente, nada a pagar aos demandantes.»
15. Conforme o provado nos artigos 473º e 474º do CC decorre, em termos gerais, que a obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa exige a verificação da existência de um enriquecimento que, carecendo de causa justificativa, tenha sido obtido à custa de outrem, não sendo a este último facultado outro meio de reação.
16. É o caso dos presentes autos.
17. Deste regime inferem-se, os seguintes requisitos cumulativos para a verificação de uma situação de enriquecimento sem causa:
i.O enriquecimento, que consistirá numa vantagem de caráter patrimonial, nas suas múltiplas vertentes;
ii.Que esse enriquecimento careça de causa justificativa. Dito por outras palavras, haverá uma situação de enriquecimento sem causa quando à luz das regras ou dos princípios aceites no sistema jurídico, não exista uma relação ou um facto que legitime esse enriquecimento, quer porque essa relação ou facto que legitima o enriquecimento (a causa) nunca existiu, ou porque, tendo-a num primeiro momento, a veio a perder;
iii.Que o mesmo seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição. No fundo, a ideia que a vantagem patrimonial que advém ao “enriquecido” deverá corresponder ao valor que saiu do património do “empobrecido”.
iv.Não exista outro meio jurídico para que o Autor possa obter o respetivo ressarcimento (em razão da subsidiariedade do instituto, artigo 474º do Código Civil)
18. Estatui o artigo 473º do Código Civil que: “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”
19. Do nº 2 do mesmo artigo resulta que a “obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”
In casu,
20. A A. pagou aos RR., a título de indemnização cível, um total de 52 839,46€ (€26.419,73 a cada um).
21. O que, cumulativamente, se traduziu num incremento/enriquecimento patrimonial para os RR. e numa diminuição/empobrecimento do património da Recorrente.
22. A obrigação do pagamento, da Recorrente a os RR decorria de uma condenação proferida em 1ª Instância, no âmbito proc.159/18.OPCRGR.
23. No âmbito desse referido processo, em sede de recurso, concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa pela inexistência de qualquer obrigação de pagamento pela Recorrente aos RR., absolvendo-a do pedido de indemnização cível.
24. A absolvição da Recorrente no pedido de indemnização cível foi confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que especificou:
“A razão subjacente à condenação da demandada cível deixou de existir, tendo em conta a decisão da Relação de Lisboa. Ao deixarem de existir os pressupostos que estão na base da existência de responsabilidade do arguido e da demandada, não poderia o Tribunal da Relação de Lisboa decidir de forma diferente.” Conforme, muito bem conclui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida no âmbito do processo supra referido e aqui em causa.
25. E acrescenta aquele tribunal. “Posto isto, não tem qualquer suporte legal, a argumentação dos recorrentes/demandantes, no sentido de que se desconsidere em relação à seguradora o efeito da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.”
26. Ou seja, mesmo que num primeiro momento se tenha justificado o enriquecimento do património dos RR., a causa justificativa desse enriquecimento deixou de existir.
27. Afinal, a Recorrente não tinha nada a pagar.
Em suma,
28. Os pagamentos efetuados pela Autora, para regularização do sinistro nos presentes autos, consubstanciam uma situação de enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º, n.º 1 e 476.º, n.º 1 do CC., por se encontrarem preenchidos os devidos requisitos, sendo esta a forma processual mais adequada para a restituição dos valores do seu empobrecimento.
29. Nos termos do artigo 479.º n.º1, a obrigação de restituir compreende tudo quanto se tenha obtido à custa de outrem. Portanto, o obtido à custa de outrem é simultaneamente pressuposto e medida da obrigação de restituir.
30. A obrigação de pagamento da indemnização não constitui o cumprimento de uma obrigação natural porque não cumpre nenhum dos requisitos previstos no art.º 402 e segs do código civil, ou seja, o requisito negativo de que se tratava de uma obrigação justa e o requisito positivo que se tratava de uma obrigação que não era judicialmente exigível.
31. Tanto se tratava de uma obrigação injusta que veio quer o Tribunal da Relação quer o Supremo Tribunal de Justiça revogar a decisão de 1º instância.
32. Refere a douta sentença que mesmo que assim não se entenda, sempre deverá considerar-se que com a presente ação a Recorrente litiga em manifesto abuso de direito porque, segundo a sentença criou a convicção “de que se não faria valer o mesmo direito”.
33. Ora, não se percebe de onde pode ter extraído tal conclusão. Sendo que a Autora é completamente alheia a este facto.
34. Na verdade, A autora e demandada no processo-crime nunca fizeram qualquer acordo com os demandantes (facto provado) tendo liquidado ao cêntimo os montantes constantes da sentença, na convicção que o fazia bem, e na sequência da sentença proferida, tudo conforme consta dos recibos assinados pelos RR.
35. Aliás, nos termos deste documento os RR declaram, “O titular aceita receber a quantia acima indicada, como indemnização fixada na decisão judicial proferida no processo supra identificado.“ vide doc. 6 e 7 juntos com a P.I.
36. Por isso. Conforme refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no douto acórdão proferido no processo-crime acerca desta matéria (Pg. 72/73, junta com doc. 11 da P.I.):
“Por isso, não tem qualquer suporte legal, a argumentação dos recorrentes/demandantes, no sentido de que se desconsidere em relação à seguradora o efeito da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa,
Relativamente ao facto de a indemnização já ter sido liquidada, esta circunstância em nada contende com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa e com a sua aplicação à demandada. Como esclareceu a seguradora GS, S.A., o pagamento da indemnização já teve lugar, uma vez que a demora no pagamento leva ao aumento dos juros de mora. Quis-se evitar este aumento, não tendo existido qualquer acordo quanto ao pagamento da indenização. O que existiu foi uma sentença que não tem efeito suspensivo para a demandada, salientando que «O efeito devolutivo garante ao demandante a possibilidade de executar a sentença, sabendo a demandada que esta indenização não seria definitiva, caso o recurso fosse considerado procedente, mas não perdendo o direito ao seu reembolso. Não se formou caso julgado, pois a vertente penal está diretamente relacionada com a vertente civil. Deste modo, a parte cível pode ser chamada à colação como bem fez o Tribunal a quo, sob pena ocorrer uma contradição insanável, como seria a de haver factos definitivamente determinados para a parte cível e que não podiam ser modificados e factos diferentes para a parte criminal que já não sustenta a condenação na parte cível.
Além disso, não está em causa a violação do caso julgado, pois com o recurso do arguido a "estrutura" que sustentava o pedido de indemnização cível ruiu, não tivesse o Tribunal da Relação de Lisboa absolvido o arguido e a demandada».
Concedendo provimento à pretensão dos recorrentes/demandantes estar-se-ia perante uma incongruência manifesta, pois, revertida pelo Tribunal da Relação a decisão sobre a matéria de facto levada em 1.ª instância (estabelecendo a culpa da vítima e não do condutor na produção e sequelas do acidente, tal seja sedimentando a culpabilidade da vítima, que não do arguido, na prática dos factos delitivos), o pedido indemnizatório dos assistentes (legítimos herdeiros da vítima) não podia senão ser julgado improcedente, com a consequente absolvição da seguradora para a qual o arguido havia transferido a respetiva responsabilidade – como acima se referiu.”
37. A A., é completamente alheia, a qualquer convicção que possa se ter criado nos ora RR, até porque nunca existiu qualquer comunicação com os mesmos fosse do que modo fosse.
38. Aliás era o mandatário dos RR que sabendo que existia um recurso dos RR deveria ter informado que a decisão podia ser reversível, tanto mais sabendo que não tinha efetuado qualquer acordo com a R como quis fazer supor nos presentes autos.
39. Aliás, nem faria sentido porquanto ficaria por explicar o motivo pelo qual a Recorrente efetuaria este pagamento já que ficou patente que nunca existiu qualquer acordo indemnizatório entre as partes, mesmo que efetuado entre os mandatários.
40. Após a revogação da sentença pelos tribunais superiores a Recorrente tinha e tem direito a reaver o que prestou, porquanto o recurso em causa tinha efeito devolutivo quanto à matéria cível.
41. Pelo que não se vislumbra como se pode concluir que age em abuso de direito contra factum próprium, até porque estava convicta que estava a pagar bem e porque o direito assim o exigia.
Pelo supra exposto deverá a sentença ser substituída por outra que condene os RR a liquidar á autora os montantes indevidamente recebidos fazendo-se a aplicação do direito nomeadamente o previsto nos Art.s 473º, 476º e 479 do CCivil.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, a questão a apreciar é, para além da pretendida alteração da matéria de facto, a seguinte: tendo a autora, que era a demandada cível num processo crime decorrente de um acidente de viação, efetuado o pagamento aos réus-recorridos da quantia na qual havia sido condenada na sentença, assiste-lhe o direito de reaver o que pagou em virtude de aquela sentença ter sido revogada em sede de recurso instaurado pelo arguido, que acabou absolvido, tendo a demandada cível sido também absolvida do pedido de indemnização por decisão do Tribunal da Relação, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
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Factualidade tida em consideração pela 1ª Instância
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A Y/X/2018, pelas 19h45m, ocorreu um acidente de viação entre um veículo ligeiro de passageiros e um ciclomotor no Caminho da Furna, Pico da Pedra, Ribeira Grande.
2. AD conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca Citroen, modelo Saxo, com a matrícula 00-00-XX.
3. DC conduzia o ciclomotor Yamaha, modelo Original, com a matrícula 00-XX-00.
4. Do embate dos dois veículos resultou a morte de DC.
5. DC era filho de SB e de MC, ora Réus.
6. A responsabilidade pelos danos causados a terceiros em virtude da circulação do veículo conduzido por AD (viatura com a matrícula 00-00-XX) estava, à data do evento, transferida para a Autora por força do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel outorgado entre as partes, apólice n.º 0000000.
7. O Ministério Público da Procuradoria da República da Comarca dos Açores deduziu acusação contra o condutor AD dos seguintes crimes, em autoria material e em concurso efetivo: a) 1 (um) crime de homicídio por negligência; b) 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez e c) 3 (três) contraordenações rodoviárias.
8. Também os pais do falecido DC, ora Réus, constituíram-se como assistentes, deduziram acusação particular e formularam pedido de indemnização civil contra a Autora, peticionando: a) a título de compensação por perda do direito à vida do seu filho, o valor de 75.000,00 €; a título de danos morais sofridos por cada um pela morte violenta e perda do seu filho, a quantia de 15.000,00 €, e pelos danos morais sofridos pelo seu filho, desde a perceção da sua morte até à morte, o valor de 7.500,00, tudo num valor global de 112.500,00€, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a notificação até efetivo e integral pagamento; b) a título de danos patrimoniais o valor de 250,00 €, relativo a despesas funerárias, acrescido de juros de mora desde a notificação do presente pedido até efetivo pagamento.
9[1]. No âmbito do processo nº 159/18.0PCRGR, que correu no Juízo Local Criminal da Ribeira Grande do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, a demandada SU, S.A. foi condenada no pagamento da quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) a SB e MC, na qualidade de herdeiros da vítima DC e no pagamento da quantia de 7 500,00€ a cada um, a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido dos respetivos juros de mora.
10. Em tal processo, AD foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência na pena de um 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um ano), e na pena acessório de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
11. Inconformado com a decisão, a 27/10/2020, AD interpôs recurso da sentença proferida.
12[2]. A 30/11/2020 a Autora procedeu à transferência bancária de 26 419,73€ para o Réu MC.
13[3]. A 31/12/2020 a Autora procedeu à transferência de 26 419,73€ para a Ré SB.
14. A 19/05/2021 o Tribunal da Relação de Lisboa (3ª Secção) concedeu provimento ao recurso interposto, revogando a decisão proferida em 1º Instância no âmbito do processo nº 159/18.0PCRGR, absolvendo o ali recorrente, AD, do crime por negligencia pelo qual foi condenado e, consequentemente, absolvendo a demandada cível (ora Autora), da condenação no pedido de indemnização cível.
15. Inconformados com a decisão proferida em 2ª instância, SB e MC interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual confirmou a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.
16. Não foi o mandatário do Réu que tomou a iniciativa de contactar a Autora para que esta efetuasse o pagamento.
Mais se provou (artigo 5º, nº2 do Código de Processo Civil):
17. Após análise da sentença, a Autora, mesmo sabendo da pendência do recurso, decidiu proceder ao pagamento aos Réus.
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Foi considerado não provado o seguinte facto:
Foi celebrado entre Autora e Réus um acordo de pagamento, segundo o qual a Autora efetuaria o pagamento desde logo e os Réus renunciaram ao recurso da decisão do Tribunal de primeira instância, o que veio a acontecer.
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Fundamentação jurídica
Da alteração da matéria de facto
As alterações pretendidas reportam-se aos factos 9, 12 e 13. Quanto ao facto 9 pretende a recorrente que se inclua a data em que foi lida e depositada a sentença e, quanto aos restantes, que seja mencionado que o pagamento em questão foi efetuado em consequência da sentença referida em 9.
Consideramos que a recorrente cumpriu os ónus previstos no artº 640º/1 do CPC, pelo que cumpre apreciar da pretendida alteração da matéria de facto.
Quanto ao facto 9, trata-se de especificar a data em que a sentença da 1ª instância foi proferida, o que consideramos ser algo que convém sempre fazer constar quando se mencionam nos factos provados decisões judiciais proferidas noutros processos. Quanto ao depósito da sentença, tal já se afigura irrelevante, pois nenhuma questão se suscitou quanto a tal ato processual. A data da sentença consta de fls. 16 verso, sendo de 22.09.2020.
Assim, o facto 9 passa a ter a seguinte redação:
9. Por sentença de 22.09.2020, proferida no processo nº 159/18.0PCRGR, que correu no Juízo Local Criminal da Ribeira Grande do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, a demandada SU, S.A. foi condenada no pagamento da quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) a SB e MC, na qualidade de herdeiros da vítima DC e no pagamento da quantia de 7 500,00€ a cada um, a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido dos respetivos juros de mora”.
Relativamente aos factos 12 e 13, resulta dos recibos de pagamento de fls. 53 (referente à recorrida SB) e 57 (referente ao recorrido MC), ambos assinados pelos recorridos a que respeitam, que as quantias que lhes foram pagas pela recorrente se referem à indemnização fixada na sentença mencionada em 9. Nos recibos consta o seguinte: “o titular aceita receber a quantia acima indicada, como indemnização fixada na decisão judicial proferida no processo supra identificado…”. Para parte superior esquerda do documento consta a menção “processo judicial: 159/18.OPC”.
Deste modo, os factos 12 e 13 passam a ter a seguinte redação:
12. Em consequência da sentença referida em 9, a 30/11/2020 a Autora procedeu à transferência bancária de 26 419,73€ para o Réu MC.
13. Em consequência da sentença referida em 9, a 31/12/2020 a Autora procedeu à transferência de 26 419,73€ para a Ré SB”.
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Do Direito aplicável
Na sentença recorrida entendeu-se, como primeira linha de fundamentação, que a recorrente, ao pagar a indemnização sem que a mesma transitasse em julgado, estava a cumprir uma obrigação natural, não se integrando a situação em apreço no estatuído no artº 476º/1 do CCivil, relativo à repetição do indevido (que se entendeu ser o de analisar em primeira linha por ter sido o invocado pela autora na p. i.). Afirmou-se, nomeadamente, o seguinte:
Revertendo ao caso em análise, verificamos que a Autora procedeu ao pagamento de uma indemnização aos Réus na sequência de uma sentença judicial, sendo que optou por não esperar pelo respetivo trânsito em julgado, já que, conforme foi dito, pareceu-lhes que a decisão do Tribunal era acertada (de tal forma assim foi que nem recorreu, mas sim o condutor condenado criminalmente).
Estamos, assim, perante uma obrigação natural, pois o cumprimento não era judicialmente exigível, mas correspondeu a um dever de justiça, indemnizando os pais do falecido (artigo 402º do Código Civil), pelo que tendo a prestação sido espontânea, não se tendo provado qualquer coação (artigo 403º, nº2 do Código Civil), não pode ser peticionada a respetiva restituição (artigo 403º, nº1 do Código Civil e 476º, nº1 do Código Civil)”.
De seguida colocou a questão de se poder aplicar o regime geral do enriquecimento sem causa previsto no artº 473º/1 do CCivil. Depois de fazer uma descrição genérica do regime previsto nesse preceito, aplica-o ao caso concreto dizendo o seguinte:
Aqui chegados, facilmente concluímos que não se mostram preenchidos os requisitos para a aplicação deste instituto, uma vez que existe causa justificativa para o enriquecimento dos Réus, a saber, uma sentença do Tribunal de Primeira Instância que fixou o valor indemnizatória e a respetiva responsabilidade da Autora. É certo que tal sentença foi posteriormente revogada em sede de recurso, recurso esse que não foi interposto pela Autora, a qual optou por pagar, desde logo, a indemnização, por, no seu julgamento, acreditar que aquela indemnização era justa e que não seria alterada aquando do julgamento do recurso.
Falecem, assim, todos os argumentos da Autora, pelo que a presente ação deverá ser julgada improcedente”.
Por último e a título subsidiário considera que a autora está a agir em abuso de direito ao vir exigir a devolução daquilo que pagou, fundamentando assim essa conclusão:
Revertendo ao caso que nos ocupa, verificamos que foi a Autora que, após ponderação, resolveu proceder ao pagamento da indemnização aos Réus, criando-lhes a expectativa de que a mesma era devida, sendo manifesto que o seu atual comportamento é contraditório com a sua conduta anterior.
Concluímos, assim, pelo abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, pois estamos perante duas condutas da Autora, em que a primeira (o facto próprio) é contraditada pela segunda (o venere), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso de direito.
O venere tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando constante e arbitrariamente de condutas, mormente que sejam nocivas o seu semelhante.
Resta concluir, pois, que estaríamos sempre perante o ilegítimo exercício de um direito por parte da Autora”.
Nas suas alegações a recorrente invoca de forma bastante extensa as decisões da Relação e do Supremo que revogaram a sentença que havia condenado a aqui recorrente no processo crime em apreço. No entanto, tal linha de argumentação é inócua, na medida em que dessas decisões apenas resulta que o arguido foi absolvido e, por não existir qualquer outro fundamento para a condenação da demandada cível para além da responsabilidade criminal, esta foi também absolvida. Mas foi exatamente por isso ter acontecido que esta ação foi intentada. Tais decisões não trazem nada de novo para apreciar da pretensão da aqui recorrente.
O que se pretende saber é se a recorrente pode reaver o que pagou por via do instituto do enriquecimento sem causa. Na conclusão 28 a recorrente considera, genericamente, que estão preenchidos os requisitos previstos no artº 473º/1 e 476º/1 do CCivil.
Analisemos sucintamente a fonte de obrigações denominada enriquecimento sem causa[4]. A obrigação de restituir fundada nessa fonte de obrigações tem três requisitos cumulativos: (1) a existência de um enriquecimento; (2) que este não tenha causa justificativa; e (3) que tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição[5].
O enriquecimento representa, por definição, uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, que tanto pode ocorrer por aumento do ativo, como por diminuição do passivo, mas também, genericamente pela obtenção de vantagens de carácter patrimonial, seja qual for a forma que a mesma revista, podendo traduzir-se no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio. Como refere Vaz Serra[6], “o enriquecimento consiste numa melhoria da situação patrimonial do obrigado a restituir, representando a diferença entre o estado actual do seu património e o estado em que ele se encontraria se não tivesse tido lugar a deslocação, sem causa, de valores”. E é necessário que o enriquecimento seja obtido à custa daquele que se arroga o direito à restituição. É o requisito do carácter imediato da deslocação patrimonial ou da unicidade (ou unidade) do facto de enriquecimento.
Do regime do Código Civil e especificamente no que respeita aos fundamentos relativos à falta de causa do enriquecimento, traduzido na ausência de causa justificativa, e que importa ao caso ao apreço, temos que o art.º 473º/2 do CCivil estabelece que “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial, por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”. Temos, portanto, uma enumeração das três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto)[7]. Em todo o caso, esta enumeração é exemplificativa, não esgotando as situações suscetíveis de integrar o enriquecimento sem causa e que decorrem da regra geral do nº 1 do preceito.
Consideramos que, como também se concluiu na sentença, não estamos perante uma situação de repetição do indevido, que está referida no artº 473º/2 e mais especificamente regulada no artº 476º. Isto porque na data em que o pagamento das quantias em apreço foi efetuado aos recorridos a obrigação existia. Uma sentença, mesmo que não tenha transitado em julgado, produz efeitos e, ademais, é tendencialmente definitiva. Para que a mesma não se consolide na ordem jurídica é necessário que seja revogada por outra decisão. Se não o for, transita em julgado, bastando a inércia para que tal desiderato se verifique. Sendo o requisito fundamental da repetição do indevido que a obrigação não exista à data em que foi efetuada, no caso dos autos esse requisito não se verificava, pois a obrigação de pagamento já existia na ordem jurídica. O facto de não estar consolidada em termos de definitividade decorrente do trânsito em julgado é, para o caso, irrelevante.
E é exatamente por essa razão que não podemos dizer que, ao ter efetuado o pagamento, a recorrente estava a cumprir uma obrigação natural. A obrigação era judicialmente exigível. E repare-se que o resultado do recurso não dependia da demandada cível, ora recorrente. Bastava o arguido desistir do recurso, ou não cumprir algum ónus processual que impedisse a apreciação do mesmo, para a decisão transitar em julgado. E outro efeito que resultava da sentença e que nem sequer dependia da definitividade da decisão era a contagem de juros de mora. A espera pelo trânsito em julgado – cuja demora era algo completamente aleatório e que escapava em absoluta ao controle da ora recorrente – era suscetível de causar a esta custos acrescidos a esse título, que, legitimamente, podia querer evitar.
No entanto, como se verificou supra, a repetição do indevido não configura a única situação que a lei prevê como fundamento do enriquecimento sem causa. Existe também tal enriquecimento relativamente aquilo que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir[8].
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 04.07.2019[9], no que a este aspeto concerne, já decidiu o seguinte, assim sumariado (na parte que aqui interessa):
V. O nosso direito substantivo civil, no que respeita a um dos exigidos requisitos atinentes ao enunciado instituto do enriquecimento sem causa, traduzido na ausência de causa justificativa, conquanto tenha identificado um critério de orientação, uma linha de rumo interpretativa, pressupõe, numa enumeração exemplificativa, três situações especiais de enriquecimento desprovido de causa: condictio in debiti (repetição do indevido), condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto).
VI. O desaparecimento posterior da causa, condizente à tradicional condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir), caracteriza-se por alguém ter recebido uma prestação em virtude de uma causa que, entretanto, deixou de existir, donde, verificada a deslocação patrimonial mediante uma prestação, a causa há-de ser a relação jurídica que essa prestação visa satisfazer, e se esse fim falta, a obrigação daí resultante fica sem causa”.
Ora, é exatamente esta situação que se verifica. À data em que o pagamento foi efetuado a obrigação existia, mas com a revogação da sentença, em especial na parte em que condenou a demandada cível, a obrigação deixou de existir.
E não se venha dizer que existe abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprio com fundamento no facto de se estar “perante duas condutas da Autora, em que a primeira (o facto próprio) é contraditada pela segunda (o venere), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso de direito”, como se afirma na sentença. Há efetivamente condutas contraditórias, mas que decorrem de a realidade exterior ser também contraditória. Há um pagamento com base numa sentença condenatória e há agora a pretensão de restituição do que se pagou com fundamento na revogação da condenação em sede recursiva. Os factos que fundamentam cada uma das condutas não são imputáveis à própria recorrente. A primeira foi consequência da decisão da primeira instância e a segunda derivou do decidido pelos tribunais de recurso. Esta pretensão representa, portanto, o legítimo exercício de um direito.
Verifica-se que estão presentes todos os requisitos do enriquecimento sem causa, nomeadamente a existência de um enriquecimento por parte dos recorridos, que este não tem causa justificativa (nos termos acima expostos e que constituía o cerne do recurso) e que foi obtido à custa da recorrente. Acresce a tudo isto que a recorrente não tem outro meio, que não seja o recurso ao enriquecimento sem causa, para obter a restituição da quantia que pagou aos recorridos, verificando-se por isso também o requisito da subsidiariedade do fundamento da pretensão previsto no artº 474º do CCivil.
O recurso tem, portanto, de proceder, devendo os recorridos ser condenados a pagar à recorrente a quantia que lhes foi paga.
A recorrente pretende, conforme resulta do pedido, que os réus sejam condenados solidariamente, ou seja, não obstante ter sido paga a cada um deles a quantia que lhes respeitava, pretende que ambos fiquem responsáveis pela totalidade do que foi pago. Como resulta do artº 513º do CCivil, o regime-regra é o das obrigações conjuntas uma vez que a solidariedade só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes. Neste caso, a lei não prevê qualquer solidariedade, pelo que cada réu só pode ser responsável pela restituição da quantia que lhe foi paga. E isso é que faz sentido. No caso a solidariedade seria um absurdo pois cada réu enriqueceu na medida do que recebeu, não fazendo sentido considerar que existe enriquecimento relativamente ao que o outro réu recebeu. Dos factos provados não resulta que a ré-recorrida tenha tido qualquer enriquecimento no que respeita à quantia que foi paga ao réu-recorrido e vice-versa. A situação poderia eventualmente ser diferente caso a totalidade da quantia tivesse sido entregue a ambos (por exemplo, por depósito numa conta de ambos). Mas, como resulta dos factos provados, cada um dos réus recebeu da autora-recorrente a sua parte.
O pedido, na parte relativa à condenação solidária dos réus, tem, pois, de improceder.
Quanto aos juros de mora, a autora pretende que sejam contabilizados desde 15.03.2022, data em que terá interpelado os réus. Acontece, porém, que dos factos provados não resulta qualquer interpelação. E, compulsada a p. i., tal estará alegado no artº 58, mas por remissão na íntegra para um documento que consubstancia um mail que está endereçado do seguinte modo: “Boa noite Drª Ana Jorge”, e em que apenas se informa que irá ser intentada a ação judicial com vista à restituição. Ou seja, não foi dirigida aos réus e nem sequer se trata de uma interpelação para pagamento. Deste modo, temos apenas de concluir que não houve qualquer interpelação exta-judicial, pelo que a regra a aplicar quanto aos juros de mora é o da interpelação judicial, nos termos do artº 805º/1 do CCivil.
Relativamente à responsabilidade pelas custas, atendendo a que a recorrente pretendia a condenação de cada um dos réus no montante total que foi pago a ambos, decaiu em 50% relativamente a cada um deles, decaindo ainda quando à questão do cálculo inicial dos juros. Deste modo entendemos que, nos termos do artº 527º/1 e 2 do CPC, que as custas deverão ficar a cargos de ambas as partes na proporção de metade para cada.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso procedente e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, condenando-se os réus recorridos SB e MC a pagar, cada um deles, à autora recorrente GS, S.A, a quantia de 26.419,73€ (vinte e seis mil quatrocentos e dezanove euros e setenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a citação de cada um dos réus, julgando improcedente o pedido quanto ao restante, absolvendo, nessa parte, os réus do pedido.
Custas em ambas as instâncias pela autora recorrente e pelos réus recorridos na proporção de metade para autora e a outra metade para os réus.

TRLx, 22fev2024
Jorge Almeida Esteves
Teresa Soares
Nuno Lopes Ribeiro
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[1] Alterado nos termos infra indicados.
[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] No Livro II do Código Civil, relativo ao Direito das Obrigações, temos, no Capítulo II, que as fontes das obrigações são os contratos, os negócios unilaterais, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil
[5] Vd. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Volume I, 10.ª edição, 2004, págs. 480 e segs.; Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 12ª edição, Almedina, pág. 491; Luís Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 381.
[6] Revista da Legislação e Jurisprudência, ano 102º, pág. 337, nota 2.
[7] Vd. Inocêncio Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 7ª edição, Reimpressão, 2010, Coimbra Editora, pág. 205; Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 12ª edição, Almedina, pág. 505, e Luís Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, Volume I, 2ª edição, Almedina, pág. 395.
[8] Na sentença recorrida, apesar de se ter mencionado expressamente esta situação na descrição genéricas das situações previstas no artº 473º/3 do CCivil, não se abordou de forma concreta a suscetibilidade da respetiva aplicação ao caso em apreço, concluindo-se genericamente pela não verificação dos requisitos previstos naquele preceito.
[9] Proferido no processo nº 2048/15.1T8STS.P1.S1, in www.dgsi.pt.