Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
181/22.2PALSB.L1-9
Relator: JOSÉ CASTRO
Descritores: NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
INDEMNIZAÇÃO OFICIOSA
RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
- A nulidade por falta de fundamentação da sentença (nos termos do artº 379º, nº 1, al. a), com referência ao artº 374º, nº 2, ambos do CPP) não se confunde com uma fundamentação com a qual o recorrente está (legitimamente) em desacordo;
- A livre apreciação da prova tem limites endógenos (por condicionarem o próprio processo de formação da convicção, atinentes ao grau de convicção requerido para a decisão, à proibição de meios de prova e à observância da presunção de inocência do arguido) e exógenos (por condicionar o resultado da apreciação da prova, no sentido de que, finda a valoração da prova, a dúvida insanável deve favorecer a posição do arguido);
- Não está necessariamente em causa a violação do princípio in dubio pro reo sempre que a prova seja contraditória entre si, só tendo cabimento a invocação da sua violação sempre que o tribunal a quo expresse dúvidas insanáveis e, não obstante, tenha decidido em desfavor da posição do arguido;
- Se a versão dos factos dada como provada na sentença recorrida é uma das que razoavelmente é possível extrair da prova produzida, não tendo sido ultrapassados na livre apreciação da prova expressa pelo julgador nenhum dos limites endógenos e exógenos referenciados, a mesma não merecerá qualquer censura;
- Não se colocando a hipótese legal do nº 3 do artº 403º do CPP e não sendo superior a metade da alçada do tribunal de 1ª instância o valor da indemnização arbitrado oficiosamente pelo tribunal ao abrigo do disposto no artº 82º-A do CPP e do artº 21º, nº 2, do DL nº 112/2009, de 16.09, não é admissível o recurso quanto a esse segmento da decisão, nos termos do disposto no artº 400º, nº 2, do CPP, aqui aplicável por identidade de razão, com referência ao artº 44º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26.08.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No âmbito do proc. comum singular nº 181/22.2PALSB, do Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que é arguido AA, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 26.10.2023 foi proferida sentença (refª 14718199) com o seguinte dispositivo (transcrição):
«IV – DISPOSITIVO
Em face do exposto, o Tribunal julga a acusação parcialmente procedente, por provada, e, em conformidade, decide:
A. Condenar o arguido AA pela prática, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, na pessoa de BB, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, e condicionada a regime de prova, assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao cumprimento das penas acessórias referida em B. e C., cumprindo todas as recomendações e prescrições que lhe forem determinadas e comparecendo sempre que determinado por aqueles serviços.
B. Condenar o arguido na pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRSP;
C. Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da residência da mesma, pelo período de 3 anos de prisão, sem fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
D. Condenar o arguido a pagar a BB, a quantia de €700,00 (setecentos euros), a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos dos artigos 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e 82.º-A, do Código de Processo Penal, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão e até integral e efetivo pagamento.
E. Condenar o arguido (i) nas custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça, (artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa ao mesmo); e (ii) nas demais custas do processo nos termos do artigo 514.º do CPP;
F. Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal (artigo 6.º da Lei n.º Lei n.º 37/2015, de 5 de maio) para efeitos de registo criminal».
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Inconformado com tal sentença, o arguido dele interpôs recurso (refª 24558512), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«CONCLUSÕES:
1. O Recorrente foi condenado, pela prática em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea b), n.º 1, alínea a) do Cód. Penal na pena de de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, condicionada a regime de prova, assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao cumprimento das penas acessórias de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD) e na proibição de contacto com a Ofendida pelo período de 3 (três) anos.
2. O Recorrente foi ainda condenado no pagamento à Ofendida da quantia de € 700,00 (setecentos euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a decisão até efetivo e integral pagamento.
3. Com o presente recurso visa-se a apreciação da factualidade dada como provada e não provada, tendo em vista dirimir as contradições existentes, uma nova apreciação da matéria de facto dada como provada e não provada, aferindo-se de erro notório no exame da prova,
4. Bem como, da subsunção dos factos ao direito
5. E a apreciação da medida da pena aplicada ao ora Recorrente
6. Da leitura da douta sentença constata-se que existe erro notário na apreciação da prova. Este decompõe-se em duas partes distintas: a primeira, no que respeita à falta de fundamentação de determinados factos dados como provados e a segunda na qual se põe em causa o exame crítico efectuado no âmbito da análise dos elementos probatórios constantes dos autos e produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento.
7. O Tribunal recorrido considerou assente factos que não correspondem à realidade nem resultam da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nem das regras da ciência, da lógica e da experiência comum.
8. O Recorrente não se conforma com a forma como foram considerados assentes os factos vertidos sob o ponto 4, 5, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17 da factualidade dada como provada.
9. A decisão recorrida alicerçou a sua convicção nas declarações da Ofendida, no depoimento da testemunha de acusação, CC, prova documental junta aos autos e desvalorizou totalmente as declarações do Recorrente que considerou inverosímeis.
10. O Recorrente e a Ofendida prestaram declarações (na sessão de julgamento realizada no dia 26 de Outubro de 2023, tal como decorre da respectiva ata, encontrando-se as mesmas gravadas através de sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática das 09h45 às 10h14 e na sessão de julgamento realizada no dia 17 de Outubro de 2023, tal como decorre da respetiva ata, encontrando-se as mesmas gravadas através de sistema de gravação digital disponível na aplicação informática das 10h46 às 11h07, respectivamente.
11. O Recorrente não se conforma com o facto dado como provado nos pontos 4 a 6 da factualidade dada como provada, na medida em que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, das declarações do Arguido e da Ofendida, resultou provado que os factos tenham ocorrido no período indicado ou nos termos dados como provados.
12. Nas declarações que prestou na sessão de julgamento de dia 17 de Outubro de 2023 (tal como decorre da respectiva ata, encontrando-se a mesmas gravadas através de sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática das 10h46 as 11h07 – de 00.05.04 a 00.08.40 e de 00.13.50 a 15.21) a Ofendida declarou que o primeiro episódio terá ocorrido pouco tempo depois de terem começado a viver juntos e que o Arguido, em contexto de discussão, a começou a empurrar, sem contudo referir que os empurrões visavam obter uma reação da sua parte.
13. A versão da Ofendida não é corroborada pelo depoimento da testemunha de acusação, CC, que prestou depoimento na sessão de julgamento de 17 de Outubro de 2023, tal como decorre da respetiva ata, encontrando-se o mesmo gravado através de sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática das 11h08 às 11h21 – 4.40 a 6.27 declarado que a Ofendida não ficava calada que também gritava, “batiam boca”.
14. Importa ainda referir que as fotografias junta aos autos a fls 44 e 45 não corroboram a versão da Ofendida, nem as ações descritas pela Ofendida são passíveis de provocar as lesões que se encontram retratadas em tais fotografias.
15. De acordo com as regras da lógica, da ciência e da experiência comum, uma joelhada na cabeça, na zona do ouvido, não é apta a provocar um lanho/corte no couro cabeludo da Ofendida, nem os empurrões (sem especificar a zona atingida) são aptos a provocar os hematomas nos braços que se encontram documentados nas fotografias.
16. Impõe-se assim a alteração dos factos dados como provado sob os pontos 4 a 6 para não provados, pois os mesmos não resultaram da prova produzia em audiência nem da prova junta aos autos.
17. No conflito entre casais, o que ocorre na maioria dos casos, são discórdias e discussões relacionadas com ciúmes e questões do quotidiano, em que ambas as partes têm, reciprocamente, razões de queixa, pelo que o Tribunal deve ter um cuidado acrescido e prudência na análise da prova e naquilo que deve considerar a “experiência comum” e a “regra”.
18. È pois notória o erro na apreciação da prova quanto a estes factos, desde logo porque, não existe qualquer nexo de causalidade entre as agressões e as marcas apresentadas nas fotografias e as agressões que a Ofendida diz ter sofrido no “primeiro episódio”.
19. O Tribunal recorrido também considerou provados outros factos que não correspondem à realidade nem resultam da provado produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, são eles os factos vertidos sob o pontos 9 a 17 dos factos provados.
20. Os meios de prova em que o Tribunal recorrido alicerçou a sua convicção apontam em sentido diverso.
21. O teor das mensagens junto aos autos a fls. 197 e 198 resulta que a Ofendida enviou mensagens ao Arguido alegando “Tenho a cabeça pisada, braço todo fodido, a forma como me agrediste, não tem qualquer motivo, bateste com vontade de bater, mandaste-me ao chão a veres que estava a bater com a cabeça, mandaste-me vezes sem conta contra a parede, quase me sufocaste...” e “…e eu vi em ti que bateste com vontade, com vontade de magoar, eu mesmo no meio disto não te bati na cabeça, não te fiz nada para te magoar, tu bateste me como se eu fosse um homem, se querias mostrar simplesmente que tinhas força, imobilizavas-me, não há perdão, não há desculpas, não há”.
22. O depoimento da testemunha CC prestado na sessão de julgamento de 17 de Outubro de 2023, tal como decorre da respetiva ata, encontrando-se o mesmo gravado através de sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática das 11h08 às 11h21 – 4.40 a 6.27 declarou que a Ofendida não ficava calada que também gritava, “batiam boca”.
23. Por outro lado é também de referir que, apesar da violência das alegadas agressões não se encontram junto aos autos quaisquer relatórios médicos ou hospitalares, estes sim, meios idóneos para aferir da existência de lesões e eventuais causas.
24. .Nas suas declarações a Ofendida declarou que: ”Eu ainda estava no sofá, ou seja, eu cai para o sofá e ele caiu por cima. Ele levantou-se e tirou a t-shirt e começou a bater no peito a fazer uuu, uu (…) ele fez-me uma rasteira, eu cai para o chão e começou a bater com a cabeça no chão.” (prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento realizada no dia 17 de Outubro de 2023, tal como decorre da respectiva ata, encontrando-se a mesmas gravadas através de sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática das 10h46 a 11h07 – 00.08.40 a 00.13.57), contrariando o teor das SMS enviadas ao Arguido.
25. Do teor dos SMS trocados entre a Ofendida e o Arguido extraí-se que “…eu mesmo no meio disto não te bati na cabeça, não te fiz nada para te magoar, tu bateste me como se eu fosse um homem, se querias mostrar simplesmente que tinhas força, imobilizavas-me, não há perdão, não há desculpas, não há”.
26. As fotografias junta aos autos a fls 44 e 45, no que a este episódio se referem, apenas atestam objectos caídos no chão e o sapato que a Ofendida terá usado para desferir uma pancada no Arguido.
27. De acordo com as regras da ciência, da lógica e da experiência comum, os factos ocorridos no dia 4 de Novembro de 2021, a terem ocorrido, o que apenas se concebe por mera hipótese académica, jamais poderiam ter ocorrido com os contornos considerados provados.
28. Reitera o Recorrente que nas situações de conflitualidade entre casais é necessário ser prudente e cauteloso no que se deve considerar “experiência comum”.
29. As regras da experiência comum divergem demasiado de uns casais para os outros , sendo que para alguns deles as agressões não tem o mesmo significado que para os outros, em que tal significa submissão, humilhação, mau trato.
30. No caso em apreço e pelos elementos de prova carreados para os autos, não se vislumbra que existisse submissão ou que a Ofendida não tenha agredido o Arguido.
31. Assim, também estes factos deveriam ter sido dados como não provados.
32. No que respeita ao ponto 17 da factualidade dada comprovada e referindo-se o mesmo ao elemento subjectivo do tipo, não poderia o tribunal recorrido tê-lo dado como provado atenta a insuficiência da prova produzida.
33. Assim, também este facto não poderia ter sido dado como assente pelo tribunal recorrido.
34. A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como, a documentação junto aos autos, nomeadamente, fotografias e mensagens, é insuficiente e gera dúvida suficiente sobre a prática dos factos dados como provados, pelo que deveria o Tribunal recorrido, de acordo com os princípios basilares do processo penal ter absolvido o Recorrente.
35. Houve da parte do Tribunal recorrido erro notório da apreciação da prova, o que, por si só, impunha decisão diversa da proferida.
36. O Arguido está acusado da prática de um crime de violência doméstica, nos termos da alínea b) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do Artigo 152º do Cód. Penal.
37. O crime de violência doméstica visa a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana, abrangendo a saúde em sentido amplo, isto é, a salvaguarda das condições de desenvolvimento da personalidade de um individuo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo; a concretização dos direitos fundamentais à integridade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade (arts. 25º e 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e a especial relação que intercede entre o agente e o ofendido, a qual é sempre de proximidade, se não física, ao menos existencial – vide neste sentido Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense ao Cód. Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332 e ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2012, disponível em www.dgsi.pt: “O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.”.
38. Não é toda e qualquer ofensa à integridade física ou injúrias que configura o crime de violência doméstica. O tipo só será preenchido se a conduta for apta a ofender a saúde física, psíquica e emocional, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
39. Embora não pressuponha a reiteração da conduta, o crime de violência doméstica só se preenche, normalmente, com a reiteração do comportamento de maus tratos ,seja físicos ou psíquicos.
40. No caso em apreço, não se verifica nem a reiteração da conduta, nem a subjugação e humilhação aptas a diminuírem a dignidade da vítima.
41. As relações familiares têm diferentes dinâmicas e, em momentos de grande tensão, o convívio diário ou frequente, as decisões a tomar em relação à organização da vida e outros problemas do quotidiano, geram tensões, discórdia, preocupações várias que nem sempre são geridas da melhor forma.
42. O modo como as pessoas que vivem juntas ou são da mesma família, se comportam umas com as outras, pode ser, e é, muitas vezes inadequado, agressivo e reprovável mas não ser suficiente para integrar o crime de violência doméstica.
43. A conduta do Arguido pode ser censurável à luz das mais elementares regras do senso comum mas não tem a carga nem o predomínio ou abuso de poder sobre a Ofendida, como é próprio do crime de violência doméstica.
44. A conduta do Recorrente poderá, eventualmente, ser subsumível ao crime de ofensas à integridade física, p. e p. no artigo 143º do Cód. Penal.
45. O crime de ofensas à integridade física tem natureza particular e pressupõe a apresentação de queixa, a constituição da Ofendida como Assistente e a dedução de acusação particular, o que não se verificou nos presentes autos.
46. Por outro lado também se dirá que a prática de qualquer ato ofensivo por parte do Recorrente estará abrangido pela Lei n.º 38-A/2023 de 02 de Agosto.
47. No que concerne ao montante arbitrado a título de indemnização civil, por todo o exposto, requer o Recorrente a sua absolvição do pagamento da quantia arbitrada a título de indemnização, considerando que não se pode concluir que os danos que o tribunal deu como provados se ficaram a dever à actuação delituosa do Recorrente.
48. Não obstante o que se deixou explanado quanto à matéria dada como provada, o Recorrente, não se pode conformar nem com a concreta pena nem com as penas acessórias aplicadas.
49. Tais penas pecam por exageradas e violam os artigos 40º, 71º e 72º do Cód. Penal.
50. O Tribunal recorrido não se conseguiu afastar-se do juízo de censura e alarme social que recaem sobre este tipo de ilícito e fazer a análise da prova com base nas regras da ciência, da lógica e da experiência comum.
51. A decisão recorrida parece confundir a gravidade objectiva do tipo de ílicito, já reflectida na moldura penal, com a concreta ponderação da actuação do Recorrente.
52. Por outro lado, o Tribunal também teve em consideração circunstância que não se verificam em relação ao ora Recorrente, a saber: a circunstância do arguido ser totalmente dependente de terceiros e ter praticado os factos num clima de revolta e impotência pela situação física e de saúde em que se encontrava; a existência de antecedentes criminais contra a vítima; o dolo com que atuou; o período temporal em que os mesmos ocorreram, o qual se reportou a dois episódios; a ilicitude e o modus operandi, os quais são especialmente elevados atendendo às condutas dadas como provadas por referência as condutas passiveis de serem abrangidas por este tipo de ilícito, e bem assim a periodicidade em causa nos autos;”
53. Cremos que tais factos não se reportam aos presentes autos e estão em clara contradição com os factos dados como provado sob o ponto 20 e 22, de acordo com os quais o arguido não tem antecedentes criminais e trabalha como ....
54. Alias, o Recorrente também não vislumbra a que periodicidade o tribunal recorrido se refere considerando que apenas foram considerando dois episódio e espaçados no tempo
55. A prova produzida impunha uma pena mais leve, mais próxima do limite mínimo.
56. Relativamente à pena acessória de proibição de contacto com a Ofendida pelo período de três anos, de referir que o Tribunal não explicitou as circunstâncias do caso concreto que levaram à sua aplicação, não estando, no entanto, reunidos, no modesto entender do Recorrente, os pressupostos de facto ou de direito, que justifiquem ou determinem a sua aplicação.
Termos em que deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente e, em consequência, deverá
a) Ser alterada a matéria de facto considerada como provada nos termos supra requeridos;
b) Ser o Recorrente absolvido do crime de violência doméstica
c) Ser o Recorrente absolvido do valor de indemnização arbitrado pelo Tribunal recorrido;
d) Ou ainda que assim V. Ex.as não o considerem, sempre deverá ser reduzida a pena de aplicada ao Recorrente, bem como, revogada a pena acessória de proibição de contacto com a Ofendida
Sendo certo que Vossas Excelências, com douto critério decidirão com a tão
desejada e acostumada
JUSTIÇA!»
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O recurso foi admitido a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo (refª 148071968).
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O Ministério Público junto do tribunal onde foi proferida a sentença sob recurso apresentou contra-alegações (refª 24776470), concluindo do seguinte modo (transcrição):
«III. DAS CONCLUSÕES
1. O recorrente foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova e subordinada ao cumprimento das penas acessórias; na pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRSP; na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da residência da mesma, pelo período de 3 (três) anos, sem fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
2. A apreciação que o tribunal a quo efetuou quer do depoimento da ofendida, quer do depoimento da testemunha e da prova produzida em julgamento, não nos merece qualquer reparo.
3. Da sentença recorrida decorre que a ofendida prestou depoimento de forma espontânea, credível e objetiva, não se limitando a corroborar os factos vertidos na acusação, não evidenciando qualquer intenção de prejudicar o arguido, circunstanciando os factos e relatando-os de forma pormenorizada.
4. O tribunal a quo entendeu ter tal depoimento sido parcialmente corroborado pelo depoimento da testemunha CC, que reputou de sincero, o qual, de forma esclarecedora e verosímil, descreveu o que a vítima lhe havia relatado dias após o episódio ocorrido no dia 04/11/2021, em termos convergentes com os da acusação.
5. Não existe qualquer impedimento legal a que o tribunal considere como provados factos apenas e tão só com base no depoimento de uma testemunha, ainda que esta seja a vítima do crime.
6. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, constatamos que a sua discordância assenta na valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo, a qual, livremente formada e fundamentada, resulta da convicção lógica em face da prova produzida e à luz das regras da experiência comum, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
7. Não se vislumbra qualquer motivo válido para não se valorar o depoimento da ofendida, corroborado, aliás pela prova testemunhal e documental junta aos autos, revestindo estas força probatória suficiente para o tribunal formar a sua convicção, inexistindo, pois, qualquer erro, muito menos notório, na apreciação da prova.
8. Da análise da sentença recorrida, constata-se que a prova produzida foi de molde a não criar quaisquer dúvidas no Julgador, antes e pelo contrário, a prova produzida em audiência, conduziu o tribunal a quo à certeza de que a recorrente praticou os factos que foram dados assentes, pelo que não se impunha, assim, aplicar o princípio in dubio pro reo.
9. Não é pelo facto de haver diferentes versões de uma determinada factualidade e de se optar por uma delas como sendo a que melhor a retrata, que se está a violar, sem mais, o princípio in dubio pro reo.
10. O tribunal a quo proferiu a sentença no pleno convencimento de que os factos ocorreram nos moldes relatados pela ofendida e de que o recorrente foi seu autor, por força das provas devidamente valoradas e submetidas ao respetivo exame crítico.
11.Os factos dados como provados na sentença recorrida preenchem todos os elementos do tipo objetivo e do tipo subjetivo do crime de violência doméstica pelo qual o recorrente veio a ser condenado.
12.O comportamento do recorrente evidenciado nos factos provados é revelador do desprezo e da desconsideração que manifestou pela vítima, sua companheira, querendo impor a sua força a esta, empurrando-a, apertando-lhe o pescoço e desferindo-lhe pancadas, com uma violência e gravidade incompatíveis com a dignidade e liberdade da vítima.
13. O tribunal a quo atendeu ao dolo direto com que o recorrente agiu, ao acentuado grau de ilicitude dos factos, à gravidade das consequências, mormente no atentado que a ofendida sofreu à sua integridade física, psicológica e emocional, sentindo-se amedrontada e assustada, bem como constrangida e limitada na sua liberdade pessoal, de tal forma que teve que pernoitar fora de casa durante uns dias, aos motivos e fins determinantes, pretendendo o arguido atemorizar a ofendida, agredindo-a, humilhando-a e fragilizando-a.
14. Atendeu, ainda, o tribunal a quo, apesar de, por lapso manifesto, na sentença recorrida fazer referência que o arguido era totalmente dependente de terceiros e tinha praticado os factos num clima de revolta e impotência pela situação física e de saúde em que se encontrava, bem como que tinha antecedentes criminais contra a vítima, à ausência de antecedentes criminais, bem como, à conduta posterior do arguido, considerando as necessidades de prevenção pouco acentuadas.
15.A aplicação da pena prisão próxima do limite mínimo, situada no primeiro 1/18, não se mostra excessiva face à conduta do recorrente, atentos os fatores acima referidos, realizando cabalmente os fins das penas.
16.O tribunal a quo ponderou assertivamente o grau elevado de ilicitude da conduta do recorrente, o facto de ter atuado com dolo direto, a ausência de espírito crítico da sua conduta e de arrependimento, bem como, por outro lado, a ausência de antecedentes criminais, a sua conduta posterior, a inserção do mesmo, social, familiar e profissionalmente, adotando o procedimento correto na quantificação da pena e observando as exigências de fundamentação consubstanciadas na formulação expressa das razões específicas que o levaram à suspensão da sua execução, não merecendo as mesmas quaisquer reparos, procedendo à aplicação correta das normas constantes nos artigos 40º e 71º, do Código Penal.
17.Atendendo à gravidade das condutas comprovadamente praticadas pelo recorrente na pessoa da ofendida e aos efeitos nefastos produzidos na vida da mesma, impunha-se a aplicação da pena acessória de proibição de contactos com a vítima, para proteção e salvaguarda desta.
18.Da sentença recorrida, conclui-se que a mesma explica de forma criteriosa os motivos concretos e objetivos pelos quais o tribunal a quo entendeu desnecessária a fiscalização da pena acessória de proibição de contactos através de meios de controlo à distância, sendo perfeitamente percetíveis os motivos pelos quais o tribunal decidiu nesses termos, estando a sentença devidamente fundamentada, de molde a poder concluir-se que, na situação concreta, a utilização daqueles meios não é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima.
19.Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida.
Face ao exposto, deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada na íntegra, a sentença recorrida, assim se fazendo a costumada e esperada JUSTIÇA.»
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por seu turno, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos (transcrição):
«O âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e/ou o erro notório na apreciação da prova.
Ora, no que a estes se refere, verifico que do texto da decisão não se evidenciam vícios, pois que a mesma se mostra suficiente e devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e sem contradição insanável. Ademais, interpretou corretamente a prova produzida em audiência e fundamentou de forma adequada os concretos motivos de apreciação da mesma.
Das conclusões do recurso decorre que o recorrente visa a reapreciação da factualidade dada como provada e não provada, da subsunção dos factos ao direito e da medida da pena aplicada.
Tais pretensões mostram-se já devidamente apreciadas e escalpelizadas na resposta apresentada pelo Ministério Público, a qual, pela sua assertividade não carece de aditamentos.
Por conseguinte, e acompanhando a resposta do Ministério Público em 1.ª instância, sou de parecer que ao recurso interposto pelo arguido AA deve ser negado provimento, julgando-o improcedente e confirmando-se a douta decisão impugnada.»
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Notificado nos termos do disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, o arguido não apresentou resposta.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.
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FUNDAMENTAÇÃO
I - Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso
Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso [quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)], as questões que se colocam são as seguintes:
a. Nulidade da sentença por falta de fundamentação (artº 374º, nº 2, do CPP), quanto a alguns factos e quanto à imposição das penas acessórias [conclusão recursória 6ª];
b. Impugnação da matéria de facto provada e o princípio do in dubio pro reo [conclusões recursórias 7ª a 34ª];
c. Erro notório da apreciação da prova (artº 410º, nº 2, al. c), do CPP) [conclusões recursórias 6ª, 18ª e 35ª];
d. Qualificação jurídica dos factos dados como provados, falta de procedibilidade da ação penal e aplicação da Lei de Amnistia de 2023 [conclusões recursórias 36ª a 46ª];
e. Determinação concreta da pena [conclusões 48ª a 55ª];
f. Desnecessidade da imposição das penas acessórias [conclusões recursórias 48ª, 49ª e 56ª];
g. Absolvição quanto à condenação do arguido no pagamento da quantia arbitrada pelo tribunal a quo a favor da vítima [conclusão recursória 47ª].
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II – Apreciação das questões acima enunciadas
a) Com vista à apreciação das questões acima enunciadas, importa ter presente que a sentença recorrida apresenta a seguinte fundamentação da matéria de facto (transcrição):
«II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, e com relevância para a mesma, resultaram provados os seguintes factos:
A) Da acusação
1. O arguido AA e BB mantiveram um relacionamento amoroso que durou cerca de 1 (um) ano, o qual alcançou o seu termo em novembro de 2021.
2. Nos últimos 6 (seis) meses do referido relacionamento, AA e BB residiram em comunhão de mesa, cama e habitação na ....
3. A partir do momento em que começaram a residir conjuntamente, em meados de maio de 2021, o relacionamento amoroso do casal passou a ser pautado por diversas discussões, com uma frequência não concretamente apurada, motivadas pelas suspeitas de BB de que o arguido manteria relações amorosas com outras mulheres.
4. Assim, em data não concretamente apurada, mas situada em meados de julho de 2021, quando se encontravam a discutir no interior do quarto da referida habitação, AA empurrou, pelo menos por duas vezes, BB e, não tendo obtido uma reação por parte daquela, deu-lhe um último empurrão com mais força, projetando-a para cima da cama.
5. Ato contínuo, o arguido colocou-se em cima de BB, imobilizando-a com recurso à sua força física, e agarrou-lhe o pescoço com as suas mãos, apertando-o com força e impedindo-a de respirar durante alguns segundos.
6. Nesse momento, enquanto se encontrava a ser estrangulada, AA desferiu-lhe ainda uma joelhada que atingiu BB no lado direito da cabeça, mais precisamente na zona do ouvido, o que lhe provocou dores e lesões no local atingido.
7. O segundo episódio de agressões físicas ocorreu no dia 04.11.2021, no interior da sala da habitação onde residiam, em que no decurso de uma discussão entre ambos, AA agarrou BB pela cintura, com intenção de a projetar para o sofá.
8. Sendo que, nesse instante, BB agarrou-se ao arguido, provocando a queda de ambos para cima do referido sofá.
9. Após, AA levantou-se de imediato do sofá e retirou a sua camisola, tendo ficado em tronco nu, incentivando BB a um confronto físico entre ambos.
10. Nessa sequência, BB também se levantou do sofá, momento em que AA a rasteirou com a perna, fazendo-a cair no solo.
11. E, em ato contínuo, agarrou na cabeça de BB, batendo com a mesma, pelo menos por duas vezes, contra o chão.
12. Apenas cessando tal conduta quando, de forma a por termo às agressões de que estava a ser alvo, BB conseguiu levantar-se e pegar num dos seus sapatos de salto alto, atingindo o arguido com tal objeto na sua zona lombar.
13. Nesse momento, AA tornou-se ainda mais agressivo para com BB e, depois de a agarrar pelo pescoço, projetou-a contra a parede da sala, onde voltou a bateu fortemente com a cabeça desta por várias vezes.
14. Logo de seguida, AA agarrou novamente BB pelo pescoço com as suas mãos, apertando-o com força e asfixiando-a por momentos.
15. Posteriormente, o arguido projetou BB para o chão, dizendo-lhe: "JÁ VISTE O QUE ME FIZESTE FAZER, A CULPA É TUA!", tendo acabado por abandonar a mencionada habitação.
16. Em virtude de tais ocorrências, BB sofreu dores e ferimentos nas zonas atingidas, no entanto, não necessitou de receber tratamento hospitalar.
17. Ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar fisicamente e psicologicamente a vítima, sua companheira, como efetivamente maltratou, atingindo-a na sua saúde e integridade física e psíquica, provocando-lhe dores e lesões físicas bem como pretendeu, com tais condutas, amedrontá-la, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física, humilhando-a na sua honra, consideração pessoal e amor-próprio, provocando-lhe sentimentos de desespero, impotência, ansiedade, nervosismo e tristeza, atentando contra a sua dignidade humana, tudo o que quis, conhecia e logrou.
18. Mais sabia e quis praticar tais atos no interior do domicílio comum, pese embora não desconhecesse que tal circunstancialismo era idóneo a interferir com a intimidade, paz e tranquilidade da vítima.
19. O denunciado agiu sempre consciente, voluntária, livre e deliberadamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e que tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação. B) Mais se provou:
20. Dos autos não consta que o arguido tenha antecedentes criminais.
21. O arguido e BB não têm qualquer contacto desde janeiro de 2022.
22. O arguido trabalha como ... auferindo cerca de €930,00 por mês.
23. Vive em casa da mãe e do padrasto, contribuindo para as despesas da casa com cerca de €500,00 por mês.
24. Tem 3 filhos com 10 anos, 6 anos e 1 mês de idade, respetivamente, os quais vivem com as respetivas mães.
25. Paga €150,00 por mês a título de pensão de alimentos aos filhos mais velhos.
26. Tem de habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:
A) Da acusação
a. Que, nas circunstâncias referidas em 4., o arguido tenha empurrado a ofendida mais vezes do que aquelas dadas como provadas.
b. Que, nas circunstâncias referidas em 11., o arguido tenha batido com a cabeça da ofendida contra o chão mais vezes do que aquelas dadas como provadas.
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C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A audiência de julgamento decorreu com o registo dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados – no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.
Tal circunstância, permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efetivo controle do modo como o Tribunal formou a sua convicção, deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade e dispensar o relato detalhado dos depoimentos e esclarecimentos prestados.
Posto isto, na formação da sua convicção o Tribunal tomou em consideração os meios de prova disponíveis, atendendo nos dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos seguintes meios de prova:
- Nas declarações do arguido;
- No depoimento da testemunha BB (vítima) e CC (amigo e colega da vítima);
- Nas regras da experiência comum e na própria perceção do Tribunal em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos infra expostos; e
- Nos seguintes documentos com interesse para a causa: auto de denúncia de fls. 3 a 4, fotografias de fls. 43 a 45, aditamento 3 a fls. 70, mensagens de fls. 197 e 198, aditamento 12 a fls. 171, CRC de 13.10.2023;
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Cumpre especificar em que moldes o Tribunal formou a sua convicção:
Quanto à factualidade vertida nos pontos 1. a 3. e 21, a mesma resultou provada das declarações do arguido e de BB, nesta parte concordantes entre si.
Quanto à demais factualidade, é certo que o arguido apenas admitiu apenas parte do episódio de 4.11.2021, referindo que a vítima queria falar com ele, motivo pelo qual não o deixou sair de casa quando este precisava de trabalhar. Mais referiu que tentou tirar a vítima da sua frente e que esta lhe puxou o capuz do casaco tento ambos caído no sofá. Novamente questionado sobre este facto referiu que afinal antes de caírem no sofá a vítima lhe deu com um salto alto nas costas, altura em que a agarrou pelos braços com forma e a encostou à parede. Nega ter atirado a vítima ao chão com rasteiras e nega ter batido com a cabeça da vítima contra o chão e contra a parede. Contudo, novamente questionado quanto a estes factos admitiu que abanou a vitima, pelos braços, para a frente e para trás enquanto a encostava contra a parede. A este respeito, salienta-se que – não obstante o arguido ter negado ter batido com a cabeça da vítima, ditam as mais elementares regras de experiência que quando alguém abana outrem, com força, contra uma parede, é quase impossível que com esses abanões a sua cabeça não bata contra a parede.
Nega ainda ter apertado pescoço da vítima, sendo que quanto ao facto desta cair ao chão, referiu que a mesma escorregou – inicialmente junto da casa de banho, numa segunda versão já na sala junto de um vaso – e que ainda a ajudou a levantar. Questionado para concretizar esta queda e os motivos da mesma, o arguido foi vago e impreciso.
Negando ter atirado a vítima ao chão, admitiu a expressão referida em 15., sendo que quando questionado sobre o que é que fez à vítima para lhe dirigir tal expressão, limitou-se a referir os empurrões e o encostar à parede. Ora, ditam os critérios normais da vida que empurrões recíprocos e um mero encostar à parede não determinam a necessidade de justificação, que advém da referida expressão.
Efetivamente, as declarações do arguido - para além das reservas que nos mereceram quer pelas contradições, quer pela forma vaga como foram prestadas e por parcialmente avessas às regras de experiencia - foram contraditadas por toda a demais prova produzida, em especial pelo depoimento de BB no que respeita à factualidade vertida nos pontos 4. a 6. e 7. a 16.
Com efeito, a vítima confirmou todos estes factos, num depoimento espontâneo, credível e objetivo e por vezes emocionado, não se limitando a corroborar toda a factualidade vertida na acusação – nomeadamente referido expressamente que não se recordar quantas vezes arguido lhe bateu com a cabeça no chão no ponto 11. nem quantas vezes a empurrou no ponto 4., referindo ter sido mais do que uma vez em ambas as ocasiões -, nem evidenciando intenção de prejudicar o arguido. Por outro lado, circunstanciou os factos, relatando de forma pormenorizada a discussão que motivou os factos vertidos de 4 a 6, e bem assim explicou igualmente todo o circunstancialismo que motivou a discussão referida em 7., salientando que o arguido esteve ausente de casa dois duas, com o telefone desligado, e bem assim que apenas pediu para falarem sobre o que se passou, tendo este se recusado a falar. Ditam as regras de experiência comum que tais pormenores no relato, são demasiado específicos para serem inventados, normalmente apenas relatados por quem realmente os experiencia.
Justificou ainda a vítima – de forma credível e motivada - o motivo pelo qual apenas apresentou a queixa dia 18.3.2022.
Por outro lado, a versão da vítima em julgamento encontra igualmente respaldo nas fotografias de fls. 45 - que evidenciam lesões compatíveis com a descrição dos factos de julho de 2021 - e nas mensagens trocadas entre arguido e vítima e datadas de 4.11.2021, nas quais esta menciona as agressões que sofreu, não havendo qualquer reação do arguido, nem sequer de espanto ou indignação, nas mensagens subsequentes a essa.
Aliás questionado em julgamento o arguido sobre a forma pela qual reagiu às acusações de agressões nas mensagens, o mesmo não deu quqluer justificação, limitando-se a dizer que não bateu.
Ora, ditam igualmente os critérios de normalidade que, quando alguém nos acusa ou nos imputa factos tao graves como os descritos a fls. 198v, sendo mentira, a primeira reação é negar ou indignar-se com tais acusações, sendo que às mesmas o arguido apenas respondeu “já te disse imensas vezes para não tentares medir forças comigo (…) Tbm tenho o olho arranhado e não te desculpo tbm por tudo o que me fizeste em casa” (cit), sendo que quando questionado sobre a dinâmica do episodio o arguido apenas disse que a vítima o arranhou e que lhe puxou o capuz para a frente, pelo que, atentos os factos provados, é evidente concluir que não existe reciprocidade das condutas.
Por outro lado, o depoimento da vítima foi ainda parcialmente corroborado pelo depoimento de CC (amigo e colega da vítima) o qual referiu que esta lhe relatou e confidenciou os factos de novembro de 2021, dois ou três dias após os mesmos ocorrerem, sendo que a circunstância desta testemunha, nessa data, não se recordar de ver marcas visíveis no corpo da vítima não põe em causa o depoimento da mesma, tanto mais que era inverno, altura do ano em que o corpo está necessariamente mais coberto.
Por outro lado, sempre se dirá neste contexto de produção de prova e motivação dos factos dados como provados, importa salientar a especificidade deste tipo de crime e o contexto em que normalmente o mesmo ocorre.
De facto, atendendo às regras da experiência comum e ao facto de estarmos perante agressões entre cônjuges ou pessoas em situação análoga, facilmente se conclui que muitos dos factos ocorrem “intramuros”, sendo por isso natural que por vezes a única testemunha seja a própria ofendida.
Assim, a jurisprudência tem considerado - e a nosso ver bem -, que a falta de prova testemunhal que normalmente caracteriza este tipo de ilícito deve ser suprida através de uma ponderada valorização das declarações das próprias vítimas, “uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal” (Neste sentido, entre outros, Acórdão da Relação de Lisboa de 06.06.2001, processo 0034263, in www.dgsi.pt).
Efetivamente, e no caso concreto, foi fundamental para a formação da convicção do Tribunal o depoimento da vítima, prestado de forma notoriamente espontânea, natural e sincera.
No que concerne aos factos sob os pontos 17. a 19., e que traduzem o elemento subjetivo, o dolo, resultaram os mesmos provados com recurso às regras de experiência comum, as quais permitem inferir, mediante os factos objetivos dados como provados, a intenção subjetiva do arguido ao praticar tais factos, uma vez que se trata de uma presunção natural que quem agride a sua companheira, dentro de 4 paredes, coma violência dada como provada, não só tem conhecimento e vontade de praticar tais factos, como de a maltratar fisicamente e psicologicamente, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física, humilhando-a e atentando contra a sua dignidade humana.
Por outro lado, o arguido é uma pessoa de normal entendimento pelo que não podia deixar de entender os efeitos das suas condutas e de saber que elas eram e são proibidas e puníveis, mas mesmo assim decidiu atuar.
Os factos provados de 22. a 26., relativos às condições socioeconómicas do arguido, foram assim considerados com base nas declarações do mesmo que, nesta parte, mereceram credibilidade ao Tribunal, por serem verosímeis, de acordo com critérios de normalidade.
Relativamente ao facto provado 20., foi analisado o certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.
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No que concerne aos factos não provados, o Tribunal baseou a sua convicção na ausência de qualquer prova, na ausência de prova suficiente e bastante, na prova dos factos contrários e nas regras da experiência comum.»
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b) Da nulidade por falta de fundamentação (artº 374º, nº 2, do CPP):
Invoca o arguido que a sentença recorrida não está fundamentada quanto a alguns dos factos dados como provados e quanto à imposição das penas acessórias [concls 6ª e 56ª].
Contrapõe o Ministério Público pugnando pela inexistência desse vicio.
Quid juris?
Nos termos do artº 205º, nº 1, da CRP, «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei», conferindo-se assim ao legislador ordinário a conformação desse princípio basilar do Estado de Direito Democrático.
Por outro lado, a exigência de fundamentação é também um direito fundamental decorrente de um processo equitativo (due process of law na terminologia da jurisprudência norte-americana), consagrado entre nós no nº 4 do artº 20º da CRP («Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo») e ainda como garantia essencial no âmbito do processo criminal (nº 1 do artº 32º do mesmo diploma legal).
Tal exigência constitucional e direito fundamental prende-se com a possibilidade efetiva de sindicância das decisões judiciais e com a necessidade de convencer os destinatários e cidadãos em geral da sua correção e justiça e tem respaldo no artº 374º, nº 2, do CPP, no que à sentença se refere.
Dispõe este último preceito do CPP, que «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Por seu turno, prescreve o artº 379º do CPP, na parte que para aqui interessa, o seguinte:
«1 – É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 389º-A e 391º-F;
(…)
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»
A crítica dirigida pelo recorrente à sentença sob recurso, quanto à sua falta de fundamentação, abarca dois segmentos:
- Falta de fundamentação quanto a parte da matéria de facto dada como provada; e
- Falta de fundamentação jurídica quanto à imposição das penas acessórias.
Vejamos.
Quanto à alegada falta de fundamentação quanto a parte da matéria de facto, o arguido/recorrente confunde o vício da falta de fundamentação com uma fundamentação com a qual está em desacordo.
A sentença recorrida – concorde-se ou não com ela – está fundamentada, na medida em que – com relevo para o caso dos autos, sendo certo que neste particular está em causa fundamentação da matéria de facto - elenca os factos provados e não provados e motiva a sua convicção de um modo tal que pode ser sindicada pelos seus destinatários e, aliás, por este tribunal.
Tal fundamentação tem amplitude suficiente para abarcar toda a matéria de facto em discussão, provada ou não provada, conforme se conclui da simples leitura da sua motivação, acima transcrita.
E tanto assim é que o arguido, discordando dela, recorreu inclusivamente e, além do mais, impugnando boa parte da matéria de facto dada como provada.
Questão diversa é saber se, com a prova produzida e atendendo àquela fundamentação, teria sido curial dar-se como provada a matéria de facto impugnada e, atenta a mesma, se foi violado o princípio da presunção de inocência do recorrente (artº 32º, nº 2, da CRP), questão que mais à frente abordaremos.
Destarte, inexiste a alegada nulidade.
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No que respeita à fundamentação jurídica relativa à imposição das penas acessórias, o tribunal a quo, a dado passo, aduziu o seguinte (transcrição):
«iii) Das Penas acessórias
Nos termos do artigo 152.º nºs 4 e 5 do Código Penal, pode ser aplicado ao arguido a pena acessória de proibição de contactar com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
No caso concreto, quanto à pena acessória de proibição de uso e porte de armas, entendemos não existir acervo fatual provado que permita concluir pela necessidade desta pena acessória.
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a) Face a factualidade dada como provada, julga-se conveniente, adequado e suficiente sancionar o arguido com a pena acessória de proibição de contactos com a vítima, diretamente ou por interposta pessoa, ou por qualquer meio, durante o período de 3 anos, o que inclui o afastamento da residência e do local de trabalho desta.
Contudo, atendendo a que arguido e vitima não têm qualquer contacto desde janeiro de 2022, não se mostra imprescindível para a proteção da vítima, que o cumprimento desta pena acessória seja ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, pelo que não se determina esta fiscalização (artigo 152.º, nºs 4 e 5, do Código Penal e artigos 35.º. n.º 1 a contrario da Lei n.º 112/2009, de 16/09).
b) No que respeita à pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRS, atentos os factos provados e as exigência de prevenção especial do caso, afigura-se necessário que o arguido possa, ao longo do período de suspensão, interiorizar o desvalor da sua conduta, e reforçar a sua capacidade de insight sobre a natureza e a gravidade do seu comportamento e atitudes em tudo o que se prende com o seu relacionamento com a vítima, pelo que cumpre igualmente determinar a frequência, por parte do arguido, de um programa específico de prevenção de violência doméstica, nos termos a definir pela DGRSP.»
Este segmento da sentença recorrida tem de ser lido de forma concatenada com a matéria de facto dada como provada e com as ilações que o tribunal a quo tinha tirado acerca do grau de ilicitude e culpabilidade da conduta do arguido, bem assim quanto às elevadas necessidades de prevenção geral no que a esta tipologia de crime concerne.
Nessa medida, tendo indicado as normas jurídicas em que se estriba, os factos em que a imposição daquelas penas acessórias assentou e explicando de forma sucinta a necessidade da sua imposição, cremos que, também aqui, a sentença recorrida, na sua exposição – ainda que concisa - cumpre as exigências de fundamentação prescritas no artº 374º, nº 2, do CPP, e artº 205º, nº 1, da CRP.
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c) Da impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 4º a 6º e 9º a 17º:
O recorrente AA entende que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto acima referenciada, a qual, na sua perspetiva, deveria ter sido dada como não provada.
Dispõe o artº 412º, na parte que para aqui releva, o seguinte:
«(…)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»
AA invoca ainda o vício do erro notório na apreciação da prova [al. c) do nº 2 do artº 410º do CPP], cujos poderes de cognição deste tribunal se inserem já no domínio da revista alargada.
Todavia, convém abordar em primeiro lugar a impugnação ampla da matéria de facto por razões de metodologia, visto que, caso o recurso venha a ter provimento por essa via, desnecessário se torna apreciar a impugnação de mais limitado espectro a que se reportam os vícios consignados nas diversas alíneas do nº 2 do artº 410º do CPP (neste sentido, pode ver-se o ac. do STJ de 05.07.2007, proc. nº 07P2279, in www.dgsi.pt).
Concatenando então o disposto nos artgs 410º e 412º do CPP, verifica-se que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
- Através do âmbito mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal; ou
- Mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se assim de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento (na apreciação da prova) cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
No domínio da impugnação ampla da matéria de facto visa-se, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Sem olvidar que com a reforma do sistema de recursos operada pela Lei nº 59/98, de 25.08, o legislador pretendeu garantir um recurso efetivo em matéria de facto, densificando assim a garantia constitucional consagrada no artº 32º, nº 1, da CRP («O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»), assegurando pelo menos um efetivo grau de recurso quanto à impugnação da matéria de facto, esta, contudo, tendencialmente não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo, por via de regra, um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como o tribunal a quo apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, o que significa que por regra não lhe basta expressar discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer um segundo julgamento, com base na gravação da prova.
Na esteira deste entendimento, segundo o Professor Germano Marques da Silva (in Forum Iustitiae, Ano I, maio de 1999) «o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância».
Também o Professor José Manuel Damião Cunha segue a mesma linha de pensamento (in O CASO JULGADO PARCIAL, QUESTÃO DA CULPABILIDADE E QUESTÃO DA SANÇÃO NUM PROCESSO DE ESTRUTURA ACUSATÓRIA, pág. 37, Universidade Católica Portuguesa, Porto 2002), bem como, entre muitos outros, os Acs do STJ de 15.12.2005 e 09.03.2006, procs nºs 05P2951 e 06P461, respetivamente, os quais podem ser consultados em www.dgsi.pt.
É justamente por isso que o recorrente tem o ónus de expressamente indicar, de acordo com o disposto no artº 412º, nº 3, do CPP:
i) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados;
ii) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e
iii) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o artº 430º, nº 1, do CPP).
No que tange às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente o ónus de, havendo gravação das provas, as mesmas deverem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do artº 412º, do CPP.
Em sede de sindicância da matéria de facto, por via da sua impugnação ampla, o tribunal ad quem, para além de estar limitado ao objeto recursório e segundo as especificações ali efetuadas, tem a limitação que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o seu contacto com estas ao que consta das gravações e à demais prova existente no processo, como prova documental e pericial, sendo tal limitação particularmente relevante se assumir especial relevo a prova por declarações (do arguido, do assistente e do demandante) e a prova testemunhal.
Trata-se assim, tendencialmente, de uma intervenção cirúrgica, no sentido de que está restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso, sendo certo que só é possível alterar o decidido pelo tribunal a quo se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, conforme decorre da al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do CPP, decisão essa que muitas vezes imporá a audição ou visualização de outras passagens não indicadas pelo recorrente, quando se afigurem relevantes para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa (nº 6 do artº 412º do CPP), já que o tribunal ad quem não está adstrito – nem poderia estar - à visão parcelar do recorrente acerca da prova produzida, antes devendo concatenar o conteúdo global da prova indicada com outra que eventualmente tenha sido produzida e que seja relevante para apreciar o objeto do recurso tal como definido nas conclusões recursórias.
Já vimos que a intervenção deste tribunal, no que à sindicância da matéria de facto impugnada concerne, constitui apenas um remédio jurídico que só atuará quando se imponha decisão diversa da adotada, sendo certo que «(…) erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas» (citação do ac. TRL de 04.02.2016, desta secção, proc. nº 23/14.2PCOER.L1, o qual pode ser consultado em www.dgsi.pt).
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Explicados nos seus traços gerais o regime da impugnação ampla da matéria de facto e os poderes de cognição deste tribunal a esse respeito, com as limitações assinaladas, e tendo em consideração que o recorrente cumpriu os ónus que sobre si pendiam, vejamos agora o caso sub judice.
AA começa por impugnar a matéria vertida nos pontos 4º a 6º dos factos provados, pois entende que não resulta das declarações do arguido e da própria ofendida que os factos tenham ocorrido no período ali indicado nem nos termos ali plasmados.
Recordemos então qual a matéria em causa (transcrição):
4. Assim, em data não concretamente apurada, mas situada em meados de julho de 2021, quando se encontravam a discutir no interior do quarto da referida habitação, AA empurrou, pelo menos por duas vezes, BB e, não tendo obtido uma reação por parte daquela, deu-lhe um último empurrão com mais força, projetando-a para cima da cama.
5. Ato contínuo, o arguido colocou-se em cima de BB, imobilizando-a com recurso à sua força física, e agarrou-lhe o pescoço com as suas mãos, apertando-o com força e impedindo-a de respirar durante alguns segundos.
6. Nesse momento, enquanto se encontrava a ser estrangulada, AA desferiu-lhe ainda uma joelhada que atingiu BB no lado direito da cabeça, mais precisamente na zona do ouvido, o que lhe provocou dores e lesões no local atingido.
Resulta da motivação expressa na sentença recorrida – quanto àquele segmento da matéria de facto dada como provada – que o tribunal a quo estribou a sua convicção no teor do depoimento da ofendida BB – que credibilizou - e no teor das fotografias de fls 45, que considerou retratar lesões compatíveis com a agressão então protagonizada pelo arguido na pessoa da vítima.
O arguido, por seu turno, negou qualquer agressão naquela ocasião.
As fotografias de fls 45 retratam claramente sinais de lesão na cabeça (um pouco acima de um dos ouvidos), num dos membros inferiores e num dos membros superiores da ofendida.
Segundo a factualidade dada como provada, em contexto de discussão, as agressões protagonizadas pelo arguido, em síntese, consistiram, pela seguinte ordem, em:
1º - pelo menos dois empurrões;
2º - um terceiro empurrão que projetou a ofendida para cima da cama;
3º - imobilização da ofendida na cama pelo arguido, o qual lhe apertou o pescoço ao ponto de ela ter deixado de respirar durante alguns segundos;
4º - joelhada desferida pelo arguido no lado direito da cabeça da ofendida, na zona do ouvido.
O arguido entende que aquelas lesões não são compatíveis com as imputadas agressões.
Entendemos, porém, que não tem razão.
Na verdade, as lesões nos membros superiores e inferiores são compatíveis com a imobilização da ofendida, depois de esta ter sido projetada para cima da cama.
A lesão que se visualiza um pouco acima da zona da orelha é compatível com uma joelhada nessa zona, sofrida pela vítima quando se encontrava deitada e imobilizada pelo arguido na cama.
Tratam-se de fotos tiradas em 28 e 29 de julho de 2021, o que aponta no sentido de que retratam lesões sofridas pela vítima em julho desse ano, lesões essas que esta atribuiu a agressão do arguido, em contexto de discussão motivada pelas suspeitas de infidelidade dele.
A prova ou a não-prova de um facto não se alcança pela soma aritmética dos meios de prova produzidos num ou noutro sentido. Pode o tribunal convencer-se de um facto estribado em apenas um único meio de prova, mesmo que existam outros de sinal contrário, desde que o julgue concludente e motive a sua convicção, ainda que de forma sintética, de modo a que uma tal decisão possa ser sindicada.
Ora, o depoimento da vítima assume peso decisivo na tipologia de crime em causa nos autos, pois, como é sabido, os factos ocorrem amiúde longe dos olhares indiscretos e cujos agressores com frequência “têm duas caras” - a que exibem perante terceiros e a conduta que adotam sobretudo na privacidade do lar. E, se o tribunal se convenceu da veracidade do depoimento da vítima, ainda que parte da demais prova produzida seja de sinal contrário, desde que explique os motivos do seu convencimento, atentos os princípios da imediação e a da oralidade, torna-se difícil ao tribunal ad quem alterar o decido.
Dito isto, ouvida a gravação do depoimento da vítima BB, no que a este grupo de factos concerne, constatamos que ela os situa pouco depois de iniciarem a coabitação (que, segundo ela, ocorreu em finais de maio de 2021 – cfr. o segmento do seu depoimento gravado aos minutos 2:20/2:30). Note-se que a matéria relativa ao período de namoro e de coabitação não é objeto de discussão neste recurso. Por conseguinte, o seu depoimento é compatível com o período temporal descrito nos factos provados em relação a este episódio e mais ainda se concatenarmos com a data em que as fotografias de fls 45 foram tiradas.
Ademais, ela acabou por descrever os factos de forma compatível com o que se mostra plasmado na matéria de facto dada como provada (cfr., em particular, o segmento do seu depoimento gravado aos minutos 5:10/12:43).
O tribunal a quo, por seu turno, ante o relato efetuado pela vítima, entendeu que se tratou de «depoimento espontâneo, credível e objetivo e por vezes emocionado, não se limitando a corroborar toda a factualidade vertida na acusação».
Ouvida a gravação e tendo em conta o já explicitado, não temos qualquer objeção à forma como na sentença recorrida se atribuiu credibilidade a tal depoimento.
Para além disso, neste caso, não faz sentido a invocação do princípio in dubio pro reo.
Se assim fosse, sempre que a prova seja contraditória, a decisão quanto à matéria de facto teria de ser julgada em favor da posição do arguido.
É evidente que assim não pode ser, pois tal avaliação é necessariamente casuística e não é nesse plano que tal princípio tem cabimento.
Melhor explicitando.
Dispõe o artº 127º do CPP, que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
De facto, como é consabido, o princípio da livre convicção do julgador, em matéria de valoração da prova, para além de limitado pelo princípio da legalidade da prova, nos termos do qual «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (cfr. artgs. 125.º e 126.º, ambos do CPP), traduz naturalmente uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e do conhecimento científico, da qual resulta a objetivação da apreciação dos factos submetidos a julgamento.
Assim, para que um facto se dê como provado, com o benefício da oralidade e imediação, necessário é que o julgador se convença da sua veracidade para além de toda a dúvida razoável (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, polic., págs. 135 a 143).
Por outro lado, há que ter em consideração que «A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há que traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão» (citação do ac. do TC nº 464/97).
Tal princípio tem assim limites endógenos [por condicionarem o próprio processo de formação da convicção, atinentes ao grau de convicção requerido para a decisão, à proibição de meios de prova e à observância da presunção de inocência do arguido (artº 32º, nº 2, da CRP e artº 6, § 2º, da CEDH)] e exógenos [por condicionar o resultado da apreciação da prova, com referência à observância do princípio in dubio pro reo – finda a valoração da prova, a dúvida insanável deve favorecer a posição do arguido -, princípio que decorre do princípio da culpa e do Estado de Direito Democrático (consagrado logo no artº 2º da CRP), complementando o princípio da presunção de inocência do arguido].
Ora, se a versão dada como provada na sentença recorrida é uma das que razoavelmente é possível extrair da prova, não se tendo ultrapassado nenhum dos limites vindos de referir na livre convicção expressa pelo julgador, a mesma não merecerá qualquer censura.
O tribunal a quo não expressou a mínima dúvida acerca da sua convicção no que àquele grupo de factos diz respeito – e, aliás, nós também não -, pois entendeu serem concludentes os meios de prova em que estribou a sua convicção, razão pelo qual deu como provada a factualidade em causa.
É por esse motivo que não se chega a colocar a questão da violação da presunção de inocência do arguido AA, consagrado no artº 32º, nº 2, da CRP («A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido», Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, in Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª Ed. Revista, pág. 526, Universidade Católica Editora, fevereiro de 2017).
De facto, ante os elementos de prova considerados, a violação do princípio do in dubio pro reo só teria cabimento caso o tribunal a quo não tivesse conseguido ultrapassar a dúvida razoável acerca de determinado facto, julgando-o, não obstante tais dúvidas, em desfavor da posição do arguido.
Não é de todo o caso dos autos.
Em síntese, sendo a factualidade dada como provada uma das que razoavelmente é possível extrair da prova produzida – senão mesmo a mais razoável -, nos moldes em que vimos, não merece qualquer censura a avaliação que dela efetuou o tribunal a quo, segundo a sua livre convicção (artº 127º do CPP), não sendo de se sobrepor à livre convicção do julgador a opinião (aliás, legítima) do recorrente acerca dos meios de prova considerados na decisão sob recurso.
Improcede assim o recurso neste segmento.
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Entende ainda o recorrente que se verifica erro de julgamento quanto à factualidade dada como provada nos pontos 9º a 17º.
A factualidade plasmada nos pontos 7º a 16º dos factos provados é atinente ao episódio ocorrido a 04.11.2021.
Recordemos aqui a mesma (transcrição):
«7. O segundo episódio de agressões físicas ocorreu no dia 04.11.2021, no interior da sala da habitação onde residiam, em que no decurso de uma discussão entre ambos, AA agarrou BB pela cintura, com intenção de a projetar para o sofá.
8. Sendo que, nesse instante, BB agarrou-se ao arguido, provocando a queda de ambos para cima do referido sofá.
9. Após, AA levantou-se de imediato do sofá e retirou a sua camisola, tendo ficado em tronco nu, incentivando BB a um confronto físico entre ambos.
10. Nessa sequência, BB também se levantou do sofá, momento em que AA a rasteirou com a perna, fazendo-a cair no solo.
11. E, em ato contínuo, agarrou na cabeça de BB, batendo com a mesma, pelo menos por duas vezes, contra o chão.
12. Apenas cessando tal conduta quando, de forma a por termo às agressões de que estava a ser alvo, BB conseguiu levantar-se e pegar num dos seus sapatos de salto alto, atingindo o arguido com tal objeto na sua zona lombar.
13. Nesse momento, AA tornou-se ainda mais agressivo para com BB e, depois de a agarrar pelo pescoço, projetou-a contra a parede da sala, onde voltou a bateu fortemente com a cabeça desta por várias vezes.
14. Logo de seguida, AA agarrou novamente BB pelo pescoço com as suas mãos, apertando-o com força e asfixiando-a por momentos.
15. Posteriormente, o arguido projetou BB para o chão, dizendo-lhe: "JÁ VISTE O QUE ME FIZESTE FAZER, A CULPA É TUA!", tendo acabado por abandonar a mencionada habitação.
16. Em virtude de tais ocorrências, BB sofreu dores e ferimentos nas zonas atingidas, no entanto, não necessitou de receber tratamento hospitalar.»
Esta factualidade é compatível com o depoimento da vítima (cfr., em particular, o teor do seu depoimento gravado aos minutos 5:10/12:30), sendo credível se concatenarmos com o teor das fotografias de fls 44 [onde são visíveis as lesões na zona do pescoço da vítima e objetos caídos no chão, inclusive o sapato com que BB atingiu o arguido na zona lombar quando se conseguiu levantar (sapato esse visível numa das fotografias de fls 45)].
Ademais, tal depoimento é ainda compatível com o teor das s.m.s. trocadas entre arguido e vítima no dia 4.11.2021 (após os factos), constantes de fls 197 e 198.
Extrai-se desse meio de prova documental duas conclusões:
1º - A vítima foi de facto agredida, tendo ficado com lesões na cabeça e no braço, na sequência de o arguido ter batido com a cabeça dela no chão e na parede, além de que quase a sufocou;
2º - AA assim agiu porquanto não se queria justificar ante as suspeitas de infidelidade verbalizadas pela vítima, arguido que tinha estado ausente de casa dois dias sem dar notícias, conforme referiu BB no seu depoimento. Isto é, numa atitude muito misógina, o recorrente “desapareceu” de casa e entendeu que não devia quaisquer explicações, justificando a agressividade física pelo facto de ter sido incomodado, pois se «eu não queria falar não quero falar».
O tribunal a quo, a respeito do depoimento do arguido, aduziu o seguinte (transcrição):
«Quanto à demais factualidade, é certo que o arguido apenas admitiu apenas parte do episódio de 4.11.2021, referindo que a vítima queria falar com ele, motivo pelo qual não o deixou sair de casa quando este precisava de trabalhar. Mais referiu que tentou tirar a vítima da sua frente e que esta lhe puxou o capuz do casaco tento ambos caído no sofá. Novamente questionado sobre este facto referiu que afinal antes de caírem no sofá a vítima lhe deu com um salto alto nas costas, altura em que a agarrou pelos braços com forma e a encostou à parede. Nega ter atirado a vítima ao chão com rasteiras e nega ter batido com a cabeça da vítima contra o chão e contra a parede. Contudo, novamente questionado quanto a estes factos admitiu que abanou a vitima, pelos braços, para a frente e para trás enquanto a encostava contra a parede. A este respeito, salienta-se que – não obstante o arguido ter negado ter batido com a cabeça da vítima, ditam as mais elementares regras de experiência que quando alguém abana outrem, com força, contra uma parede, é quase impossível que com esses abanões a sua cabeça não bata contra a parede.
Nega ainda ter apertado pescoço da vítima, sendo que quanto ao facto desta cair ao chão, referiu que a mesma escorregou – inicialmente junto da casa de banho, numa segunda versão já na sala junto de um vaso – e que ainda a ajudou a levantar. Questionado para concretizar esta queda e os motivos da mesma, o arguido foi vago e impreciso.
Negando ter atirado a vítima ao chão, admitiu a expressão referida em 15., sendo que quando questionado sobre o que é que fez à vítima para lhe dirigir tal expressão, limitou-se a referir os empurrões e o encostar à parede. Ora, ditam os critérios normais da vida que empurrões recíprocos e um mero encostar à parede não determinam a necessidade de justificação, que advém da referida expressão.
Efetivamente, as declarações do arguido - para além das reservas que nos mereceram quer pelas contradições, quer pela forma vaga como foram prestadas e por parcialmente avessas às regras de experiencia - foram contraditadas por toda a demais prova produzida, em especial pelo depoimento de BB no que respeita à factualidade vertida nos pontos 4. a 6. e 7. a 16.»
Ouvida a gravação do depoimento do arguido e tendo presente o teor do depoimento da ofendida, concatenado com a prova documental referenciada, a convicção expressa na sentença recorrida não nos merece qualquer reserva.
O recorrente entende que é preciso ter cuidado com as regras da experiência comum, pois estas variam de casal para casal.
Na lição do Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.), regras da experiência comum, «são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.».
Neste caso, a linha dos acontecimentos segue um padrão muito comum nesta tipologia de crime: o elemento do sexo masculino não gosta de se explicar ante suspeitas de prevaricação ao nível do seu dever conjugal de fidelidade, pelo que, justificadamente agastado, torna-se violento.
Acresce que inexistem testemunhas com conhecimento direto dos factos, daí que os demais depoimentos testemunhais tomados não assumam grande relevância, inclusive o depoimento da testemunha CC, amigo da vítima.
Não se vê assim qual a razão deste depoimento ter sido sobrevalorizado pelo arguido na sua motivação recursória, tanto mais que é perfeitamente natural que a testemunha, ao recontar ao tribunal o que ouvira da ofendida, o não consiga reproduzir com fidelidade, na medida em que quem conta um conto acrescenta um ponto e dada a erosão que o tempo necessariamente provoca nos mecanismos da memória ao revisitar acontecimentos passados, neste caso, conversas tidas há cerca de 2 anos.
Improcede assim, também aqui, o recurso.
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Por fim, o arguido entende que também existe erro de julgamento quanto ao facto plasmado no ponto 17º dos factos provados.
Tal facto é o seguinte:
«17. Ao agir do modo supra descrito, o arguido quis maltratar fisicamente e psicologicamente a vítima, sua companheira, como efetivamente maltratou, atingindo-a na sua saúde e integridade física e psíquica, provocando-lhe dores e lesões físicas bem como pretendeu, com tais condutas, amedrontá-la, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física, humilhando-a na sua honra, consideração pessoal e amor-próprio, provocando-lhe sentimentos de desespero, impotência, ansiedade, nervosismo e tristeza, atentando contra a sua dignidade humana, tudo o que quis, conhecia e logrou».
AA não vê na ofendida os sinais típicos de vitimização desta tipologia de crime, não obstante as lesões retratadas nas fotografias de fls 44 e 45.
Parece até que ele próprio se vê como vítima.
O que não vê o arguido viu muito claramente o tribunal a quo, conforme expresso no seguinte segmento:
« No que concerne aos factos sob os pontos 17. a 19., e que traduzem o elemento subjetivo, o dolo, resultaram os mesmos provados com recurso às regras de experiência comum, as quais permitem inferir, mediante os factos objetivos dados como provados, a intenção subjetiva do arguido ao praticar tais factos, uma vez que se trata de uma presunção natural que quem agride a sua companheira, dentro de 4 paredes, coma violência dada como provada, não só tem conhecimento e vontade de praticar tais factos, como de a maltratar fisicamente e psicologicamente, provocando-lhe receio pela sua vida e integridade física, humilhando-a e atentando contra a sua dignidade humana.
Por outro lado, o arguido é uma pessoa de normal entendimento pelo que não podia deixar de entender os efeitos das suas condutas e de saber que elas eram e são proibidas e puníveis, mas mesmo assim decidiu atuar».
Tendo presente a matéria de facto provada constante dos pontos precedentes, esta decorre naturalmente daquela por apelo às ditas regras da experiência comum.
Quem assim age sobre a vítima, sendo pessoa de normal senso, atua animado do modo dado como provado, com a consciência do facto e com a intenção de o praticar, ciente de que as suas condutas são criminalmente puníveis.
Num contexto do normal acontecer, a intenção que preside a um comportamento deduz-se sempre deste, algo transversal a qualquer situação e que não é suscetível de variação.
Tal é assim válido para este (ex)casal como para qualquer outro.
A vítima, aliás, deu conta das repercussões que a conduta do arguido teve sobre si, não só do ponto de vista físico como psicológico, algo consentâneo com as regras da experiência comum para quem vivencia aquele tipo de eventos traumáticos.
Por conseguinte, também aqui falecem os fundamentos do recurso.
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d) Do erro notório na apreciação da prova:
O recorrente entende que existe erro notório na apreciação da prova, essencialmente por entender não ser compatível o relato efetuado pela vítima com a lesão na cabeça que se visualiza na foto de fls 45 (que, segundo ela, foi provocado por uma joelhada desferida pelo arguido nessa zona quando se encontrava imobilizada por ele em cima da cama).
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, «Fundamentos do recurso», o seguinte:
«1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»
Salientamos desde logo que, conforme já referido acima em II-c), o vício tem de resultar do texto da decisão recorrida, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer meios de prova existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.).
Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
Ademais, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. atualizada, pág. 1053, Universidade Católica, 2008, «O propósito do legislador era o de conter a sindicância do tribunal de recurso aos termos estritos da sentença recorrida, embora se admitisse que o texto da decisão recorrida pudesse ser interpretado à luz das regras de experiência comum. Por outro lado, este propósito era o mais consentâneo com a natureza do recurso como um remédio jurídico da sentença e não um reexame da causa. Por outro lado, este propósito assegurava o máximo respeito pelo princípio da imediação, evitando que o tribunal de recurso pudesse fundamentar a sindicância da decisão sobre a matéria de facto em elementos de prova.»
Verifica-se então o “erro notório na apreciação da prova” quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, o que sucede quando, por exemplo, se dá como provado um facto que notoriamente está errado, que não poderia ter acontecido ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira uma conclusão ilógica, arbitrária ou contraditória de um facto dado como provado (positivo ou negativo) contido no texto da sentença recorrida.
Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, não escapando ao homem com uma cultura média.
Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., pág. 341).
Ora, nada disto ocorre na sentença sub judice e muito menos com referência aos argumentos esgrimidos pelo recorrente a respeito da interpretação que faz dos documentos de fls 44 e 45, pois entendemos que as lesões ali retratadas são compatíveis com o relato dos acontecimentos efetuado pela ofendida, conforme supra se deixou expresso em II-c).
Improcede assim este argumento recursório.
#
e) Da qualificação jurídica dos factos dados como provados:
O arguido/recorrente entende ainda que a sua conduta se subsume à previsão legal do artº 143º, nº 1, do Código Penal.
Estariam então em causa dois crimes de ofensa à integridade física simples, crimes esses que, segundo o recorrente, assumiriam natureza particular, isto é, dependentes de queixa, constituição de assistente da ofendida e dedução de acusação particular por esta.
Por esse motivo, não tendo havido queixa nem acusação particular, entende que o processo não tinha condições de procedibilidade.
Será assim?
Estatui o artº 143º, nº 1, do Código Penal, que «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
A incriminação deste tipo de condutas visa a proteção penal da integridade física da pessoa humana, reportada essencialmente à integridade e à saúde corporal, podendo no entanto reportar-se também à integridade psíquica (e, ainda assim, desde que a conduta em causa não caia na previsão legal de outros tipos-legais) – cfr. Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbrincense do Código Penal, Tomo I, págs. 203 e 204.
Todavia, concordando com a qualificação jurídica que consta da acusação, o tribunal a quo condenou o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a) do Código Penal.
Dispõe o artº 152º, do Código Penal, com a alteração introduzida pela Lei nº 44/2018, de 09.08, em vigor à data dos factos ocorridos em julho de 2021, o seguinte:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou da vítima; ou
b) Difundir através da internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6. Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.»
Tal preceito foi alterado pela Lei nº 57/2021, de 16.08, passando agora a dispor do seguinte modo:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.»
A incriminação deste tipo de condutas visa a prevenção das frequentes formas de violência no âmbito da família, destinada em particular a preservar a integridade física e psíquica, a saúde e a dignidade do cônjuge (ou equiparado) ou de menor descendente enquanto pessoa humana (cfr. ac. do STJ de 30.10.2003, CJSTJ, XI, Tomo 3, pág. 208).
A necessidade da criminalização autónoma deste tipo de atos resultou, por um lado, do facto de muitos desses comportamentos não configurarem em si um crime de ofensa à integridade física e, por outro lado, da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social desses comportamentos (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs 329 e ss).
Como elementos objetivos do tipo exige-se:
- Uma especial relação do agente em relação ao ofendido (e nesse sentido é um crime específico);
- As condutas podem ser de vária ordem: 1) maus tratos físicos (crime específico próprio porquanto essas condutas já se traduzem num crime de ofensas à integridade física); 2) maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças, ainda que não configuradas como crimes de ameaça, etc); 3) ofensas de índole sexual ou privações da liberdade; 4) ou o agente impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios da vítima ou comuns;
- As condutas em causa poderão ser ou não ser reiteradas (não necessariamente habituais).
Em suma, tem de se afirmar que as condutas em apreço são suscetíveis de afetar a dignidade humana, sendo agravada se os factos ocorrerem no domicílio da vítima ou na presença de menores.
Já o tipo subjetivo exige o dolo, embora o seu conteúdo seja variável, consoante o comportamento do agente, pois este crime tanto pode ser de resultado como de mera conduta; tanto de dano como de perigo.
De qualquer das formas, é necessário existir por parte do agente o conhecimento da qualidade da vítima, enquanto sujeito passivo.
Explicados em traços gerais e de forma sumária os elementos objetivos e subjetivos do tipo e a razão da criminalização autónoma daquelas condutas, passemos a analisar o caso dos autos.
Em causa estão dois episódios de agressão física protagonizados pelo arguido sobre a vítima, que distam temporalmente entre si pouco mais de 3 meses, ambos em contexto de discussão por motivos relacionados com a alegada infidelidade daquele.
Essas agressões consistiram em empurrões, estrangulamento, manietação, joelhada na cabeça e várias pancadas na mesma.
Entendemos que naquele contexto relacional e dada a linha temporal dos acontecimentos, o tipo legal previsto no artº 143º, nº 1, do Código Penal, não abarca a totalidade do tipo de ilícito em questão.
Há uma correlação íntima entre os dois acontecimentos em causa nos autos, no contexto do relacionamento disfuncional existente entre arguido e vítima.
No caso dos autos até se poderia equacionar se – inexistindo o crime de violência doméstica – não estaríamos na presença de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artgs 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, al. a), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, al. b), todos do Código Penal, crimes esses de natureza pública, tal como o crime pelo qual o recorrente foi acusado e condenado na 1ª instância.
De todo o modo, tal como assim entendeu o tribunal a quo, salvo o devido respeito pela opinião do recorrente, entendemos que a sua conduta se integra na previsão legal do artº 152º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal.
Os factos ocorreram em contexto de discussão conjugal, em duas ocasiões distintas separadas por si por pouco mais de 3 meses, o arguido valeu-se da sua superioridade física para atingir de forma relevante a vítima na sua integridade física, apertando-lhe o pescoço (a ponto desta ter deixado de respirar momentaneamente) e provocando-lhe lesões nos membros inferiores e superiores e na cabeça, com as consequências retratadas nos pontos 16º e 17º da matéria de facto dada como provada, violando assim, naquele contexto relacional, na dimensão física e psíquica, a dignidade da vítima enquanto pessoa humana.
Improcede assim o recurso neste segmento, sendo então desnecessário apreciar os demais fundamentos recursórios aduzidos na perspetiva da pugnada requalificação jurídica dos factos, atinentes à questão da procedibilidade do procedimento criminal e à aplicação da Lei de Amnistia de 2023 [cujo perdão de pena é, aliás, inequivocamente excluído pelo artº 7º, nº 1, al. a) -ii)].
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f) Da medida da pena imposta e da imposição das penas acessórias:
O arguido entende que a pena imposta é excessiva.
O tribunal a quo fundamentou da seguinte forma a sua decisão (transcrição):
«A escolha e determinação da medida da pena obedecem às disposições dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal.
In casu, o crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos - artigo 152.º, n.º 2 do Código Penal.
O artigo 40.º, do Código Penal, estabelece a proteção de bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade como finalidades da aplicação de uma pena.
A medida da pena determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção no caso concreto (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).
As necessidades de prevenção geral quanto a este tipo de crime são prementes, uma vez que a violência doméstica é um crime gerador de forte alarme social, pela distorção que causa nas relações familiares e na paz da comunidade, com consequências graves e nefastas, físicas e psicológicas, para os envolvidos e famílias e com uma frequência estatística crescente, transversal às várias faixas etárias, com preocupante incidência nas relações de namoro entre pessoas muito jovens.
Já no que concerne às exigências de prevenção especial, tendo em conta o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, importa ponderar, no caso concreto:
- a circunstância do arguido ser totalmente dependente de terceiros e ter praticado os factos num clima de revolta e impotência pela situação física e de saúde em que se encontrava;
- a existência de antecedentes criminais contra a vítima;
- o dolo com que atuou;
- o período temporal em que os mesmos ocorreram, o qual se reportou a dois episódios;
- a ilicitude e o modus operandi, os quais são especialmente elevados atendendo às condutas dadas como provadas por referência às condutas passiveis de serem abrangidas por este tipo de ilícito, e bem assim a periodicidade em causa nos autos;
Efetivamente, perante todos os factos supra esgrimidos, verifica-se que as necessidades de prevenção não são acentuadas, pelo que em face dos fatores e das considerações descritos, entende-se ser adequada e suficiente a aplicação ao arguido de uma pena perto dos seus limites mínimos de 2 anos e 2 meses de prisão».
Vejamos.
Dispõe o artº 71º do Código Penal, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena», o seguinte:
«1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
Conforme salienta o Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág 227, «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» - cfr. ainda o disposto no artº 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Toda a pena deve ter assim como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como, desde logo, se depreende do art.º 13º Código Penal ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo.
De facto, aqui ao referirmo-nos a culpa fazemo-lo atendendo à personalidade do agente revelada no facto (neste sentido vide Figueiredo Dias in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 219). É, pois, correto afirmar que a culpa em sede de determinação da medida da pena se traduz numa atitude interna sempre atualizada no facto.
De acordo com a teoria da margem de liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, atualmente referidos de forma expressa no art.º 40º Código Penal (cfr. Claus Roxin Culpabilidade y Prevencion en Derecho Penal, tradução F. Munõz Conde, Bosch, 1981, pág. 94).
Por seu turno, a escolha do tipo de pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende fundamentalmente da culpa do agente.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de proteção dos bens jurídicos.
Em síntese, o ilícito deve ser valorado em função da gravidade do ataque ao objeto em particular, nomeadamente os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos - o efeito externo -, sem esquecer o próprio desvalor do comportamento delituoso.
Dito doutro modo, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhes subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.
Nessa conformidade, nos termos do nº 2, do artº 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal.
O crime em causa é punível com pena de 2 a 5 anos de prisão.
O tribunal a quo impôs uma pena que apenas se situa 2 meses acima do limite mínimo.
Ante os atos violentos perpetrados pelo arguido, se tal pena pecasse seria por defeito e nunca por excesso.
Parece-nos evidente que a referência ao facto de o arguido ser totalmente dependente de terceiros e a existência de antecedentes criminais contra a vítima se deve a manifesto lapso que nada tem a ver com os presentes autos. Na verdade, o arguido é primário e mostra-se socialmente inserido.
De todo o modo, parece-nos correta a avaliação que é feita na sentença recorrida quanto à ilicitude e grau de culpa do arguido (elevada), às necessidades de prevenção geral (elevadas) e especial (não acentuadas), pelas razões ali aduzidas e que aqui nos escusamos de repetir (naturalmente com exceção do segmento acima referenciado e que se encontra no texto da sentença recorrida por manifesto lapso).
Acresce que deve-se respeitar alguma margem de liberdade da decisão do tribunal a quo enquanto componente individual do ato de julgar, restringindo-se a intervenção corretiva do tribunal ad quem quando se constate que foram violados os princípios gerais e as operações consagradas na lei de escolha e/ou determinação concreta da pena, o que não é de todo o caso dos autos.
Nessa medida, é de manter a sentença recorrida nesta parte.
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Já vimos que o tribunal a quo também impôs ao arguido a:
- «pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRSP; e a
- pena acessória de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da residência da mesma, pelo período de 3 anos de prisão, sem fiscalização por meios técnicos de controlo à distância
Fê-lo estribado na fundamentação já acima transcrita e considerando também não só o grau de ilicitude e de culpa patenteado no comportamento do arguido (agiu com dolo direito, desferindo múltiplas agressões físicas na vítima, inclusive no pescoço e na cabeça) mas ainda as elevadas necessidades de prevenção geral associada a esta tipologia de crime, ao abrigo do disposto nos nº 4 do artº 152º do Código Penal.
A pena acessória é consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com a pena principal, mas com autonomia, razão pela qual a sua imposição depende da alegação e prova de pressupostos autónomos relacionados com a prática do crime e com a valoração de critérios gerais de determinação concreta das penas, a graduar, se for caso disso, dentro de uma moldura autónoma fixada na lei.
S.m.o., entendemos que a sentença sob recurso, também aqui, não nos merece qualquer reserva, pois aquelas penas acessórias têm cabimento legal e são adequadas ao caso dos autos – em face do grau de censurabilidade da conduta do arguido e das prementes necessidades de prevenção geral -, mesmo considerando que «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos» (cfr. o artº 30º, nº 4, da CRP e o artº 65º, nº 1, do Código Penal).
Improcede assim o recurso quanto a esta questão.
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g) Da quantia arbitrada a título de reparação:
O recorrente pugna pela sua absolvição do pagamento da quantia de €700 arbitrada pelo tribunal a quo ao abrigo do disposto nos artgs 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e 82.º-A, do CPP, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde aquela decisão e até integral e efetivo pagamento.
Resulta do supra exposto que a sentença recorrida será de manter quanto aos demais segmentos condenatórios expressos no seu dispositivo.
Como tal, não se coloca a hipótese legal do artº 403º, nº 3, do CPP, segundo o qual, «A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.»
Sucede que, nos termos do artº 400º, nº 2, do CPP, «Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.»
Ora, a alçada do tribunal da 1ª instância é de €5.000, conforme emerge do disposto no artº 44º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei da organização do Sistema Judiciário).
Assim, por identidade de razão, não sendo o valor arbitrado ao abrigo do disposto nos artgs 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 e 82.º-A, do CPP, nem superior ao valor da alçada do tribunal recorrido, nem o valor da sucumbência é superior a metade desse valor, logo se conclui que não será de conhecer do objeto do recurso nesta parte.
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto nos artgs 400º, nº 2, e 420º, nº 1, al. b), do CPP, não se conhece do recurso nesta parte.
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III – Das custas
Dispõe o artº 513º do CPP o seguinte:
«1. Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2. O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3. A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4. (…)».
Assim, tendo o arguido decaído totalmente no presente recurso, deverá ser condenado no pagamento de taxa de justiça nos termos do artº 8º, nº 9, do RCP e Tabela III a ele anexa.
Nessa conformidade, uma vez que as questões suscitadas não são especialmente complexas, mas tomando em consideração a impugnação da matéria de facto, variando a taxa de justiça entre 3 e 6 UC, entendemos adequado fixá-la em 3,5 UC.
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DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se nos seus precisos termos a sentença recorrida.
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Custas pelo arguido/recorrente, com 3,5 UC (três Ucs e meia) de taxa de justiça (cfr. o artº 513º, nºs 1 e 3, do CPP, e o artº 8º, nº 9, do RCP, em conjugação com a tabela III anexa).
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Registe e notifique (artº 425º, nºs 3 e 6, do CPP).
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Lisboa, 22 de fevereiro de 2024.
Os Juízes Desembargadores,
José Castro
Amélia Carolina Marques Dias Teixeira
Jorge Manuel da Silva Rosas de Castro