Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2613/20.5T8CSC.L1-2
Relator: JOSÉ MANUEL MONTEIRO CORREIA
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
DIREITOS INDISPONÍVEIS
SEPARAÇÃO DE FACTO
EFEITOS DO DIVÓRCIO
RETROAÇÃO DOS EFEITOS DO DIVÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.- A ação de divórcio versa sobre direitos indisponíveis, pelo que um facto alegado na petição inicial e admitido na contestação não permite, atento o estatuído nos art.ºs 289.º, n.º 1 e 574.º, n.º 2 do CPC, a sua consideração como provado com base em confissão ou em acordo das partes.
2.- A separação de facto que fundamenta o divórcio sem consentimento pressupõe a verificação de três requisitos: (i) a inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges; (ii) o perdurar de tal situação por período de tempo superior a um ano consecutivo; e (iii) a vontade de um dos cônjuges ou de ambos de, nesse período, não restabelecer a vida em comum.
3.- O requisito da inexistência de comunhão de vida traduz um estado de ausência de vida conjugal, em que não há partilha de vida, de experiências e de responsabilidades e em que o casamento, ainda que se mantenha formalmente, já não é sentido, assumido e vivenciado pelos cônjuges, não se reconhecendo ao outro o ser parte na sua vida.
4.- O facto de um dos cônjuges não pernoitar no quarto do casal e fazê-lo noutro compartimento da casa do casal não integra, por si só, separação de facto, já que pode ter como causa múltiplos fatores (v.g. questões relacionadas com o exercício da profissão, crise conjugal, ou mesmo simples opção) não confundíveis com o afastamento ou a rutura inerentes ao estado de separado de facto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: .- Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados,

I.- Relatório
instaurou a presente ação de divórcio sem consentimento contra …, pedindo que, pela sua procedência, fosse decretado o divórcio sem consentimento de ambos entre si, com efeitos a retroagir a … de 2019.
Para tanto, e em síntese, alegou que Autora e Réu casaram entre si, sem convenção antenupcial, em …, sendo que, desse casamento, nasceram os filhos … e …, respetivamente, em … e em …
O Réu, em 2011, isolou, à sua revelia, uma das divisões da casa de morada de família, proibindo o acesso à mesma de qualquer pessoa que não ele, na qual passou grande parte do dia e da noite, ausente do convívio com a família.
Em 2017 passou a dormir nessa divisão, sendo que as férias e os fins de semana eram passados em separado, com a Autora e os filhos de um lado e o Réu noutro lado, mantendo este em paralelo uma vida desconhecida. 
Permanecia, também, fora de casa muito tempo, sem dar à Autora conta de com quem e onde se encontrava, sendo que, durantes as férias escolares, fins de semana e até durante os dias da semana, não fazia esforço para participar na vida dos filhos.
Em janeiro de 2019, cessou a atividade profissional na empresa onde trabalhava, tendo recebido uma indemnização por ter trabalhado mais de 25 anos ao serviço da empresa, mas, questionado por si para informar do paradeiro da indemnização, referiu-lhe que o dinheiro era dele e que não tinha de dar contas do mesmo.
Entretanto, em 2013, constituíra uma sociedade unipessoal, mas desse facto só teve conhecimento fortuito em 2019 através do Réu, o qual, porém, não lhe transmitiu quaisquer pormenores relacionados com a sua atividade.
Em abril de 2019, o Réu comunicou-lhe que conhecera uma outra pessoa por quem se apaixonara, solicitando-lhe uma declaração escrita que confirmasse a fase adiantada da separação do casal, para ser apresentada a tal pessoa.
Desde então, e embora continuando a residir com os filhos na casa de morada de família, decidiram ambos fazer vidas separadas, pelo que, a partir de abril/maio de 2019, cada um passou a dormir no seu quarto, cozinhando a Autora para si e para os filhos e o Réu para ele.
A partir de então, também decidiram consultar, cada um deles, o seu advogado a fim de diligenciarem pela obtenção do divórcio e tratar das questões relacionadas com ele, começando a relação entre ambos a ficar tensa e sem diálogo.
No verão de 2019, o Réu comprometeu-se a sair de casa e passar a residir noutro local, mas não o fez, o que a levou a, em novembro de 2019, deixar a moradia onde viviam e a acolher-se, com os filhos, em casa de pessoa amiga.
Desde novembro de 2019, o Réu via esporadicamente os filhos e não organizava convívios com eles, sendo que, em 24 de maio de 2020, quando a Autora e os filhos se deslocaram à casa de família para recuperarem pertences de todos, depararam-se com o facto de a fechadura da porta principal ter sido substituída e, apesar de o Réu se encontrar em casa, não lhes abriu a porta, escudando-se em motivos de segurança decorrentes da pandemia.
O Réu jamais falou consigo ou pretendeu indagar sobre a sua situação habitacional depois de a mesma ter deixado de residir na casa de morada de família e nunca lhe forneceu qualquer informação sobre questões atinentes ao património comum, sendo que, relativamente ao IRS de 2019, fez a entrega da declaração correspondente como “separado de facto”.
Conclui, em face do exposto, haver fundamento para o divórcio sem consentimento, nos termos do disposto no art.º 1781.º, alínea c) do Código Civil, com retroação dos seus efeitos, nos termos do art.º 1789.º, n.º 2 do mesmo código, à data da separação de facto, que deveria ser fixada em 30 de abril de 2019, data que acordaram levar as suas vidas separadas, apesar de residirem na mesma casa.
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Realizada e frustrada a tentativa de conciliação entre Autora e Réu, apresentou este, notificado para o efeito, a sua contestação, concluindo por que fosse fixada a data da separação de facto em conformidade com o nela alegado e, consequentemente, decretado o divórcio de ambos entre si, retroagindo os efeitos patrimoniais do mesmo à data da separação de facto.
Assim, começou por negar que tivesse alterado o seu comportamento a partir de 2011 e por justificar a razão pela qual decidiu fazer de uma das divisões da casa de morada de família o seu escritório.
Acrescentou que, a partir daquele ano, foi a Autora quem começou a afastar-se cada vez mais de si, adotando posturas e comportamentos no sentido do seu afastamento dos filhos e criando conflitos à noite que, prejudicando o sono de ambos, fez com que decidisse passar a dormir, transitoriamente, noutra divisão, acabando a Autora por determinar que essa situação se tornasse definitiva.
Negou, também, que fizesse uma vida paralela e que não prestasse à Autora informações sobre o património comum de ambos, sendo que, em abril de 2019, já ambos estavam numa situação de separação de facto, não fazendo vida comum sob todas as vertentes da vida conjugal, apesar de residirem na mesma casa.
Em novembro de 2019, a Autora abandonou a casa de morada de família para residir com outra pessoa, como marido e mulher, sendo que, antes de o fazer, já passava vários fins de semana fora, sem o justificar.
Negando qualquer conduta de afastamento dos filhos e impugnando os demais factos que, na petição inicial lhe foram imputados pela Autora, concluiu que desde, pelo menos, 2017 e, portanto, muito antes de 2019, havia separação de facto entre o casal, o que basta para que, nos termos do art.º 1781.º, alínea a) do Código Civil seja decretado o divórcio e, fixando-se a data da separação, se determine a retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio à data correspondente.
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Realizada a audiência prévia, foi proferido:
.- despacho a fixar em €30.000,01 o valor da causa;
.- despacho saneador tabelar; e
.- despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, o que não mereceu reclamação das partes.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando procedente a ação e, consequentemente:
i.- decretando o divórcio entre a Autora e o Réu e declarando dissolvido o casamento e cessadas as relações pessoais de ambos entre si;
ii.- fixando, para os efeitos previstos no art.º 1789.º, n.º 2 do Código Civil, como início da separação de facto entre os cônjuges, o dia 30 de abril de 2017, retroagindo os efeitos patrimoniais do divórcio a essa data.
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Inconformado com esta decisão, dela veio a Autora interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões, que assim se transcrevem:

“1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença de fls., de 19.11.2022, que fixou a data da separação de facto entre os cônjuges no dia 30 de Abril de 2017 quando, na realidade, deve ser fixada no dia 30 de Abril de 2019, retroagindo os efeitos patrimoniais do divórcio a essa data.
2. A sentença recorrida refere que a Autora “num volte-face, totalmente inesperado” veio no decorrer do julgamento alterar a versão de que a separação de facto ocorreu em 2017 e não em 2019 “porquanto, pensa que o marido, aqui R., teria antes desse ano recebido uma indemnização por parte da sua Entidade Empregadora, indemnização essa que a aqui A., pretende que seja incluída nos bens comuns a partilhar”, concluindo estarmos perante “uma verdadeira situação de “venire contra factum proprium” da Autora.
3. Sucede que, salvo o devido respeito, não se aceitam tais conclusões do Tribunal a quo, por totalmente infundadas e, até, tendenciosas, pois que, basta atentar no pedido da Petição Inicial para concluir que a Autora pediu que o Tribunal decretasse o divórcio com efeitos a retroagir a 30 de Abril de 2019 (e não 2017), precisamente por ser essa a data em que ocorreu a separação de facto entre os cônjuges.
4. A Autora sempre alegou que a separação de facto ocorreu em Abril de 2019, tendo as partes passado a fazer vidas separadas não obstante continuarem a viver na mesma casa até Novembro desse ano (cfr. artigos 34.º e 36.º da PI), portanto, não houve nenhum volte-face por parte da Autora.
5. Aliás, mal se compreende a postura da Meritíssima Juiz na audiência de 6 de Outubro de 2022 (gravação 20221006135436_4386882_2871339 – minuto 3:17 a 3:32), quando afirma que tem muitas dificuldades em entender que não há acordo das Partes relativamente à data da separação de facto, quando foi precisamente a Meritíssima Juiz que, anteriormente, inseriu nos temas da prova: “1 - Data em que deixaram de fazer vida conjugal” e foi a Meritíssima Juiz que, anteriormente, afirmou que “temos na PI e na Contestação invocação de datas diferentes” (sublinhado nosso) - (audiência de 6 de Abril de 2022 - cfr. Gravação 20211125154727_4386882_2871339 – minuto 5:11 a 5:25).
6. Ora, esta parcialidade da Meritíssima Juiz resultou numa decisão tendenciosa contra a Autora, arbitrária e sem qualquer abrigo na prova constante dos autos, pelo que, cumpre corrigi-la.
7. Em primeiro lugar, quanto ao facto de o Réu dormir no escritório, sempre se diga que tal já ocorria antes de 2017, conforme o próprio indica no artigo 23.º da Contestação que decidiu passar a dormir, transitoriamente, noutra divisão, não retirando que a partir daí se deu a ruptura definitiva do casal ou que nunca mais dormiu com a Autora, além das declarações do Réu (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 1:58 a 2:19), em que afirma que deixou o quarto definitivamente em Abril de 2017 mas “já tinha vindo bastante de trás” não dormir no quarto.
8. Não obstante, o Réu admite que nunca retirou os seus pertences do quarto do casal, nele mantendo toda a sua roupa e continuando a usar a casa de banho do casal (cfr. ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 2:20 a 2:33).
9. Se fosse verdade que a Autora e o Réu já não partilhavam vida íntima, o normal seria que o Réu usasse outra casa de banho da casa.
10. Não é plausível nem correspondente com a realidade da vida de um casal separado que o marido se vá vestir ao quarto de casal e use a casa de banho do casal se já não estiverem com vida conjunta e se não houver intimidade.
11. Decorre das declarações da Autora que mantinham relações sexuais no quarto do casal (ficheiro 20221006141620_4386882_2871339, minuto 2:46 a 3:25), facto que o Réu não desmentiu em sede de declarações no julgamento.
12. A testemunha …, amiga do casal, esclareceu que o Réu ficava no escritório até muito tarde, o que causava transtorno ao sono do casal e, portanto, acordaram dormir separados, mas que, não obstante, mantinham relações sexuais (ficheiro 20221006135916_4386882_2871339, minuto 10:50 a 11:35) - depoimento que não foi valorado pelo Tribunal a quo por se tratar de “depoimento indirecto”.
13. Igualmente, entendeu o Tribunal a quo não valorar o depoimento da mãe da Autora, questionando: “Como poderia a mãe da A. saber se a filha e o marido desta tinham, ou não, sexo (…)?”
14. Vejamos, segundo as regras da experiência normal e comum, esta factualidade não é susceptível de observação/constatação por terceiros, sendo a prova indirecta, ou com base em raciocínio decorrente de presunção, a única prova que por regra tem lugar no tocante a factos do foro íntimo.
15. Na verdade, considerando que a Autora e o Réu já haviam no passado mantido relações sexuais (têm filhos, são casados e partilham a mesma habitação), iam de férias juntos e ficavam no mesmo quarto, o Réu mantinha a sua roupa no quarto do casal e usava a casa de banho do casal, então e segundo as regras/máximas da normalidade e da experiência (segundo um valor cognitivo de probabilidade racional, considerando o que frequentemente acontece e é apreensível pelo homem médio), nada justifica não colocar na matéria de facto provada a existência de relações sexuais entre a Autora e o Réu.
16. Do exposto, é forçoso concluir pela alteração dos pontos 4.º e 5.º da matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos:
4.º - Já anteriormente a 2017 o Réu pernoitava algumas noites fora do quarto do casal, 5.º - A partir de 2017 o Réu passou a dormir noutro quarto com mais frequência, continuando, contudo, a usar o quarto do casal, mantendo ali os seus pertences pessoais, usando a casa de banho do casal e mantendo relações sexuais com a Autora, nomeadamente, no quarto de casal.
17. Em segundo lugar, cumpre sublinhar, desde já, que existe uma incompatibilidade gritante entre o facto provado 3 (em 2011 o casal passou a desencontrar as refeições) e o facto provado 6 (em 2017 o casal deixou de fazer as refeições em conjunto) da matéria de facto assente, que cumpre corrigir.
18. O Réu admite, no artigo 12.º da Contestação, que ficava a trabalhar em casa para o seu empregador e não partilhava as refeições com a família, confirmando o alegado pela Autora no artigo 6.º da Petição Inicial de que o Réu passava os seus dias concentrado na sua actividade profissional sem respeitar os horários das refeições em família.
19. Na verdade, conforme esclareceu a Autora em julgamento, o Réu chegava muitas vezes tarde a casa e, portanto, não partilhava as refeições com a família (ficheiro 20221006141620_4386882_2871339, minuto 3:24 a 4:01).
20. Facto corroborado pelo Réu, ao afirmar que eram mais as vezes em que não partilhavam refeições, em parte por causa da sua profissão, que terminava o trabalho tarde e que normalmente as refeições eram desencontradas (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 11:41 a 11:28).
21. Instado a esclarecer se tinha alterado a forma de fazer as refeições em 2017, o Réu declarou “um pouco antes, mas acentuou-se bastante”, ou seja, não houve uma alteração determinante de comportamento em 2017, começou antes e “acentuou-se”, não tendo o Réu declarado que em 2017 deixou de fazer refeições em família tout court, foi gradual e começou antes dessa data (ficheiro (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 15:58 a 16:09, minuto 17:43 a 18:02).
22. A testemunha …, mãe da Autora, esclareceu que ficava em casa da Autora e do Réu para dar comida aos netos, cerca de 2 a 3 vezes por semana, desde a hora do almoço até às 19h00, chegando a ficar até às 22h00/23h00, convivendo com todos os membros da família (ficheiro 20221006152805_4386882_2871339, minuto 1.51 a 3:40), afirmando que o genro “estava sempre trancado no quarto, era raro aparecer na cozinha, com os miúdos” e que “tinha sido sempre assim” (ficheiro 20221006152805_4386882_2871339 minuto 4:04 a 5:32), acrescentando que o Réu poucas vezes jantava com a família, pois estava trancado no quarto a trabalhar (ficheiro 20221006152805_4386882_2871339 minuto 4:41 a 4:58).
23. Vejamos, ao contrário de alguns casais que fazem sempre as refeições em comum, existem outros casais que não têm esse hábito e, no caso concreto, o Réu raramente partilhava as refeições em família já desde 2011 (em parte por questões profissionais), não tendo deixado de o fazer simplesmente no ano de 2017, era já um hábito nesta família e essa especificidade deve naturalmente ser tida em conta no caso em apreço pois, se tivessem como regra fazer sempre refeições em conjunto e depois deixassem de o fazer, seria uma leitura, agora não fazendo com regularidade há tanto tempo, naturalmente a leitura e a interpretação desses elementos deve ser lida e interpretada de outra forma.
24. Em terceiro lugar, quanto aos convívios na casa de morada da família e os eventos sociais, resultou provado da prova produzida que só cessaram em 2019.
25. A testemunha … referiu que num almoço em casa da Autora e do Réu, em Maio de 2019, lhes comunicaram que se iam divorciar. Afirmou que a passagem de ano de 2018/2019 foi passada em casa da Autora e do Réu. Referiu ainda que em Fevereiro de 2019 foram à praia de … fazer um almoço de amigos, com todos. Referiu que em Abril de 2019 foram ao aniversário da … (… da Autora e do Réu) em casa destes. Instada pelo mandatário da Autora a explicar como era a relação do casal antes de 2019, a testemunha referiu que nos últimos anos, antes de 2019, via-os como um casal normal com filhos. Referiu que passaram todas as passagens de ano juntos (nos 4 ou 5 anos antes de 2019).
Referiu ainda que foram passar uns dias a um turismo rural e a Autora e o Réu ficaram no mesmo quarto (ficheiro 20221006135916_4386882_2871339, minuto 2:45 a 5:03).
26. A testemunha referiu que “Para mim estava tudo bem entre eles. (…). Nunca soube que houvesse alguma questão assim mais relevante de separação.” (ficheiro 20221006135916_4386882_2871339, minuto 6:35 a 6:57), acrescentando que estavam sempre juntos nos aniversários, além disso organizavam convívios juntos quase mensalmente e a Autora e o Réu estavam sempre juntos (ficheiro 20221006135916_4386882_2871339, minuto 5:03 a 5:57), acrescentando que a primeira altura em que a Autora e o Réu deixaram de comparecer como casal foi a 15 de Julho de 2019 quando fizeram um passeio aos … (ficheiro 20221006135916_4386882_2871339, minuto 7:35 a 8:17).
27. A testemunha do Réu …, amigo do casal, questionado pelo mandatário do Réu se eram visitas de casa do casal afirmou que sim, nos aniversários e noutros eventos, passagens de anos, férias, passeios, tendo mesmo afirmado “eram das pessoas com quem eu mais convivia” (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 2:47 a 3:10).
28. A testemunha afirmou que era frequente irem aos aniversários dos adultos e das crianças, que passavam as passagens de ano juntos e que a “desse último ano” de 2018/2019 foi em casa da Autora e do Réu. Corroborou que na viagem aos … (Julho de 2019) “o … já não foi” (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 15:12 a 17:50).
29. A Autora esclareceu que os Natais eram passados em casa dos seus pais e sogros, a Páscoa era dividida num almoço em casa dos seus pais e jantar em casa dos sogros, passagens de ano era com amigos, a última foi em casa deles, passaram 3 passagens de ano em casa do …, e 3 passagens de ano fora (ficheiro 20221006141620_4386882_2871339, minuto 15:57 a 17:22).
30. Questionado pela Meritíssima Juiz se a partir de Abril de 2017 faziam vida social juntos ou se cada um fazia a sua vida, o Réu afirmou “metade, metade”, admitindo, portanto, que tinha vida social junto com a Autora (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 3:06 a 3:32).
31. O Réu corroborou que os Natais eram passados em conjunto, os 4, enquanto família. Tendo referido que era comum a Páscoa e o Carnaval serem separados porque a Autora ia para … ter com os pais. Confirmou que as passagens de ano eram passadas juntos com os filhos e amigos (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 13:35 a 14:56).
32. A testemunha …, …da Autora, esclareceu que convivia proximamente com o casal e refere que estiveram todos juntos em festas de aniversário em Janeiro e Fevereiro de 2019 e no Natal de 2018. Disse que foi na Páscoa de 2019 que a Autora lhe comunicou que o Réu tinha conhecido alguém num retiro e que se iam separar. Esclareceu ainda que em 2017, 2018 “era tudo normal, convívio normalíssimo”, só a partir de 2019 é que deixou de ter fotografias em conjunto com o cunhado e que houve uma separação (ficheiro 20221006151252_4386882_2871339, minuto 0:52 a 3:57).
33. A testemunha …, … do Réu, referiu que em 2017 ou 2018 estiveram todos juntos na festa de aniversário da … e que em Dezembro de 2018 estiveram todos juntos na festa de aniversário dos … (ficheiro 20221011145755_4386882_2871339 minuto 11:00 a 11:56), ora, isto demonstra que o casal fazia vida familiar em conjunto, caso contrário a Autora não teria ido ao aniversário do sogro, o Réu teria ido sozinho ou com os filhos.
34. Daqui resulta inequívoco que a Autora e o Réu não passavam apenas Natais juntos por causa dos filhos, faziam toda a vida social em conjunto, desde festas de aniversário, a festividades várias, como passagens de ano (que organizavam em casa do casal, nomeadamente a de 2018/2019), além de que eram vistos por amigos e família como um casal normal.
35. Em quarto lugar, relativamente às férias do casal, resultou da prova produzida em audiência que só deixaram de o fazer a partir de 2019.
36. Todos os anos o casal fazia férias em conjunto, não obstante gozarem alguns períodos de férias em separado e tal como na análise das refeições, também neste aspecto temos que olhar para o detalhe da relação deste casal, e a verdade é que o casal sempre ou pelo menos há muito que organizava a suas férias desta forma.
37. A Autora esclareceu que em 2017 foi de férias com o Réu e com os filhos a … durante …, em 2018 a família foi toda de férias para … em casa dos sogros e passaram férias na sua própria casa. Referiu ainda que ou em 2017 ou em 2018 tinham ido todos a … tendo ficado hospedados em casa dos … (ficheiro 20221006141620_4386882_2871339, minuto 17:56 a 19:51).
38. O Réu esclareceu que a Autora passava férias com os filhos em … e que, cada vez mais, progressivamente, já não participava dessas férias.
39.- Refere ainda que já antes de 2017 ia muito pouco a … porque tinha muitos conflitos com os …, esclarece que deixou de ir definitivamente a partir de 2017 porque na Páscoa ou no Carnaval foi uns 3 dias e “correu mal”, pelo que deixou de ir. Refere, contudo, que em 2017 e 2018 fez férias em casal com a Autora (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 6: 40 a 8:00).
39. Ou seja, resulta claro das declarações do Réu que não deixou de ir de férias para … por estar separado da Autora, mas sim porque se desentendia com os sogros (o que acontece também com casais não separados).
40. A testemunha … esclareceu que passou alguns períodos de férias com o casal e que o Réu lhe contou que se começou a sentir “não bem vindo” na casa do … (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 22:24 a 24:10), o que confirma que o Réu tomou a opção de não ir de férias para … por não se sentir lá bem por conflitos com os sogros, e não porque estivesse a fazer vida separada da Autora.
41. Face ao exposto, impõe-se a alteração dos pontos 6.º, 7.º e 9.º da matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos:
6.º - A. e R. deixaram, em 2019, de fazer vida juntos, nomeadamente convívios na casa de morada de família, bem como grande parte dos eventos sociais e das férias em conjunto;
7.º - Até 2019 o R. ia aos eventos de carácter familiar e social, a que também ia a A., os seus filhos, outros familiares e alguns amigos, com excepção dos que se realizavam na casa dos sogros em …;
9.º - Os períodos que o R. passou de férias com a A. em casal e com os filhos, foi principalmente, mas não exclusivamente, por causa destes;
42. Em quinto lugar, quanto às férias, o Réu afirmou que tinha passado férias com os seus pais na casa de férias destes, sem a Autora e sem os filhos (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339 minuto 8:37 a 8:59).
43. Ora, se a Autora e o Réu estivessem efectivamente separados, o normal seria então que o Réu fosse de férias com os seus pais e os filhos e/ou só com os filhos, contudo, o que acontecia era que não levava os filhos, porque simplesmente pretendia estar só com os seus pais, tal como a Autora também ia para … sem o Réu e daqui não decorre que estivessem separados.
44. A verdade é que o Réu gozava poucos dias de férias por ano, e além das férias que passava com os pais, ia todos os anos de férias com a Autora e os filhos, em conjunto (10 dias em 2018, conforme acima referido), até 2019, conforme admitiu e acima referido.
45. Donde, é forçoso concluir pela alteração do ponto 8.º da matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos:
8.º - O R. passou períodos de férias com a A. e os filhos até 2019, e períodos de férias sozinho com os pais;
46. Em sexto lugar, resulta da carta escrita pelo Réu à Autora em 2015 (doc. 1 junto com a PI) que perspectivava que seria melhor uma separação do casal.
47. Ou seja, não foi apenas em 2017 que o Réu escreveu uma carta à Autora em que lhe transmitia que o melhor caminho para o casal seria a separação, já o havia feito em 2015.
48. Ora, esta questão é relevante na medida em que, o Tribunal a quo, ao omitir que já em 2015 o Réu havia indicado à Autora que deviam seguir caminhos separados, mas referindo que o fez em 2017, dá a entender que foi em 2017 que o Réu tomou a decisão de se divorciar, sendo assim, mais fácil sustentar a tese que deu origem à decisão final, a de que a separação de facto do casal ocorreu em Abril de 2017.
49. A corroborar estes factos, atente-se nas declarações do Réu, quando questionado pela Meritíssima Juiz se havia pedido o divórcio antes de 2017, esclareceu que pediu em 2015 e em 2017, acrescentando que: “convidei-a muita vez para fazermos sessões de terapia familiar” (ficheiro 20221006144204_4386882_2871339, minuto 15:58 a 16:12).
50. Donde, é forçoso concluir pela alteração do ponto 10.º da matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos:
10.º - O R., em 2015 e em 2017, dirigiu cartas à A. em que refere que na sua opinião se devem separar;
51. Em sétimo lugar, esclareça-se que, após o anúncio aos amigos de que se iam separar, o Réu e a Autora deixaram de fazer vida social juntos, nomeadamente, deixaram de comparecer juntos em festas de aniversário, Natais, passagens de ano ou almoços e saídas com os amigos, com excepção do aniversário da amiga … em que ainda compareceram juntos – veja-se o depoimento da testemunha … (ficheiro 20221006135916_4386882_2871339, minuto 6:58 a 7:35) e da testemunha do Réu … (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 17:20 a 17:52).
52. Não foi produzida qualquer prova no sentido de que o Réu e a Autora, após o anúncio da separação em Maio de 2019, tenham comparecido juntos em eventos familiares e sociais, além do aniversário acima referido.
53. Donde, é forçoso concluir pela alteração do ponto 12.º da matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos:
12.º - Depois desse anúncio, A. e R. não mais compareceram juntos em eventos sociais e familiares, com excepção do aniversário da amiga … em Junho;
54. Em oitavo lugar, resulta à saciedade da prova produzida que a separação do casal só ocorreu em 2019.
55. A testemunha … do Réu, afirmou que já antes de 2017 não eram propriamente um casal com uma relação afectuosa, carinhosa (ficheiro 20221011145755_4386882_2871339, minuto 4:49 a 5:17) e que desde o nascimento da filha … o relacionamento entre o casal tinha mudado, que não havia uma relação carinhosa, esclarecendo, sem dúvidas, que esta situação era anterior a 2017, “já vem de muito atrás” (ficheiro 20221011145755_4386882_2871339, minuto 07:20 a 08:02).
56. A testemunha … esclareceu que já desde 2015 havia queixas, mas “os casamentos também não são feitos só de cor-de-rosa, há anos melhores, anos piores e portanto, os casais também enfrentam crises. (…) Com momentos difíceis, mas continuavam juntos.” (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 3:19 a 5:15) e afirmou que no dia-a-dia houve também um afastamento progressivo do casal, nas refeições, nas actividades do dia-a-dia, nas ocupações dos tempos livres, esclarecendo, temporalmente, que já em 2016 havia afastamento (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 12:08 a 12:59).
57. Esclareceu, contudo, que os via como um casal normal, “havia esse afastamento” mas “nunca assistimos a uma discussão, não havia acrimónia no relacionamento entre eles” (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 19:15 a 19:30), acrescentando ainda que “há pessoas mais carinhosas, mais dadas ao toque e ao beijo, outras menos, (…) não consigo é apontar eles viviam agarrados um ao outro e de repente deixaram-se, não foi isso que aconteceu” (ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto 20:00 a 10:16).
58. Ou seja, não obstante períodos de afastamento, a Autora e o Réu mantiveram um relacionamento de casal, com vida em comum, até Abril de 2019, altura em que decidiram divorciar-se, e passaram a fazer vidas completamente separadas, partilhando apenas o mesmo tecto até Novembro desse ano.
59. Da prova testemunhal produzida em julgamento, resulta provado que o casamento da Autora e do Réu teve, como a maioria dos casamentos, momentos de altos e baixos e fragilidades como todos os relacionamentos amorosos.
60. A Autora e o Réu formavam, nalguns aspectos, um casal atípico, na medida em que, contrariamente à maioria dos casais, não tinham por hábito partilhar todas as refeições e todos os períodos de férias em conjunto.
61. Durante a constância do matrimónio, o casal enfrentou algumas crises, como é normal nos casamentos (conforme atestam, por exemplo, as cartas acima referidas), tendo havido fases de algum afastamento dos membros do casal (como referiram as testemunhas), mas que culminou numa separação apenas em Abril de 2019, pois até essa data, sempre mantiveram comunhão de vida ( v.g. de amizade, convívio social, partilha, mesa e leito - ainda que de quando em vez -, habitação, férias e eventos sociais e familiares).
62. Em face do quadro fáctico acabado de expor, parece-nos, com o devido respeito, que a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, no sentido de que no caso em apreço existe uma separação de facto desde Abril de 2017, mostra-se de alguma forma assente em factualidade insuficiente e escassa, pois que, a circunstância de o casal não partilhar o leito todos os dias e fazerem alguns dias de férias separados (já antes de 2017), tal não quer dizer, necessariamente, que tenham cortado entre ambos a ligação de casal.
63. Registe-se ainda que o Tribunal a quo não levou em conta que o casal apresentou declaração de IRS conjunto até 2018, sendo que só na declaração referente a 2019 é que o Réu se identificou como “separado de facto” (cfr. artigos 98.º a 110.º da Petição Inicial).
64. Este comportamento do Réu reforça que até 2019 tinha vida de casal com a Autora, em conjugação com todos os restantes elementos de prova.
65. Outra prova que o Tribunal a quo não levou em conta foi o doc. 8 junto com a Petição Inicial, que consiste numa carta dirigida ao Banco … assinada pela Autora e pelo Réu, datada de 30 de Julho de 2019, a pedir separação de créditos dos prédios propriedade do casal, informando o banco que estavam num processo de divórcio.
66. Ou seja, foi só em 2019 que o casal começou a projectar a separação do património e a declarar rendimentos separados.
67. Sublinhe-se que o Réu não apresentou provas credíveis, nem sustentadas, de que a separação do casal tenha ocorrido em 2017, aliás, nenhuma testemunha do Réu afirmou tal facto.
68. Resultou provado que até 2019 a Autora e o Réu faziam vida em comum, pois habitavam na mesma casa, pagavam as despesas comuns com dinheiro comum, o Réu nem sempre dormia no quarto do casal mas aí mantinha a  sua roupa e os seus pertences pessoais e usava a casa de banho do casal, relacionavam-se em conjunto com os filhos, organizavam a sua vida em conjunto, pagavam os impostos em conjunto, passavam dias de férias juntos todos os anos e passavam sempre as festividades juntos com a família e amigos (ou seja, não alternavam com as respectivas famílias, como acontece quando os casais estão separados de facto).
69. A Recorrente e o Recorrido, até 2019, viviam juntos, na mesma habitação, com os dois filhos do casal, ambos faziam o seu centro de vida na mesma casa, conviviam e conversavam juntos, mantinham uma economia comum e não tinham uma vida física e afectiva separadamente um do outro.
70. Donde, é forçoso concluir pela alteração do ponto 11.º da matéria de facto dada como provada, nos seguintes termos:
11.º - Em Abril de 2019, a A. e o R. separaram-se e em Maio comunicaram aos amigos que se iam divorciar;
71. Face a todo o exposto, é forçoso concluir que, perante a alteração da matéria de facto nos termos aqui apresentados, impõe-se o decretamento do divórcio com efeitos reportados à data em que se tem por certo o termo de convivência entre os cônjuges, ou seja, o dia 30 de Abril de 2019, por ser a data em que se verificou a separação de facto do casal.
72. Em conclusão, requer-se a V. Exa., a procedência total das presentes Alegações, com a alteração da matéria de facto nos termos aqui apresentados, fixando o início da separação de facto entre os cônjuges como tendo ocorrido no dia 30 de Abril de 2019.” **
*
O Réu respondeu ao recurso, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

“1ª. Não assiste razão à Recorrente ao insurgir-se contra a douta sentença recorrida, quando esta fixa a separação de facto em Abril de 2017 e retroage os efeitos patrimoniais do divórcio a essa data, bem como refere a existência de um volte-face por parte da A., em sede de audiência de julgamento no que concerne à data da separação de facto.
2ª. A A/Recorrente olvida que, tendo alegado na sua petição inicial que se verificava entre A e R uma autêntica separação de facto desde Abril de 2017, tendo alegado factos nesse sentido, veio, em sede de audiência de julgamento, secundada pelas suas testemunhas, alegar que tal separação, afinal, só se verificara a partir de Abril de 2019, sendo que o Recorrido, no processo, não defendeu mais do que a verdade dos factos, ao alegar que a separação de facto ocorreu em Abril de 2017, vindo, aliás, ao encontro do alegado pela Recorrente.
3ª. A A/Recorrente, que na sua petição inicial faz referência à indemnização recebida pelo R/Recorrido, porque pretendia incluí-la nos bens comuns, concluiu o pedido no sentido de que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagissem a Abril de 2019, mas na PI “fugiu-lhe a boca para a verdade”, pois alega que a separação de facto ocorreu em Abril de 2017, invocando vários factos nesse sentido.
4ª. A alegação pela A/Recorrente nos artigos 34º e 36º da sua PI, quando fala em “vidas separadas” e “vidas completamente separadas” não colide com o decidido pela douta sentença recorrida relativamente à fixação da data da separação de facto, pois ficou provado que, apesar da separação de facto existente desde Abril 2017, data em que o Recorrido deixou de partilhar o leito com a Recorrente, devido aos amigos comuns, aos familiares, e principalmente, porque o Recorrido pretendia acompanhar os filhos, ainda participaram, ambos, até Abril de 2019, em vários eventos sociais e familiares, o que não contrariava a existência de uma separação de facto entre o casal.
5ª.O que aconteceu em Abril de 2019 foi a assunção para terceiros, de que o casamento tinha acabado e se iam divorciar, isto é, a passagem à fase seguinte, o divórcio, e não, a separação de facto, que, como ficou provado, já vinha, pelo menos, desde Abril de 2017, mas convinha à A/Recorrente, por questões meramente patrimoniais, contrariar a verdade dos factos e, à força, tentou que o Tribunal fixasse a separação de facto e os efeitos patrimoniais do divórcio à data de Abril de 2019, o que fez em função de uma indemnização que o A/Recorrido recebera nesse ano.
6ª. Aliás, é de tal maneira forte a sede da A/Recorrente pelos bens materiais que, logo requereu o arrolamento dos bens do casal, mas não indicou contas bancárias por ela tituladas, propôs acção de divisão de coisa comum relativamente à fracção que habita, pedindo que lhe seja adjudicada, deduziu incidente de atribuição da casa de morada de família, com vista a que a utilização da mesma lhe seja atribuída, pugnando, nas várias peças processuais que tem produzido nos vários apensos aos presentes autos, que para o Recorrido é suficiente e basta a fracção bem comum do casal sita nos Olivais, que não apresenta as necessárias condições de habitabilidade e onde o Recorrido não teria quaisquer condições de receber os filhos com o mínimo de dignidade.
7ª. “In casu” não cabia ao Tribunal pugnar pelo aperfeiçoamento dos articulados, pois a alegação da Recorrente de que a separação de facto se verificou em 2017 não colide com a alegação de que em Abril 2019 passaram a fazer vidas totalmente separadas, pois até aí, como resulta dos autos, Recorrente e Recorrido, em prol dos filhos, da família e dos amigos, ainda se apresentaram juntos a alguns eventos sociais e familiares, mas tão só isso, sendo absolutamente falso a alegação da Recorrente de que sempre manteve a mesma versão dos factos e que sempre alegou que a separação de facto se verificou em Abril de 2019.
8ª. Ora, como muito bem refere a douta sentença recorrida, a que se adere, o A./Recorrido, quer na contestação, quer nas declarações que prestou em sede audiência de julgamento, “…identificou o mês de Abril de 2017, como sendo o mês em que deixaram de dormir juntos.
9ª. Quem fez um volte-face, totalmente inesperado, foi a A., depois de ter alegado na sua petição inicial que desde, pelo menos 2017, havia ocorrido a separação de facto, - porquanto A. e R. haviam deixado de partilhar o leito conjugal, tendo o R. mudado de quarto, trancando-se no mesmo e deixando de com a mulher e filhos conviver - veio, no decorrer da audiência de discussão e julgamento, tentar fazer prova – contra a sua própria alegação - de que, ao invés, em 2019, ainda partilhavam o leito, declarando que mantinham vida sexual durante esse ano, que participavam, como casal, em inúmeros eventos e férias, etc., num tentativa óbvia de tentar que os efeitos patrimoniais do divórcio só se produzissem a partir de 2019, porquanto, pensa que o marido, aqui R., teria antes desse ano recebido uma indemnização por parte da sua Entidade Empregadora, indemnização essa que a aqui A., pretende que seja incluída nos bens comuns a partilhar.”.
10ª. Este comportamento da Recorrente constitui uma situação de “venire contra factum proprium”, atento o teor da sua própria petição inicial, pelo que as declarações da Recorrente não mereceram qualquer credibilidade ao Tribunal, que as qualificou como “mal construídas, incoerentes, inverosímeis e de uma evidente motivação financeira que deixou a nu a inverdade do que agora afirma.”, tendo apresentado testemunhas que se mostraram disponíveis para vir corroborar o por si afirmado, o que, tal como refere a douta sentença recorrida, “…não deixa de se estranhar, atento o teor dos factos em causa. Como poderia a mãe da A. saber se a filha e o marido desta tinham, ou não, sexo (ao luar, segundo a mãe da A. afirmou). “.
11ª. E. muito bem andou a douta sentença recorrida ao não valorizar os depoimentos indirectos das testemunhas da Recorrente sobre a sua vida sexual.
12ª. De todo o modo, como refere a douta sentença recorrida, “…a A. alegou na petição inicial, que em 2017 cessaram a vida conjugal, facto esse que o R. aceitou, corroborando-o, pelo que, o mesmo se tem por provado, por acordo. Acresce que, o R. foi muito claro ao declarar que desde Abril de 2017, que deixaram de ter vida conjugal, o que é corroborado não só pelo que a própria A. alegou em sede de petição inicial, bem como pelo que o próprio já havia afirmado inicialmente em sede de contestação.”.
13ª. Deste modo, ao contrário do que pretende a Recorrente, muito bem andou a douta sentença recorrida em fixar a data da separação de facto em Abril de 2017 e determinar que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagissem a essa data, tendo feito uma correcta interpretação dos factos provado e uma correcta subsunção dos factos ao Direito
14ª. Invoca a Recorrente que o Recorrido tinha as roupas no quarto de casal e usava a casa de banho, mas não refere que a utilizavam em momentos separados e que o Recorrido se vestia na ausência da Recorrente, e, como tal, nem se cruzavam no quarto de casal, para além de que não havia, efectivamente, outra casa de banho que o R. pudesse utilizar, pois uma era para os filhos e a outra era social, sem possibilidade de banho.
15ª. Aliás, ao contrário do pretendido pela Recorrente, o que não faz sentido é que o Recorrido dormisse noutra divisão e mantivesse com a Recorrente vida de casal, designadamente relações sexuais com a mesma, no quarto de onde saíra, pelo que as declarações da Recorrente não mereceram credibilidade ao Tribunal.
16ª. E, mal se compreende que as testemunhas … venham invocar que Recorrente e Recorrido mantinham relações sexuais no quarto de casal e ao luar, algo de que não tinham qualquer conhecimento directo.
17ª. Em face das alegações das partes nas suas peças processuais e da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não há qualquer necessidade de recorrer a prova indirecta e a presunções que podem levar a erros de julgamento.
18ª. Não ficou provada a existência de relações sexuais entre as partes após Abril de 2017, pois as declarações da Recorrente e das suas testemunhas quanto a essa matéria, num volte-face relativamente ao alegado na PI, não mereceram credibilidade ao Tribunal.
19ª. A propósito desta matéria, deve referir-se as declarações do R/Recorrido, que foram totalmente credíveis: ficheiro 20221006144204_4386882_2871339 (minuto 0:30 - 4:36), onde o mesmo refere, com toda a credibilidade que deixaram de fazer vida conjugal pelo menos em 2017, que deixaram de ter relacionamento íntimo, tendo-se mudado para outro quarto em Abril de 2017.
20ª. Assim, como muito bem refere a douta sentença recorrida, os factos 4 e 5 dos factos provados resultam das alegações das partes nos articulados e das declarações do Recorrido, que foram credíveis, sendo que as próprias testemunhas do Recorrido, afirmaram que, anos antes de assumirem que se iam separar, já era visível o distanciamento dos mesmos, o desafecto e a frieza que caraterizava o seu relacionamento, uma relação formal, bem como que não dormiam juntos, que a Recorrente ficou com o quarto de casal, que não era partilhado pelo Recorrido e que já antes de 2017 não eram um casal (cfr. Depoimento de … - Ficheiro 20221011135727_4386882_2871339 – minutos 4:01 a 6:45, depoimento de …  – Ficheiro 20221011144024_4386882_2871339, minutos 4:40 a 6:43 e depoimento de … – Ficheiro 20221011145755_4386882_2871339, minuto 2:33 a 5:46).
21ª. . Deste modo, ao contrário do pretendido pela Recorrente, deve manter-se a redacção dos factos 4 e 5 dos factos considerados provados pela douta sentença recorrida.
22ª. Pretende a Recorrente ver alterada a redacção dos factos provados 6º, 7º e 9º considerados provados pela douta sentença recorrida, mas sem razão
23ª. Para tanto, invoca que se tratava de uma família que raramente partilhava as refeições, que tal partilha não era um hábito familiar, o que não faz qualquer sentido pois é do senso comum que a partilha da refeição é, em si, um momento familiar paradigmático, sendo que “in casu” não havia partilha das refeições porque o casal conjugal há muito estava desfeito e a Recorrente tudo fazia para desfazer o casal parental.
24ª. Como refere o Recorrido, este tentava fazer algumas refeições com os filhos, mas a Recorrente não o chamava para as refeições, ignorava-o, não punha um lugar na mesa para ele, e no seu lugar estavam outras coisas, como se ele não existisse (cfr declarações do Recorrido – Ficheiro 0221006144204_4386882_28713393, minuto12:28 a 12:58).
25ª. O facto de o Recorrido a partir de Abril de 2017 ainda ter vida social e familiar com a Recorrente e os filhos não significa que não havia separação de facto, mas que pretendia desfrutar de momentos com os amigos, a sua família e os filhos, sendo que a Recorrente, muitas vezes, subtraía os filhos ao convívio do Recorrido, designadamente, nas férias.
26ª. O facto de a Recorrente ir com os filhos ao aniversário do sogro ou de Recorrente e Recorrido estarem juntos nos aniversários dos filhos ou em festas de amigos, não significa que entre eles não houvesse separação de facto, mas que ainda não o tinham assumido para terceiros, como, aliás, se deduz das declarações do Recorrido e dos depoimentos das suas testemunhas, que referem um relacionamento distante, frio, desprovido de afecto, e, portanto, a antítese de um relacionamento conjugal.
27ª. O Recorrido esclareceu, com toda a transparência e credibilidade, que após Abril de 2017, as férias que fez com a Recorrente foi para acompanhar os filhos e porque tinham amigos comuns, sendo certo que os próprios articulados das partes reflectem a versão do Recorrido, que não a versão que a Recorrente quis defender em sede de audiência e julgamento, vindo, agora, ao arrepio do que alegou na sua petição inicial, defender que até Abril de 2019, a vida do casal era normal, num autêntico “venire contra factum proprium” como muito bem refere a douta sentença recorrida.
28ª. Devem, pois, ser mantidos os factos 6º, 7º e 9º dos factos considerados provados pela douta sentença recorrida, que fez uma criteriosa apreciação de toda a prova produzida, até porque a Recorrente, para pretender alterar a resposta à matéria de facto, socorre-se de excertos de depoimentos desinseridos do seu todo.
29ª. O facto provado 8º resulta do alegado pelas partes na PI e na contestação, mas também , em parte, das declarações do Recorrido, que admitiu que, para poder estar com os filhos e alguns familiares e amigos, se manteve a acompanhá-los, bem como à Recorrente, a alguns eventos familiares e sociais, pois a separação da Recorrente não punha em causa a sua relação com outras pessoas e pretendia beneficiar ao máximo da presença dos filhos, resultando, igualmente, do depoimento das testemunhas …, que o Recorrido foi progressivamente deixando de comparecer e mesmo os períodos de férias com os filhos íam sendo cada vez menores(cfr. Declarações do Recorrido minuto 5:20 e segs. – ficheiro 20221006144204_4386882_2871339; depoimento da testemunha … – Ficheiro 20221011135727_4386882_2871339, minuto12:00 a 13:00 e depoimento da testemunha … – ficheiro 20221011145755_4386882_2871339, minuto 08:04 a 09:26).
30ª. Assim, deve manter-se o facto provado 8º, tal como decidiu a douta sentença recorrida.
31ª Também o facto 10 dos factos provados deve ser mantido, pois como refere a douta sentença recorrida, a alegada carta de 2015, de leitura difícil, não se encontra datada, pelo que não podia ser valorada pelo Tribunal nos termos pretendidos pela Recorrente.
32ª. Mesmo que se admitisse a relevância de tal carta, daí não resultaria o efeito pretendido pela Recorrente, já que a carta de 2017 conjuga-se com a saída definitiva do Recorrido do quarto de casal para outra divisão da casa que, para além de quarto de dormir também lhe servia de escritório.
33ª. Também deve ser mantido o facto provado 12º, pois a partir de Abril de 2019, data em que Recorrente e Recorrido comunicaram aos familiares e amigos que se iam divorciar, deixou de fazer qualquer sentido a salvaguarda das aparências sociais e formais.
34ª. Dos depoimentos das testemunhas da Recorrente não resulta que o casal vivesse uma situação normal até Abril de 2019, já que foram salvaguardando sim, as aparências, a nível social, como decorre dos depoimentos das testemunhas e das declarações do Recorrido, da Recorrente e das suas peças processuais (P. I. e Contestação).
35ª. O que ressalta é que, até Abril de 2019, o que havia era uma tentativa de manter as aparências, tendo o Recorrido a preocupação de salvaguardar´, na medida do possível, o equilíbrio emocional dos dois filhos.
36ª. A Recorrente contradiz-se mais uma vez, pois por um lado descreve a situação do casal como um casal comum, e, por outro lado, de acordo com as suas conveniências, já se descreve como um casal atípico, tudo com vista a que os efeitos patrimoniais do divórcio não retroajam a Abril de 2017 para obter vantagem patrimonial, não se coibindo em faltar à verdade, consciente e intencionalmente, indo mesmo, contra a factualidade constante da sua petição inicial, sendo que, no próprio recurso as contradições são manifestas, o que revela litigância de má-fé.
37ª. Nem a alegada declaração de IRS, nem o invocado documento 8 têm a virtualidade de provar a separação de facto, tendo, apenas, relevância a nível patrimonial e não com a situação de facto vivida pela Recorrente e pelo recorrido enquanto casal, pelo que não assiste qualquer razão à Recorrente, pois separados já estavam há muito tempo, pelo menos desde Abril de 2017, sendo que, em Abril de 2019, apenas comunicaram essa situação e que se iam divorciar, pelo que deve ser mantido o facto 11º considerado provado pela douta sentença recorrida..
38ª. No que respeita à não admissão da filha … como testemunha, tal foi devidamente fundamentado, não tendo a Recorrente interposto recurso de tal decisão, pelo que se conformou com a mesma, inexistindo qualquer decisão surpresa, pois a Recorrente ter arrolado a referida empregada como testemunha no momento processual adequado e não o fez, pelo que “sibi imputet”, não se verificando qualquer violação do direito de defesa constitucionalmente consagrado nem o direito da tutela jurisdicional efectiva, nem a violação do direito ao contraditório, sendo que, só por lhe faleceram razões substanciais, a Recorrente se refugia nestes argumentos.
39ª. A Recorrente, nas suas alegações procura atacar a douta sentença recorrida, atingindo a isenção e a imparcialidade do Tribunal, sem qualquer razão, pois deveria regozijar-se pelo facto de a douta sentença recorrida não a ter condenado como litigante de má fé, atendendo a todas as contradições e incoerências na contraposição entre a sua Petição Inicial e as suas declarações e das suas testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento, alterando a verdade dos factos e deduzido pretensão quanto à separação de facto, cuja falta de fundamento não podia nem devia ignorar, para a decisão da causa, tendo contado com a compreensível contemporização da Mma. Juiz “a quo”.
40ª. No presente recurso, a Recorrente, reitera todos os pressupostos e requisitos da litigância de má fé já anteriormente apontados, por forma excessivamente agressiva e injustificada, ultrapassando os limites da boa fé, pelo que, nos termos dos artigos 542º e seguintes do CPC, deve ser condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização a arbitrar ao Recorrido, de acordo com juízos de equidade desse Venerando Tribunal.”
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito suspensivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes, de acordo com a sua precedência lógica:
i.- saber se deve ser alterada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida no que diz respeito aos factos provados com os n.ºs 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12, no sentido proposto pela Recorrente;
ii.- saber em que momento deve ser fixado o início da separação de facto do casal constituído pela Autora/Recorrente e pelo Réu/Recorrido, por forma a fazer retroagir ao mesmo os efeitos do divórcio.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- Autora e Réu casaram, no dia …, sem convenção antenupcial.
2.- Do casamento nasceram … filhos: ….
3.- Durante o ano de … começou a registar-se um afastamento progressivo dos membros do casal, que começaram a fazer parte das suas vidas em separado, desencontrando as refeições.
4.- Em … 2017, Autora e Réu deixaram mesmo de partilhar o leito conjugal, bem como quarto, tendo o Réu mudado o seu quarto para outra divisão da casa, que trancava à chave.
5.- O Réu passou a pernoitar em tal divisão, bem como a passar grande parte do dia na mesma.
6.- Autora e Réu deixaram, nesse ano, de fazer vida juntos, nomeadamente as refeições, convívio na casa de morada de família, bem como grande parte dos eventos sociais e das férias em conjunto.
7.- O Réu manteve-se apenas a ir a alguns eventos de carácter familiar e social, a que também iam os seus filhos e outros familiares e alguns amigos.
8.- O Réu passou alguns períodos de férias, curtos, com a Autora e os filhos desde 2017, mas a grande parte das férias eram gozadas em separado da Autora e dos filhos.
9.- Os períodos curtos que o Réu passou de férias com a Autora e com os filhos foi por forma a poder estar alguns dias de férias com os filhos.
10.- O R. pediu, pelo menos no ano de 2017, o divórcio à Autora.
11.- Em 2019, a Autora e o Réu comunicaram aos amigos que se encontravam separados e que se iam divorciar.
12.- Mesmo depois desse anúncio, Autora e Réu ainda compareceram juntos em alguns eventos familiares e sociais.
13.- Nenhum dos cônjuges tem qualquer vontade de reatar a relação conjugal.
14.- À data da propositura da acção - Outubro de 2020 -, Autora e Réu encontravam-se a residir em quartos separados há mais de um ano.
15.- Autora e Réu mantêm o firme propósito de se divorciarem.
16.- A Autora saiu da casa de morada de família em novembro de 2019.
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III.II.- Do objeto do recurso
.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida
O presente recurso versa, desde logo, sobre a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.
De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.
Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.
Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.
Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.
Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).
A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art.ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.
O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).
Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
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A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.
Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);
.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada  diversa da recorrida (alínea b);
.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).
Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.  
Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.
O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).
Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.
Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
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Neste recurso, e como resulta das conclusões da Autora/Recorrente, a divergência desta quanto ao julgamento da matéria de facto feito pela 1.ª instância prende-se com os factos provados com os n.ºs 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12, para os quais propõe, em função da sua interpretação da prova produzida em julgamento, uma diversa redação.
Ora, a este respeito, e levando-se em linha de conta as considerações acima expendidas sobre a admissibilidade do recurso em matéria de facto, há que dizer que se entende que a Recorrente cumpriu o duplo ónus primário e secundário acima exposto.
Na verdade, a Autora/Recorrente individualizou os concretos pontos de facto que reputou incorretamente julgados pela 1.ª instância e justificou a sua posição.
Outrossim, indicou os meios de prova que, na sua perspetiva, impunham um julgamento diverso, precisando as passagens da gravação dos depoimentos de que se serviu, concluindo pela enunciação do sentido em que, na sua perspetiva, tais factos devem agora ser julgados.
Ademais, como decorre do recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Plenário das Secções Cíveis do STJ de 17-10-2023, a ponderação sobre a admissão ou rejeição do recurso em matéria de facto deve ser feita no quadro dos “princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, pelo que, cumprido o essencial do ónus a cargo do recorrente, o princípio será o da admissão da impugnação em matéria de facto “se da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso”.
 E é esse, quanto a nós, o caso dos autos, em que, como se viu, da leitura da peça recursória da Recorrente resulta evidenciado aquilo que a mesma visa com a impugnação da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Cumpriu a mesma, em suma, o ónus que o acima citado art.º 640.º do CPC faz recair sobre si, nada obstando ao conhecimento do recurso nesta parte.
Apreciemos, pois, a sua pretensão.
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Importa começar por referir que a Autora/Recorrente, na petição inicial, designadamente nos seus  art.ºs 9.º a 14.º, alegou um conjunto de factos que a levaram a afirmar, no art.º 15.º daquele articulado, que, em 2017, existia “uma autêntica separação de facto entre os cônjuges e entre o réu e os filhos”.
O tribunal a quo, no pressuposto de que tal ‘facto’ fora aceite pelo Recorrido, considerou-o “provado por acordo”.
Não há, contudo, fundamento para uma tal decisão.
Na verdade, e desde logo, a Autora/Recorrente, nos restantes artigos da petição inicial, alegou outros factos diversos daqueles e que, todos conjugados, a levaram a concluir, no art.º 34.º, que fora em abril de 2019 que ambos “decidiram fazer vidas separadas”.
  Lida e devidamente interpretada a petição inicial no seu conjunto resulta claro, pois, que a forma como a Autora/Recorrente estruturou a causa de pedir que serve de fundamento à ação foi no sentido de que a cessação da vida conjugal de ambos ocorreu em abril de 2019 e não em abril de 2017.
Considerar provada a separação de facto do casal como tendo tido início em abril de 2017 no pressuposto de se tratar de algo assumido pela Autora/Recorrente no seu articulado inicial é algo, portanto, que não tem correspondência com o alegado pela mesma e que, por isso, não pode ser sustentado.
Depois, tratando-se aqui de ação de divórcio, estamos perante uma ação que versa sobre direitos indisponíveis.
Nunca na alegação da Recorrente em causa se poderia, por isso, e atento o estatuído nos art.ºs 289.º, n.º 1 e 574.º, n.º 2 do CPC, estribar, ou uma confissão da mesma quanto ao facto de a separação do casal ter ocorrido em abril de 2017 ou, como o fez o tribunal a quo, a sua consideração como facto provado com base no suposto “acordo das partes”.
A alegação em causa até pode servir de elemento de ponderação do tribunal no âmbito da apreciação da prova que lhe incumbe fazer, por exemplo, para conferir ou retirar relevo probatório a determinado elemento de prova.
Mas não pode vinculá-lo quanto ao sentido da decisão a proferir sobre os factos que integram o objeto da ação, no sentido da sua consideração como provados.
Dito isto, reportemo-nos, então, à impugnação da decisão da matéria de facto da Recorrente.
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.- Dos factos provados com os n.ºs 4 e 5
Dada a ligação intrínseca entre tais factos, faremos a sua apreciação em conjunto.
Os factos em causa são do seguinte teor:
4.- Em Abril de 2017, Autora e Réu deixaram mesmo de partilhar o leito conjugal, bem como quarto, tendo o Réu mudado o seu quarto para outra divisão da casa, que trancava à chave”;
5.- O Réu passou a pernoitar em tal divisão, bem como a passar grande parte do dia na mesma.
A Recorrente, com base na sua interpretação da prova produzida em julgamento, pugna por que a tais factos seja dada a seguinte redação:
“4.- Já anteriormente a 2017 o Réu pernoitava algumas noites fora do quarto do casal”;
“5.- A partir de 2017, o Réu passou a dormir noutro quarto com mais frequência, continuando, contudo, a usar o quarto do casal, mantendo ali os seus pertences pessoais, usando a casa de banho do casal e mantendo relações sexuais com a Autora, nomeadamente, no quarto do casal”.
A propósito de tais factos, há que dizer o seguinte.
Resulta da prova produzida em julgamento que o Réu/Recorrido, antes de abril de 2017, chegava a dormir numa divisão (o “escritório”) da casa de morada de família que não o quarto do casal e que, a partir daquela data, passou a fazê-lo de forma permanente.
Tal facto foi, desde logo, atestado pelo próprio Réu/Recorrido nas declarações que prestou, ao referir, sob instância da Sr.ª Juíza de Direito que presidiu ao julgamento, que deixou definitivamente o quarto do casal em abril de 2017, mas que tal facto já vinha “bastante de trás”.
E resultou, também, da prova testemunhal produzida em julgamento.
Assim, a testemunha … (… de ambos), disse saber que como o Réu/Recorrido “ficava a trabalhar até tarde” e que como a Autora/Recorrente “ficava incomodada com o sono, acordaram dormir em quartos separados”.
A testemunha … (… da anterior testemunha e … do casal, embora de relações cortadas com a Autora/Recorrente por decisão desta), por seu turno, também referiu que o Réu/Recorrido, a partir de determinada altura, “passou a pernoitar no escritório”.
Finalmente, a testemunha … (a qual, juntamente com …, foi … de casamento do casal), por sua vez, referiu que, “em finais de 2017/inícios de 2018” soube que “não dormiam juntos”, tendo “a … ficado no quarto e o … saído”, acrescentando que, em finais de 2018, confirmou-o, de uma vez em que, com “uma … ”, fez uma visita à Autora/Recorrente e em que esta lhe confidenciou, chegadas ao quarto, que este compartimento “era só dela e que não era partilhado pelo …”.
Ou seja, e como se disse, é um dado adquirido, em função dos referidos elementos de prova, que o Réu/Recorrido, antes de abril de 2017, já tinha por hábito pernoitar no escritório da casa e que, a partir desta data, passou a fazê-lo de forma permanente.
De referir que também o facto de o Réu/Recorrido passar grande parte do dia na referida divisão, ainda anteriormente a 2017, resultou claro da prova produzida em julgamento, sendo de destacar a esse propósito, não só o depoimento da testemunha … - que, como se viu, deu conta de que o Réu/Recorrido ficava a trabalhar até tarde no escritório -, como, também, o da testemunha …, que, sendo presença constante na casa do casal, dando apoio aos seus …, referiu que … estava “sempre trancado no quarto”, sendo “raro aparecer na cozinha” e, ainda, o depoimento da testemunha … da Autora/recorrente, que deu conta de que o seu … “se isolava no quarto” e que, muitas vezes em que visitava a casa, sabia que o mesmo “estava lá, no quarto”.
Ora, os factos provados em apreço, tal como se mostram redigidos pelo tribunal a quo, não exprimem exatamente esta perceção das coisas, sugerindo antes que a mudança do Réu/Recorrido do quarto do casal para o escritório ocorreu, de uma só vez, e em absoluto, em abril de 2017.
Impõe-se, pois, a alteração dessa redação por forma a acomodar aquilo que, em conformidade com o acima exposto, resultou da prova produzida em julgamento.
Tal alteração da redação dos factos não pode, contudo, ir ao ponto de, como sugerido pela Autora/Recorrente, passar a afirmar-se neles que o Réu/Recorrido continuou “a usar o quarto do casal, mantendo ali os seus pertences pessoais, usando a casa de banho do casal e mantendo relações sexuais com a Autora, nomeadamente, no quarto do casal”.
Na verdade, tais factos não foram alegados nos autos e, sendo passíveis de integrar os fundamentos da ação, devem ser reputados “essenciais”, pelo que o seu conhecimento está, atento o estatuído no art.º 5.º, n.º 1 do CPC, vedado ao tribunal.
Impõe-se, em suma, alterar a redação dos factos em apreço nos seguintes termos:
3.- O Réu, anteriormente a abril de 2017, passava grande parte do dia numa divisão da casa da família que não o quarto do casal, onde chegava a pernoitar.
4.- Em abril de 2017, passou a pernoitar de forma permanente nessa divisão da casa.
Procederá, ainda que só nesta medida, a pretensão da Recorrente em análise.
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.- Dos factos provados com os n.ºs 6, 7, 8 e 9
Dada a ligação intrínseca entre tais factos, procederemos à sua análise em conjunto.
Os factos em causa são do seguinte teor:
6.- Autora e Réu deixaram, nesse ano, de fazer vida juntos, nomeadamente as refeições, convívio na casa de morada de família, bem como grande parte dos eventos sociais e das férias em conjunto”;
7.- O Réu manteve-se apenas a ir a alguns eventos de carácter familiar e social, a que também iam os seus filhos e outros familiares e alguns amigos”;
8.- O Réu passou alguns períodos de férias, curtos, com a Autora e os filhos desde 2017, mas a grande parte das férias eram gozadas em separado da Autora e dos filhos”;
9.- Os períodos curtos que o Réu passou de férias com a Autora e com os filhos foi por forma a poder estar alguns dias de férias com os filhos”.
A Autora/Recorrente, com base na sua leitura da prova produzida em julgamento, pugna por que a tais factos seja dada a seguinte redação:
“6.- Autora e Réu deixaram, em 2019, de fazer vida juntos, nomeadamente convívios na casa de morada de família, bem como grande parte dos eventos sociais e das férias em conjunto”;
“7.- Até 2019 o Réu ia aos eventos de carácter familiar e social, a que também ia a Autora, os seus filhos, outros familiares e alguns amigos, com excepção dos que se realizavam na casa dos …”;
“8.- O Réu passou períodos de férias com a Autora e os filhos até 2019 e períodos de férias sozinho com os pais”;
“9.- Os períodos que o Réu passou de férias com a Autora em casal e com os filhos foi principalmente, mas não exclusivamente, por causa destes”.
Sobre tais factos, há que dizer o seguinte.

No facto provado n.º 6 dá-se como assente, em concretização da afirmação, constante do primeiro período do mesmo, de que os membros do casal deixaram de fazer vida juntos em 2017, que cessaram as refeições em conjunto naquele momento.
Esta conclusão não é, de todo, aceitável.
Desde logo, porque, como já resultava do facto provado n.º 3, que não foi posto em causa no recurso, o desencontro de refeições entre Recorrente e Recorrido já se verificava desde 2011, pelo que a sugestão, no facto em apreço, de que tais refeições cessaram em 2017, colide com uma realidade que o próprio tribunal a quo dera por assumida.
Depois, porque resultou claro da prova produzida em julgamento que sempre foi nota dominante a ausência do Réu das refeições, facto este, não só atestado, como se viu, pela testemunha …, como admitido pelo próprio nas declarações que prestou.
A referência às refeições na redação do facto em causa, com o sentido de que as refeições conjuntas cessaram em 2017, não pode, pois, subsistir, devendo ser pura e simplesmente eliminada.

No facto provado n.º 6 também é dito, para se ilustrar a ideia de que o casal cessou a vida conjugal em 2017, que os seus membros deixaram de passar “grande parte dos eventos sociais e das férias em conjunto”.
Nos factos seguintes, contudo, faz-se uma descrição mais detalhada do modo como o Recorrido participava naqueles eventos sociais e nas férias da família e quantifica-se esses eventos e os períodos de férias como tendo sido “alguns”.
Ora, ao referir-se, naquele facto n.º 6, que os membros do casal deixaram de passar “grande parte” dos convívios e dos períodos de férias em conjunto, para depois se detalhar aqueles em que o Recorrido participava, quantificando-os como “alguns”, dá-se a ideia de que, além destes últimos, outros haveria - aliás, até em “grande” número -, em que essa participação não se verificou.
Tal conclusão não tem, contudo, a mínima correspondência com a prova produzida em julgamento, já que, além dos convívios e dos períodos de férias pressupostos nos factos provados n.ºs 7, 8 e 9, ninguém em julgamento aludiu a quaisquer outros eventos em que Recorrente e Recorrido pudessem ter participado.
A referência aos convívios e às férias constante do facto provado n.º 6 deve, pois, pura e simplesmente, ser eliminada, sendo os termos da participação do Recorrido nos eventos sociais e nos períodos de férias familiares aferido em função dos restantes factos a eles especialmente dedicados.

Reportando-nos, então, ao facto provado n.º 7 (relegamos para mais adiante a apreciação da impugnação no que ao remanescente do facto provado n.º 6 diz respeito), resultou clara, da prova produzida em julgamento, a participação do Réu/Recorrido com a Autora/Recorrente e com os filhos e amigos em eventos familiares e sociais, no período temporal controvertido nos autos, isto é, entre abril de 2017 e abril de 2019.
Assim, a testemunha … referiu que todas as passagens de ano nos quatro ou cinco anos anteriores a 2019 foram passadas pelo casal em conjunto com amigos, bem como que, anteriormente àquela data, passaram dois ou três dias num “turismo rural” em que ambos “dormiram no mesmo quarto” e, ainda, que, em fevereiro de 2019, foram à “praia de … a um almoço de amigos, com todos”.
Referiu, ainda, que, em junho de 2019, ainda “foram os dois” ao seu aniversário (da testemunha).
A testemunha … , por seu turno, confirmou que a passagem de ano de 2018 para 2019 foi passada com amigos em casa do casal (facto de que se certificou visionando, no decurso do seu depoimento, fotografias que tinha em seu poder) e corroborou que, em junho de 2019, compareceram “juntos” no aniversário da sua …, a testemunha ….
A testemunha … (que, com …, foram … de casamento do casal), por sua vez, referiu que, em 2018, estiveram todos juntos em evento em que o próprio Réu/Recorrido “cozinhou”.
Finalmente, a testemunha …, sendo este … do Réu/Recorrido, além de referir que estiveram todos juntos no ano em que a … fez … anos, disse, também, que voltaram a estar todos juntos no … aniversário do seu pai (da testemunha e do Réu/Recorrido), em 14-12-2018.
De referir que o Réu/Recorrido, nas declarações que prestou, não pôs em causa que tenha participado em tais eventos sociais e admitiu, também, ter passado as festividades do Natal em família - o que, aliás, ocorreu, na véspera e no almoço de Natal em casa dos pais da Autora/Recorrente e, no jantar do dia de Natal, em casa dos seus pais -, o mesmo tendo ocorrido com as passagens de ano.
Ou seja, o essencial do facto n.º 7 está provado, impondo-se, no entanto, a retificação da sua redação, por forma a que passe a retratar de forma objetiva e não sugestiva o efetivamente ocorrido a este respeito; ou seja, a sua retificação nos seguintes termos:
.- 7.- O Réu, até, pelo menos, abril de 2019, foi com a Autora e com os filhos a eventos de natureza familiar e social, a que também iam, ou familiares, ou amigos.

O facto provado n.º 8, verdadeiramente, não vem posto em causa pela Autora/Recorrente na sua impugnação; esta aceita, na verdade, as afirmações, nele contidas, de que ‘o Réu passou períodos de férias com a Autora e os filhos’ e, também, ‘períodos de férias separado’ (ou, nos termos da impugnação, ‘sozinho’, o que é o mesmo).
Contra o que se insurge é, considerando o teor da redação que propõe para o facto em causa, quanto à qualificação dos períodos de férias em conjunto como tendo sido ‘alguns’ e ‘curtos’ e quanto à qualificação dos períodos de férias em separado como tendo sido ‘em grande parte’.
Ora, a este respeito, e em linha com o já acima referido quanto ao teor da redação do facto provado n.º 6, concordamos que o facto em apreço deve ser expurgado das aludidas qualificações.
Desde logo, porque, também aqui, não foi produzida prova relevante em julgamento que permita fazer uma qualificação e uma quantificação daquelas que foram as férias passadas pelo Réu/Recorrido em conjunto com a Autora/Recorrente e daquelas que foram passadas por ele em separado da mesma.
Depois, porque do que se trata aqui é da enunciação de factos e de factos despidos de quaisquer juízos valorativos, os quais (os juízos valorativos) têm o seu campo natural de apreciação em sede de apreciação jurídica do caso e não neste, da simples apreciação de factos.
Ao facto em apreço, ainda que este se deva manter, no essencial, idêntico ao constante da decisão recorrida, deve, pois, ser conferida a seguinte redação, até para que lhe seja conferida harmonia, em termos de situação temporal, com o facto precedente:
.- 8.- O Réu, até à data referida em 7, passou períodos de férias com a Autora e com os filhos e períodos de férias em separado deles”.

No mais aqui em apreço, ou seja, no que diz respeito ao remanescente do facto provado n.º 6 (ainda não apreciado), bem como no que diz respeito ao facto provado n.º 9, impõe-se dizer o seguinte.
O aludido segmento do facto provado n.º 6 tem como realidade subjacente o facto de Autora/Recorrente e Réu/Recorrido terem, num dado momento, passado a viver vidas separadas, cessando, assim, ainda que mantendo-se formalmente casados, a vida conjugal.
A este respeito, há que começar por referir que é um dado adquirido nos autos, em função da prova produzida em julgamento, que a cessação da vida conjugal do casal era verificável, com toda a certeza, em abril de 2019 - que é o momento da separação de facto invocada pela Autora/Recorrente.
Com efeito, as testemunhas … foram objetivas e precisas a referir que o casal, num almoço realizado em sua casa em maio de 2019, anunciou a sua separação.
Por outro lado, também referiram que, apesar de Autora/Recorrente e Réu/Recorrido ainda terem ido juntos ao … da primeira das testemunhas em junho de 2019, em julho, num passeio de amigos realizado aos …, já a Autora/Recorrente foi sozinha, sem o Réu/Recorrido.
Ou seja, ambas as testemunhas narraram em juízo factos objetivos e concludentes no sentido de que Autora/Recorrente e Réu/Recorrido, pelo menos a partir daquele momento temporal, passaram, por decisão de ambos, a ter vidas separadas.
Forçoso é, pois, até pela especial razão de ciência das testemunhas, dar por adquirido esse facto.

Já se ambos deixaram de viver juntos como casal em abril de 2017, como consta do facto provado n.º 6, é algo que, contudo, não se pode ter por verificado.
Não o é, desde logo, pelas próprias declarações do Réu/Recorrido, que, bem interpretadas, o contradizem.
Na verdade, à pergunta da Sr.ª Juíza de Direito que presidiu ao julgamento sobre se “de abril de 2017, 2018 e 2019 os senhores faziam vida social juntos, ou cada um ia para o seu lado, tinham festas juntos, estavam em eventos com outra pessoas, ou também já ia cada um para seu lado”, o declarante respondeu o seguinte: “acabava por ser metade, metade; eram amigos comuns, eram os meus filhos também; era a … que na verdade combinava a maior parte, 95% das ocasiões sociais, muitas vezes eu nem era consultado”.
Ou seja, por um lado, o declarante reconheceu expressamente que, pelo menos em metade das ocasiões, participava em eventos sociais com a sua família e com os seus amigos.
Por outro lado, deu a conhecer que ia a esses eventos apesar de serem praticamente todos eles organizados pela Recorrente, o que revela aceitação e acatamento da vontade e da decisão desta, o que é totalmente contrário à ideia de que ambos faziam vidas separadas.
Acresce que, apesar de, quanto às refeições em família, ter referido, como acima se disse, que raramente as fazia no período temporal aqui em consideração, também referiu que tal acontecia, seja devido “à sua profissão”, seja “porque o incentivo era pouco, já que, por vezes chegava a casa e não havia prato na mesa para si”.
Ou seja, o declarante aludiu ao facto de praticamente não participar nas refeições em família, não necessariamente por já não haver vínculo conjugal entre o mesmo e a Recorrente, mas por outras razões, como sejam a sua “profissão” e o mal estar latente que se verificava no seio da vida conjugal.
Aliás, o melindre do declarante revelado pelo facto de “não haver incentivo” para se sentar à mesa com a família não é consentâneo com o sentimento de quem já não se sente vinculado à relação conjugal, sendo mais conforme com um estado de crise do casal, mas não de rutura definitiva da conjugalidade - que importava ao Recorrido que não houvesse “incentivo” para jantar com a Recorrente e com os filhos se realmente vivesse já uma vida separada daquela?
Esta mesma ideia vale para a questão das férias em família.
Na verdade, apesar de o declarante ter referido, a este respeito, que, a partir de 2017, deixou de passar férias com a Recorrente e com os filhos, também referiu que, sendo tais férias passadas em … em “casa …”, “cada mais progressivamente deixou de o fazer”, dados os “conflitos” que havia com eles.
Ou seja, ainda que o declarante tenha confirmado que, no período temporal em apreço, deixou de passar férias com a família, também deixou no ar a ideia de que, na origem dessa decisão, esteve, não propriamente o facto de fazer vida separada da Recorrente, mas as más relações que tinha com os pais desta.
A acrescer a tudo isto, o declarante assumiu que, nos anos em causa, as festividades do Natal foram passadas com a família, sendo o jantar da véspera e o almoço de Natal em casa dos seus sogros e o jantar de Natal em casa dos seus pais e que as passagens de ano foram passadas por ambos em conjunto com filhos e amigos.
Ou seja, admitiu que, num evento tão marcadamente familiar como é o Natal e noutro tão marcadamente social como é o da passagem de ano, esteve presente com a família, predispondo-se, inclusive, no que diz respeito ao Natal, a vivenciá-lo maioritariamente em casa dos sogros, apesar de ter com eles uma relação conflituosa.
As declarações prestadas em julgamento pelo próprio Recorrido não são, pois, consentâneas com o facto, por si mencionado, de que, em abril de 2017, já havia cessado a vivência conjugal entre si e a Recorrente.

Que a cessação da vida conjugal entre as partes ocorreu em momento anterior a abril de 2019 é algo que surge posto em causa, também, pelo depoimento da testemunha …, que, de todos os produzidos em julgamento, se nos afigurou ser o mais relevante, face à forma objetiva e circunstanciada com que depôs (e que até viu a sua relação de amizade com a Autora/Recorrente cortada por esta, por surgir nos autos arrolada como testemunha pelo Réu/Recorrido).
Na verdade, segundo a testemunha “não houve nenhum evento catastrófico ou determinante que permitisse concluir que, a partir dali, já não havia casamento” entre a Recorrente e o Recorrido; o que houve foi “um processo de crise de desagregação progressivo, que durou muitos anos”, pelo que ”objetivamente não consegue determinar o momento em que diga… a partir deste momento não houve mais relação”.
No dizer da testemunha, “houve, efetivamente, um momento em que o casal, num almoço, anunciou a separação”, anúncio esse que ouviu pessoalmente e que correspondeu “à declaração formal” da separação, ocorrida em 2019.
Ora, do exposto pela testemunha resulta claramente que o casal, ao longo dos anos, foi vendo deteriorada a sua relação (o que, de resto, já se verificava, como resulta do facto provado n.º 4, desde 2011), mas a respeito de factos concretos e determinados que evidenciassem a decisão de um ou de ambos de passarem a viver vidas separadas, tal só ocorreu, de acordo com a mesma, na altura em que, em maio de 2019, o anunciaram aos amigos.
Aliás, a testemunha, que, como se viu, atestou a ida do casal ao aniversário da sua esposa (a testemunha …) em junho de 2019, referiu, também, que “ambos apareceram juntos “manifestando sinais de afeição”, de “mão dada”, o que, atento o precedente anúncio da separação, surpreendeu a testemunha, levando-a a conjeturar a hipótese de o casamento ainda “ter solução”.
Ou seja, de acordo com a testemunha, o casal, mesmo depois de ter assumido perante o seu círculo de amigos a decisão de ambos de passarem a fazer vidas separadas, apresentou-se, no mês seguinte, ao mesmo círculo de amigos evidenciando gestos típicos de casal, como seja o facto de surgirem de mãos dadas.
Perante o exposto, isto é, não evidenciando o casal sinais de separação (evidenciava sim sinais de deterioração da relação, o que é coisa diversa) até ao momento do respetivo anúncio em maio de 2019 e, mesmo assim, apresentando-se juntos no mês seguinte com sinais de ligação recíproca, não vemos como foi possível concluir que, dois anos antes, tenham, como se considerou na decisão recorrida, deixado de fazer vida juntos.
No limite, haveria dúvidas sobre esse facto, o que, por si só, implicaria a sua consideração como não provado.
Neste pressuposto, impõe-se dar como não provado o facto provado n.º 9 e, quanto ao remanescente do facto provado n.º 6, impõe-se alterar a sua redação nos seguintes termos:
.- 6.- Autora e Réu deixaram de fazer vida juntos, nomeadamente de conviver entre si na casa de morada de família, pelo menos, em abril de 2019.
Procede, na medida do exposto, a pretensão da Recorrente aqui em apreço.
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.- Do facto provado n.º 10
O facto em apreço tem a seguinte redação:
10.- O Réu pediu, pelo menos no ano de 2017, o divórcio à Autora”.
A Autora/Recorrente propõe para tal facto a seguinte redação:
.- O Réu, em 2015 e em 2017, dirigiu cartas à Autora em que refere que, na sua opinião, se devem separar.
O facto em apreço deve ser considerado não provado (a redação proposta pela Autora/Recorrente para o facto em apreço transmite uma materialidade de facto diversa da tida em conta pelo tribunal a quo, pelo que não deve ser considerada).
Na verdade, na origem da sua consideração como provado pelo tribunal a quo esteve o documento junto pela Autora/Recorrente com a petição inicial, que constitui uma carta que lhe foi dirigida pelo Réu/Recorrido em maio de 2017.
Ora, lido o documento, o que dele resulta é o relato, pelo seu autor, de uma situação de crise conjugal em que se encontrava o casal naquela altura e em que é conjeturada pelo mesmo a possibilidade de recurso ao divórcio.
A referência ao divórcio é, contudo, equívoca, surgindo mais como uma possibilidade ou, como se disse, uma conjetura, do que propriamente como um pedido nesse sentido.
Tanto assim que, no documento, o seu autor diz expressamente, depois da alusão ao divórcio, que “se ainda sobrar algum amor depois disso, podemos tentar reconstruir a relação, mas vai ser exigente para nós os dois”.
O documento em questão, por si só, não atesta, por conseguinte, o facto em apreço, impondo-se a sua consideração como facto não provado.
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.- Do facto provado n.º 12
.- Este facto é do seguinte teor:
Mesmo depois desse anúncio, Autora e Réu ainda compareceram juntos em alguns eventos familiares e sociais”.
A Recorrente, na sua impugnação, bate-se pela alteração da redação deste facto nos seguintes termos:
.- “Depois desse anúncio, Autora e Réu não mais compareceram juntos em eventos sociais e familiar, com excepção do aniversário da amiga … em Junho”.
O anúncio referido no facto em apreço é aquele em que a Autora/Recorrente e o Réu/Recorrido anunciaram aos amigos, em maio de 2019, que tinham decidido separar-se.
Ora, a este respeito, já se viu que dos depoimentos das testemunhas … resultou que Autora/Recorrente e Réu/Recorrido compareceram juntos no aniversário daquela primeira testemunha, em junho de 2019.
Ninguém em julgamento referiu, contudo, como se disse na sentença recorrida, que, além desse evento, outros tenha havido, qualquer que fosse a sua natureza, em que o casal tenha comparecido junto.
Pelo contrário, foi feita alusão ao facto de, em julho de 2019 (dia … segundo a testemunha …), ter sido realizado um passeio aos …, mas em que a Autora/Recorrente compareceu sozinha, não tendo o Réu/Recorrido comparecido.
Esse foi, aliás, de acordo com a testemunha …, o primeiro evento em que evidenciaram “total separação”, “aí já era assumido que estavam separados”, tanto mais que os dois haviam sido convidados mas “o … já não foi”.
O facto em apreço, tal como se mostra redigido, não traduz, pois, o resultado da prova produzida em julgamento, impondo-se a sua alteração nos seguintes termos:
.- Depois desse anúncio, Autora e Réu só compareceram juntos, em junho de 2019, na festa de aniversário da amiga ….
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Em suma: em função da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto da Recorrente que acaba de ser feita, o elenco de factos provados e não provados que há-de servir de substrato à apreciação jurídica do presente caso será aquele que, de seguida, se reproduz, introduzindo-se as alterações decorrentes daquela apreciação nos locais adequados de acordo com uma sequência lógica:

.- Factos Provados
1.- Autora e Réu casaram, no dia 13 de Outubro de 2001, sem convenção antenupcial.
2.- Do casamento nasceram … filhos: ….
3.- Durante o ano de 2011 começou a registar-se um afastamento progressivo dos membros do casal, que começaram a fazer parte das suas vidas em separado, desencontrando as refeições.
4.- O Réu, anteriormente a abril de 2017, passava grande parte do dia numa divisão da casa da família que não o quarto do casal, onde chegava a pernoitar.
5.- Em abril de 2017, passou a pernoitar de forma permanente nessa divisão da casa.
6.- Autora e Réu deixaram de fazer vida juntos, nomeadamente de conviver na casa de morada de família, pelo menos, em abril de 2019.
7.- O Réu, até, pelo menos, abril de 2019, foi com a Autora e com os filhos a eventos de natureza familiar e social, a que também iam, ou familiares, ou amigos.
8.- O Réu, até à data referida em 7, passou períodos de férias com a Autora e com os filhos e períodos de férias em separado deles.
9.- Em 2019, a Autora e o Réu comunicaram aos amigos que se encontravam separados e que se iam divorciar.
10.- Depois desse anúncio, Autora e Réu só compareceram juntos em junho de 2019, na festa de aniversário da ….
11.- Nenhum dos cônjuges tem qualquer vontade de reatar a relação conjugal.
12.- À data da propositura da acção - outubro de 2020 -, Autora e Réu encontravam-se a residir em quartos separados há mais de um ano.
13.- Autora e Réu mantêm o firme propósito de se divorciarem.
14.- A Autora saiu da casa de morada de família em novembro de 2019.
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.- Factos não provados
a.- Que os períodos curtos que o Réu passou de férias com a Autora e com os filhos tenham sido por forma a poder estar alguns dias de férias com os filhos.
b.- Que o Réu tenha pedido, pelo menos no ano de 2017, o divórcio à Autora.
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.- Do enquadramento jurídico dos factos
Na presente ação pediu a Autora/Recorrente que fosse decretado o divórcio entre si e o Réu/Recorrido com fundamento em separação de facto de ambos, por período superior a um ano consecutivo, nos termos, portanto, do disposto no art.º 1781.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil.
Na sentença recorrida, julgou-se verificada a separação de facto do casal por período superior ao que acaba de ser referido e, consequentemente, decretou-se o divórcio peticionado com o fundamento invocado.
Neste recurso, não está em causa a existência da separação de facto enquanto fundamento do divórcio do casal, nem a intenção de qualquer das partes de não restabelecerem a vida em comum.
A única questão que se coloca é a de saber em que data é que teve início a separação de facto em causa, ou seja, se, como propugnado pelo Réu/Recorrido e reconhecido na sentença recorrida, em 30 de abril de 2017, se, como defendido pela Autora/Recorrente no recurso, em 30 de abril de 2019.
Isto, de modo a que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1789.º, n.º 2 do Código Civil, se determine a retroação a tal data, tal como pedido por ambas as partes no processo, dos efeitos do divórcio.
É essa, pois, a (única) questão que aqui importa apreciar.

Questionando-se a data do início da separação de facto entre Autora/Recorrente e Réu/Recorrido, importa começar por definir o conceito de separação de facto relevante como fundamento de divórcio.
Já vimos que, de acordo com a alínea a) do art.º 1782.º do Código Civil, tal separação pressupõe um período de duração constante de mais de um ano consecutivo.
Por seu turno, de harmonia com o n.º 1 do art.º 1782.º do mesmo Código, entende-se que há separação de facto, para efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.
Resulta da leitura de tais preceitos legais que a separação de facto passível de fundar o divórcio sem consentimento do outro cônjuge pressupõe a verificação de três requisitos:
.- a inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges;
.- o perdurar de tal situação por período de tempo superior a um ano consecutivo; e
.- a vontade de um dos cônjuges ou de ambos de, nesse período, não restabelecer a vida em comum.
Tais fatores constituem, de acordo com Guilherme de Oliveira, os dois primeiros, um “elemento objetivo” e, o último, um “elemento subjetivo”.
Assim, “o elemento objetivo é a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes”; por seu turno, “o elemento subjetivo consiste numa disposição interior ou, como diz o art.º 1782.º, num ‘propósito’, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial”.
Sublinhe-se que o propósito de não restabelecimento da vida em comum deve existir “desde a data em que a separação de facto teve início” e perdurar “durante um ano consecutivo” (in Manual de Direito da Família, 2020, p. 277).

Reportando-nos ao caso em apreço, provou-se nos autos, com relevo para a questão que aqui importa decidir, o seguinte.
O Réu/Recorrido, anteriormente a abril de 2017, passava grande parte do dia numa divisão da casa da família que não o quarto do casal, onde chegava a pernoitar, sendo que, em abril de 2017, passou a pernoitar de forma permanente nessa divisão da casa.
Autora/Recorrente e Réu/Recorrido deixaram de fazer vida juntos, nomeadamente de conviver na casa de morada de família, pelo menos, em abril de 2019.
Até, pelo menos, essa data o Réu/Recorrido foi com a Autora e com os filhos a eventos de natureza familiar e social, a que também iam, ou familiares, ou amigos; isto, além de ter passado períodos de férias com a Autora e com os filhos e períodos de férias em separado deles.
Em 2019, ambos comunicaram aos amigos que se encontravam separados e que se iam divorciar, sendo que, depois desse anúncio, só compareceram juntos em junho de 2019, na festa de aniversário da ….
Finalmente, a Autora saiu da casa de morada de família em novembro de 2019.

Ora, perante este quadro de facto, concluímos que a separação de facto do casal teve início em abril de 2019.
Na verdade, foi nessa data que ambos deixaram de fazer vida juntos, nomeadamente, de vivenciarem algo típico e inerente à relação conjugal como é o convívio na casa de morada de família.
Foi, também, na sequência desse facto que acabaram por comunicar aos amigos que se encontravam separados e que se iam divorciar, o que traduz inequivocamente a assunção, junto do seu círculo social mais próximo, do estado de rutura da vida comum conjugal.
É certo que o Réu/Recorrido, anteriormente a abril de 2017, passava grande parte do dia numa divisão da casa da família que não o quarto do casal, onde chegava a pernoitar, sendo que, em abril de 2017, passou mesmo a pernoitar de forma permanente nessa divisão da casa.
De tal facto, não se extrai, contudo, a existência de separação de facto.
Com efeito, traduzindo “falta de vida em comum”, a separação de facto é um estado de pura inexistência de vida conjugal, um estado em que não há partilha de vida, de experiências e de responsabilidades em comum, um estado, no fundo, em que o casamento ainda existe formalmente, mas que já não é sentido, assumido e vivenciado pelos cônjuges e em que já não se vê o outro como parte da sua vida.
O facto de o Réu/Recorrido não pernoitar no quarto do casal não permite, contudo, concluir nesse sentido, podendo ter como causa uma multiplicidade de fatores (v.g. questões relacionadas com o exercício da profissão, crise conjugal, ou mesmo simples opção) não confundíveis com o afastamento ou a rutura inerente ao estado de separado de facto.
Note-se que, como se viu, separação de facto relevante é aquela que surge acompanhada do propósito de um ou de ambos os cônjuges de não restabelecerem a vida em comum, o que, em si mesmo, não é revelado pelo simples pernoitar sozinho.
De resto, o Réu/Recorrido passou a dormir sozinho numa divisão da casa de morada de família que não o quarto do casal, mas, até abril de 2019, foi com a Autora e com os filhos a eventos de natureza familiar e social e passou com eles períodos de férias, o que denota compromisso com a vida em comum e com a família incompatíveis com o estado de quem não sente o outro como cônjuge.
A separação de facto relevante para os efeitos aqui em apreço pressupõe, como se viu, a coexistência de um elemento objetivo e de um elemento subjetivo e uma tal coexistência, em face da factualidade apurada, só é passível de ser afirmada a partir do momento em que os membros do casal deixaram de fazer vidas juntos, isto é, em abril de 2019.

Ora, como se disse, está em causa neste recurso a definição do momento do início da separação de facto do casal constituído pela Autora/Recorrente e pelo Réu/Recorrido por forma a que a ele se retroajam os efeitos de divórcio, em conformidade com o disposto no art.º 1789.º, n.º 2 do Código Civil.
Já se viu que a separação de facto do casal ocorreu em abril de 2019.
O citado n.º 2 do art.º 1789.º do Código Civil exige, contudo, a fixação, na sentença, da data em que a separação tenha começado, o que não pode ter outro sentido que não o da determinação de que se fixe uma data que contemple, não só o ano e o mês, mas também o dia.
Ora, a esse respeito, entende-se que deve ser fixado, na senda do propugnado pela Autora/Recorrente, o dia 30 de abril de 2019.
Na verdade, sabendo-se que a separação de facto foi em abril de 2019, mas desconhecendo-se o dia, é de fixar o último dia do mês, já que, sendo a separação de facto uma vicissitude excecional da vida em comum, aquela data é a que melhor respeita a comunhão conjugal – note-se que, não havendo separação de facto, os efeitos patrimoniais do divórcio retroagiriam à data da propositura da ação (v. o n.º 1 do citado art.º 1789.º do Código Civil).
Procede, pois, integralmente, o presente recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida.

Resta dizer que, em face do exposto, não há fundamento para enquadrar a conduta processual da Autora/Recorrente na previsão dos n.ºs 1 e 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil, pelo que nenhuma condenação como litigante de má fé da mesma deve, como propugnado pelo Réu/Recorrido, ser proferida.
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IV.- Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, consequentemente:
i.- revoga-se a sentença recorrida na parte em que, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1789.º, n.º 2 do Código Civil, se fixou no dia 30 de abril de 2017 o início da separação de facto do casal constituído pela Autora/Recorrente e pelo Réu/Recorrido e se retroagiu os efeitos do divórcio de ambos a essa data;
ii.- declara-se que tal separação de facto teve início em 30 abril de 2019 e determina-se a retroação dos efeitos do divórcio da Autora/Recorrente e do Réu/Recorrido a essa data.
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Custas da apelação pelo Réu/Recorrido.
Notifique.
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Lisboa, 22 de fevereiro de 2024
José Manuel Monteiro Correia
Vaz Gomes
Higina Castelo