Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ALDA TOMÉ CASIMIRO | ||
| Descritores: | CRIMES SEXUAIS IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CRIME CONTINUADO TRATO SUCESSIVO CORRECÇÃO DE ERROS DE DIREITO ACTO SEXUAL DE RELEVO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 07/13/2023 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
| Sumário: | I - A ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art.º 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum. Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção. II - O nº 3 do art.º 30º do Cód. Penal afasta, através da referência a bens eminentemente pessoais, os crimes praticados, nomeadamente, contra a liberdade e autodeterminação sexual – como é o caso dos autos. Pelo que não se poderá apelar à forma continuada deste tipo de delitos. Nem à figura do trato sucessivo. III - Mesmo que não incluído (directamente) no objecto do recurso, podem ser corrigidos pelo Tribunal Superior eventuais erros de Direito que, pela sua relevância, entenda ser de suprimir; sem prejuízo da proibição de reformar a decisão em sentido mais desfavorável ao condenado. IV - Um beijo na boca, com introdução de língua, por pelo menos 30 segundos é um acto sexual de relevo, mas não é coito oral. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, após Audiência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, Relatório No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo e nº 1074/21.6JAPDL, que corre termos no Juiz 1 do Juízo Central Cível e Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foi o arguido AA, casado, encarregado operacional, nascido a 22.12.1960, na freguesia de ..., filho de ... e ..., residente na ..., condenado, como autor material, na forma consumada, de: - 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º nº 3, al. a) e 177º nº 1, al. b) do Cód. Penal, um na pessoa de BB e o outro na pessoa de CC, na pena de 1 (um) ano de prisão para cada um; - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º nº 1 e nº 2 e 177º nº 1 al. b) do Cód. Penal, na pessoa de CC, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão; - 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164º nº 2, al. b) e 177º nº 1 al. b), 177º, nº 7 e 177º, nº 8 do Cód. Penal, na pessoa de BB, na pena de 6 (seis) anos de prisão. Operado cúmulo jurídico de penas ficou o arguido condenado na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão. Mais foi condenado na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 10 (dez) anos – art.º 69º-B, nº 2 do Cód. Penal; e na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 10 (dez) anos – art.º 69º-C, nº 2 do Cód. Penal. E foi condenado, ao abrigo do disposto no art. 82º-A, do Cód. Proc. Penal e art.º 16º, nº 2, da Lei 130/15, de 4.09, no pagamento ao ofendido BB da quantia reparatória de € 2.000,00 (dois mil euros) e ao ofendido CC da quantia reparatória de € 1.000,00 (mil euros). * Sem se conformar com a condenação o arguido interpôs o presente recurso, pedindo que sejam declaradas as nulidades do acórdão recorrido que suscitou, remetendo-se o Processo para novo julgamento; ou, caso assim não se entenda, que seja alterada a matéria de facto indicada e revista a decisão de direito, absolvendo-se o recorrente dos crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º nºs 1 e 2 e 177º nº 1, al. b) do Cód. Penal, na pessoa de CC e pelo crime de violação agravada, p. e p. pelos arts. 164º nº 2, al. b) e 177º nº 1, al. b), 177º, nºs 7 e 8 do Cód. Penal, na pessoa de BB; ou, se assim não for, que seja alterada a medida da pena aplicada para quantum não superior a cinco anos, suspensa na sua execução, mas sempre, conhecendo-se e declarando-se as nulidades e inconstitucionalidades que invoca. Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem: 1. O presente Recurso tem por Objecto e circunscreve-se: - À Nulidade do Acórdão Recorrido por Falta de Exame Crítico da Prova; - Ao Erro de Julgamento da Matéria de Facto submetida a apreciação do Tribunal a quo; - À violação dos Princípios da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo referente à Condenação do Recorrente pelo Crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado; - À Inconstitucionalidade da Norma constante do Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal a quo no Acórdão Recorrido; - Ao exacerbado quantum da Medida da Pena aplicada ao Recorrente. 2. O Recorrente foi condenado em cúmulo jurídico das penas parcelares impostas, e nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, condenar o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão. 3. Venerandos Desembargadores, entende o recorrente que o acórdão condenatório proferido nos presentes autos, não pode manter-se nos termos em que se encontra, sendo que consubstancia uma solução que não está em harmonia com a justa e rigorosa interpretação e aplicação das normas legais ora aplicadas, com os princípios jurídicos subjacentes à causa em apreço e, bem assim, aos direitos constitucionais como são os da ressocialização, dignidade da pessoa humana, da igualdade constitucional e processual e da legalidade. 4. Ao invés, o acórdão ora recorrido, no modesto entender do ora recorrente, deu ao presente caso uma solução que, com a devida vénia, não pode deixar de se considerar atentatória dos essenciais princípios da justiça, da legalidade, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da proporcionalidade e do espírito ressocializador ínsito à matriz do nosso estado de direito democrático e às finalidades das penas - “Fins das penas”. 5. Na verdade o Tribunal a quo não especifica em termos minimamente aceitáveis o motivo pelo qual entendeu que as Declarações do Arguido, em determinado segmento, são desprovidas de credibilidade, sejam por si sós, sejam por confronto com a restante Prova existente no Processo e produzida em Audiência de Julgamento. 6. O Tribunal a quo, além do mais, deu sinais no teor do Acórdão Recorrido de ter efectuado uma apreciação probatória manifestamente tendenciosa e pró versão que pretendeu fazer vingar em sede de Decisão, isto é, a Acusação, o que para lá de ilegal é refractário da Prova produzida. 7. O mesmo se diga acerca da valoração das Declarações do Recorrente, porquanto, resulta da fundamentação do Acórdão Recorrido que em determinado segmento as Declarações proferidas pelo Recorrente em sede de Julgamento foram consideradas totalmente credíveis, servindo inclusive para fundamentar determinados factos provados, porém quando refractárias dos factos que se queriam dar por provados levaram com o anátema da descredibilidade. 8. O Tribunal a quo, a bem de ver, limitou-se a dar como provados determinados factos enunciando em seguida, relativamente a alguma dessa factualidade, qual a Prova de que se terá socorrido para dar como demonstrados esses factos ignorando (injustificadamente) por completo a fundamentação probatória das remanescentes factualidades que considerou assentes (provadas), não especificando, nomeadamente, quanto aos poucos factos que o fez, o motivo pelo qual, em termos minimamente lógicos, essa Prova difere, contraditando-a ou atestando-a, da restante. 9. Certo é que se impunha, em vista do exame crítico das Provas a que se refere a última parte do N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal, que se explicitasse de modo concreto e objectivo, designadamente, as razões que levaram o Tribunal a quo a descredibilizar, e porquê, as Declarações do Arguido, bem assim, como a considerar mais relevante as Declarações para Memória Futura dos Ofendidos e das Testemunhas, as quais, não têm conhecimento directo dos factos. Nesta parte, e como tal, o Acórdão Recorrido viola o que se encontra preceituado no N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal razão pela qual, atento o que dispõe a alínea a) do N.º 1 do Artigo 379.º do Código de Processo Penal, está ferido de Nulidade. Que ora se invoca e argui com as legais consequências daí advenientes. 10. Assim, o presente recurso tem por objeto, adiante melhor delimitado, a discordância absoluta do recorrente relativamente à aplicação do Direito efetuado, que considera, uma pena manifestamente excessiva, desadequada, desproporcional e absolutamente injusta 11. O Recorrente chegou a Julgamento acusado em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de 2 crimes de Abuso Sexual de Crianças Agravado p.p pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte, 171.º nºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 al. B), todos do CP 12. Efectuado o Julgamento e produzida a Prova que suportava a querela do Ministério Público, e também a que abonava o seu carácter, optou o Recorrente – em Consciência, de forma livre, sem reservas e de modo pleno - por, uma vez mais, dar palavra ao que se arrazoou contra si, confessando os factos que perpetrou e repudiando aqueles que não lhe diziam respeito. 13. Este é na verdade um Processo de Convicções. Numa altura em que se fala diariamente nos crimes de abusos sexuais cometidos ao longo de décadas pela igreja, quer-se vincar de forma errada e cruel na pessoa do Recorrente, que tais comportamentos devem ser severamente punidos…e deverão seguramente…mas não no caso em apreço...pelo menos, na forma como o foi. 14. O Recorrente, não é e não pode ser o “bode expiatório” de todos os males que durante décadas foram cometidos por padres, sacerdotes...enfim...toda uma série de pessoas incapazes de dizerem e verbalizarem um simples discurso entre muros, quanto mais, uma missa. 15. E também, não pode o Recorrente ser vítima de todo um processo mediático que tais casos ocupam hoje na nossa sociedade, não pode e não deve ser o mesmo culpabilizado por tal mediatismo. 16. Dizendo de outra forma e não descurando a gravidade de tais actos, o arguido não pode ver recair sobre si actos que não praticou, porque, hoje e como é do domínio público as atrocidades que foram cometidas ao longo de décadas por elementos da Igreja, estão escarrapachadas nas paragonas dos jornais, e bem, e por isso mesmo, mal qualquer pessoa. 17. Quanto às declarações do Arguido, o mesmo confessou os factos insertos nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 16 da douta acusação pública, pois são estes que na realidade não merecem qualquer contestação por parte do mesmo. 18. Quanto ao demais, o Arguido esclareceu os acontecimentos em causa, e fê-lo de forma escorreita, límpida e cristalina. 19. Muito menos, qualquer instinto sexual para com menores, nomeadamente do sexo masculino. 20. A Prova entranhada nos Autos e toda aquela cuja produção se realizou em Julgamento revelam - claramente - que o Recorrente nada, absolutamente nada, tem instintos libidinosos; e excluíram-se dela outros essenciais e suficientes para atestar a Inocência do Recorrente quanto ao acervo condenatório em que acabou condenado. 21. A Prova junta aos Autos e produzida em Audiência de Julgamento jamais permitirá fundar um juízo condenatório do Recorrente pelos factos em que acabou condenado. 22. Ora, das declarações do Arguido perante o Meritíssimo JIC e depois confirmadas em sede de Julgamento, não se pode dar como provado o ponto 13 da matéria dado como provada, na parte em que o arguido introduziu a língua no interior do Ofendido CC, bem como o ponto 18, na parte em que se afirma que o arguido forçou o contacto físico com o menor. 23. E no que concerne ao Ofendido BB, o mesmo se dirá relativamente ao ponto 21 da matéria dada como provada, no segmento em que se afirma que o arguido introduziu um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o, apesar de o estar a tocar por cima da roupa. 24. O Acórdão Recorrido enferma, também, de Erro de Julgamento da Matéria de Facto, como V/Ex.ªs melhor sabem, este Erro configura um vício cuja análise é aferida em momento anterior à produção do texto do Acórdão Recorrido, advém da ponderação conjugada e exame crítico das Provas produzidas em Julgamento e de todas as que constam dos Autos que contribuíram para a formulação de um juízo que, fixando uma determinada verdade histórica, acaba afinal vertida no teor daquela Decisão. 25. Com efeito, o Acórdão Recorrido padece desta maleita, por ter cometido, salvo melhor opinião, uma gritante (e não menos preocupante em perspectiva do aqui Subscritor) desacertada decisão da matéria de facto que logrou dar como assente, note-se provada. 26. Todavia a Prova produzida em Julgamento, jamais permitirá extrair estas ilações, ou, menos ainda, autoriza que se possam verter tais conjecturas na factualidade provada do Acórdão Recorrido. A Prova produzida em Julgamento e incorporada nos Autos, na sua máxima avaliação, não permite considerar como praticados estes factos pelo Recorrente, entenda-se, as factualidades e conclusões descritas na matéria dada como provada. É isto que resulta, com facilidade de interpretação, daquilo que se produziu em Julgamento e de tudo o que se encontra entranhado nos Autos, inclusive dos próprios meios de Prova invocados pelo Tribunal a quo na sua motivação. 27. Concretamente, o Tribunal a quo, no seu Douto escrutínio, entendeu que estava assente, vertendo desse modo para os factos provados no Acórdão Recorrido, em rigor, nos Pontos 7, 13, 14, 21 e 22. 28. Na realidade, pelas Declarações do Arguido, bem como, pelas Declarações para Memória Futura dos Ofendidos, não podia o douto Tribunal a quo, dar por assente tal matéria, no mínimo, da forma que o fez. 29. A Prova produzida em Julgamento e incorporada nos Autos, na sua máxima avaliação, não permite considerar como praticados na sua plenitude os factos e os crimes, pelos quais o Recorrente veio a ser condenado. 30. As declarações para memória futura prestadas pelos menores, contrariamente ao que se exara no Acórdão recorrido, não resultam minimamente individualizadas e provadas as condutas que possam, de alguma forma, realizar, de modo autónomo e independente, com especificação necessária, de cada nova resolução criminosa que permita condenar o ora arguido pela prática daquele número em concreto de ilícitos criminais a que o Arguido foi condenado. 31. Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, a recolha de “declarações para memória futura” tem de garantir, em toda a sua plenitude, o princípio do contraditório, pois que constitui uma antecipação parcial da audiência de discussão e julgamento. A prova carreada e a que foi produzida em julgamento, não se revela bastante para efetiva imputação e condenação do Arguido pelo retro mencionado número de crimes. 32. Verifica-se assim, salvo o devido respeito, a arbitrariedade latente no Acórdão recorrido relativamente à especificação da exata quantidade de resoluções criminosas autónomas e independentes entre si, não havendo elementos de prova bastantes ou suficientes para que se possa dar como provado que o Arguido cometeu a panóplia de crimes pelos quais veio a ser condenado. 33. Para uma justa e correcta reapreciação probatória, desta matéria, impõe-se convocar perante V/Ex.ª, Venerandos Desembargadores, alguns segmentos probatórios concretos, produzidos em Julgamento e juntos aos Autos, como sejam: 34. As Declarações do Recorrente AA, perante o Mmo JIC e confirmadas em Julgamento (Consignadas em acta no dia 31.01.2023), supra mencionadas. 35. As Declarações para memória futura dos Ofendidos perante o Mmo JIC, também supra mencionadas. 36. Os Depoimentos das Testemunhas: 37. Relatório Social do arguido, e, 38. Certificado de Registo Criminal. 39. Dessas Declarações, Depoimentos e Documentação extrai-se, sem grandes rodeios ou floridos, que o Recorrente não é nenhum predador sexual. 40. É isso que exuberantemente nos entra pelos olhos adentro e ressalta do Acervo Probatório constante dos Autos (precariamente elencados na fundamentação do Acórdão Recorrido) e da demais Prova produzida em Audiência de Julgamento. 41. Relativamente às Declarações prestadas pelo Recorrente, conforme decorre dos Autos, este fê-las activa e proactivamente, quer perante o Mmo JIC, quer em sede de Julgamento junto do Tribunal a quo (antes também de produzida a prova da acusação bem assim como no decurso e fim da mesma). E daí ressalta que as suas Declarações são coerentes do princípio ao fim do processo: Confessou o que fez; Repudiou o que não lhe diz respeito, nomeadamente as intenções libidinosas. 42. Nesta parte, e como tal, o Acórdão Recorrido viola o que se encontra preceituado no N.º 2 do Artigo 374.º do Código de Processo Penal razão pela qual, atento o que dispõe a alínea a) do N.º 1 do Artigo 379.º do Código de Processo Penal, está ferido de Nulidade. Que ora se invoca e argui com as legais consequências daí advenientes. 43. Assim, forçoso é concluir que não existem indícios bastantes e seguros nos Autos (e fora deles) ou foi produzida qualquer Prova em Julgamento que permitam condenar o Recorrente pelos Crimes que veio a ser condenado. Mas, mesmo que assim não fosse, no caso concreto destes Autos, a aplicação do Princípio do In Dúbio Pro Reo, plasmado nos Artigos 32º N.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14º N.º 2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e 5º N.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sempre conduziria à mesma conclusão e resultado. Efectivamente, na ausência do juízo de segurança, vale o Princípio de Presunção de Inocência do Arguido e o tribunal, nessas circunstâncias, deve decidir sempre a favor do arguido. O que não ocorreu neste Autos relativamente ao Recorrente. 44. Como melhor se concretizou nos pontos anteriores deste Recurso, decorre do teor do Acórdão Recorrido que o Tribunal a quo condenou o Recorrente pela prática de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, na pessoa de CC e pelo crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1, al. b), 177.º, n.º7, e n.º 8 do Código Penal, na pessoa de BB. 45. Todavia, tal como resulta da impugnação da Decisão sobre a matéria de facto efectuada pelo Recorrente nos pontos II.A, II.B, e II.C e desta Motivação, e para onde remete neste particular o Douto escrutínio de V/Ex.ªs, inexiste Prova suficiente, para além da dúvida razoável, de que o Recorrente praticou qualquer um desses factos e crime, pelo menos, na dimensão jurídica que o douto tribunal a quo veio a condenar o Arguido. 46. A inexistência de prova para suporte da condenação do arguido por tais crimes e com a dimensão jurídica que lhe foi imposta, implica, necessariamente, que, sem necessidade de se hastear muito alto os estandartes da Presunção da Inocência e In Dubio Pro Reo, as mesmas fiquem por responder e se tenham de considerar as factualidades aí vertidas como não praticadas pelo Recorrente. 47. Por conseguinte, a condenação do Recorrente pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, na pessoa de CC e pelo crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1, al. b), 177.º, n.º 7, e n.º 8 do Código Penal, na pessoa de BB, viola o Princípio da Presunção da Inocência - acolhido no N.º 2 do Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa, N.º 2 do Artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e N.º 1 do Artigo 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - e o Princípio do In Dubio Pro Reo, motivo pelo qual devem V/Ex.ªs declarar Nulo o Acórdão Recorrido e reenviarem o Processo para novo Julgamento. 48. Além do já exposto, decorre do Acórdão Recorrido que o Tribunal a quo, na apreciação da Prova que lhe foi submetida julgar, lançou mão do Princípio da Livre Apreciação da Prova plasmado no Artigo 127.º do Código de Processo Penal. Contudo, é inconstitucional a norma do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, na dimensão normativa com que foi aplicada na motivação do Acórdão Recorrido. 49. O Acórdão Recorrido afirmando fixados, por presunção natural, factos que nem estão indiciados por quaisquer factos base, nem decorrem, por raciocínio lógico, da aplicação aos factos base de quaisquer regras de experiência, importa uma dimensão materialmente inconstitucional do Artigo 127.º do Código de Processo Penal, sobretudo, como nestes Autos, quando interpretado no sentido de que a Livre Convicção do Julgador é suficiente para - sem prova directa, sem indicação de factos base e sem indicação de regras de experiência ou de ciência - adquirir por dedução, ou presunção natural a prova de factos em julgamento, sem fazer apelo ao peso específico das presunções, que devem ser «graves, precisas e concordantes”. 50. Por conseguinte, é Inconstitucional a norma inserta no Artigo 127.º do Código de Processo Penal na dimensão normativa com que foi aplicada no Acórdão Recorrido pelo Tribunal a quo por afronta directa ao que se encontra Constitucionalmente consagrado no Texto e Princípios da Constituição da República Portuguesa. 51. Ainda que a Prova produzida em julgamento, pelas razões já aduzidas, não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim - por mera cautela de patrocínio de quem já viu demasiados inocentes injustamente condenados em penas privativas da liberdade - pronunciamo-nos por uma Pena mais reduzida a aplicar ao Recorrente. 52. Impõe-se afirmar, quanto a esta matéria, que o Recorrente prestou Declarações em sede de Julgamento - ainda antes da produção da Prova que suportava a querela do Ministério Público contra si - e a esse respeito assumiu de forma integral e sem quaisquer reservas os factos que havia praticado e repudiou aqueles que não lhe diziam respeito. 53. Declarações que serviram para a Descoberta da Verdade Material e não foram, em entendimento do Recorrente, sopesadas no teor do Acórdão Recorrido a seu favor. 54. Não o absolvendo dos Crimes de que injustamente se encontra condenado, para efeitos de determinação da medida da Pena que lhe virão a aplicar, tendo presente o supra exposto, relevem V/Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, que o Recorrente, conforme decorre da Prova junta aos Autos e da que foi produzida em Audiência de Julgamento e com relevo para a determinação da medida da pena: 55. O arguido não tem antecedentes criminais; 56. O agregado é detentor de uma imagem social favorável, reconhecidos pelo envolvimento nas questões comunitárias. 57. O arguido é natural da freguesia das ..., onde sempre residiu, sendo o mais novo de uma fratria de 4 filhos, com o pai dedicado à actividade agropecuária por conta própria, e a mãe responsável pelo cuidado dos filhos e organização doméstica, formando a sua personalidade integrado em agregado nuclear, com fortes laços afectivos entre os seus elementos, com boas condições socioeconómicas e habitacionais, revelando que a família é, desde sempre, o centro da sua vida; 58. Integrou a escola com idade normal, realizando um percurso escolar sem problemas de comportamento ou de aprendizagem, progredindo até ao ensino secundário, habitando-se com o curso de administração e comércio pela Escola Industrial de ...; 59. Manteve-se no agregado de origem até aos 28 anos, tendo cumprido 18 meses de serviço militar obrigatório em quartel do Exército na ilha Terceira, iniciando, nessa altura, relação de namoro com aquela que viria a ser sua esposa e com a qual terá tido a primeira experiência sexual, ainda que declare que, durante a adolescência, tenha experimentado alguns relacionamentos amorosos, mas de curta duração, essencialmente com jovens da freguesia de residência com quem convivia; 60. Com o evoluir do relacionamento, o arguido e a esposa contraíram matrimónio em 1985, adquirindo imóvel próprio, onde passaram a residir em conjunto, tendo o arguido iniciado, nessa altura, funções de Assistente Técnico da Câmara Municipal de ..., onde ainda se mantém; 61. É hoje, e desde 2006, presidente da Casa do Povo de ...; 62. Revelou que o conhecimento dos factos teve nele um forte impacto; 63. Verbaliza empatia para com as vítimas, adoptando uma postura crítica em relação a comportamentos como os descritos na acusação; 64. Como fatores de proteção destaca-se o ambiente familiar coeso e protetor, um quotidiano estruturado, uma imagem social positiva, o envolvimento nos assuntos da comunidade, uma condição económica estável, a par de competências pessoais e sociais. 65. Deste modo, pese embora a Prova produzida em Julgamento não permita consubstanciar o juízo de condenação formulado pelo Tribunal a quo, ainda assim, atento o supra exposto, pronunciamo-nos pela aplicação de uma Pena mais reduzida ao Recorrente por conta das factualidades que V/Ex.ªs eventualmente venham a considerar demonstradas ele ter praticado, pena essa suspensa na sua execução mediante determinadas injunções. 66. O Direito não é matemática nem ciência exacta, é certo, porém a Justiça impõe e a Sociedade reclama que casos idênticos, senão iguais, sejam censurados em sede de Culpa e Medida da Pena em quantuns senão iguais pelo menos aproximados. O que bem vistas as coisas não ocorreu no Acórdão Recorrido, para mais quando são conhecidos - e V/Ex.ªs sabê-lo-ão melhor que o Recorrente - outros Autos em que as Penas aplicadas em iguais circunstâncias foram inferiores à que foi aplicada ao Recorrente pelo Tribunal a quo. 67. E por falar em matemática, atentemos no seguinte…por conta dos crimes pelos quais o arguido veio a ser condenado, repare-se no quantum indemnizatório que o Tribunal fixou. Ou seja, 68. Para tamanha gravidade, indemnizações pequenas. 69. Consabidamente, as Penas, todas elas, visam a protecção dos Bens Jurídicos (fim público) e a Reinserção do agente do crime no tecido social, por forma a impedir que o ostracize (Artigo 40.º n.º 1 do Código Penal). 70. A maior ou menor necessidade de protecção dos Bens Jurídicos é aferida em função da sua importância, decalcada, de resto, na amplitude da moldura penal abstracta para o Tipo Legal, por razões de prevenção do crime e de defesa da Ordem Jurídica (Cfr. Claus Roxin, in Culpabilidad y Prevención, pág. 115). 71. E na medida em que representa uma intromissão na esfera do Cidadão, a compressão dela derivada, deve reduzir-se ao mínimo essencial à realização daquela teleologia (Artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa) defrontando-se o julgador, nessa tarefa de determinação judicial, com regras nucleares de Direito (Artigo 40.º n.º 1 e Artigo 71.º do Código Penal) não podendo ignorar-se que o acto decisório comporta, para além disso, uma “componente individual“ que não é controlável plenamente de modo racional, já que se trata, segundo Jescheck - in Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1192 - de converter justamente a quantidade de culpabilidade em magnitudes penais e os princípios que regem a determinação da Pena não comportam a mesma concisão que os elementos do Tipo. 72. Essa discricionariedade, na tarefa de fixação da Medida Concreta da Pena, é, porém, balizada por aquilo que não se mostra positivado na Lei, fora disso o Direito Penal Moderno fornece regras centrais para a determinação da Pena, funcionando, como dissemos, a Culpa como seu limite inultrapassável, devendo tomar-se em conta os seus efeitos sobre a pessoa do Delinquente (prevenção especial) e sobre a Sociedade em geral (prevenção geral) (Artigos 40.º n.ºs 1 e 2 e 71.º do Código Penal). 73. A Medida Concreta da Pena é um puro derivado da posição tomada pelo Ordenamento Jurídico-Penal e Constitucional em matéria de sentido, limites e finalidades das penas (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, pág. 258) cabendo à Culpa fornecer o limite máximo da Pena a aplicar no caso concreto, nos termos do Artigo 40.º do Código Penal, sendo em função de considerações de Prevenção Geral e Especial de Ressocialização, que deve ser determinada abaixo daquela moldura máxima, e em função daquelas submolduras, a Medida Concreta. 74. A Culpa ao funcionar como limite da Pena serve de antagonista da Prevenção, pois quaisquer que sejam as necessidades de Prevenção jamais a poderão ultrapassar. 75. Há um ponto óptimo de protecção dos Bens Jurídicos, reclamada pela colectividade, mas abaixo desse pode encontrar-se um outro, agora inultrapassável, pois a Sociedade já não tolera a perda de eficácia preventiva da Pena, ainda consentâneo com tal eficácia e que integra o limiar mínimo da Pena encontrado em função das necessidades de Prevenção Especial (Cfr. Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12, N.º 2 - Abril-Junho, 2002) onde se jogam aquelas circunstâncias que não fazendo parte do Tipo depõem a favor ou contra o Agente do Crime – Artigo 71.º n.º 2, do Código Penal. 76. É, pois, este o ponto em que assenta a pretensão do Recorrente: 77. Será necessário para a tutela da Prevenção Geral, aplicar Pena tão elevada a este homem, aqui Recorrente da Vossa Justiça, quando em outros Autos de iguais circunstâncias - por maior número e mais graves crimes, são aplicadas Penas, Parcelares e Única, inferiores àquela que lhe foi aplicada? 78. Que lhe perdoem V/Ex.ªs a singeleza da questão, mas não lhe é de todo possível colocá-la de outro modo. 79. Isto dito, assinale-se repetidamente que o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar, na sindicância das Penas aplicadas, não pode deixar de se prender com o disposto no Artigo 40.º do Código Penal, nos termos do qual toda a Pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. 80. É que em matéria de Culpabilidade, diz-nos o N.º 2 daquele preceito que, “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. 81. Com esta norma, fica-nos a indicação de que a Pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da Culpa. 82. Do mesmo modo, a chamada “expiação da culpa” ficará remetida para a condição de consequência positiva, caso venha a ter lugar, mas não de finalidade primária da Pena. 83. No pressuposto de que por “expiação” se entende uma interiorização do desvalor da Ilicitude, e a aceitação da Pena que o condenado tem para cumprir, com o que tal significa enquanto consequente reconciliação voluntária com a Sociedade. 84. Assim, a ponderação da Culpa do agente serve propósitos que são fundamentalmente garantísticos e portanto do interesse do Arguido, aqui Recorrente. 85. Aliás, com este entendimento, tem-se visto uma consonância com o imperativo constitucional do N.º 2 do Artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” 86. Donde, falando de Penas aplicadas por homens a homens, não se pode deixar de afirmar, na esteira do pensamento de Anabela Miranda Rodrigues, que “...a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág.570). 87. Deste modo acredita-se que outra Pena, em concreto mais benévola, suspensa na sua execução, logo mais Justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica, não se frustrando a Justiça com isso, antes pelo contrário, será ela sem qualquer dúvida a sua grande vencedora! 88. Razão pela qual o Recorrente - não sendo por V/Ex.ªs absolvido dos Crimes pelos quais foi iniquamente condenado no Tribunal a quo, nomeadamente, pelos crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e 2 e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, na pessoa de CC e pelo crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1, al. b), 177.º, n.º7, e n.º 8 do Código Penal, na pessoa de BB – discorda da dosimetria da Pena que lhe foi aplicada, e pugna, no essencial, por outra mais adequada aos critérios de Justiça que o caso em concreto reclama, nomeadamente uma Pena Suspensa na sua Execução. * O Digno Procurador do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido e apresentando as seguintes conclusões: 1. A recorrente não tem razão, pois o acórdão impugnado não merece qualquer censura, pois que não enferma de omissões, nulidades ou vícios. A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artigo 127.º do Código do Processo Penal. 2. O acórdão refere claramente os meios de prova que serviram para o tribunal formar a sua convicção, garantindo que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do recorrente, não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum. 3. A recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou o recorrente. 4. Ao contrário do que defende o recorrente o Tribunal não fez um juízo crítico valorativo atentatório dos essenciais princípios da justiça, da legalidade, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da proporcionalidade e do espírito ressocializador ínsito à matriz do nosso estado de direito democrático e às finalidades das penas - “Fins das penas”. 5. Na verdade, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos. 6. A livre apreciação que, se por um lado se afasta de um sistema de prova legal (baseada em regras legais predeterminantes do seu valor), por outro, não admite também uma apreciação fundada apenas na convicção íntima e subjetiva do julgador. 7. Ao contrário do pretende defender o recorrente a livre apreciação da prova significa que o tribunal está vinculado ao dever de perseguir a verdade material do caso concreto que é trazido à sua apreciação, de tal modo que esta, embora livre, há de ser motivada e controlável, quer pelos destinatários da decisão quer pelas instâncias de recurso. Por isso se exige a explicitação do percurso lógico do julgador na decisão sobre a matéria de facto, que está na génese da sua convicção. A consequência deste sistema reflete-se, desde logo, na possibilidade do tribunal formar a sua convicção na base do depoimento de uma testemunha, em desfavor do testemunho contrário, e funde a convicção no depoimento de um mero declarante em desfavor de prova testemunhal, esta, em abstrato, com maior dignidade probatória. 8. No caso concreto consideraram-se também as máximas indiciárias fazendo-se relevar o tipo de testemunhos prestados pelos menores BB e CC que, juntamente com os pontos cristalizados do lastro de coincidência das várias versões apresentadas, destacando as declarações do recorrente, e com alto grau indiciário de probabilidade ou de verosimilhança, deram ao tribunal, na sua compreensão global, para além de toda a dúvida razoável, a verdade material da parcela dos factos dados como provados e não provados em julgamento … fazendo-se, ainda, apelo à realidade das coisas, à mundividência dos homens e regras de experiência que resultam do viver em sociedade. 9. Aqui chegados, há que referir, que nenhum vício foi levantado no que toca à prova apresentada na acusação, toda produzida em audiência, e nenhum lhe foi encontrado de forma oficiosa, pelo que toda ela será tida em conta na análise crítica a fazer no momento próprio. 10. No caso concreto, o recorrente nem sequer indicou especificadamente os pontos de que discorda, nem que outras provas poderiam impor decisão diversa, apenas manifesta a sua discordância em relação à valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, afirmando que só o depoimentos dos menores prestados para memória futura são insuficiente, mas não justifica porquê, passado a transcrever partes das declarações prestadas, por fim alega que o recorrente não tem “qualquer instinto sexual para com menores, nomeadamente do sexo masculino”. 11. Contudo, no presente caso, o Recorrente, fazendo no corpo da motivação as especificações previstas no artigo 412.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, o que fez, realmente, foi uma interpretação alternativa da prova produzida em audiência, o que sendo compreensível, não é relevante como impugnação da matéria de facto, porque, por um lado, isso corresponderia à reapreciação global da prova produzida, o que, como vimos, não é admissível em sede de recurso, e, por outro ainda, porque corresponde à mera contraposição das suas convicções à do tribunal recorrido. 12. De qualquer forma, os trechos dos depoimentos transcritos pelo Recorrente no seu recurso não impõem que se altere a matéria de facto de acordo com a sua pretensão. Ainda que assim não fosse, o tribunal, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e detalhadamente, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria e esse caminho foi razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis (diremos mesmo, a mais plausível), segundo as regras da experiência. Deve, pois, improceder o recurso. 13. Também não vislumbramos na decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no artigo 410., n.º 2 do Código do Processo Penal, que são de conhecimento oficioso e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. 14. Da sua análise podemos concluir que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova. No caso concreto, não aquilatamos a existência de erro quanto à matéria de facto, quer em termos impugnação ampla, quer restrita, sem que se tivesse vislumbrado qualquer irregularidade relevante. 15. Neste caso específico, nem sequer estamos perante uma verdadeira impugnação da matéria de facto, pois o recorrente não cumpriu nenhum dos pressupostos exigidos pelo disposto no artigo 412.º nº 3 do Código do Processo Penal. O recurso deve improceder quanto à impugnação da matéria de facto. 16. E, tendo, como se verificou, formado a sua convicção com provas não proibidas por lei e seguindo todo um processo lógico e de acordo com as regras da experiência comum, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formula o Recorrente. 17. Quanto à alegada violação do princípio in dubio pro reo, cumpre dizer que este princípio representa uma regra de decisão, através da qual, após produção da prova e efetuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, que tem de ser razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Existindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, deve prevalecer o princípio referido. 18. Todavia, no caso concreto, o tribunal “a quo” não teve essa dúvida e da análise feita por este tribunal aos meios de prova produzidos e métodos valorativos utilizados e fundamentados, não se descortina qualquer vício que conduza a decisão diferente da recorrida. 19. Face à concreta argumentação expedida nas conclusões de recurso, complementadas com a respetiva motivação, é forçoso concluir que o recorrente se limita a extrair as ilações que tem pertinentes da prova produzida, que contrapõe à do julgador, sem que da análise da leitura do próprio texto do acórdão recorrido decorra a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum. 20. Deve, portanto, deve improceder também esta questão suscitada pelo recorrente. 21. Assim, todas as questões levantadas pela Recorrente, quanto ao preenchimento dos elementos do tipo, estavam dependentes da alteração da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, o que, como vimos, não ocorreu, pelo que a sua apreciação está prejudicada. 22. Por fim quanto à declaração da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na dimensão normativa com que foi aplicada pelo Tribunal a quo no Acórdão Recorrido, a mesma, salvo melhor opinião, apenas é alegada para permitir futuramente o recurso para o Tribunal Constitucional. 23. Na verdade, todo o raciocínio inscrito na peça em apreço assenta num pressuposto errado, a saber, que incumbe ao Tribunal Constitucional o poder de controlar o modo como os demais tribunais interpretam e aplicam às circunstâncias particulares e específicas o direito infraconstitucional. Assim decorre, com evidência, neste segmento do recurso, onde se procura fazer valer o entendimento do sujeito processual relativamente ao que deveria ter sido a concreta valoração probatória e o juízo de facto correto, acompanhada de considerações críticas sobre o mérito da fundamentação decisória - que se diz vencer sem convencer, o que configura, como nitidez, pretensão de controlo da legalidade do próprio ato judicativo, ainda que com apelo a princípios com assento constitucional, e não da conformidade constitucional de um qualquer ato do poder normativo. Aliás, em termos expressos, a crítica de inconstitucionalidade é referida unicamente ao julgador, e não à aplicação de qualquer impostação legal. 24. No caso em apreço a norma impugnada não foi aplicada com esse sentido - o que, só por si, determina a falta de um dos requisitos do recurso de constitucionalidade (a existência de uma possível interpretação inconstitucional de uma norma não pode fundar o recurso, quando essa interpretação não tiver sido a adotada na decisão recorrida). E não foi aplicada com o referido sentido, desde logo por que o sentido que lhe é atribuído só poderia ser imputado a outra norma: a do nº 2 do artigo 374º do Código Processo Penal (naturalmente com o entendimento de que o que nela se impõe é insuficiente para consubstanciar as garantias constitucionais de defesa do arguido - e não com o sentido de o acórdão recorrido ter violado o disposto naquela norma. 25. Por todo o exposto, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos. Em concreto, o tribunal recorrido fixou a matéria de facto, no estrito cumprimento do artigo 374.º, n.º 2 do Código do Processo Penal, ao contrário do que defende o recorrente. 26. Por último quanto à medida da pena o Ministério Público entende que a pena de 7 anos e 3 meses efetiva se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto Acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial. 27. Sem condescender que os factos em causa se revelam particularmente graves e são profundamente censuráveis, porquanto denotam um significativo desprezo pela dignidade da pessoa e uma ausência absoluta de respeito pela humanidade, conforme supra explanado, sendo certo que, não se pode ignorar que os crimes de abuso sexual de crianças, pela extrema frequência com que veem sendo praticados, constitui uma das infrações criminógenas que causam maior alarme social, contribuindo, claramente, para aumentar o sentimento geral de insegurança em que vive a sociedade portuguesa dos nossos dias, como sucedeu nos autos. 28. Assim, nas circunstâncias que antecederam, contemporâneas ou posteriores ao cometimento do delito e que influenciam a determinação da pena, de modo a concretizar-se o tipo e a gravidade da mesma, têm de ser ponderadas as circunstâncias, desfavoráveis e as favoráveis: 29. As primeiras: – o dolo com que atuou; – as elevadas as exigências de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa ser frequente por todo o país e ter especial incidência nesta Comarca; – demonstrou durante a audiência de julgamento uma total ausência de arrependimento e de consciência crítica por parte do arguido em relação ao seu comportamento; 30. Ora, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta do arguido denotou total, absoluto e reiterado desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de incisiva gravidade e é profundamente atentatório dos bens jurídicos fundamentais de índole eminentemente pessoais, devassando esses bens, revelando desprezo pelo bem alheio. Efetivamente, ninguém pode ficar indiferente ao que o s menores, sofreram às mãos do arguido. As acções do arguido atrás descritas revelam-se objectivamente graves e traduzem intuitos e desígnios sexuais que frontalmente são atentatórios da liberdade sexual dos menores que, em função da idade, ainda não tinham o suficiente discernimento para se autodeterminar, no que à esfera da sexualidade respeita, de forma livre e consciente, tanto mais que no episódio do dia 15 de Dezembro, o menor BB se opôs ao comportamento do arguido, o qual exerceu força física para satisfazer os seus intentos…dão-nos nota das necessidades de prevenção especial negativa que assenta na falta de interiorização do desvalor das suas condutas. 31. No decurso da audiência não se viu ao arguido qualquer reflexo que nos indicasse alguma comiseração pelas vítimas ou qualquer réstia de arrependimento do que fez. 32. Não restam dúvidas da prática destes factos pelo arguido, ora recorrente. Assim conclui-se serem por demais prementes, mesmo gritantes, as necessidades de prevenção especial que urge acautelar de forma eficaz e adequada, mas justa. 33. Deve, pois, improceder o recurso. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente. * Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto teve Vista nos autos. Efectuado o exame preliminar, e colhidos os legais vistos, procedeu-se à audiência, cumprindo agora apreciar e decidir. * * * Fundamentação No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos: 1. O Arguido AA exerce as funções de Presidente do Sport Clube de ..., com sede na localidade de ..., em ..., sendo o Futsal uma das modalidades desportivas que o clube desenvolve, realizando treinos bissemanais às quartas e sextas-feiras, entre as 18H50 e as 20H50 no pavilhão da escola EB1 de Arrifes. 2. O transporte das 11 crianças que fazem parte da equipa de Futsal de casa para os treinos e vice-versa, é feito pelo Arguido numa carrinha de nove lugares cedida pela Junta de Freguesia das ..., com a matrícula .... 3. Da equipa de Futsal fazem parte BB, nascido a 22/09/2009, filho de ... e de ... residente na ..., ..., ... e, ainda, CC, nascido a 22/04/2009, filho de ... e de ..., residente na ..., ..., ..., 4. Os quais, à data dos factos abaixo descritos tinham 12 anos de idade. 5. Para além do BB e do CC, fazem parte da equipa outros atletas de outras freguesias limítrofes, tais como, Mosteiros, Várzea e Sete Cidades, cujo transporte é do mesmo modo assegurado pelo Arguido. 6. A referida carrinha tinha, à frente, três lugares com assento, sendo, da esquerda para a direita, o lugar do condutor, um lugar central e o lugar do passageiro. 7. Em data não concretamente apurada do ano de 2021, mas anterior a 15/12/2021, e pelo menos uma vez, o Arguido durante as viagens, na área geográfica de ..., chegou a passar a mão pela perna esquerda de BB, na zona do joelho e a fazer-lhe carícias, sem que os demais ocupantes da viatura se apercebessem. 8. No dia 04/12/2021, pelas 13H00 CC encontrava-se a brincar com os amigos ... no campo de futebol das ..., em ... que se localiza próximo da casa do arguido, sita na ..., ..., .... 9. A dado momento, CC e o colega ..., decidiram ajudar o Arguido a lavar as viaturas da Junta de Freguesia das .... 10. Entretanto, o ... foi-se embora e o ... pediu ao arguido que o levasse a casa, porquanto, a mãe tinha-lhe solicitado que lá estivesse pelas 16H00, ao que aquele respondeu afirmativamente, acrescentando que o levaria a casa se ele lhe desse 4 ou 5 beijos na sua bochecha, o que o CC fez na bochecha do lado direito. 11. De seguida, o Arguido solicitou a CC que entrasse na garagem da sua residência, sita na morada acima indicada, alegando que tinha uma coisa para lhe dar. 12. Já no interior da garagem o Arguido entregou ao CC dois sacos de peito de frango, que ele segurou com as mãos. 13. Porém, quando o jovem se dirigia para o exterior da garagem, o Arguido agarrou a cara do CC com as duas mãos e, acto contínuo, deu-lhe um beijo na boca, tendo-lhe introduzido a língua no interior da mesma, contra a sua vontade. 14. Tal situação durou entre 30 segundos e 1 minuto. 15. De seguida, quando o Arguido fazia o percurso para deixar CC na sua residência, parou na Casa do Povo e foi buscar um cabaz de compras que lhe ofereceu. 16. Acresce que, quando CC era o último atleta a ser entregue em casa, o Arguido levou-o a tomar refeições e a comer gelados, pelo menos, por quatro vezes em 2021, sendo uma dessas vezes juntamente com o Ofendido BB e as restantes três apenas com o Arguido. 17. Ainda naquele ano, pelo menos uma vez, o Arguido tocou com a mão no joelho esquerdo do CC, acariciando-o, 18. E ainda, também por uma vez, puxou a mão do CC, colocou-a em cima da alavanca das mudanças e, colocando a sua mão em cima da mão do Ofendido, manobrava a caixa de velocidades, forçando assim contacto físico com o menor. 19. No dia 15/12/2021, a hora não concretamente apurada, mas a seguir ao treino, o Arguido, depois de deixar os atletas nas suas casas e quando já se encontrava sozinho no interior da viatura com BB, no percurso entre as Sete Cidades e a localidade de ..., em ..., imobilizou a carrinha que tripulava. 20. Após, o Arguido deslocou-se para o lugar central, disse ao Ofendido BB, que estava sentado no lugar mais à direita e trajava calções curtos e uma camisola, que gostava dele e, de seguida, tentou beijá-lo na boca, o que não logrou naquele momento, porque o ofendido conseguiu desviar-se. 21. Acto contínuo, o Arguido segurou o BB pelo seu braço direito com a sua mão esquerda, exercendo força muscular, e com a outra mão acariciou-o/apalpou-o em diversas partes do corpo, designadamente, o pénis e o rabo, chegando mesmo a introduzir um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o, apesar de o estar a tocar por cima da roupa. 22. Ademais, ao mesmo tempo que passou a mão pelo corpo do BB, o Arguido passou a sua língua na cartilagem da orelha daquele. 23. Enquanto o Arguido actuou da forma descrita, BB tentou soltar-se, chegando mesmo a proferiu as expressões: “Pára, eu não gosto disso!” 24. A dado momento, o Arguido pegou no BB pelos braços e sentou-o na sua perna direita, dizendo-lhe que gostava de si e que só queria mais um beijo. 25. Nesse momento, BB, assustado, pensou que o arguido ia continuar a agir da forma descrita ou tentar ter relações sexuais consigo, mas parou. 26. Após, o arguido levou BB para casa e durante o percurso falaram do Futsal. 27. O Arguido quis agir nos moldes descrito e fê-lo, não obstante estar ciente de que BB e CC, tinham apenas 12 anos de idade, que confiavam nele, na qualidade de Presidente do Clube de ..., aproveitando-se da sua vulnerabilidade, com o propósito de satisfazer os seus instintos sexuais, conhecedor de que ao agir do modo descrito atentava contra a liberdade e autodeterminação sexual daqueles e que punha em perigo o normal desenvolvimento da sua personalidade sexual, e, ainda assim, não se absteve de actuar nos termos referidos. 28. O Arguido tinha ainda perfeito conhecimento das consequências psicológicas que o seu comportamento provocava em BB e CC, quer por causa da sua idade, quer pelo sentimento de confiança que tinham para com ele. 29. O Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente. Dos antecedentes criminais, situação pessoal, familiar, profissional e económica do arguido: 30. O arguido não tem antecedentes criminais. 31. À data dos factos, tal como no presente, AA, de 61 anos, habilitado com o 12.º ano de escolaridade, funcionário camarário, residia com o seu agregado, constituído pela esposa, ..., funcionária pública, e pelo filho mais velho, ..., de 30 anos, uma vez que a filha já se autonomizou do agregado de origem. 32. A família reside em casa própria, dispondo de boa condição de habitabilidade e conforto, com as necessidades básicas dos seus elementos satisfeitas por via dos rendimentos de trabalho dos mesmos. 33. O agregado é detentor de uma imagem social favorável, reconhecidos pelo envolvimento nas questões comunitárias. 34. O arguido é natural da freguesia das ..., onde sempre residiu, sendo o mais novo de uma fratria de 4 filhos, com o pai dedicado à actividade agropecuária por conta própria, e a mãe responsável pelo cuidado aos filhos e organização doméstica, formando a sua personalidade integrado em agregado nuclear, com fortes laços afetivos entre os seus elementos, com boas condições socioeconómicas e habitacionais, revelando que a família é, desde sempre, o centro da sua vida. 35. Descreveu uma infância muito feliz, com convívio regular com vizinhos e amigos, revelando que os avós paternos eram pessoas respeitadas na freguesia, porquanto participavam ativamente nas festividades locais, e providenciavam auxílio a famílias mais carenciadas. 36. Integrou a escola com idade normal, realizando um percurso escolar sem problemas de comportamento ou de aprendizagem, progredindo até ao ensino secundário, habilitando-se com o curso de administração e comércio pela Escola Industrial de .... 37. Durante o seu crescimento, foi dividindo as responsabilidades escolares com o apoio às atividades agrícolas da família, que realizava de forma regular. 38. Dedicou-se ao desporto, praticando atletismo e, com mais intensidade, futebol, integrando em equipas federadas, desligando-se, progressivamente, da prática regular, à medida que cresciam as responsabilidades familiares, profissionais e comunitárias. 39. Manteve-se no agregado de origem até aos 28 anos, tendo cumprido 18 meses de serviço militar obrigatório em quartel do Exército na ilha Terceira, iniciando, nessa altura, relação de namoro com aquela que viria a ser sua esposa e com a qual terá tido a primeira experiência sexual, ainda que declare que, durante a adolescência, tenha experimentado alguns relacionamentos amorosos, mas de curta duração, essencialmente com jovens da freguesia de residência com quem convivia. 40. Iniciou o percurso profissional após completar o serviço militar, desempenhando, inicialmente, funções de faxina, evoluindo posteriormente para serviços de maior responsabilidade, mantendo-se em casa dos pais, contribuindo com o ordenado para os gastos do agregado. 41. Com o evoluir do relacionamento, o arguido e a esposa contraíram matrimónio em 1985, adquirindo imóvel próprio, onde passaram a residir em conjunto, tendo o arguido iniciado, nessa altura, funções de Assistente Técnico da Câmara Municipal de ..., onde ainda se mantém. 42. O casal veio a ter dois filhos, e o arguido, que revelou acalentar, desde cedo, a vontade de assumir responsabilidades em Instituições locais, liderando-as, se possível, passou a dedicar-se ao trabalho em prol da comunidade. 43. Foi o próprio a reativar a equipa de Futebol do Sport Club ... do qual é Presidente, e de, em conjunto com o pároco local, ter estado na origem do agrupamento de Escuteiros da freguesia das .... 44. É hoje, e desde 2006, presidente da Casa do Povo de ..., cargo já desempenhado por estes seus ascendentes, e que se constituiu como uma ambição para ele. 45. AA revelou que o conhecimento dos factos pelos quais se encontra indiciado, teve nele um forte impacto, embora, não tenha deixado de trabalhar, nem procurado apoio psicológico ou psiquiátrico, embora tenha apoio do médico de família na prescrição de medicação para combater a ansiedade e para debelar as perturbações do sono. 46. Verbaliza alguma empatia para com as vítimas, adoptando uma postura crítica em relação a comportamentos como os descritos na acusação. 47. Como fatores de proteção destaca-se o ambiente familiar coeso e protetor, um quotidiano estruturado, uma imagem social positiva, o envolvimento nos assuntos da comunidade, uma condição económica estável, a par de competências pessoais e sociais. E considerou-se serem factos não provados: a) Nas circunstâncias descritas em 21), parte final, o arguido realizou movimentos descendentes e ascendentes. O Tribunal recorrido motivou a decisão sobre a matéria de facto como segue: Em sede de valoração da prova, a regra fundamental é a constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, segundo a qual a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal”. Este princípio da livre apreciação da prova traduz-se na ideia de que o Tribunal baseia a sua decisão sobre a realidade de um facto na íntima convicção que formou a partir do exame e da ponderação das provas produzidas. Esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por factores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas quase sempre inatingíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objectiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, tudo por forma a que uma resposta dada a determinada questão "deva reflectir o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade" – veja-se Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 209. Assim, a convicção do julgador resultou da experiência, prudência e saber, sendo certo que é no contacto pessoal e directo com as provas, designadamente com a testemunhal, que estas qualidades de julgador mais são necessárias, pois é com base nelas que determinado depoimento pode ou não convencer quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recai, constituindo uma das manifestações dos princípios da oralidade e da imediação, por via das quais o julgador tem a oportunidade de se aperceber da frontalidade, tibieza, lucidez, rigor e firmeza com que os depoimentos são produzidos, mesmo do confronto imediato entre os vários depoimentos, do contraditório formado pelos intervenientes, melhor ajuizando e aquilatando desta forma da sua validade. O depoimento oral da testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, a forma como é feita a pergunta e surge a resposta, tudo contribuiu, com mais ou menos amplitude, para a formação da convicção do julgador. A convicção do Tribunal assentou, assim, na conjugação da prova que produzida, analisada de acordo com as regras da experiência comum, desde logo, nas declarações do arguido AA, nas declarações para memória futura dos menores BB e CC, e no depoimento das testemunhas ... (mãe do menor BB), ... (mãe do menor BB) e ... (tia do menor CC), e ... (treinador da equipa de futsal à data dos factos), a prova pericial de – relatórios de avaliação psicológica de fls. 215-229, que não foram impugnadas, têm pela sua natureza força probatória reforçadas; e prova documental de: auto de denúncia de fls. 13-16; Prints da base de dados de identificação civil de fls. 20-22; Reportagem fotográfica de fls. 48-50; autos de diligência de fls. 56-58, 196; ficha de registo automóvel de fls. 71; certidão de nascimentos de fls. 87-88; cópia de comunicado de fls. 171-171 v.; informação de serviço de fls. 194. O arguido AA, prestou declarações confessando os factos sob o ponto 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 16 da acusação pública (concretizando quanto a este último facto, que era habitual fazer o mesmo com outros atletas de outros escalões, noutras circunstâncias, nomeadamente quando os levava a tratamentos de reabilitação a massagistas). Quanto aos factos descritos 7, 17, e 18 da acusação pública, o arguido referiu que o BB e o CC insistiam em viajar nos bancos da frente da carrinha, ao lado do condutor e tanto um como outro, tinham o costume de desengatar a alavanca das velocidades de propósito (alavanca essa que se situava entre os bancos), o que fazia com que a reacção do arguido a esse comportamento fosse, bater-lhes nas pernas, empurrar-lhes, tocar-lhes nos joelhos e apertar-lhes os mesmos, e, ainda, por uma vez, colocar as mãos do CC em cima da alavanca das mudanças e, colocando a sua mão em cima da mão do mesmo, manobrar a caixa de velocidades, justificando que, com esta atitude, o mesmo teria noção do perigo que era desengatar a alavanca. Disse, assim, que em nenhum dos momentos descritos nestes pontos da acusação teve qualquer intenção de fazer qualquer carícia aos menores, nem forçar qualquer contacto físico, com instinto libidinoso ou sexual, nem ocultando dos demais ocupantes da carrinha. Em relação ao episódio descrito em 8 a 15, o arguido confirmou os pontos relatados em 8, 9 e 15, sendo que quanto aos demais factos (10 a 14) apresentou uma versão diversa. Assim, referiu que quando o CC lhe pediu para o levar a casa, respondeu negativamente, mas como o menor insistiu, acabou por aceitar dar-lhe boleia. Nesse instante, o arguido dirigiu-se à garagem e pegou em dois sacos de peitos frango e entregou-os ao CC, que, como forma de agradecimento se abraçou ao arguido e lhe deu 4 ou 5 beijos na cara. Nessa sequência, o arguido, agarrou na cara do CC com as duas mãos e deu-lhe um beijo na boca (beijo que classificou como “quase paternal”). Referiu que esse beijo demorou menos do que trinta segundos e que não introduziu a língua no interior da boca do CC. A justificação para a doação dos peitos de frango foi a de que os mesmos pertenciam à Casa do Povo, que geria, e que apoiava famílias carenciadas, e guardava os mesmos na sua casa por falta de espaço na instituição, e bem assim por a família do CC já ser das famílias beneficiárias desse apoio. Quanto ao episódio descrito em 19 a 26, o arguido referiu que apenas imobilizou a carrinha, naquele percurso que fazia sozinho com BB, porque o mesmo, mais uma vez, desatou a alavanca das mudanças e, como ele vinha sentado no lugar mesmo ao lado do seu, decidiu parar, sair da carrinha e abrir a porta do lugar do passageiro, agarrar-se ao BB puxando-o com uma mão pelo peito e outra mão pela zona das nádegas, de forma a colocá-lo no banco de pendura mais à esquerda, colocando-lhe o cinto de segurança, para assim o mesmo sossegar e seguirem a viagem até às ... em segurança. Nega, assim, que, em algum momento em que tenha imobilizado a carrinha, tenha dito ao menor que gostava dele e que o tivesse tentado beijá-lo na boca, o que não conseguiu porque aquele se desviou. Nega, ainda que a força que tenha exercido foi para o acariciar/apalpar, em diversas partes do corpo, designadamente o pénis e o rabo, e ainda que lhe tenha introduzido o dedo no interior do ânus, por cima a roupa, que o tenha sentado na sua perna direita e dito que gostava de si e que queria mais um beijo e ainda que lhe passou a língua na cartilagem da orelha, altura em que o BB tentou soltar-se e disse mesmo “Pára, eu não gosto disso”. Mais referiu que nunca deixou de levar estes menores nos percursos mais longos (apesar de desnecessários), nem os colocou noutros lugares na carrinha, nem teve nenhuma conversa com os pais pois entendia que os mesmos deviam ser “castigados” pelo treinador, a quem referiu que contou estes episódios e pediu que os “castigasse” nos treinos. Foi ainda o arguido confrontado, nos termos legais, com as declarações que prestou em primeiro interrogatório judicial e que constam de fls. 44 a 46 do auto de transcrição de ref. 4922904, de 05.12.2022, onde o arguido referiu, quanto ao episódio do dia 15 de dezembro “é bem provável que eu tivesse posto a mão no pénis”. Os menores BB e CC, prestaram declarações para memória futura, devidamente transcritas – cfr. ref. 4951223, de 22.12.2022, que aqui damos por reproduzidas sem necessidade de as transcrever de novo, por tautológico, por via das quais confirmam, na sua generalidade, excepção feita ao que na acusação se reporta ao facto da alínea a) dos factos não provados, e não há outro elemento probatório que o certifique, tudo o que demais consta do libelo. Efetivamente estes ofendidos relatam, com o pudor que a idade e o tema demandam, a forma como o arguido os abordou em todos os momentos, na garagem, nas viagens que faziam, e concretizaram, cada um deles os episódios mais marcantes que tiveram – o CC no dia 4 de Dezembro de 2021, e o BB no dia 15 de Dezembro de 2021. E estas declarações mereceram inteira credibilidade, contrariando a versão do arguido, esta sim, desprovida de qualquer plausibilidade, a qual também foi contrariada pelo depoimento das demais testemunhas. A testemunha ... (mãe do menor BB), relatou que no dia 15 de Dezembro de 2021, o BB chegou a casa com os olhos vermelhos e muito calado, sendo que no próprio dia acabou por não perceber o que se tinha passado, mas logo no dia seguinte o menor relatou o que ocorrera naquele percurso do dia 15, fazendo já perante a Polícia Judiciária. Explicou ainda que o seu filho já anteriormente a tinha alertado que o arguido às vezes lhe passava as mãos nas penas e lhe enviava mensagens pelo Messenger do Facebook, dizendo que o menor não gostava do arguido da mesma forma como o arguido dele, mas que sempre relativizou esses relatos porque tinham boas referências do arguido na comunidade. Referiu, assim, que desde o dia em que o seu filho comunicou os factos à Polícia comunicou os mesmos por telefone ao treinador da equipa, ..., não tendo o seu filho frequentado mais os treinos. Explicou, ainda que essa situação toda criou um abalo psicológico no menor, que teve de dormir algumas noites acompanhado da enteada. As testemunhas ... e ... (mãe e tia do menor CC, respectivamente), relataram que ficaram surpresas quando em Dezembro de 2021 o menor CC apareceu em casa, acompanhado do arguido AA, que além de o levar a casa, lhe tinha entregue dois sacos de peitos de frango e um cabaz, pois nunca tinha recebido nenhum cabaz, apesar de estar inscrita no Banco Alimentar há cerca de 10 anos. Ambas referiram ainda que nesse dia, o CC comentou com elas que o arguido AA e ele eram “namorados”, não tendo a mãe dado importância ao referido pelo menor, embora a tia tivesse achado estranho. A testemunhas ... (treinador da equipa de futsal à data dos factos), referiu que tanto o BB (que não estava inscrito na equipa, e apenas frequentava os treinos desde Setembro de 2021) e o CC, eram dois atletas bem comportados, fazendo brincadeiras normais da idade. Referiu ainda que, em momento algum o arguido lhe comunicou algum comportamento desajustado destes menores (como o mesmo descreveu – de mexerem nas alavancas das mudanças) nos percursos dos transportes dos treinos para casa, nem nunca assistiu a comportamentos desses nos percursos para os jogos (em que só o CC participava nesses percursos) e muito menos lhe solicitou que “castigasse” estes menores por isso ou porque qualquer outra razão. Referiu que ficou surpreendido quando tomou conhecimento do relatado pela mãe do BB e que entendeu não ter mais condições para continuar a treinar a equipa. Ora, analisando toda esta prova, temos de concluir que não é normal que o arguido perante as alegadas atitudes dos menores, os continuasse a levar no banco da frente naqueles percursos, e que, além do mais, para os alertar para o perigo das alegadas atitudes (mexer na alavanca das velocidades), ainda colocasse as mãos do CC na alavanca e simulasse a condução com o mesmo para que tivessem noção do perigo. Além do mais, apesar de o arguido ter referido que alertou o treinador para esses “maus comportamentos”, isso foi perentoriamente negado pelo treinador, que nenhum interesse tem no desfecho deste caso, que aliás afirmou que tanto o BB como o CC eram bem comportados. Por fim, a dar credibilidade à versão do arguido, não é crível que perante esses comportamentos dos menores, o próprio arguido não tivesse tomado outra atitude, no sentido de falar com os pais ou, simplesmente, de os colocar noutro lugar da carrinha, nomeadamente na parte detrás, ou não os levar no percurso para as Sete Cidades. Mas mais, apurou-se, que a família do CC, apesar de estar sinalizada no Banco Alimentar há mais de dez anos, nunca havia recebido antes qualquer cabaz alimentar. Aqui chegados, analisando os depoimentos acabados de elencar, não podemos deixar de os ter como credíveis. Os prestados pelos ofendidos porque os circunstanciaram, dataram e substanciaram sem empolar, cingindo-se ao que se revela como padrão da conduta do arguido, apontando para pormenores que, só tendo passado pelo que relataram, teriam a capacidade de o referir, sendo certo que estes depoimentos têm, para lá disso, assentamento no depoimento das testemunhas ..., ..., ... e ..., as quais, por seu turno, foram cristalinas quanto ao que declararam, cingindo-se ao que na realidade viveram e presenciaram, fazendo-o de forma escorreita e contida no seu conhecimento directo. Todos prestaram um depoimento coerente, desinteressado e imparcial. Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo, resultam das máximas do saber e experiência comum, pois que sendo o arguido Presidente do Clube, nunca desconheceu a idade dos menores nem a responsabilidade que sobre os mesmos tinha. Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido atendeu-se ao certificado do registo criminal de ref. 4979045, de 13.01.2023. Em relação à situação pessoal, familiar e profissional do arguido, atendeu-se ao que consta do relatório social de ref. 4962657, de 03.01.2023. O facto não provado foi assim considerado por não ter sido produzida nenhuma prova do mesmo. * Assim, tudo visto e ponderado, concluímos que a prova produzida foi clara, inequívoca e segura para demonstrar a matéria factual que supra se descreve como provada, resultando não provado o facto descrito e relevantes para a causa, pelas razões acabadas de explicitar. * * * Apreciando… De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. O recorrente invoca: - nulidade por falta de exame crítico da decisão de facto; - erro de julgamento, com violação dos princípios in dubio pro reo, presunção de inocência e livre apreciação da prova; - errada medida da pena, com eventuais reflexos na sua escolha. * Da nulidade do acórdão por falta/deficiente exame crítico… Alega o recorrente que o acórdão é nulo porque o Tribunal a quo “não especifica em termos minimamente aceitáveis o motivo pelo qual entendeu que as Declarações do Arguido, em determinado segmento, são desprovidas de credibilidade, sejam por si sós, sejam por confronto com a restante Prova existente no Processo e produzida em Audiência de Julgamento”. Diz que o Tribunal a quo fez uma apreciação probatória manifestamente tendenciosa e pró Acusação, valorando as declarações do recorrente para fundamentar determinados factos provados, mas considerando-as não credíveis quando negavam os factos que se queriam dar por provados. E diz que o Tribunal a quo enunciou relativamente a alguns factos que deu por provados qual a prova de que se terá socorrido, mas ignorou por completo a fundamentação probatória das remanescentes factualidades que considerou provadas, não explicando porque considerou mais relevantes as Declarações para Memória Futura dos ofendidos e das testemunhas, que não têm conhecimento directo dos factos. Nos termos do nº 2 do art.º 374º do Cód. Proc. Penal, é requisito da sentença “a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A existência deste vício acarreta a nulidade da sentença, nos termos do nº 1, alínea a), do art.º 379º do Cód. Proc. Penal. A necessidade de fundamentar de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas, não pretende vincular processualmente o juiz a efectuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova, mas apenas a seleccionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa (explicitando porque deu mais relevo a uns em detrimento de outros), ou seja, aqueles que serviram de base à selecção da matéria de facto provada e não provada. Tal matéria é a que constitui objecto de prova e é juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da medida da pena aplicável (cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 30.6.1999, BMJ nº 488, p. 272 e o Ac. da Relação de Évora de 16.3.2004 proferido no âmbito do Proc. nº 1160/03.1). O que é necessário é explicitar porque é que o Tribunal deu determinados factos como provados ou não provados, ou seja, dar a conhecer os motivos que determinaram a convicção do julgador – neste sentido o Ac. do STJ de 30.01.2002, no Proc. nº 3063/01, refere que “o exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”. No caso em análise, apreciando a motivação que supra transcrevemos, verificamos que o Tribunal recorrido explicou claramente porque é que descredibilizou parte das declarações do arguido e porque deu relevo às declarações para memória futura dos ofendidos, que conjugou com os depoimentos das testemunhas oferecidas pela acusação. Quanto ao arguido, aceitando a confissão parcial, apontou os comportamentos que ele disse ter tido e que nenhum apoio têm com a normalidade de agir, bem como as contradições com os depoimentos das testemunhas. Quanto aos restantes explicou que “(…) não podemos deixar de os ter como credíveis. Os prestados pelos ofendidos porque os circunstanciaram, dataram e substanciaram sem empolar, cingindo-se ao que se revela como padrão da conduta do arguido, apontando para pormenores que, só tendo passado pelo que relataram, teriam a capacidade de o referir, sendo certo que estes depoimentos têm, para lá disso, assentamento no depoimento das testemunhas ..., ..., ... e ..., as quais, por seu turno, foram cristalinas quanto ao que declararam, cingindo-se ao que na realidade viveram e presenciaram, fazendo-o de forma escorreita e contida no seu conhecimento directo. Todos prestaram um depoimento coerente, desinteressado e imparcial”. O recorrente pode discordar da apreciação (matéria para avaliar em sede de erro de julgamento), mas podemos concluir que foi feito o exame crítico da prova, inexistindo a nulidade invocada. Do erro de julgamento… Alega o recorrente que foram indevidamente dados como provados os factos elencados sob os nºs 7, 13 (parcialmente), 14, 18 (parcialmente), 21 (parcialmente) e 22 da matéria fáctica provada, afirmando que a convicção do Tribunal deu especial crédito às declarações para memória futura dos ofendidos e aos depoimentos das testemunhas, desconsiderando as suas declarações sobre os referidos factos, com violação dos princípios in dubio pro reo, presunção de inocência e livre apreciação da prova. Define o art.º 124º 1 do Cód. Proc. Penal, o que vale em julgamento como prova, ali se determinando que “constituem objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”. Neste artigo, onde se regula o tema da prova, estabelece-se que o podem ser todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou para a inexistência de qualquer crime, para a punibilidade ou não punibilidade do arguido, ou que tenham relevo para a determinação da pena. A ausência de quaisquer limitações aos factos probandos ou aos meios de prova a usar, com excepção dos expressamente previstos nos artigos seguintes ou em outras disposições legais (só não são permitidas as provas proibidas por lei ou as obtidas por métodos proibidos – art.ºs 125º e 126º do mesmo Cód.), é afloramento do princípio da demanda da descoberta da verdade material que continua a dominar o processo penal português (Maia Gonçalves, Cód. Proc. Penal, 12ª ed., p. 331). A prova pode ser directa ou indirecta/indiciária (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II vol., p. 99 ss). Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova, quer a directa quer a indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do Julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objectivável, valorando cada meio por si e na conjugação dos vários elementos, analisados de acordo com as regras da experiência. Efectivamente, nos termos do art.º 127º do Cód. Proc. Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” – é o princípio da livre apreciação da prova. De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, vol. II, p. 111) “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”. Diz Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p. 199 e ss.), que esta liberdade está de acordo com um dever: o dever de perseguir a chamada “verdade material”. Ou seja, a liberdade do convencimento do Julgador, se não deixa de ser expressão de uma convicção pessoal, também não é uma liberdade meramente intuitiva, é antes um critério de justiça que se tem que basear na verdade histórica das situações e necessita de dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão. Este princípio da livre apreciação da prova está intimamente relacionado com os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção da prova e a discussão, na audiência de julgamento, se realizem oralmente, de modo a que todas as provas (excepto aquelas cuja natureza não o permite) sejam apreendidas pelo Julgador por forma auditiva. O segundo, diz respeito à proximidade que o Julgador tem com os intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova, através de uma percepção directa. Como salienta o Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. I, p.233 e 234) “só os princípios da oralidade e imediação… permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles, por outro lado, permitem avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”. Os meios de que o Tribunal de primeira instância dispõe para a apreciação da prova são diferentes dos que o Tribunal de recurso possui, uma vez que a este estão vedados os princípios da oralidade e da imediação e é através destes que o Julgador percepciona as reacções, os titubeios, as hesitações, os tempos de resposta, os olhares, a linguagem corporal, o tom de voz, tudo o que há-de constituir o acervo conviccional da fé e credibilidade que a testemunha há-de merecer. Isto significa que o Tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova quando para a credibilidade do testemunho foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, embora possa controlar a convicção do Julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Vejamos, então, das razões do recorrente. Os factos impugnados são os 7, 13 (parcialmente), 14, 18 (parcialmente), 21 (parcialmente) e 22, ou seja: - Em data não concretamente apurada do ano de 2021, mas anterior a 15/12/2021, e pelo menos uma vez, o Arguido durante as viagens, na área geográfica de ..., chegou a passar a mão pela perna esquerda de BB, na zona do joelho e a fazer-lhe carícias, sem que os demais ocupantes da viatura se apercebessem (7). - o Arguido ao dar um beijo na boca do CC introduziu a língua no interior da mesma (13). - Tal situação durou entre 30 segundos e 1 minuto (14). - o arguido ao puxar a mão do CC (colocando-a em cima da alavanca das mudanças e, colocando a sua mão em cima da mão do Ofendido, manobrava a caixa de velocidades), forçou assim contacto físico com o menor (18). - o Arguido chegou mesmo a introduzir um dedo no interior do ânus do jovem (BB), penetrando-o, apesar de o estar a tocar por cima da roupa (21). - Ademais, ao mesmo tempo que passou a mão pelo corpo do BB, o Arguido passou a sua língua na cartilagem da orelha daquele (22). O Tribunal recorrido fundou a sua convicção nas declarações para memória futura dos ofendidos, pois que o arguido/recorrente negou a prática de tais factos. Ora vistas as declarações para memória futura do menor BB, verificamos que este contou que o arguido lhe passou a mão pela perna esquerda, na zona do joelho – exemplificando com o gesto – fazendo carícias, sem que os demais ocupantes da viatura se apercebessem. Também confirmou que o arguido introduziu um dedo no interior do seu ânus, por cima da roupa, penetrando-lhe, assim, o ânus com o dedo. Confirmou igualmente que o arguido lhe passou a mão pelo corpo (tocando-o “nas partes”) e a língua na cartilagem da sua orelha. Vistas as declarações para memória futura do menor CC, verificamos que este relatou que numa ocasião o arguido ao dar-lhe um beijo na boca introduziu a língua no interior da mesma, durando tal situação entre 30 segundos e 1 minuto. O menor também contou que era o arguido que lhe puxava a mão (ia buscá-la) colocando-a em cima da alavanca das mudanças, e colocando a sua mão em cima da mão dele manobrava a caixa de velocidades – pelo que podemos concluir que desta forma (indo buscar a mão) forçou o contacto físico com o menor. O arguido negou estas acções, mas o Tribunal acreditou nos ofendidos, explicando que acreditou porque os ofendidos circunstanciaram, dataram e substanciaram os episódios sem empolar, cingindo-se ao que se revela como padrão da conduta do arguido, apontando para pormenores que, só tendo passado pelo que relataram, teriam a capacidade de o referir, prestando um depoimento coerente, desinteressado e imparcial. De referir que a explicação dada pelo arguido para colocar as mãos do CC na alavanca e simular a condução com o mesmo (para que tivesse noção do perigo) não tem qualquer correspondência com a normalidade das coisas e não é crível, tal como o Tribunal a quo afirmou. Temos, assim, que o Tribunal recorrido, escudado nos princípios da oralidade e da imediação, explicou claramente o que lhe pareceu crível e concatenou os depoimentos prestados, de uma forma crítica e lógica. De referir que se tem vindo a entender que a ausência de imediação determina que o Tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, nos termos previstos pelo art.º 412º, n.º 3, al. b) do Cód. Proc. Penal, mas já não quando permitirem outra decisão. Ou seja, a convicção da primeira instância, só pode ser posta em causa quando se demonstrar ser a mesma inadmissível em face das regras da lógica e da experiência comum. Significa isto que o recorrente não pode pretender substituir a convicção alcançada pelo Tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção (neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 25.03.2010, Proc. 427/08.0TBSTB. E1.S1, pesquisado em www.dgsi.pt ). No caso, analisados os registos da audiência de julgamento, não podemos deixar de aceitar a posição do Julgador a quo, que de modo algum aponta para uma apreciação arbitrária da prova, sendo, pelo contrário, todos os elementos probatórios suficientes para se concluir como fez o Tribunal recorrido. Vem também o recorrente arguir a inconstitucionalidade da norma do art.º 127º do Cód. Proc. Penal, na dimensão normativa com que foi aplicada na motivação do acórdão recorrido, o qual, segundo afirma, fixou por presunção natural factos que não estão indiciados por quaisquer factos base, nem decorrem, por raciocínio lógico, da aplicação aos factos base de quaisquer regras de experiência. Não especifica o recorrente que factos é que terão sido fixados por presunção natural, mas há que esclarecer que a presunção, alicerçada em factos provados, interpretados de acordo com as regras da experiência, é perfeitamente admissível, como supra já dissemos quando nos referimos à prova indiciária. E analisada a matéria fáctica provada e a motivação supra transcrita, verificamos que apenas os factos que integram o elemento subjectivo é que não se alicerçaram em prova directa. Todavia, é sabido que os factos respeitantes aos elementos volitivos e intelectuais são inferências que se retiram dos restantes factos provados, considerando que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum [ensina Cavaleiro Ferreira – in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1981, pág. 292 – que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa; também Malatesta – in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, págs. 172 e 173 – defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”)]. Em face dos restantes factos provados, analisados de acordo com as regras da experiência comum, bem andou o Tribunal recorrido ao concluir como fez, não violando o Princípio da livre apreciação da prova nem qualquer preceito constitucional. Tal como não violou o Princípio da presunção de inocência ou o Princípio in dubio pro reo, não tendo violado, em consequência os art.ºs 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14º nº 2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e 5º nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O nº 2 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da presunção de inocência, de que o princípio in dubio pro reo constitui uma dimensão. Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, p. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”. Com efeito, este princípio (do in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Assim, o princípio em questão só se aplica perante uma situação de non liquet, uma dúvida insanável, e não, quando se está perante a palavra do arguido contra a palavra do ofendido, como parece ser o entendimento do recorrente. É que mesmo no caso de não haver testemunhas e de estarmos perante palavra contra palavra, nada impede o Julgador de dar mais crédito a uma palavra do que à outra – tem é que explicitar porquê – é que as provas não se somam ou diminuem, pesam-se. E no caso, lida a motivação da decisão de facto, verificamos que o Tribunal recorrido não ficou com qualquer dúvida sobre a prova, pelo que não pode pôr-se a questão de violação do princípio in dubio pro reo. Como se refere no sumário do Ac. do STJ de 27.05.2010, no Proc. 18/07.2GAAMT.P1.S1, “a eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida…quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida ‘patentemente insuperável’ e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido”. Posto que uma tal referida evidência não se verifica no caso, é impossível concluir pela violação daquele princípio com protecção constitucional e internacional. Ainda em sede do invocado erro de julgamento vem o recorrente alegar “a arbitrariedade latente no Acórdão recorrido relativamente à especificação da exata quantidade de resoluções criminosas autónomas e independentes entre si, não havendo elementos de prova bastantes ou suficientes para que se possa dar como provado que o Arguido cometeu a panóplia de crimes pelos quais veio a ser condenado”. Já vimos que a matéria de facto dada por assente corresponde aos factos confessados e aos factos apurados nos termos a que nos referimos quando indeferimos a impugnação feita pelo recorrente e relativa ao acervo fáctico. Mas quanto à exata quantidade de resoluções criminosas autónomas e independentes entre si lembramos que o nº 1 do art.º 30º do Cód. Penal preceitua que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Como desvios a esta regra surgem o concurso aparente de normas e o crime continuado, este último previsto no nº 2 do mesmo art.º 30º e assim descrito: “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, ressalvando o nº 3 que “o disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”, afastando, através da referência a bens eminentemente pessoais, os crimes praticados, nomeadamente, contra a liberdade e autodeterminação sexual – como é o caso dos autos. Pelo que não se poderá apelar à forma continuada deste tipo de delitos. Nem à figura do trato sucessivo que, nas palavras do Conselheiro Maia Costa (no Ac. do STJ de 23.01.2008, Proc. 07P4830) “caracteriza-se pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime”. É sabido que até à entrada em vigor da actual redacção do art. 30º do Cód. Penal (cfr. a Lei 40/2010 de 3.09) parte da jurisprudência defendia a aplicação do conceito de crime de trato sucessivo aos crimes praticados contra a liberdade e autodeterminação sexual quando a vítima fosse a mesma, mas hoje em dia esta interpretação foi completamente posta de parte quando aplicada a violações reiteradas de bens jurídicos eminentemente pessoais. Com efeito, tem-se vindo a entender que uma tal interpretação acaba por contornar a inaplicabilidade da unificação punitiva através da forma do crime continuado visada pelo nº 3 do art.º 30º do Cód. Penal, o que é ilegal. Demonstrativa desta asserção é a recente Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: - “é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais - como sucede com os crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. no artº 171º, nºs e 177º, nº 1, al. a), do CP - como um único crime de trato sucessivo, ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Se o nº 3 do art.º 30º do CP proíbe o tratamento de unidade criminosa em termos de crime continuado estando em causa a violação de bens eminentemente pessoais, sendo o legislador insensível a uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente, por maioria de razão terá que ser da mesma maneira, se nem sequer estão preenchidos os pressupostos do crime continuado” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2016 (Processo 677/13.7TAAGH.L1.S1). - “O legislador, através da Lei 40/2010 referida, suprimiu o trecho final do até aí vigente nº 3 do artigo 30º do Cód. Penal. De modo que, a pluralidade de ações naturalísticas ilícitas típicas contra a mesma vítima, ficaram desde estão, repete-se, excluídas da continuação criminosa, de poderem subsumir-se a essa unidade criminosa legalmente construída, subsistindo, deixando a descoberto o concurso efectivo de crimes que, como tal haverá que punir. Alteração que foi comandada pelo ideário de que, na ofensa de bens eminentemente pessoais criminalmente protegidos, ainda que a vítima seja a mesma, não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso. Nestes casos, independentemente das circunstâncias, a realização do tipo é suficiente para a determinação da pluralidade de infracções. Aplicado aos crimes sexuais, significa que em cada um dos temporalmente separados e repetidos actos sexuais de relevo praticados pelo agente na mesma vítima, consuma uma decisão, uma opção de vontade, perfeitamente delimitada na sua autonomia em relação a todas as outras, a sustentar uma renovação da formulação de igual juízo de culpa. (…) Para a temática que ora – do crime continuado - nos ocupa, é suficiente sublinhar que, por opção do legislador penal, desde 3 de Outubro de 2010, não é admissível “unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação”. Não se admitindo subsumir à unidade criminosa continuada a realização plúrima do mesmo tipo de crime contra a liberdade ou contra a autodeterminação sexual, ainda que a vítima seja a mesma, resta o concurso de crimes. Isto é, o número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente –art.º 30º n.º 1 do Cod. Penal. Consequentemente, nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de crianças e adolescentes não têm cabimento legal unificar através da categoria normativa do crime continuado as várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos do tipo de ilícito” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 2020, Processo nº 396/18.8PBLRS.L1.S1). Do exposto resulta que quer o conceito de crime continuado, quer mesmo o conceito de crime de trato sucessivo não tem aplicação aos crimes praticados contra a liberdade e a autodeterminação sexual e, logo, aos crimes versados nos autos, pelo que bem andou o Tribunal recorrido ao considerar distintamente as várias acções praticadas. Da integração jurídica… Em lado algum do seu recurso o recorrente impugna a integração jurídica efectuada pelo Tribunal a quo. Aliás, o arguido, ora recorrente, vinha acusado da prática, em autoria material e na forma consumada e em concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171º nºs 1 e 2 e 177º nº 1 al. b) do Cód. Penal – um quanto a BB e outro quanto a CC – mas no decurso da audiência de julgamento, o Tribunal proferiu o seguinte despacho: "Comunica-se à defesa uma alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do artigo 358.º, n.º 3 do C.P.P., no sentido dos mesmos, tal como descritos na acusação, integrarem a prática pelo arguido, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de: - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a BB; - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, quanto a CC, e - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a CC; - 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal, quanto a BB. Notifique." Na sequência foi dada a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido que no uso da mesma disse nada ter a requerer. Contudo perfilam-se erros de direito que deverão ser corrigidos. De acordo com o Acórdão da Relação do Porto de 10.09.2008 (Proc. nº 0841369) “Ainda que não incluído (directamente) no objecto do recurso, afigura-se-nos estar ínsito na natureza e finalidades dos Recursos a correcção, pelo Tribunal Superior, de eventuais erros de Direito que, pela sua relevância, entenda ser de suprimir; sem prejuízo, é evidente, da proibição de reformar a decisão em sentido mais desfavorável ao condenado (“reformatio in pejus”). Nesse sentido se pronunciam Simas Santos e Leal-Henriques (Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 6º Ed. 2007, pp. 86-87), qualificando tal entendimento como “tributário da concepção dos poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do Direito (v.g. da qualificação jurídica), poderes só limitados pela proibição da reformatio in pejus.” Na referida obra é, mesmo, citado o Ac. do STJ, de 15/09/1993 (in BMJ, p. 429-501): “Decidiu o STJ no Ac. 19/10/2000, Proc. nº 2803/00-5: «ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo (no caso, o objecto do recurso circunscreve-se à questão da medida da pena aplicada), não pode nem deve o STJ – enquanto Tribunal de Revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de Direito – dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções.” Este entendimento será extensível aos Tribunais de Relação, com equivalente poder decisório – embora em escala hierárquica diferente –, ao nível do reexame da matéria de Direito”. Também no Acórdão do STJ de 2.04.2008 (Proc. nº 07P4197) se decidiu que “Aquele objectivo único assim expresso pelo recorrente não impede, porém, este Supremo Tribunal de indagar, por iniciativa própria, da correcção da subsunção jurídica feita no acórdão recorrido, ou averiguar se efectivamente se está perante caso de concurso real de infracções, como tem sido entendido por este Tribunal em vários arestos, invocando-se o Acórdão 4/95, de 07-06-1995, in DR, I Série, de 06-07-1995, e BMJ 448, 107, que então decidiu: “O Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”. Mesmo quando o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias, não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções”. Vejamos, então, a fundamentação de direito efectuada pelo Tribunal recorrido: Ao arguido é imputada, na acusação pública, a prática, em autoria material e na forma consumada e em concurso efectivo de: - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, quanto a BB; - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, quanto a CC. Na sequência da alteração da qualificação jurídica dos factos, foi comunicada o enquadramento jurídico dos factos, na prática, pelo arguido, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, dos seguintes crimes: - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a BB; - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, quanto a CC, e - 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a CC; - 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal, quanto a BB. Diz a lei – artigo 171º do C.P. que: “1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos; 3 - Quem: a) Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.º; ou b) Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto pornográficos; c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais; é punido com pena de prisão até três anos; 4 - Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. 5 - A tentativa é punível. Por outro lado, dispõe o artigo 164.º do C.P. que “1 - Quem constranger outra pessoa a: a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos; é punido com pena de prisão de um a seis anos. 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.” O Código Penal em vigor, dentro do Capítulo V, autonomizou uma secção para abranger os delitos sexuais cometidos contra menores, intitulando-a “Crimes contra a Autodeterminação Sexual” – Secção II, epigrafando a Secção I de “Crimes contra a Liberdade Sexual” e a Secção III de “Disposições Comuns”. Foi, pois, introduzida pelo legislador uma importante distinção entre a protecção pura e simples da liberdade sexual, ou seja, do direito de cada um participar em qualquer actividade de cariz sexual, como sujeito activo ou passivo, apenas se e quando o quiser (Secção I), e a protecção, para além desta liberdade, do livre desenvolvimento dos menores na área sexual (Secção II). Ali protege-se a liberdade do adulto em tudo quanto se reporte à área sexual. Aqui protege-se o menor, também, da sua própria imaturidade e desconhecimento em relação à sexualidade. Com efeito, como se extrai do preceito normativo, o bem jurídico tutelado no crime de abuso sexual de crianças é, além da liberdade e/ou autodeterminação sexual, próprio de todos os crimes sexuais, o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, o qual merece, sem margem para considerações, a tutela última do Direito Penal. São elementos objectivos do ilícito penal base, praticar com ou em menor de 14 anos, ou induzi-lo a praticar, acto sexual de relevo. Já no que concerne ao elemento subjectivo específico deste tipo de ilícito é necessário o dolo, numa das suas três modalidades, devendo o mesmo verificar-se relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito. No caso dos presentes autos, os menores em causa – BB e CC – tinham à data dos factos 12 anos de idade e, portanto, eram, menores de 14 anos. Contudo, para que se possa aferir do preenchimento do restante elemento objectivo do tipo, é imperioso delimitar e circunscrever o que deve entender-se por acto sexual de relevo. O conceito de acto sexual de relevo tem sido ao longo do tempo, alvo de várias interpretações, sendo tal facto espelhado quer pela evolução jurisprudencial, quer pelas alterações legislativas sentidas a este respeito. Apenas a reforma do Código Penal de 1995 fez dos chamados crimes sexuais, até então sistematizados no capítulo dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade, autênticos crimes contra as pessoas e contra um valor estritamente individual – o da liberdade de autodeterminação sexual. Esta alteração não há-de ser encarada como uma mera alteração sistemática, mas antes como uma moderna concepção do direito penal, sendo à luz desta evolução histórica que o conceito de acto sexual de relevo deve ser absorvido e sopesado pelo intérprete e pelo julgador. Assim, neste domínio, configurará um acto sexual, todo aquele que se destine à libertação e satisfação dos impulsos sexuais e que, por isso, assuma um conteúdo ou um significado intimamente relacionado com a esfera da sexualidade. Já quanto à qualificação do acto, o mesmo assumir-se-á como de relevo se contender com a liberdade de determinação sexual da vítima. Quer isto dizer que não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito deste ilícito penal, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 449) “ao exigir que o acto sexual seja de relevo a lei impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido (função positiva); é dizer-se, que determine – ainda aqui de um ponto de vista objectivo – se o acto representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima”. Neste sentido lê-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 2005, proferido no processo n.º 05P2442 que “Para justificar a expressão "de relevo" terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual. (…) Em sede de abuso sexual de crianças, o "relevo" como que está imanente a qualquer actuação libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser” tanto mais que nesses casos estão em causa pessoas que presumível ou manifestamente não dispõem do discernimento necessário para, no que ao sexo respeita, se exprimirem ou se comportarem com liberdade, com presciência ou com autenticidade. Como se viu, porém, o acto sexual de relevo pode consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos (n.º 2 do artigo 171.º do Código Penal). Dispõe o artigo 170.º do C.P. que “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Por seu turno, diz-nos o artigo 177.º do mesmo diploma legal, também na versão actual (da lei n.º 40/2020, de 18.8): 1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adotante, adotado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez. 2 – As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea c) do n.º 2 do artigo 175.º. 3 – As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível. 4 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 175.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 176.º e no artigo 176.º-A são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o crime for cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas. 5 - As penas previstas nos artigos 163.º a 168.º e 171.º a 174.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se dos comportamentos aí descritos resultar gravidez, ofensa à integridade física grave, transmissão de agente patogénico que crie perigo para a vida, suicídio ou morte da vítima. 6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos. 7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º e 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos. 8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.” A abordagem da questão tem de começar por apurar o que deve entender-se por “dependência hierárquica” para este efeito. É patente que, com a introdução da al. b) se teve em vista alargar o âmbito da alínea a) do mesmo n.º 1 do artigo 177.º. A razão de ser (a teleologia) da disposição normativa agravante é a mesma, quer na hipótese da alínea a), quer na previsão da alínea b): a existência de uma proximidade relacional entre o agente e a vítima que acentua a carga de ilicitude da conduta punível (cfr. Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal – Parte Geral e Especial, com Notas e Comentários”, 2.ª edição, p. 782). Nestas situações, a conduta do agente é particularmente desvaliosa porque, quando era suposto que à criança fosse proporcionado um ambiente protector e é nisso que os pais acreditam quando deixam os filhos ao cargo destas pessoas (presidentes de clubes, treinadores, professores), eles traem essa confiança, violentando-a com o abuso sexual que comete sobre ela. A essa violência, que deixa marcas indeléveis na criança, acresce a tentativa de ocultação, fenómeno que pode ser ostensivo ou manifestar-se de forma mais ou menos velada, mas que se traduz sempre em pressões, chantagens e pode chegar mesmo à ameaça física e/ou psicológica, incutindo-lhe medo e fazendo-a sentir-se culpada pelas possíveis consequências da sua denúncia. Assim, a utilização do conceito “dependência hierárquica” visa abranger toda a relação entre o agente e a vítima que se traduza numa proximidade e hierarquia dentro de uma determina estrutura organizativa (como é o caso – o arguido era o Presidente do Clube), e que o agente se aproveite dessa situação, no duplo sentido de que o mesmo tira partido da mesma e ao mesmo tempo lhe era exigível um comportamento mais conforme ao direito, sendo, nessa medida, mais elevado o desvalor da ação. Daí a agravação, quase como que violação do princípio da confiança decorrente da relação dessa proximidade (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-05-2016, processo n.º 155/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt). Ora, tendo em conta o que se provou e está assente nos pontos 1, 3, 7, 25, 26 e 27, não restam dúvidas que o arguido AA, conformando-se com a possibilidade de o fazer com menor de 14 anos, coisa que aceitou, manteve contacto físico, constrangendo o BB a contacto de natureza sexual, tudo fazendo de forma livre e esclarecida, sabendo que cometia crime. Assim, cometeu o arguido AA, em autoria material e na forma consumada,1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a BB. Por sua vez, tendo em conta o que se provou e está assente nos pontos 1, 3, 17, 18, 25, 26 e 27, não restam dúvidas que o arguido AA, conformando-se com a possibilidade de o fazer com menor de 14 anos, coisa que aceitou, manteve contacto físico, constrangendo o CC a contacto de natureza sexual, tudo fazendo de forma livre e esclarecida, sabendo que cometia crime. Assim, cometeu o arguido AA, em autoria material e na forma consumada, 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a CC. Já quantos aos factos que se provaram e estão assente nos pontos 1, 3, 8 a 15, 25, 26 e 27, não restam dúvidas que o arguido AA, conformando-se com a possibilidade de o fazer com menor de 14 anos, coisa que aceitou, sujeitou o menor CC a trato sexual de relevo, praticando nele actos sexuais de relevo e para lá disso, introduzindo a sua língua na boca do menor, tudo fazendo para seu deleite, de forma livre, consciente de que cometia crime e dessa forma atentava contra a autodeterminação sexual do mesmo e a prejudicava no seu desenvolvimento normal, tudo fazendo de forma livre e esclarecida, sabendo que cometia crime. Assim, cometeu o arguido AA, em autoria material e na forma consumada, 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, quanto a CC. Por fim, tendo em conta o que se provou e está assente nos pontos 1, 3, 19 a 27, não restam dúvidas que o arguido AA, conformando-se com a possibilidade de o fazer com menor de 14 anos, coisa que aceitou, sujeitou, através do uso da força muscular e contra a vontade do menor, BB a trato sexual de relevo, praticando nele actos sexuais de relevo e para lá disso, introduzindo o seu dedo no ânus do menor, tudo fazendo para seu deleite, de forma livre, consciente de que cometia crime e dessa forma atentava contra a autodeterminação sexual do mesmo e a prejudicava no seu desenvolvimento normal, tudo fazendo de forma livre e esclarecida, sabendo que cometia crime. Assim, cometeu o arguido AA, em autoria material e na forma consumada, 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal, quanto a BB. As acções do arguido atrás descritas revelam-se objectivamente graves e traduzem intuitos e desígnios sexuais que frontalmente são atentatórios da liberdade sexual dos menores que, em função da idade, ainda não tinham o suficiente discernimento para se autodeterminar, no que à esfera da sexualidade respeita, de forma livre e consciente, tanto mais que no episódio do dia 15 de Dezembro, o menor BB se opôs ao comportamento do arguido, o qual exerceu força física para satisfazer os seus intentos. Relativamente ao elemento subjectivo do tipo incriminador, decorre da matéria de facto provada que o arguido bem sabia que os menores se encontravam ao seu cuidado, numa relação de hierarquia organizativa, enquanto Presidente do Clube em que treinavam e jogavam, confiados pelos pais; e que contavam apenas 12 anos de idade e, ainda assim, e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuou livre, deliberada e conscientemente com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais nos termos acima descritos. Actuou, pois, o arguido com dolo directo, porquanto, representou que os factos que praticou preenchem os tipos legais de crime que praticou, e, não obstante, actuou com intenção de os realizar (artigo 14.º n.º 1 do Código Penal). Deste modo, inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que o arguido cometeu, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a BB; 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 1 e n.º 2 e 177.º n.º 1 al. b) do Código Penal, quanto a CC; 1 (um) crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 171.º n.º 3, al. a) e 177.º n.º 1, al. b) do Código Penal, quanto a CC; e 1 (um) crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal, quanto a BB, não existindo factos susceptíveis de consubstanciarem causas de exclusão da ilicitude, da culpa ou da punibilidade, pelo que o arguido deverá ser punido pelos crimes acabados de analisar. Dando aqui por reproduzido tudo quanto se diz no acórdão recorrido sobre a verificação da agravante prevista no art.º 177º, nº 1, alínea b) do Cód. Penal e também no que se refere ao elemento subjectivo, presente em todos os actos praticados pelo arguido na pessoa dos menores (que agiu sempre querendo e conseguindo satisfazer os seus instintos libidinosos), há no entanto que proceder à análise dos elementos objectivos. Assim, o acto de, em data não concretamente apurada do ano de 2021, mas anterior a 15/12/2021, e pelo menos uma vez, o Arguido durante as viagens, na área geográfica de ..., chegou a passar a mão pela perna esquerda de BB, na zona do joelho e a fazer-lhe carícias, integra a previsão do art.º 171º, nº 3, alínea a) do Cód. Penal. Da mesma forma, o acto de, pelo menos uma vez, o Arguido ter tocado com a mão no joelho esquerdo do CC, acariciando-o, e puxando a mão do CC, colocou-a em cima da alavanca das mudanças e, colocando a sua mão em cima da mão do Ofendido, manobrava a caixa de velocidades, forçando assim contacto físico com o menor, integra a previsão do art.º 171º, nº 3, alínea a) do Cód. Penal. E o acto de, no dia 15/12/2021, a seguir ao treino, o Arguido, depois de deixar os atletas nas suas casas e quando já se encontrava sozinho no interior da viatura com BB, no percurso entre as Sete Cidades e a localidade de ..., em ..., imobilizou a carrinha que tripulava e deslocou-se para o lugar central, disse ao Ofendido BB, que estava sentado no lugar mais à direita e trajava calções curtos e uma camisola, que gostava dele e, de seguida, tentou beijá-lo na boca, o que não logrou naquele momento, porque o ofendido conseguiu desviar-se; acto contínuo, o Arguido segurou o BB pelo seu braço direito com a sua mão esquerda, exercendo força muscular, e com a outra mão acariciou-o/apalpou-o em diversas partes do corpo, designadamente, o pénis e o rabo, chegando mesmo a introduzir um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o, apesar de o estar a tocar por cima da roupa; ademais, ao mesmo tempo que passou a mão pelo corpo do BB, o Arguido passou a sua língua na cartilagem da orelha daquele; enquanto o Arguido actuou da forma descrita, BB tentou soltar-se, chegando mesmo a proferir as expressões: “Pára, eu não gosto disso!”; a dado momento, o Arguido pegou no BB pelos braços e sentou-o na sua perna direita, dizendo-lhe que gostava de si e que só queria mais um beijo; nesse momento, BB, assustado, pensou que o arguido ia continuar a agir da forma descrita ou tentar ter relações sexuais consigo, mas parou – integra a previsão do art.º 164º, nº 2, alínea b), por referência ao art.º 177º, nº 1 alínea b), e tendo em conta a agravação prevista no art.º 177º, nº 7, todas normas do Cód. Penal. Já quanto ao acto de, no dia 04/12/2021, quando o CC pediu ao arguido que o levasse a casa, ao que aquele respondeu afirmativamente, acrescentando que o levaria a casa se ele lhe desse 4 ou 5 beijos na sua bochecha, o que o CC fez na bochecha do lado direito, após o que o Arguido entregou ao CC dois sacos de peito de frango, que ele segurou com as mãos, e o Arguido agarrou a cara do CC com as duas mãos e, acto contínuo, deu-lhe um beijo na boca, tendo-lhe introduzido a língua no interior da mesma, contra a sua vontade, situação que durou entre 30 segundos e 1 minuto, e de seguida, quando o Arguido fazia o percurso para deixar CC na sua residência, parou na Casa do Povo e foi buscar um cabaz de compras que lhe ofereceu, não integra a previsão do art.º 171º, nºs 1 e 2 do Cód. Penal. Pune o referido normativo “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos” (nº 1) e “se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos” (nº 2). Um beijo na boca, com introdução de língua, por pelo menos 30 segundos é um acto sexual de relevo. Afirma Sénio Alves (in Crimes Sexuais, pág. 8 ss), a propósito do que seja acto sexual de relevo o seguinte: “São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual”, pelo que “o acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas”. E Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal) em anotação ao artigo 163º, concretizando o que seja acto sexual de relevo, nele integra o toque com partes do corpo nos seios, nádegas, coxas e boca. Finalmente, citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, (proc. nº 889/09.8.TAPBL.C1, pesquisado em www.dgsi.pt.) diremos que “acto sexual de relevo é ( ... ) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas”. Todavia, um beijo na boca, com introdução de língua, não configura cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, pelo que não integra a previsão do nº 2 do art.º 171º do Cód. Penal. O que significa que a punição pelo referido nº 2 não pode subsistir e, nestes termos, altera-se a qualificação jurídica imputada ao recorrente, que se queda apenas pelo nº 1 do citado art.º 171º (sem necessidade de se proceder à comunicação a que alude o nº 3 do art.º 358º do Cód. Proc. Penal porque a alteração determina a convolação para crime menos grave). Da pena… Para além da necessidade de proceder à alteração da pena parcelar decorrente da convolação jurídica acabada de operar, há que atentar ainda que o recorrente alega que o acórdão recorrido não sopesou a circunstância de ele ter assumido, com relevo para a descoberta da verdade material, alguns dos factos de que estava acusado. Não deu suficiente valor à circunstância de o recorrente não ter antecedentes criminais; de o seu agregado ser detentor de uma imagem social favorável, reconhecidos pelo envolvimento nas questões comunitárias; de estar familiarmente integrado, ser Assistente Técnico da Câmara Municipal de ... e desde 2006 presidente da Casa do Povo de ...; que do seu Relatório Social consta que verbaliza empatia para com as vítimas, adoptando uma postura crítica em relação a comportamentos como os descritos na acusação e que como fatores de proteção destaca-se o ambiente familiar coeso e protetor, um quotidiano estruturado, uma imagem social positiva, o envolvimento nos assuntos da comunidade, uma condição económica estável, a par de competências pessoais e sociais. Requer a aplicação de uma pena mais reduzida e suspensa na sua execução mediante determinadas injunções. Com respeito às penas parcelares e única aplicadas, disse o Tribunal recorrido: Cumpre determinar a pena concretamente aplicável ao arguido pela prática, dos crimes acima analisados, atendendo à pena abstractamente aplicável, aos critérios de escolha e medida da pena e às suas finalidades. Quanto às finalidades das penas, estabelece o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal que “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.” A protecção dos bens jurídicos, sendo estes determinados por referência à ordem axiológica jurídico-constitucional, implica a rejeição de uma limitação da intervenção penal assente numa qualquer ordem transcendente e absoluta de valores, fazendo assentar a referida legitimação unicamente em critérios funcionais de necessidade (e de consequentemente utilidade) social. Por isso a aplicação da pena não mais pode fundar-se em exigências de retribuição ou de expiação da culpa, sem qualquer potencial de utilidade social, mas apenas em propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada. – Cfr. Figueiredo Dias, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, Fascículo 1, 1991, Aequitas, Editorial Notícias, página 17 e 18. Subjacente à protecção jurídica de bens jurídicos está a chamada finalidade de prevenção geral positiva que juntamente com a prevenção especial positiva ou ressocialização constituem as finalidades das penas no nosso ordenamento jurídico. A pena tem por fundamento e limite a medida da culpa, não podendo ultrapassá-la (cfr. artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1 do Código Penal). Na verdade, “(…) à culpa, a que se reconhece a dignidade de pressuposto irrenunciável de toda e qualquer punição, caberá a função, única mas nem por isso menos decisiva, de determinar o limite máximo e em todos os casos inultrapassável da pena (…)” in Manuel Lopes Maia Gonçalves, “Código Penal Português, Anotado e Comentado”, Almedina, 2004, 16ª edição, pág. 176. Para a determinação da medida concreta da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, atender-se-á à culpa do agente e às exigências de prevenção, ponderando ainda todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as circunstâncias previstas nas diversas alíneas do artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal. O limite superior da pena é pois o da culpa do agente. O limite mínimo é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor. Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras da prevenção especial de socialização; é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade. À prática dos crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal corresponde pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses. Por seu turno, os crimes de abuso sexual agravado do artº. 171º, nº 3, al. b) e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., são puníveis com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 3 anos e 4 meses. Por fim, o crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal, é punível com pena de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão. Para efeitos da agravação deste concreto crime releva o n.º 7 do art.º 177.º do C.P., devendo todas as outras circunstâncias agravantes serem consideradas, como imposição do nº. 8 do mesmo preceito, na medida da pena. Termos em que se passam a determinar as medidas concretas das penas de prisão a aplicar ao arguido pelos crimes que lhe são imputados. No caso, a ilicitude dos factos revela-se em grau de intensidade mediana quanto aos crimes de abuso sexual agravado, p. e p. pelos artº.171º, nº. 3, al. b) e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., e mais elevada quantos aos crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal e crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal, face ao contexto em que se deram os factos e os actos praticados pelo arguido. O modo de execução é particularmente desvalioso (atendendo ao esquema que arquitetou para levar cabo os seus actos, levando os menores para percurso mais longos, ou aproveitando-se de momentos a sós com os mesmos). A gravidade dos factos revela, também neles, um sentimento de acentuada desconformidade do arguido com valores essenciais, e uma personalidade crítica a impor exigências de recomposição valorativa já que, no mais, se trata de pessoa integrada. Por outro lado, o dolo é direto e intenso, revelado na escolha deliberada dos menores e forma de os abordar. As consequências, conforme resultam dos relatórios periciais, são relevantes para os menores, face ao estado em que ficaram os mesmos perante os actos que sofreram, sobretudo o menor BB. A falta de confissão e, da qual se extraia a falta de arrependimento, misturada com um arrependimento verbalizado sem qualquer sentido, face à postura que adoptou e ao que contou, dão-nos nota da resistência do arguido a interiorizar o desvalor da sua conduta, o que nos dá nota das necessidades de prevenção especial que emergem. A integração do arguido a todos os níveis, dá-nos nota da pouca valia dessa âncora e da probabilidade de repetição em circunstâncias iguais, o que neste tipo de criminalidade não é caso único. Importa considerar, ainda, as exigências de prevenção deste tipo de crimes, sendo elevadas as de prevenção geral, face aos interesses que se pretendem acautelar com a proteção dos bens jurídicos em causa. Tudo visto e ponderado entende-se adequada em razão da culpa: - a pena de 1 (um) ano de prisão para cada um dos crimes de abuso sexual agravado, p. e p. pelos artigos artº.171º, nº. 3, al. b) e 177.º, n.º 1, al. b), do C.P., - a pena de 4 (quatro) anos 3 (três) meses prisão pelo crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal; - a pena de 6 (seis) anos de prisão pelo crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º n.º 2, al. b) e 177.º n.º 1 al. b), 177.º, n.º 7 e 177.º, n.º 8 do Código Penal. Uma vez determinadas as penas parcelares para cada um dos crimes por que é condenado o arguido, é agora necessário proceder ao cúmulo jurídico daquelas, por forma a fixar uma pena unitária, nos termos do art.º 77.º, números 1 e 2, CP. Tendo em conta o disposto no n.º 2, a pena unitária a aplicar, no caso em apreço, tem os seguintes limites: - Mínimo: 6 (seis) anos de prisão - Máximo: 12 (doze anos) e 3 (três) meses de prisão Já o n.º 1 daquele preceito legal estabelece que, na medida da pena, são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/2004, proc. 03P4431, “na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente.” Nesta perspectiva, e conforme tudo quanto anteriormente já ficou dito, entende o Tribunal que, mercê da gravidade da ilicitude global dos factos que revelam entre si uma conexão delituosa, e, bem assim, dos traços de personalidade do arguido, se afigura justa e adequada a pena unitária de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão. Quanto à medida das penas parcelares aplicadas… De acordo com os nºs 1 e 2 do art.º 40º do Cód. Penal, “a aplicação de penas… visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 65 a 111), diz que o legislador de 1995 assumiu no art.º 40º do Cód. Penal, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. Américo Taipa de Carvalho (Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 322), interpreta o actual art.º 40º do Cód. Penal concluindo que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim, está subjacente ao art.º 40º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa. A medida concreta da pena é determinada, nos termos definidos pelo art.º 71º do Cód. Penal, “dentro dos limites definidos na lei… em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo-se “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.” No caso, damos aqui por reproduzida a ponderada análise feita pelo Tribunal recorrido relativamente à ilicitude (desvalor da acção e do resultado) revelada em cada uma das condutas delituosas, aditando apenas que as vítimas são menores de 12 anos, que relativamente ao ofendido CC, o recorrente para além de forçar o contacto físico com o menor com o estratagema de lhe puxar a mão para a manete das mudanças, conseguiu que ele lhe desse beijos na face como contrapartida de o levar a casa e “premiando-o” com frango, tal como o “premiou” com um cabaz depois de o beijar na boca e de introduzir a sua língua na boca do menor. Relativamente ao menor BB, para além das festas na perna, tentou dar-lhe um beijo na boca, acariciou-lhe o corpo, pénis e rabo, lambeu-lhe a orelha e introduziu-lhe um dedo no ânus, ainda que por cima da roupa. O dolo é sempre directo (a forma mais intensa de dolo), pois que o recorrente previu e quis as consequências da conduta. Há ainda que considerar que são elevadas as necessidades de prevenção geral, atendendo a que se trata de um tipo de crimes que causa intensa repulsa na sociedade, exigindo resposta adequada. As necessidades de prevenção especial assumem relevo devido ao tipo de crime cometido e por serem duas as vítimas da actuação do recorrente. Não tendo antecedentes criminais e sendo uma pessoa completamente integrada social e familiarmente, nenhum desses factores foi contentor das descritas situações. Ainda que tenha confessado alguns dos factos dados como provados, não o fez quanto às situações mais graves, não parecendo ter interiorizado o desvalor da conduta não obstante a verbalização de empatia para com as vítimas. Analisando as circunstâncias apuradas na sua globalidade, justificam-se plenamente as penas parcelares aplicadas – situadas em 1/3 da moldura penal para cada um dos crimes de abuso sexual agravado p. e p. pelos art.ºs 171º 3 a) e 177º 1 b) do Cód. Penal e em 1/6 da moldura penal para o crime de violação agravada – as quais se mostram ajustadas à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada. Quanto ao crime de abuso sexual agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º, nº 1 e 177º 1 b) do Cód. Penal, a que cabe, em abstracto, pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses, entende-se justo e adequado aplicar ao arguido a pena de 2 anos e 9 meses de prisão – situada em 1/6 da moldura penal e também ela ajustada à culpa e às exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada. Quanto à determinação do cúmulo jurídico… Atento o disposto no art.º 77º, nº 1, 1ª parte, do Cód. Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única”. Nos termos do art.º 77º, nº 2 do mesmo Código, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, acrescentando o nº 3 que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores. Assim, a pena aplicável ao recorrente tem como limite mínimo 6 anos de prisão e como limite máximo 10 anos e 9 meses de prisão. Na determinação da pena conjunta, deve atender-se a critérios gerais e a um critério especial, que entre si se conjugam e interagem. Com efeito, tal determinação obedece, em primeiro lugar, aos critérios gerais constantes do art.º 71º, nº 1 do Cód. Penal, já supra referidos, e ainda ao critério especial a que alude o art.º 77º, nº 1, in fine, do Cód. Penal, tendo que ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. De harmonia com este critério, a conjugar com os demais supra referidos, deve sopesar-se o conjunto dos factos para aquilatar da gravidade da sua ilicitude, sendo decisiva para esta avaliação o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira” criminosa), ou tão só uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade. No caso concreto, a consideração unitária dos factos e da personalidade do agente, leva-nos a considerar adequada a pena única de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão – em face da ilicitude dos crimes (sobre cuja gravidade já discorremos supra) e da personalidade do recorrente revelada nos factos (que aponta para uma tendência criminosa). Quanto à suspensão da execução da pena é a mesma impossível em face da pena fixada e do disposto no art.º 50º do Cód. Penal. * * * Decisão Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, ainda que com outros fundamentos e decidem: - proceder à convolação do crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.ºs 171º, n.ºs 1 e 2 e 177º nº 1 alínea b), do Cód. Penal, que o Tribunal a quo tinha imputado ao arguido, para o mesmo crime mas com previsão nos art.ºs 171º, nº 1 e 177º nº 1 alínea b), do Cód. Penal; - aplicar ao arguido, pela prática deste crime, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, em substituição da anterior pena de 4 anos e 3 meses de prisão; - proceder à reformulação do cúmulo jurídico de penas ficando o arguido/ recorrente condenado na pena única de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão. No mais, confirmam o acórdão recorrido. Sem custas. Em 13.07.2023 (processado e revisto pela relatora) Alda Tomé Casimiro Maria José Machado, vencida nos termos do voto junto Manuel Sequeira Luís Gominho, Presidente Voto de vencido Não votei o acórdão que fez vencimento pela seguinte ordem de razões: 1. Em primeiro lugar e quanto à impugnação da matéria de facto, daria apenas como provado quanto ao ponto 21 que: «Acto contínuo, o Arguido segurou o BB pelo seu braço direito com a sua mão esquerda, exercendo força muscular, e com a outra mão acariciou-o/apalpou-o em diversas partes do corpo, designadamente, o pénis e o rabo, chegando mesmo a tocar com um dedo no ânus do jovem, ainda que por cima da roupa. E daria como não provado que o arguido introduziu um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o. Isto porque, na normalidade das situações, o facto de se ter roupa vestida é um obstáculo a que se possa enfiar um dedo no ânus de alguém e como resulta do facto provado sob o ponto 20 o menor BB tinha uns calções curtos vestidos e, além disso, como resulta das suas declarações, tinha ainda o mesmo umas cuecas por debaixo dos calções. Só se tivesse sido exercida uma enorme força, que teria a resistência da roupa, quer como obstáculo, quer por impedir a “glissagem ou deslizamento”, o que dificilmente pode ter acontecido, tanto mais que, como resulta também do facto provado sob o ponto 20, o menor estava sentado no carro, ao lado do arguido e estar sentado seria mais um obstáculo à alegada penetração. Acho que pressionar no ânus do menor pode ter acontecido e isso vai de encontro ao ter o menor dito que “sentiu, que teve a sensação de toque no ânus”. Agora que tenha havido penetração anal por cima da roupa com um dedo, é altamente duvidoso e improvável e não resulta com a mínima clareza do que foi dito pelo menor que, à pergunta do sr. Juiz de instrução (se ele sentiu nesse toque a sensação de que o arguido lhe tinha enfiado o dedo no rabo) se limitou a responder “sim” e que depois, voltando o Sr. juiz a perguntar-lhe: “ Por cima da roupa?” ele tenha voltado a responder “sim” e, a seguir, voltando novamente o Sr. Juiz a perguntar: “Por cima da roupa e tu… sentiste mesmo o dedo a entrar no rabo?”, não se saiba o que o menor respondeu porque, segundo a transcrição das declarações, a resposta é imperceptível. A Relação, diversamente do S.T.J., conhece de facto. Mesmo que a violação do princípio in dubio pro reo não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova (cfr al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P.), pode a mesma ser detectada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto. O princípio in dubio pro reo, que decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, dando resposta ao problema da dúvida sobre o facto [e não sobre a interpretação da norma] impõe ao julgador que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido. Ora, perante a prova produzida sobre esse facto e a sua negação pelo arguido, reapreciada a prova de acordo com critérios de normalidade e razoabilidade, não se pode, face ao exposto, deixar de ter dúvidas sérias e inultrapassáveis quanto à ocorrência do facto provado sob o ponto 21, tal como o mesmo foi dado como provado pelo tribunal recorrido. 2. Em segundo lugar, e quanto à qualificação jurídico-penal dos factos e as penas aplicadas: O arguido estava acusado pela prática de dois crimes de abuso sexual agravado p. e p. pelos artigos 171.º, nºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, cuja moldura penal é de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão. O tribunal recorrido fez uma alteração da qualificação jurídica dos factos e condenou o arguido pela prática de dois crimes de abuso sexual agravado p. e p pelos artigos 171.º, nº 3 alínea a) e 177.º n.º 1, al. b) - importunação de menor de 14 anos através da prática de um dos actos previstos no artigo 170.º do CP - e de dois crimes de abuso sexual agravado p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, sendo um deles pela punição prevista para o crime de violação, nos termos dos artigos 164.º, n.º 2, al. b) e 177.º, n.º 1 al. b) e n.º7 e nº 8, cuja moldura penal é de 4 anos e 6 meses de prisão a 15 anos de prisão. O tribunal recorrido considerou que estava perante uma alteração da qualificação jurídica dos factos, a qual comunicou aos intervenientes processuais acabando por imputar mais dois crimes ao arguido, ainda que da mesma natureza, e de agravar a moldura penal de um dos crimes dos quais o arguido estava acusado. Não houve alteração dos factos, é certo, e por isso estamos apenas no âmbito da alteração da qualificação jurídica, contra a qual o recorrente, aliás, não se opôs. Quanto ao menor BB, ficou provado o seguinte: 7. Em data não concretamente apurada do ano de 2021, mas anterior a 15/12/2021, e pelo menos uma vez, o Arguido durante as viagens, na área geográfica de ..., chegou a passar a mão pela perna esquerda de BB, na zona do joelho e a fazer-lhe carícias, sem que os demais ocupantes da viatura se apercebessem. 20. Após, o Arguido deslocou-se para o lugar central, disse ao Ofendido BB, que estava sentado no lugar mais à direita e trajava calções curtos e uma camisola, que gostava dele e, de seguida, tentou beijá-lo na boca, o que não logrou naquele momento, porque o ofendido conseguiu desviar-se. 21. Acto contínuo, o Arguido segurou o BB pelo seu braço direito com a sua mão esquerda, exercendo força muscular, e com a outra mão acariciou-o/apalpou-o em diversas partes do corpo, designadamente, o pénis e o rabo, chegando mesmo a introduzir um dedo no interior do ânus do jovem, penetrando-o, apesar de o estar a tocar por cima da roupa. 22. Ademais, ao mesmo tempo que passou a mão pelo corpo do BB, o Arguido passou a sua língua na cartilagem da orelha daquele. 24. A dado momento, o Arguido pegou no BB pelos braços e sentou-o na sua perna direita, dizendo-lhe que gostava de si e que só queria mais um beijo. Quanto ao menor CC, ficou provada a seguinte matéria de facto: 10. Entretanto, o ... foi-se embora e o CC pediu ao arguido que o levasse a casa, porquanto, a mãe tinha-lhe solicitado que lá estivesse pelas 16H00, ao que aquele respondeu afirmativamente, acrescentando que o levaria a casa se ele lhe desse 4 ou 5 beijos na sua bochecha, o que o CC fez na bochecha do lado direito. 13. Porém, quando o jovem se dirigia para o exterior da garagem, o Arguido agarrou a cara do CC com as duas mãos e, acto contínuo, deu-lhe um beijo na boca, tendo-lhe introduzido a língua no interior da mesma, contra a sua vontade. 17. Ainda naquele ano, pelo menos uma vez, o Arguido tocou com a mão no joelho esquerdo do CC, acariciando-o, 18. E ainda, também por uma vez, puxou a mão do CC, colocou-a em cima da alavanca das mudanças e, colocando a sua mão em cima da mão do Ofendido, manobrava a caixa de velocidades, forçando assim contacto físico com o menor. A primeira questão a discutir é a da unidade ou pluralidade de crimes, questão que não se cinge à discussão sobre o crime continuado e ao conceito, construído pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos crimes de trato sucessivo, para contornar os limites legais do crime continuado. A unificação jurídica das condutas, em termos de se considerar que foi praticado apenas um crime, pode resultar da existência de unidade de resolução e de proximidade espácio-temporal dos comportamentos. É o que o Jescheck chama “unidade típica da acção em sentido amplo” (Tratado de Direito Penal, Parte Geral, na tradução castelhana de 2002 da 5.ª edição alemã p. 67 e 768). Ora, no caso, na minha perspectiva, todas as condutas, relativas a cada uma das vítimas, inserem-se num processo de aliciamento que se desenvolveu continuamente num curto espaço de tempo até haver a expressa oposição das vítimas e dos seus familiares. Por isso, os diversos actos praticados sobre cada uma das vítimas constituem um único crime, relativamente a cada uma delas, tal como, aliás, foi o arguido acusado pelo Ministério Público. Ainda que assim se não entendesse, é duvidoso que os actos praticados pelo arguido (passar a mão pelo joelho do menor BB e fazer-lhe carícias, sem mais, e tocar no joelho do menor CC e acariciá-lo ou colocar a mão do menor em cima da alavanca das mudanças e colocar depois a mão do arguido por cima), sendo actos descontextualizadas, possam considerar-se actos de natureza sexual para efeitos de integrarem a previsão do tipo objectivo do crime de importunação sexual do n.º 3, alínea a) do artigo 171.º do Código Penal. Citando José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro in Crimes Sexuais, Análise Substantiva e Processual, p. 125-126.): «A importunação deve ser resultado de o ato exibicionista ou do contacto físico, ambos de natureza sexual, bem como da formulação de propostas de teor sexual, devendo existir um nexo causal entre ambos. O legislador não tipificou os meios do exibicionismo, contactos de natureza sexual ou quais as propostas de teor sexual, pelo que serão todos aqueles que tenham esta natureza e em concreto tenham importunado a vítima (crime de execução livre). Também não identificou de que formas pode o agente constranger a vítima ao contacto de natureza sexual, englobando todos os actos de cariz sexual, que a vítima sofreu e não correspondiam à sua vontade». Ora, os actos em causa, estão descontextualizados e deles não se diz sequer que tenham constituído um incómodo para os menores ou que estes tenham de algum modo reagido de forma negativa a tais actos e de algum modo se tenham sentido importunados. Não vejo qualquer razão para o tribunal ter autonomizado esses actos dos demais actos de abuso sexual dada a sua natureza in casu, não sexual mas antes de aliciamento para o abuso sexual que depois foi cometido sobre cada um dos menores. Por isso, quanto a esses crimes absolveria o arguido, por não estar preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime em causa. Concordo com a posição que fez vencimento no sentido de que o acto de o arguido ter beijado o CC com a língua não constitui o crime de abuso sexual previsto no n.º2 do artigo 171.º do Código Penal, mas apenas o do n.º1 do mesmo artigo porque a penetração oral só qualifica o crime se se tratar de coito oral, o que pressupõe a introdução do pénis e não de qualquer outra parte do corpo. A lei é expressa quanto a isso no n.º 2 do artigo 171.º. Quanto aos actos praticados sobre o menor BB considero não ter havido penetração anal e por isso os actos praticados pelo arguido sobre esta vítima, pelo menos no que respeita às carícias no pénis e no rabo, constituindo actos sexuais de relevo, integram também o tipo objectivo do artigo 171.º, nº1 do C. Penal, crime punido com prisão de 1 a 8 anos. Tendo o arguido segurado o braço direito do menor exercendo sobre ele força muscular, o que se traduz em violência, a conduta do arguido integra também o n.º 2 do artigo 163.º do Código Penal, punível com a mesma pena, agravado de 1/2 nos termos do artigo 177.º, n.º 7, por a vítima ser menor de 14 anos. Será assim a conduta do arguido punível com uma pena de 1 ano e 6 meses a 12 anos de prisão, pois os crimes praticados sobre menores também podem ser punidos pelas normas que punem os comportamentos que atentam contra a liberdade sexual, desde que se verifiquem os respectivos elementos típicos, neste caso a violência. Se se considerar que existiu penetração anal, o comportamento, que também integra o tipo contido no artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, deve ser punido nos termos do artigo 164.º, n.º 2, alínea b), agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 7, cuja moldura penal é a de 4 anos e 6 meses a 15 anos de prisão. Em qualquer dos crimes, não concordo com o fundamento da agravação do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, por não existir entre o arguido e os menores uma relação hierárquica ou dependência económica, ou laboral que justifique essa agravação. O considerar-se que o arguido, por ser presidente do clube onde os menores jogavam futebol, tinha com os mesmos uma relação hierárquica ou de trabalho é ir para além do que a norma prevê, sendo essa interpretação susceptível de atentar contra o princípio da legalidade. Quanto às penas, tendo presente o disposto no artigo 40.º, nº1 do Código Penal, quanto às finalidades da pena - tutela dos bens jurídicos, a que está associada a função de prevenção geral positiva, e a reinserção social do condenado, a que está ligada a função de prevenção especial ou de socialização e que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do mesmo artigo) decidiria o seguinte: Tendo em conta a moldura penal aplicável (pena de prisão de um a oito anos) no caso do crime na pessoa do CC e de 1 ano e 6 meses a 12 anos de prisão (no caso do crime na pessoa do BB), face ao grau de ilicitude dos factos, que é baixo, ao dolo directo, à falta e assunção de culpa e ao grau de culpa do arguido que é elevada, quer em função da sua idade, da circunstância de ele próprio ser pai e por isso lhe ser exigível um outro comportamento face a crianças, com a sua personalidade em formação que poderiam ser seus filhos, quer da circunstância de ser ele quem transportava os menores do clube para as suas casas e o presidente do próprio clube onde os menores treinavam e exercer influência sobre os mesmos, lhe ser exigível um especial dever de conformar a sua conduta conforme ao direito, sopesando as exigências de prevenção geral deste tipo de crime, sobretudo na vertente de satisfação de reparação perante a comunidade dos bens jurídicos violados pelo arguido, tendo ainda em conta que são diminutas as exigências de prevenção especial face à boa reinserção social do arguido e à inexistência de antecedentes criminais, aplicaria as seguintes penas: - 2 (dois) anos de prisão pelo crime de abuso sexual na pessoa do menor CC - 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de abuso sexual na pessoa do menor BB. Em cúmulo jurídico, ponderando o conjunto dos factos praticados e a personalidade do arguido que dos mesmos resulta, de uma certa anomalia a nível pedo psiquiátrico pela tendência que revela para a prática de actos de pedofilia, fixaria a pena única em 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. Suspenderia a execução da pena, ao abrigo do artigo 50.º do Código Penal, com a condição de o arguido pagar as indemnizações atribuídas pelo tribunal recorrido aos menores, no prazo de um ano e com regime de prova no qual seria obrigatoriamente incluída a obrigação de o arguido frequentar uma acção de formação para predadores sexuais. Creio que face ao conjunto dos factos praticados pelo arguido seria uma solução mais ressocializadora, que não deixa de ser punitiva e de acautelar as exigências de prevenção geral. O arguido já tem 62 anos e esta é a primeira condenação pela prática de um crime. Vivendo num meio pequeno, foi certamente já ostracizado pela comunidade e censurado socialmente. Não vejo necessidade no cumprimento de uma pena de prisão efectiva, mas antes num regime de prova que afaste o arguido deste tipo de condutas e o faça interiorizar o desvalor destes comportamentos. Maria José Machado |