Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1395/16.0T9CSC.L2
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: PORNOGRAFIA
MENORES
UTILIZAÇÃO DE MENOR EM FOTOGRAFIA
FILME OU GRAVAÇÃO PORNOGRÁFICOS
LIVRE DESENVOLVIMENTO SEXUAL DAS CRIANÇAS
AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
1. Ainda que o núcleo central do conceito de pornografia abarque a actividade sexual e a representação dos órgãos sexuais, a captação de fotografias de duas menores, de 4 e 5 anos, em que nem sequer se vê a sua cara e em que o seu foco e campo de visão é apenas o da zona genital das crianças, em que os órgãos sexuais estão cobertos por roupa, com ou sem as pernas abertas, são susceptíveis de provocar excitação a quem valore como objecto sexual crianças. São fotografias que, embora não reproduzam actos sexuais, poses sexuais ou órgãos sexuais, sugerem e como tal são susceptíveis de «estímulo sexual», «excitação», «lubricidade» ou «lascívia do voyeur», isto é, de excitar sexualmente, devendo por isso serem consideradas como imagens pornográficas.
2. O conceito amplo de utilização de menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos previsto no artigo 176º, n.º 1, alínea b), do Código Penal não abrange situações em que as gravações foram feitas de modo dissimulado, não tendo as menores conhecimento de que, involuntariamente, participavam nas mesmas.
3. Sendo o bem jurídico protegido o livre desenvolvimento sexual das crianças e a autodeterminação sexual, as diversas modalidades de conduta previstas nas alíneas a) e b) do artigo 176.º do Código Penal exigem que exista uma participação consciente da criança, isto é, que a mesma saiba que está a ser fotografada ou utilizada em filme, espectáculo ou gravação pornográficos.
4. Por isso a captação de fotografias da região genital de duas menores, com 4 e 5 anos, sem que elas disso se apercebessem, quando essa região se encontrava coberta, pelo menos pelas cuecas, integra a previsão do crime de pornografia de menores da alínea c) do n.º1 do artigo 176.º do Código Penal (produção de material pornográfico) e não da alínea b) (utilização de menor em fotografia) como foi considerado pelo tribunal recorrido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo, supra identificado, em que é arguido AA, melhor identificados nos autos, foi proferido acórdão, a 4 de Julho de 2022, mediante o qual foi decidido:
«- Absolver o arguido da prática, em autoria material, na forma consumada, do crime de pornografia de menores, p. e p. pelos artigos 176°., n°.1, alínea b), agravado, nos termos do disposto no artigo 177°., n°.7, ambos do Código Penal, que lhe vinha imputado, atinente à menor BB.
- Condenar o arguido pela prática, como reincidente, em autoria material, em concurso efectivo, na forma consumada, de um crime de pornografia de menor, p. e p. pelos artigos 176°., n°.1, alínea b), agravado, nos termos do disposto no artigo 177°., n°.7, ambos do Código Penal, atinente à menor CC, por que vinha acusado, na pena de cinco anos de prisão, efectiva;
- Condenar o arguido pela prática, como reincidente, em autoria material, em concurso efectivo, na forma consumada, de um crime de pornografia de menor, p. e p. pelos artigos 176°., n°.1, alínea b), agravado, nos termos do disposto no artigo 177°., n°.7, ambos do Código Penal, atinente à menor DD, por que vinha acusado, na pena de cinco anos de prisão, efectiva.
- Em cúmulo jurídico de tais penas condenar o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.
- Condenar o arguido a pagar a título de reparação indemnizatória à ofendida CC, o montante de €2.000,00 (dois mil euros).
- Condenar o arguido a pagar a título de reparação indemnizatória à ofendida DD, o montante de € 2.000,00 (dois mil euros).»
2. Na sequência do recurso, então interposto pelo arguido, este tribunal decidiu, por acórdão proferido em 7/03/2023 «declarar a nulidade do acórdão por falta de fundamentação, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n. º1, alínea a) e 374.º, nº 2 do Código de Processo Penal».
3. Foi proferido novo Acórdão pelo tribunal da 1ª instância, em 18 de Maio de 2023, mediante o qual o tribunal decidiu nos exatos termos do acórdão inicial.
4. O arguido interpôs recurso desta nova decisão, nos termos constantes da sua motivação junta aos autos, da qual extrai as seguintes conclusões:

O aresto judicial recorrido condena o Arguido/Recorrente pela prática, (1) como reincidente, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.°s 176° n.° 1 b) e 177° n.° 7, ambos do CPenal (relativamente à menor EE), na pena de 05 (cinco) anos de prisão efectiva; (H) como reincidente, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.Ps 176° n.° 1 b) e 177° n.° 7, ambos do CPenal (relativamente à menor DD), na pena de 05 (cinco) anos de prisão efectiva; (iii) em cúmulo jurídico, condenar o Arguido na pena única de 07 (sete) anos e 06 (seis) meses de prisão efectiva; (iv) arbitrar, nos termos do art.° 82°-A do CPP, a título de reparação indemnizatória à ofendida EE o montante de €2.000,00 (dois mil euros); (v) arbitrar nos termos do art.° 82º-A do CPP, a título de reparação indemnizatória à ofendida EE o montante de €2.000,00 (dois mil euros).
2.ª
Em face de toda a prova carreada para os presentes autos e da prova produzida em julgamento, impõe-se decisão diversa porquanto se constata:
A) – Vício por errado enquadramento da factualidade no tipo de crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.ºs 176º n.º 1 b) e 177º n.º 7 do CPenal.
B) – Vício no texto do Acórdão recorrido, nos termos do art.º 410º n.º 2: contradição insanável e erro notório na apreciação da prova – valoração da não confissão e violação do princípio nemu tenetur se ipsum accusare (valoração negativa do direito ao silêncio) e consequente erro na determinação da medida concreta da pena, em violação dos art.º 40º, 70º e 71.º CPenal e art.º 61º nº 1 d) do CPP e art.º 32º n.º 1 CRP.
C) – Nulidade do Acórdão recorrido por omissão de fundamentação quanto à fixação do cúmulo jurídico das penas parcelares em concurso, violando o art.º 77º do CPenal, e art.º 374º n.º 2, 379º n.º 1 a) e 97 n.º 5, todos do CPP.
D) – Nulidade do Acórdão recorrido por omissão de fundamentação quanto ao arbitramento do art.º 82º-A do CPP, bem como assim, do art.º 32º n.º 1, 2 e 5 da CRepPortuguesa, e ainda 6º e 18º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A)– Vício por errado enquadramento da factualidade no tipo de crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.ºs 176º n.º 1 b) e 177º n.º 7 do CPenal.
3.ª
Resulta para o Acórdão recorrido como provado a prática: (1) como reincidente, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.ºs 176° n.° 1 b) e 177° n.° 7, ambos do CPenal (relativamente à menor EE), na pena de 05 (cinco) anos de prisão efectiva; (ii) como reincidente, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.ºs 176° n.° 1 b) e 177° n.° 7, ambos do CPenal (relativamente à menor DD), na pena de 05 (cinco) anos de prisão efectiva.
4.ª
Refere o Tribunal a quo que resultam provados os elementos objectivos e subjectivos de dois dos três crimes de pornografia de menores imputados, remetendo, na sua essencial, para os fotogramas constantes dos autos a fls. 33 a 35, mormente, fotografias 2, 4, 8, 11, 13, 15, 16, 36, 39, 44 a 47 (relativamente à menor CC) e fotografias 18, 24, 26, 27, 28, 29, 31, 51, 52, 53, 54, 55, 56 e 57 (relativamente à menor DD).
5.ª
Todavia, dos ditos fotogramas não resulta o preenchimento do tipo objectivo de crime em questão, porquanto não são adequados para concluir que se está perante fotografia de carácter pornográfico.
6.ª
Aliás, é o próprio Tribunal a quo que o refere expressamente:"É certo que no caso em apreço as menores não aparecem retratadas a ter comportamento explícito de cariz sexual, pornográfico, o que apontaria, como pretende a defesa, para o não preenchimento do tipo objectivo no caso em apreço."
7.ª
Da nova fundamentação elaborada pelo Tribunal a quo, as inferências que menciona ter lançado mão também não são de molde a extrair o intuito libidinoso.
8.ª
Desde logo, porque os fotogramas que constam dos autos não são adequados para concluir que se está perante fotografia de carácter pornográfico.
9.ª
Portanto, não se logra alcançar de qual inferência se extrai, sem margem para dúvidas, o intuito libidinoso do Arguido.
10.ª
Como também não se alcança de qual inferência se extrai que o Arguido visava satisfazer-se (libidinosamente falando) com tais fotografias. Sendo certo que o intuito libinidoso tem que decorrer da prova.
11.ª
Dos meios de prova enunciados no Acórdão recorrido não decorre (i) o intuito libidinoso do arguido e que (ii) as fotografias, para o Arguido, tinham intuito pornográfico.
12.ª
Sobre como deve ser entendido o conceito pornográfico vd.:
a) PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 4.2 Edição, 2021: 762 (anotações ao art.° 176°):
"Os actos descritos na alínea a) e b) do n.° 1 são a utilização do menor em espectáculo, fotografia, filme ou gravação pornográfica. Estes actos podem envolver a prática pelo menor de actos sexuais de relevo, actos de contacto de natureza sexual, actos exibicionistas ou apenas a sua presença física no meio dos outros intervenientes no espectáculo, não bastando que o menor seja mero espectador do evento."
b) MIGUEZ GARCIA e CASTELA RIO o dizem in Código Penal - Parte Geral e Especial Com Notas e Comentários, Almedina, 2014: 731:
"O menor deverá participar directamente no espectáculo ou na produção fotográfica, filme ou gravação pornográficos, não bastando, para a punição, a posição de mero espectador de acontecimento que tenha lugar em, por ex., qualquer local público ou aberto ao público."
c) Decisão-Quadro relativa à luta contra a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil define pornografia infantil como ".. qualquer material pornogrófico que descreva ou represente visualmente crianças reais envolvidas em comportamentos sexuais explícitos ou entregando-se a tais comportamentos, incluindo a exibição lasciva dos seus órgãos genitais ou partes públicas; pessoas reais com aspecto de crianças envolvidas nesse comportamentos ou entregando-se aos mesmos; ou imagens realistas de crianças não existentes envolvidas nesses comportamentos ou entregando-se aos mesmos " (Pornografia Infantil Virtual, Revista Julgar, n.° 12 especial, 2010, p. 183) - vd. SIMAS SANTOS in Código Penal Anotado, vol. III, Ed. Rei dos Livros, 4.2 Edição, 2016: 571 (anotações ao art.° 176°).
13.ª
No caso sub iudice, dos fotogramas constantes dos autos para os quais o Tribunal a quo remete não decorre o carácter pornográfico que o Acórdão recorrido lhe atribui. Os fotogramas não representam nem detêm o carácter explicito de cariz sexual e muito menos o carácter pornográfico que o Tribunal a quo lhe associa no Aresto recorrido.
14.ª
Neste sentido, atento o vício, impõe-se o competente reparo, uma vez que, da factualidade apurada e dos respectivos meios de prova, não se mostra susceptível a subsunção ao tipo de crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.ºs 176º n.º 1 b) e 177º n.º 7 do CPenal.
B) - Vício no texto do Acórdão recorrido, nos termos do art.° 410° n.° 2: contradição insanável e erro notório na apreciação da prova - valoração da não confissão e violação do princípio nemu tenetur se ipsum accusare (valoração negativa do direito ao silêncio) e consequente erro na determinação da medida concreta da pena, em violação dos art.° 40°, 702 e 71.2 CPenal e art.2 61° n2 1 d) do CPP e art.° 32° n.° 1 CRP.
15.ª
O Tribunal a quo deliberou e consignou na motivação da matéria de facto que: “MOTIVAÇÃO: A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada do silêncio e das declarações do arguido (estas quanto às suas condições pessoais)…”
(sublinhado correspondente à parte aditada no Acórdão recorrido).
16.ª
No entanto, na escolha e medida da pena, o Tribunal a quo alterou a frase “teve em conta a não confissão nem a verbalização de arrependimento”. Passando a consignar agora que atentou ao “seu silêncio quanto ao imputado”(pág. 36 do Acórdão, final do 2º parágrafo)
17.ª
Mas o Arguido/Recorrente ficou silente.
18.ª
Ou seja, o Tribunal a quo valora negativamente o silêncio do Arguido bem como ainda extrai do mesmo a ausência de arrependimento, assimilando o silêncio a um total distanciamento.
19.ª
O que resulta do Acórdão condenatório é o agravamento da pena do Arguido em razão da falta de arrependimento e a postura de total distanciamento perante os factos, que o Tribunal extrai do silêncio do Arguido/Recorrente em julgamento.
20.ª
E nada no processo permite concluir o seu contrário, i. é, falta de arrependimento e postura de distanciamento perante a gravidade dos factos.
21.ª
Pelo que, se dúvida resta, nunca poderá ser em prejuízo do Arguido, porque violadora do princípio in dubio pro reu.
22.ª
Sendo que, como refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in op. cit., 1095, constitui erro notório na apreciação da prova, para efeitos do disposto no art.° 410° n.° 2 c) do CPP, a valoração da não confissão (mesmo que conjugada com outros meios de prova) para fundamentar os factos provados.
23.ª
Nesta medida, o Tribunal a quo lavra fora de rego e o Acórdão recorrido enferma de vício, (art.° 410° n.° 2 c) CPP), por violação do princípio nemu tenetur se ipsum accusare (valoração negativa do direito ao silêncio) e consequente erro na determinação da medida concreta da pena, em violação dos art.° 40°, 70° e 71.° CPenal e art.° 61° nº 1 d) do CPP e art.° 32° n.° 1 CRP.
24.ª
Pelo que, a pena de 5 anos de prisão que o Tribunal a quo decidiu aplicar ao Arguido/Recorrente por cada um dos crimes, mostra-se manifestamente excessiva e desenquadrada dos parâmetros legais, violando os art.° 40°, 70° e 71.° CPenal e art.° 61° n° 1 d) do CPP e art.-° 32° n.° 1 CRP.
25.ª
O Tribunal a quo elabora a páginas 29 e segs. do Acórdão recorrido, sobre a "Escolha e Medida da Pena" e desenvolve os termos da sua convicção no pressuposto claro na "natureza e quantidade de estupefacientes em causa, bem como as circunstâncias do caso supra vertidas..."
26.ª
No entanto, o objecto dos autos nada tem que ver com o crime de tráfico de estupefacientes.
27.ª
Pelo que os termos e pressupostos que o Tribunal a quo deixa consignados no Acórdão recorrido não deixam margem para dúvida que o vício é manifesto e ressalta do texto do próprio Acórdão.
28.ª
Sendo certo que também resulta do próprio texto que as premissas/orações anteriores e posteriores à referência ao estupefacientes formam, todas elas, um conjunto, associado, lógico-sintático, que resulta na conclusão negativa sobre o juízo de prognose que recai sobre o Arguido. Arguido esse, que está a ser julgado por crime totalmente distinto.
29.ª
Donde, resulta que se encontra irremediavelmente inquinada a determinação e escolha da medida da pena ao Arguido/Recorrente.
C) - Nulidade do Acórdão recorrido por omissão de fundamentação quanto à fixação do cúmulo jurídico das penas parcelares em concurso, violando o art.° 77º do CPenal, e art.º 374º n.º 2, 379º n.º 1 a) e 97 n.° 5, todos do CPP.
30.ª
In casu discute-se a realização do tipo de crime de pornografia de menores agravado (art.° 176°n.° 1 b) e 177° n.° 7, ambos do CPenal).
31.ª
Em razão da falta de preenchimento do elemento objectivo do tipo de crime e bem assim como da verificação do erro do art.° 410º n.° 2 CPP, não poder haver espaço para a condenação pelo crime em questão.
32.ª
Por outro lado, e com relevância para a sindicância da medida da pena, à falta de provas suficientemente concludentes, restam dúvidas de que o Arguido tivesse cometido o acervo factual narrado e descrito no Libelo acusatório.
33.ª
A medida da pena individualmente considerada para cada crime de per si considerado, não encontra respaldo legal e menos ainda respaldo na obediência ao princípio de que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
34.ª
Assim, constata-se também que as penas parcelares que o Tribunal a quo decidiu aplicar ao Arguido extravasam a medida da culpa e, como tal, viola além do mais, o disposto nos art.ºs 40º, 70º e 71.º, todos do CPenal.
35.ª
A páginas 45.ª do Acórdão recorrido, exara o Tribunal a quo agora com os seguintes termos “Em cúmulo jurídico, tendo em atenção o limite mínimo de cinco anos e de prisão e o máximo de 10 anos de prisão, atendendo aos supra e infra mencionados factores, de onde se destacam as mencionadas condenações do arguido em oito processos, pela prática de 22 (vinte e dois) crimes, sendo 8 (oito) de condução sem habilitação legal, 6 (seis) de violação, um de sequestro, dois de roubo, um de rapto, dois de ameaça agravada, um de fotografias ilícitas e um de evasão, na sequência do que foi condenado em pena de multaem 3 processos, em pena de prisão suspensa na sua execução em um processo e em pena de prisão efectiva nos demais processos, atenta ainda a actual extinção das penas acima mencionadas em 1 a 6, entende-se como justo e adequado aplicar ao arguido a pena única de sete anos e seis meses de prisão efectiva.”
36.ª
Ora, não só a singela referência aos antecedentes criminais não é adequado para fundamentar o cúmulo jurídico, como os termos que já vinham do Acórdão que foi declarado nulo pelo TRL, não são escrutináveis na sua essência para que possa afirma-se estar arredada, em definitivo, a arbitrariedade decisória.
37.ª
Os termos do Tribunal a quo exarados em três linhas de texto (que na transcrição efectuada ficaram evidenciadas) para determinação do cúmulo jurídico não são escrutináveis na sua essência para que possa afirma-se estar arredada, em definitivo, a arbitrariedade decisória.
38.ª
Pelo que, o Aresto recorrido torna-se arbitrário na determinação do cúmulo jurídico.
39ª
O Acórdão recorrido encontra-se ferido de nulidade por falta de fundamentação, violando o disposto nos art.ºs 77º CPenal e 374º n.º 2, 379º n.º 1 e 97º n.º 5, todos do CPP, ao não fundamentar devidamente a fixação do cúmulo no concurso.
D) - Nulidade do Acórdão recorrido por omissão de fundamentação quanto ao arbitramento do art.° 82º¬A do CPP e ainda violação dos art.ºs 61° n.2 1 al c), 82º-A, 368° n.° 2 f), do CPP, bem como assim, do art.° 32° n.º 1, 2 e 5 da CRepPortuguesa, e ainda 62 e 18° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
40.ª
O Tribunal a quo deliberou a condenação do Arguido/Recorrente, além do mais, no pagamento de indemnização a EE e a DD, ao abrigo do art.º 82º-A do CPP, que o Tribunal a quo arbitra na quantia de €2.000,00 a cada uma das ofendidas.
41.ª
Também aqui o Acordão recorrido não é sindicável nem escrutinável, revelando-se arbitrário.
42.ª
O Acórdão recorrido é omisso quanto aos termos da fundamentação sobre o arbitramento da compensação, pois em 6 parágrafos refere singelamente que:
1.º parágrafo: como não foi deduzida indemnização, foi accionado o art.º 82º-A do CPP;
2.º parágrafo: afirma simplesmente que que se mostram preenchidos os requisitos;
3.º parágrafo: refere o teor do art.º 483º n.º 1 do CCivil;
4.º parágrafo: conclusivamente, afirma que se provaram os danos causados pela actuação do arguido;
5.º parágrafo: refere que a conduta foi dolosa;
6.º parágrafo: conclui que se procederá ao arbitramento.
43.ª
Salvo o merecido respeito que lhe deve ser votado, não parecem termos suficientes para fundamentar uma condenação nos termos e para os efeitos do art.º 82º-A do CPP.
44.ª
A convicção e iter percorrido para a respectiva formação pelo Tribunal a quo não é sindicável nem escrutinável. A deliberação do Colégio de Juízes mostra-se, portanto, arbitrária.
45.ª
Pelo que, violando o disposto nos art.ºs 82º-A, 374º n.º 2, 379º n.º 1 e 97º n.º 5, todos do CPP, bem como assim, do art.º 32º n.º 1, 2 e 5 da CRepPortuguesa, e ainda 6º e 18º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, deve o Acórdão recorrido ser revogado e objecto do competente reparo.
5. O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência, tendo para o efeito extraido as seguintes conclusões da sua resposta: (transcrição)
1. Defende o recorrente que as fotografias nas quais o Tribunal a quo se baseou para o condenar pela prática de dois dos três crimes de pornografia de menores de que vinha acusado não têm carácter pornográfico e, como tal, de tais meios de prova não decorre o intuito libidinoso do arguido e que tais fotografias tivessem, para o arguido, intuito pornográfico, pelo que não se mostra preenchido o tipo do crime de pornografia de menor agravado, p. e p. pelos art.ºs 176º, n.º 1, al. b) e 177º, n.º 7 do Código Penal.
2. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, não podemos concordar com o arguido.
3. Com efeito, uma leitura atenta do n.º 8, do art.º 176º do Código Penal permite concluir que, ao contrário do defendido pelo recorrente, não só as fotografias de menores em actividade sexual são susceptíveis de integrar o crime de pornografia de menores pelo qual foi condenado.
4. Conforme defendido por Francisco Reis da Costa, “a pornografia de menores consiste no material que, independentemente do seu suporte, representa menores, sejam estes reais, aparentes ou até virtualmente criados, em comportamentos sexualmente explícitos (estão aqui incluídos os menores em atividades sexuais, em exibição lasciva dos seus órgãos genitais ou das partes públicas ou em qualquer outro comportamento suscetível de causar estímulo sexual)”.
5. Sendo que, se a primeira parte desta frase interessa ao recorrente e parece dar-lhe razão, a segunda parte demonstra porque não a tem.
6. Das fotografias em causa é notório que o recorrente foca a zona genital das menores, em posição de pernas abertas e exibindo as cuecas, não se abstendo de “cortar” de tais fotografias a cabeça das menores e demais partes do corpo, o que demonstra uma clara intenção de utilizar este material para fins sexuais.
7. O recorrente fez das menores em causa, através das fotografias em análise, um objecto despersonalizado para fins sexuais, pelo que forçoso é concluir que estamos perante pornografia de menores.
8. De acordo com as regras da experiência comum, quem guarda fotografias é para as ver quando o entenda e, encontrando-se tais fotografias centradas nas zonas genitais das menores, na ausência de qualquer outra justificação plausível, forçoso é, igualmente, concluir que o recorrente as captou e armazenou com intuito libidinoso, com intuito de estimulação sensorial sexual.
9. Termos em que, a factualidade apurada e dada como provada no acórdão recorrido preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de pornografia de menores agravado, pelo qual o arguido foi condenado, devendo, assim, improceder a argumentação do recorrente de que as fotografias em causa não têm carácter pornográfico.
10. O recorrente prossegue com a sua argumentação, alegando que o acórdão recorrido enferma de vício por violação do princípio nemu tenetur se ipsum accusare (valoração negativa do direito ao silêncio) e que a pena que lhe foi aplicada é excessiva e desenquadrada dos parâmetros legais, em violação do disposto nos art.ºs 40º, 70º e 71º do Código Penal, art.ºs 61º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal e art.º 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
11. Contudo, também aqui consideramos que não assiste razão ao recorrente.
12. Com efeito, contrariamente ao que pretende fazer crer o recorrente, o facto de o mesmo não ter prestado declarações em audiência de julgamento não o pode prejudicar, como não prejudicou.
13. Porém essa sua opção pelo silêncio em audiência de julgamento impede-o, isso sim, de beneficiar de uma eventual confissão acompanhada de arrependimento pelos factos cometidos.
14. Acresce que, o recorrente é reincidente, não podendo este facto deixar de determinar uma agravação na medida da sua pena.
15. No caso concreto as penas parcelares e a pena única aplicadas ao recorrente demonstram o prudente critério do tribunal, sendo adequadas e proporcionais face à moldura penal abstractamente aplicável aos crimes praticados, aos factos apurados relativamente à personalidade do recorrente, ao grau de culpa e às necessidades de prevenção geral e especial.
16. Inexistindo razões, por isso, que justifiquem a alteração das penas aplicadas ao recorrente.
17. Acresce que facilmente se percebe pelo contexto que a referência a “estupefacientes” no acórdão recorrido ocorreu por mero lapso, o qual deverá ser desvalorizado face à demais fundamentação, correctamente tecida, sobre a medida da pena a aplicar ao recorrente, enquanto arguido reincidente, possuidor de uma personalidade contrária ao direito e altamente atentatória dos direitos dos menores.
18. O recorrente prossegue com a sua fundamentação, alegando que o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação quanto à fixação do cúmulo jurídico das penas parcelares em concurso.
19. Salvo o devido respeito, não podemos concordar com tal entendimento, pois, pelos motivos supra expostos, consideramos que o Tribunal a quo ponderou todas as circunstâncias que militam a favor e contra o recorrente, não tendo as penas fixadas ido para além do limite da culpa do mesmo.
20. Uma leitura atenta e global do acórdão, no que ao ponto da escolha e medida da pena diz respeito, evidencia que todas essas finalidades se encontram alcançadas, e permite excluir a conclusão avançada pelo recorrente de que o aresto recorrido é arbitrário quanto a este ponto.
21. Pelo que consideramos que o acórdão recorrido cumpre de forma satisfatória o dever genérico de fundamentação no que à pena única decorrente do cúmulo jurídico efectuado diz respeito, inexistindo a alegada nulidade por falta de fundamentação.
22. O recorrente finaliza as suas alegações invocando que o Tribunal a quo deliberou a condenação do ora recorrente, além do mais, no pagamento de indemnização a EE e a DD, ao abrigo do art.º 82º-A do Código de Processo Penal, tendo arbitrado a quantia de 2.000,00€ a cada uma das ofendidas, sem que tivesse dado a conhecer os exactos e concretos fundamentos nos quais se estriba a deliberação para efeito de tal condenação e sem que o recorrente tivesse a possibilidade de realizar um efectivo contraditório desta indemnização contra si erigida.
23. No entanto, entendemos que, perante a factualidade dada como provada, sendo a mesma demostrativa da existência dos pressupostos para a responsabilidade civil (facto voluntário do agente, ilicitude desse facto, culpa do agente, criação de um dano e o nexo de casualidade entre a conduta do agente e o dano sofrido pela vítima), o arbitramento de uma indemnização às ofendidas menores mostrou-se uma evidência, tendo o Tribunal, na fixação do seu montante, com recurso a critérios de equidade, atendido ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à das lesadas, ao período de tempo em que durou a conduta ilícita do recorrente e, consequentemente, a produção dos danos não patrimoniais na esfera jurídica das ofendidas, tendo levado em consideração a natureza das lesões sofridas pelas mesmas e os sentimentos causados nestas pela conduta do recorrente.
24. Pelo que, no entender do Ministério Público, não procedem os argumentos avançados pelo recorrente, devendo o acórdão recorrido ser mantido na íntegra.
7. Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público, no âmbito da vista prevista no artigo 416.º, nº1 do Código de Processo Penal (doravante designado C.P.P.) emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso, ao que o recorrente respondeu, reiterando os fundamentos já anteriormente aduzidos na sua motivação.
8. Foram colhidos os vistos legais e foram os autos à conferência para o recurso aí ser julgado, nos termos do artigo 419.º, nº 3, alínea c) do C.P.P., cumprindo agora decidir.
II. Fundamentação
1. Objecto do recurso
Nos termos do art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P. a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
É pacífico o entendimento de que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
No caso dos autos, pelo recorrente são suscitadas as seguintes questões, identificadas, na sua conclusão 2ª, sob os pontos A), B), C) e D):
- o enquadramento jurídico-penal dos factos (ponto A);
- Vícios do art.º 410º n.º 2 do CPP: contradição insanável e erro notório na apreciação da prova e consequente erro na determinação da medida concreta das penas parcelares e da pena conjunta (ponto B)
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de fundamentação quanto à fixação do cúmulo jurídico das penas parcelares em concurso (ponto C)
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de fundamentação quanto às indemnizações arbitradas (ponto D)
2. Apreciação
2.1. Do acórdão recorrido
O tribunal recorrido decidiu quanto à matéria de facto do seguinte modo: (transcrição)
«FACTOS PROVADOS
1. O arguido AA esteve preso à ordem do processo n°.1154/08.3PFCSC, que correu termos no Juízo Central Criminal de Cascais - Juiz 2, de 25/9/2008 a 23/9/2014.
2. A partir dessa data, o arguido retomou o convívio com FF, residente na ...., ..., ..., com quem havia tido um relacionamento amoroso.
3. FF é tia de GG e de HH.
4. O arguido frequentava, também, a residência de GG sita na Rua ...., no ....
5. Por força da relação de amizade que tinha com as sobrinhas de FF, o arguido convivia, igualmente, com as crianças:
- CC, nascida a .../.../2010, filha de II e de HH;
- DD, nascida a .../.../2011, filha de JJ e de GG; e
- BB, nascida a .../.../2004, filha de JJ e de GG.
6. Em data que não se conseguiu concretamente apurar, mas situada entre 31/5/2015 e 28/10/2015, dia em que o arguido foi detido à ordem do processo n°.105/15.3JBLB, aquele formulou o propósito de obter e armazenar registos fotográficos de cariz sexual e pornográfico das crianças CC e DD, retratando as suas partes íntimas, tais como a zona das cuecas ou dos calções, focando a parte inferior do corpo, vagina e rabo, para posterior visionamento, com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos.
7. Para o efeito, o arguido muniu-se do telemóvel, marca SONY, modelo XPERIA E20105, com o IMEI ....
8. Na execução de tal desígnio, e no aludido período temporal, o arguido, aproveitando o facto de estar sozinho, em alguma divisão da casa, com as crianças, tirou-lhes as seguintes fotografias que armazenou no telemóvel:
9.No que diz respeito à criança CC, à data com cinco anos de idade, o arguido tirou-lhe treze fotografias, focando apenas a sua zona genital e rabo, com a criança vestindo uns calções curtos, exibindo as cuecas, e estando de pernas abertas (fotografias n°s.2, 4, 8, 11, 13, 15, 16, 36, 39, 44 a 47) quando se encontravam na residência sita na Praceta ...., ..., ....
10. Relativamente à criança BB, à data com 11 anos de idade, o arguido tirou-lhe duas fotografias, focando o seu rabo, estando a criança vestia de calções curtos (fotografias n°s.33 e 34.
11. No que concerne à criança DD, à data com 4 anos de idade, o arguido tirou-lhe catorze fotografias, focando apenas a sua zona vaginal, estando a criança vestida com uma saia, que se encontrava levantada, de cuecas e de pernas abertas (fotografias n°s.18, 24, 26, 27, 28, 29, 31, 51, 52, 53, 54, 55, 56 e 57).
12. O arguido tirou as fotografias supra indicadas às crianças BB e DD na casa da progenitora sita na Rua ...., no ....
13. As crianças não tomaram conhecimento de que estavam a ser fotografadas.
14. Ao agir da forma descrita, o arguido agiu com o propósito logrado de utilizar as crianças CC e DD em registos fotográficos de cariz pornográfico, para fins sexuais, focando a parte genital das crianças, de pernas abertas, com vista a deter e armazenar tais registos, como fez.
15. Não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade das crianças, com as quais convivia, sabendo que as mesmas eram menores de 14 anos de idade.
16. Bem sabia, igualmente, e não podia ignorar o arguido que ao actuar desta forma punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade das crianças na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos.
(Da reincidência do arguido)
17. Aquando da prática dos factos acima descritos, o arguido já havia sido condenado, com trânsito em julgado, além do mais, no âmbito do processo n°.1154/08.3PFCSC, que correu termos no Juízo Central Criminal de Cascais - Juiz 2, por acórdão proferido em 31/3/2009, transitado em julgado em 30/4/2009, pela prática, em 23 de agosto de 2008, de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164°., n°.1, alínea a), do Código Penal, na pena de sete anos e seis meses de prisão.
18. O arguido esteve privado da liberdade, à ordem de tal processo, de 25/9/2008 a 23/9/2014, data em que foi libertado condicionalmente.
19. Não obstante a condenação, voltou o arguido a cometer factos ilícitos de natureza dolosa contra a autodeterminação sexual que acusam gravidade, conforme melhor resulta do acima descrito.
20. Tais circunstâncias permitem concluir que as anteriores condenações não surtiram efeito inibidor bastante da prática de actos criminosos por parte do arguido, designadamente da índole dos delitos ora em apreço e nas circunstâncias em que ocorreram.
21. Em todo o descrito circunstancialismo, agiu de forma livre, voluntária e consciente, pese embora soubesse que o seu comportamento é censurado por lei como crime.
Mais se provou que:
AA, natural de ..., cresceu, a partir dos 6 meses de idade, no interior do agregado familiar dos seus pais adoptivos, de nacionalidade portuguesa, comerciantes radicados no interior de ..., após o avô paterno o ter entregue aos cuidados destes, por motivos da falta de condições da parte da progenitora, uma adolescente angolana de 13 anos de idade e o progenitor de nacionalidade portuguesa, ser, na altura, casado e com família constituída.
AA veio a ter três irmãos afectivos, filhos dos pais adotivos e vinte e um irmãos consanguíneos de vários relacionamentos afectivos do seu progenitor, que acabou por assumir a sua paternidade.
Nunca conheceu a mãe e foram raras as vezes que contactou com o pai, sendo estes contatos limitados à fase da infância, quando ainda em ....
Por volta dos 6 anos de idade, na sequência do processo de independência de ..., veio juntamente com os seus pais adoptivos, para Portugal, numa situação de precaridade vivencial, tendo a família deixado todos os bens em ....
Beneficiaram de um processo de integração para retornados das "ex-colónias portuguesas", tendo residido no hotel ..., no ..., durante cerca de um ano, passando depois a viver num bairro de barracas de madeira, na ..., em ... e sendo realojados posteriormente numa habitação em ....
O agregado familiar conseguiu reestruturar a sua vida, após um processo inicial de grandes dificuldades socioeconómicas, mantendo o pai adoptivo a actividade de comerciante, explorando uma mercearia e trabalhando também como ....
O arguido, recorda, de uma forma afectivamente pouco gratificante, a sua vivência no interior do seu agregado familiar, durante a infância e adolescência, referindo ter sido sujeito a uma educação rígida, baseada na punição física e sem afecto, por parte dos pais adoptivos, sentindo-se menos amado que os outros irmãos afectivos, o que não é confirmado pelo seu pai adoptivo.
Um sentimento de abandono e rejeição está presente na forma como descreve as relações filiais e a ausência dos progenitores na sua vida, assumindo à DGRSP como um trauma psicológico o facto de não ter conhecido a progenitora.
Em ..., chegou a fugir de casa com o objetivo de procurar o paradeiro desta.
Veio a ter, mais tarde, contacto com a família paterna, na ... e alguns irmãos consanguíneos, no ..., sem, contudo, conseguir manter vinculação a estes, referindo à DGRSP ter sido rejeitado pelos seus irmãos.
O progenitor veio a falecer em ..., mantendo a mãe o paradeiro desconhecido, acreditando o arguido que poderá permanecer em ....
Para a DGRSP o percurso escolar do arguido revelou-se frustrante e incipiente, por falta de capacidade de aprendizagem, referindo que era gozado pelos colegas, por falta de motivação e absentismo, tendo somente concluído o 1° ciclo, com cerca de 14 anos de idade, apresentando condicionalismos na escrita e leitura.
Iniciou-se precocemente no mercado de trabalho, com cerca dos 14 anos de idade, começando a ajudar o pai adoptivo na área da construção civil, na carpintaria, trabalhando ainda numa oficina de automóveis.
Já em adulto, especializou-se como operário da construção civil na área da montagem de tectos falsos, actividade que veio especialmente a desenvolver, para várias entidades patronais e em várias regiões do país.
Permaneceu cerca de três anos na ..., a trabalhar na construção civil como ..., armador de ferro e na condução de gruas, pernoitando nas instalações das obras, período em que foi bem remunerado.
Ao nível afectivo, casou cerca dos 20 anos de idade, quando se encontrava a cumprir o serviço militar obrigatório, na sequência da gravidez da mulher.
A vivência conjugal evidenciou-se instável, afirmando à DGRSP ter-se casado contrariado, descontrolando-se emocionalmente no dia do casamento e reagido agressivamente, destruindo o respetivo bolo.
Separou-se um ano depois, após frequentes discussões.
Deste casamento nasceu um filho, actualmente já adulto e que regista diversos contactos com o sistema penitenciário.
Posteriormente, regista diversos relacionamentos maritais de curta duração, na sequencia dos quais terão nascido quatro filhos, uma filha atualmente com cerca de 30 anos de idade, uma filha com 24 anos, e um filho com 22 anos e outro filho também com 22 anos de idade e perante os quais pouca responsabilidade paterna assumiu no processo educacional dos mesmos.
Para a DGRSP manteve inúmeros relacionamentos amorosos esporádicos, também durante a vivência marital, revelando uma elevada instabilidade ao nível da vinculação afetiva/amorosa, sem nunca conseguir estruturar um projeto de vida familiar.
Os pais adoptivos, apesar de terem descrito o arguido como uma pessoa meiga, respeitadora e sociável para com eles, reconhecem à DGRSP que com as mulheres, sempre estabeleceu relações conflituosas e pouco estáveis.
Desde a sua adolescência, que frequenta habitualmente casas de prostitutas, tendo já, como jovem adulto, começado a preferir estabelecimentos de prostituição sadomasoquista.
Ao nível da gestão da sua vida, AA à DGRSP revelou uma postura pouco responsável e marcado pela instabilidade, essencialmente na gestão do dinheiro, tendo o próprio assumido ter gasto, grande quantia de dinheiro que ganhou enquanto trabalhou na ..., em jogos de casino, para onde se deslocava de limusina, em casas de prostituição e de "striptease".
Em 2000, com 31 anos de idade é preso pela primeira vez, sendo condenado a uma pena de 6 anos de prisão, pelo crime de sequestro, violação e roubo, vindo a ser libertado aos 2/3 da pena, em 21-10-2004.
Após a libertação, regressou à barraca anexa à do agregado familiar dos pais adoptivos, que lhe prestaram apoio durante o período de reclusão, tendo ao nível profissional integrado uma empresa de trabalhos temporários como etiquetador, desenvolvendo posteriormente a sua atividade profissional na área da construção civil.
No âmbito de processo de realojamento da ..., em ..., foi-lhe atribuída uma habitação tipologia um, onde vivia sozinho, na zona de ..., no mesmo prédio onde vive a sua tia adoptiva, mantendo este enquadramento habitacional.
AA refere à DGRSP que os vínculos familiares foram ficando cada vez mais fragilizados e as suas relações sociais empobrecidas, existindo segundo o arguido, algum distanciamento social e afectivo com os seus pais adoptivos, (esta percepção negativa do arguido contrasta com os revelados por estes à DGRSP, considerando que mantinham com aquele um normal relacionamento), e ausência de contactos com os familiares do lado do progenitor.
Mantinha tendência a isolar-se em casa, a ver televisão sendo o relacionamento com a vizinhança baseado em aspetos funcionais, quando era solicitado para arranjar aparelhos domésticos.
Em 2008 foi novamente preso, condenado numa pena de 7 anos e 6 meses de prisão pelo crime de violação.
Saiu em Liberdade Condicional em 2014, aos 5/6 da pena.
Durante o cumprimento da pena de prisão, no Estabelecimento Prisional da Carregueira, frequentou e concluiu um curso/tratamento para agressores sexuais, com a duração de 15 meses.
Libertado em 2014, regressou à sua residência, mobilizando- se para a obtenção de apoios sociais para suporte da sua subsistência, enquanto não conseguiu a sua integração laboral.
Voltou a ser detido em 2016 no Estabelecimento Prisional de Caxias.
AA, aparte os problemas que para a DGRSP tem na esfera da sexualidade, não tem história de comportamentos aditivos, tratando-se de um individuo saudável.
À data dos factos subjacentes à presente acusação, o arguido residia sozinho, na morada constante dos autos, no apartamento camarário que lhe havia sido atribuído pela ... ainda antes da sua detenção e pelo qual paga cerca de 5 euros mensais.
Afirma que desenvolvia o seu trabalho na área da construção civil, apesar da precariedade vinculativa, conseguindo fazer face às suas necessidades básicas.
AA afirma à DGRSP que mantinha um bom relacionamento com os seus filhos, pais adotivos e restante família.
As fontes da DGRSP referem que no meio habitacional onde reside, o arguido é um individuo educado, recatado, que se dá bem com toda a gente e sempre disponível para ajudar, mantendo uma relação cordial com a vizinhança.
Refere à DGRSP que manteve durante algum tempo uma relação de namoro com FF, tia da mãe das menores vítimas no presente processo, mas que nunca viveram em comum, tendo a relação terminado em 2015.
AA é para a DGRSP reincidente na mesma tipologia de crime.
Cumpre desde 23/9/2018, uma pena de 19 anos de prisão, por crimes de violação, ameaça, gravação de fotografias ilícitas, roubo, condução de veículo e rapto (um dos quais cometido contra a sua filha, a qual à data tinha 17 anos de idade).
Citando o Relatório de Perícia Sobre a Personalidade elaborado em 10/3/2009, o arguido apresenta distúrbios ao nível da sua sexualidade, com dificuldades em conseguir impedir ou controlar o desejo de ter relações sexuais que causem dor às parceiras.
"Ao nível dos traços de personalidade, AA, revela mais acentuadamente características de funcionamento paranoide, fóbico, dependente e antissocial", "é reservado e vigilante, revelando suscetibilidade à rejeição, pelo que apresenta tendência a ser cauteloso e desconfiado dos motivos do outro nas relações que estabelece, com propensão a permanecer isolado e a preferir contextos em que não se relacione com muita gente", "o desenvolvimento da sua sexualidade estruturou-se de forma disfuncional, apresentando fantasias intensas e recorrentes sexualmente excitantes e um comportamento sexual que implica causar sofrimento físico na parceira sexual e a sua humilhação, não conseguindo obter prazer sexual fora desta realidade, decorrendo o seu comportamento sexual desviante de um fator de excitação sexual desviante", "este comportamento sexual, com repercussões negativas na sua adaptação social e instabilidade das relações afetivas, poderá constituir uma patologia mental ao nível de uma Parafilia com características de Sadismo Sexual", "na avaliação causal dos seus comportamentos e atitudes, tende a colocar em fatores e circunstâncias externas a si, a culpa e a responsabilidade do que lhe acontece, procedimento que lhe confere fracas capacidades para mudar o seu comportamento de uma forma consistente e estável, como para alterar os acontecimentos exteriores com que tem que lidar" (cit).
Durante a presente situação processual e desde que está detido, o arguido recorreu aos serviços de psiquiatria, tendo sido acompanhado no Hospital Prisional no serviço de psiquiatria e em consultas a este nível.
Relativamente às acusações que lhes são dirigidas nos aludidos autos, nega à DGRSP o seu envolvimento e não se revê nos acontecimentos, que considera terem sido inventados.
Assumiu noutros autos, ainda que vagamente que cometeu o crime de violação, sobre o qual diz-se arrependido com afirmações do tipo "isso não se faz" "se fosse a minha filha também não gostava que lhe fizessem isso" (Sic), o que choca com o facto de uma das suas vítimas ser a própria filha.
Durante a sua permanência no estabelecimento prisional tem mantido um comportamento adequado, isento de medidas disciplinares.
Está a trabalhar como faxina, mas ainda não reuniu condições para usufruir de medidas de flexibilização da pena.
O arguido apresenta um desenvolvimento intelectual com capacidade para avaliar da licitude/ilicitude das suas acções e das suas consequências, não se verificando para a DGRSP défices que interfiram nesta capacidade, sendo por isso passível de ser responsável pelos seus actos.
Revela à DGRSP falta de autocontrolo perante situações emocionais frustrantes, dificuldade na resolução de conflitos, níveis de agressividade elevados, tendência em colocar em circunstâncias externas a si, as causas do que lhe acontece e lacunas ao nível do pensamento crítico e consequencial.
Apesar de ter frequentado e concluído um curso/tratamento para transgressores sexuais, com a duração de 15 meses, aquando da sua reclusão no Estabelecimento Prisional da Carregueira, é para a DGRSP reincidente na mesma tipologia do crime e no sistema prisional, com registo de incumprimento da liberdade condicional cujo termo ocorreria em 25/3/2016, bem como não cumpriu uma das condições impostas aquando da concessão desta medida, nomeadamente ser acompanhado na valência de psicologia/psiquiatria direcionada para distúrbios da esfera sexual, não comparecendo às consultas de sexologia clinica que estavam agendadas (só foi a uma consulta).
Face a todo o exposto, colocam-se à DGRSP algumas reservas quanto ao seu percurso, tendo em conta a reincidência na mesma tipologia de crime.
Provou-se ainda que:
O arguido já foi condenado:
1- Por factos de 14/10/98, sentença da mesma data, transitada, no P.534/98, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. no art°.3°., n°.2, do DL 2/98, na pena de 2 meses de prisão, substituída por 60 dias de multa, à taxa diária de 200 escudos, perfazendo multa de 12.000 escudos; tal pena foi depois declarada extinta, por aplicação de lei de clemência de ...;
2- Por factos de ..., sentença de 21/12/99, transitada em 19/1/2000, no P.44/99, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. no art°.3°., n°.2, do DL 2/98, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 400 escudos, perfazendo multa de 40.000 escudos;
3- Por factos de 8/2/2000, sentença de 9/2/2000, transitada em 23/2/2000, no P.88/00, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. no art°.3°., n°.2, do DL 2/98, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de 500 escudos; tal pena foi depois declarada extinta, pelo pagamento;
4- Por factos de 14/12/1999, ac. de 6/11/2001, transitado em 27/11/2001, no P.173/99, pela prática de um crime de sequestro, um de violação e um de roubo, pps. nos art°s.158°., n°.1, 164°., n°.1 e 210°., n°.1, todos do CP, na pena única de 6 anos de prisão; por decisão do TEP de 26/4/2007 foi convertida em definitiva a liberdade condicional em que o arguido se encontrava deste P.173/99, com efeitos a partir de 20/10/2006 e consequentemente foi declarada extinta esta pena de prisão;
5- Por factos de 3/9/2005, sentença de 3/2008, transitada em 2/4/2008, no P.1553/05, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. no art°.3°., n°.2, do DL 2/98, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano; esta pena foi depois declarada extinta, nos termos do art°.57°, do CP, com efeitos reportados a 12/10/2010;
6- Por factos de 22/8/2008, ac. de 3/2009, transitado em 7/5/2009, no P.1154/08, pela prática de um crime de violação, pp. no art°.164°., do CP, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão; por decisão do TEP de 10/2019, transitada em 28/10/2019, foi julgada extinta pelo cumprimento a pena que o arguido cumpria à ordem desse P.1154, com efeitos a partir de 23/9/2018;
7- Por factos de 2015, ac. de 12/2016, transitado em 12/1/2017, no P.105/15, pela prática de um crime de rapto, um de roubo, dois de violação, um de violação agravada, um de violação tentada, dois de ameaça agravada, um de fotografias ilícitas e quatro de condução sem habilitação legal, pps. nos art°s.161°., 210°., n°.1, 164°., 177°., 22°., 23°., 155°., e 199°., todos do CP e 3°., do DL 2/98, na pena única de 19 anos de prisão; e
8- Por factos de 12/8/2018, ac. de 6/2020, transitado em 4/9/2020, no P.6600/18, pela prática de um crime de evasão, pps. nos art°s.352°., 75°., e 76°., todos do CP, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, efectiva.
O arguido nasceu em .../.../1969.
Em audiência usou do seu direito ao silêncio quanto aos factos imputados.
Confirmou as suas condições pessoais aludidas no relatório social.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa, para além ou em contrário dos supra vertidos, nomeadamente que o arguido não tenha praticado os factos supra apurados; que o arguido tenha tido o intuito mencionado em 6 e 14 quanto à menor BB; e as demais condições pessoais do arguido.
MOTIVAÇÃO:
A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada do silêncio e das declarações do arguido (estas quanto às suas condições pessoais), com depoimentos prestados e os documentos e prova pericial dos autos, em especial de fls.2 a 8, 14, 15, 33 a 34, 40 a 54, 78 a 80v, 95 a 7v, 99, 102 a 6, 132 e 3, 151 e 2, 162 a 7, 186 a 191, 249 e 50, 260 a 263, 265 a 9, 279 a 336, 345, 351 e 2, 359, 366, 368 a 72, 375, 381, 398, 403, 436 a 9, 443 a 5, 482, 495 a 501 e 503 a 509 e constantes do citius, de onde constam CRCs, certidão, declarações para memória futura das aludidas menores e relatório social), todos analisados em audiência, tudo face a um juízo de experiência comum e à ponderação (mas não aplicação em concreto no caso vertente, ressalvada a mencionada BB) do Princípio "in dubio pro reo", sendo que a prova produzida em audiência se encontra gravada.
Quanto aos factos dados exemplificativamente como não provados, diga-se desde logo que o arguido usou do seu direito ao silêncio quanto ao imputado. No que, face ao aludido "in dubio" contribuiu para a não prova do imputado atinente à aludida BB.
Foi credível ao confirmar as suas apuradas condições pessoais, no que contribuiu para os factos dados como provados.
Diga-se que nos presentes autos releva sobretudo a prova documental e pericial, em especial as oito folhas constantes dos envelopes de fls.33 a 35, de onde se destacam, com o cariz imputado, as seguintes fotografias:
-13, 18 e 24, a fls. aí ora numeradas como 2;
-26 a 29, 31 e 36, a fls. aí ora numeradas como 3;
-39 e 45, a fls. aí ora numeradas como 4; e
-51, 52 e 54 a 57, a fls. aí ora numeradas como 5.
Conforme depoimento uniforme das testemunhas GG e HH, infra, as mencionadas fotografias 13, 18, 24, 39 e 45 retratam a menor CC e as mencionadas fotografias 26 a 29, 31, 36, 51, 52 e 54 a 57 retratam a menor DD.
Nenhuma das acima mencionadas fotografias que assumem o imputado cariz retrata a menor BB. No que tal contribuiu para os factos dados como não provados.
Para os factos provados contribuiu a circunstância de as aludidas fotografias terem sido encontradas no mencionado telemóvel do arguido.
Assim, a testemunha GG foi credível (por corroborada) ao referir que é mãe das menores BB e DD; que as mesmas têm actual e respectivamente 17 e 10 anos de idade; que o arguido foi namorado de uma irmã da testemunha, chamada FF; que houve um período em que o arguido "desapareceu" (leia-se desapareceu do contacto com a testemunha, porque esteve preso); ao mencionar que o arguido se deslocou a casa da testemunha, com a aludida irmã da mesma; que então o arguido tirou fotografias às menores filhas da testemunha; ao mencionar que tal "reaparecimento" do arguido se deu na ocasião dos factos em apreço; que nessa ocasião a mencionada filha mais velha tinha cerca de 11/12 anos de idade e a mais nova cerca de 4/5 anos de idade; que não se apercebeu que o arguido tinha tirado as fotografias acima destacadas; ao mencionar que as mencionadas fotografias 13, 18, 24, 39 e 45 retratam a menor CC e as mencionadas fotografias 26 a 29, 31, 36, 51, 52 e 54 a 57 retratam a menor DD; ao mencionar as pessoas retratadas nas demais fotografias; ao mencionar que nunca consentiria em que o arguido fotografasse as menores abaixo da cintura nos termos em que ele o fez. No que contribuiu para os factos dados como provados.
A testemunha HH foi credível (por corroborada por demais elementos probatórios) ao referir que é mãe da menor CC; que esta tem hoje 12 anos de idade; que a CC em 2015 tinha cerca de 5/6 anos de idade; ao mencionar que era costume o arguido frequentar a casa desta testemunha e das tias da mesma; ao mencionar que soube que o mesmo tinha estado preso um tempo; ao referir que o arguido aventou que tinha roubado o marido de uma senhora com a ajuda desta (para "justificar" a prisão); ao mencionar que a sua aludida filha esteve algumas vezes sozinha com o arguido; que a menor gostava do arguido porque este era muito simpático para com ela; que o arguido chegou a passar tardes com a menor, tanto na casa da testemunha, como na rua; ao mencionar que conhece as outras meninas mencionadas porque são suas (da testemunha) primas; que as mencionadas fotografias 13, 18, 24, 39 e 45 retratam a menor CC e as mencionadas fotografias 26 a 29, 31, 36, 51, 52 e 54 a 57 retratam a menor DD; ao mencionar as pessoas retratadas nas demais fotografias; ao mencionar que a sua filha nunca lhe contou que o arguido lhe tinha tirado fotografias; ao mencionar que as aludidas fotografias foram encontradas no telemóvel do arguido quando este foi "apanhado"; ao mencionar que as mencionadas fotografias foram tiradas sem o seu conhecimento. No que contribuiu para os factos dados como provados.
Mais explicitando as razões pelas quais criou a sua convicção quanto aos factos assinalados, quanto à finalidade que o arguido pretendia dar a tais fotografias, quanto à intenção do arguido face a tais fotografias e quanto aos factos que integram o elemento subjectivo ou dolo, em obediência ao vertido no Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa dos autos, diga-se que a prova do elemento subjectivo da infracção partiu de uma inferência lógica baseada nos factos objectivos apurados, face a um juízo de experiência comum.
Com efeito, face a tal juízo, dos factos objectivos conseguiu-se aferir o dolo.
Afigura-se que quem guarda fotografias é para as ver, quando o pretenda.
E sendo fotografias de zonas íntimas, infere-se o apurado intuito libidinoso. Se o arguido guardou, como se apurou, que guardou as mencionadas fotografias de partes íntimas de menores suas próximas era para o satisfazer, e não, por exemplo, para matar saudades das mesmas, porque se apenas a tal se destinasse, então teria apenas necessidade de fotografar as faces e não tais zonas objectivamente captadas e retratadas.
Cabendo explicitar o “iter lógico” quanto aos pontos 14, 16 e dolo, diga-se que os pontos 14 a 16 referem o seguinte:
“14. Ao agir da forma descrita, o arguido agiu com o propósito logrado de utilizar as crianças CC e DD em registos fotográficos de cariz pornográfico, para fins sexuais, focando a parte genital das crianças, de pernas abertas, com vista a deter e armazenar tais registos, como fez.
15. Não ignorava nem podia ignorar o arguido a idade das crianças, com as quais convivia, sabendo que as mesmas eram menores de 14 anos de idade.
16. Bem sabia, igualmente, e não podia ignorar o arguido que ao actuar desta forma punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade das crianças na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos”.
Mas já antes se tinha apurado o vertido no ponto 6, do seguinte teor:
“6. Em data que não se conseguiu concretamente apurar, mas situada entre 31/5/2015 e 28/10/2015, dia em que o arguido foi detido à ordem do processo nº.105/15.3JBLB, aquele formulou o propósito de obter e armazenar registos fotográficos de cariz sexual e pornográfico das crianças CC e DD, retratando as suas partes íntimas, tais como a zona das cuecas ou dos calções, focando a parte inferior do corpo, vagina e rabo, para posterior visionamento, com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos”.
Donde se explicita o aludido “iter” reiterando que o vertido em 14 a 16 é decorrência do vertido nomeadamente em 6.
No que respeita ao conceito de pornografia vertido o artº.176º., nº.8, do CP, socorremo-nos, para além do infra mencionado em sede de fundamentação de Direito, da “Caracterização do Crime de Pornografia de Menores”, de Sandra Feitor, doutoranda em Direito pela Universidade Nova de Lisboa, citado pela PGDL in https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=109A0176&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo .
E, face ao conceito de pornografia vertido o artº.176º., nº.8, do CP, mais se explicita que se decidiu que o arguido pretendia satisfazer os seus intuitos libidinosos e que pretendia as fotografias para fins sexuais atendendo, nomeadamente à seguinte Jurisprudência (também citada pela PGDL em nota ao mencionado preceito):
1. Ac. TRC de 2-04-2014: “2. Preenche o crime de pornografia de menores o arguido que guarda no seu computador imagens de crianças do sexo masculino, nuas e em poses de exibição dos órgãos sexuais”; e
2. Ac. TRE de 17-03-2015: “denotando objectivos de preservar (…) os conteúdos, através de manifesta pluralidade de resoluções por si procuradas e conotadas com factores endógenos de personalidade e vivência, sem visível influência de outros aspectos”.
Note-se que “revisitadas” as oito folhas constantes dos envelopes de fls.33 a 35, destacam-se, com o cariz imputado, as seguintes fotografias:
-13, 18 e 24, a fls. aí ora numeradas como 2;
-26 a 29, 31 e 36, a fls. aí ora numeradas como 3;
-39 e 45, a fls. aí ora numeradas como 4; e
-51, 52 e 54 a 57, a fls. aí ora numeradas como 5.
Das mesmas constata-se que o arguido se foca na zona genital das mencionadas menores, “cortando” mesmo de fotografias a cabeça das menores, o que manifesta firme resolução criminosa, designadamente de satisfazer o seu apetite sexual por via dos mencionados meios, o que se afigurou ao Tribunal como “factor endógeno” da sua personalidade e vivência, como acima mencionado.
O facto de se poder eventualmente considerar as fotografias dos autos, não como pornografia “hardcore”, mas sim como pornografia “soft core” em nada diminui a prova ou a intensidade da mesma resolução criminosa apurada.
O arguido confirmou o vertido no relatório social no que contribuiu para as suas apuradas condições pessoais.
No que respeita aos existentes antecedentes criminais, assentou nos CRCs mencionados.
Os factos não provados resultaram assim em síntese da ausência de prova tida por credível e susceptível de os dar como provados.»
2.2. Das questões suscitadas pelo recorrente, que iremos apreciar pela ordem da sua relevância ou efeito, que não pela ordem indicada pelo recorrente:
2.2.1. Dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal
Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (artigo 428.º do Código de Processo Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (n.º 1 do artigo 410.º do mesmo diploma).
Por isso, poderia o recorrente, se considerasse ter existido qualquer erro na apreciação da matéria de facto, impugnar esse segmento da decisão, nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, do C.P.P., o que não fez.
Vem o recorrente, contudo, invocar o erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável da fundamentação, vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., que é também uma forma de sindicar a matéria de facto, apenas em face do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que se convencionou chamar de “revista alargada”. Trata-se, ainda aqui, de vícios quanto à decisão sobre a matéria de facto e não quanto ao modo como se decidiu de direito com base nos factos apurados. Por isso, eventuais contradições ou discordâncias quanto ao modo como o tribunal qualificou os factos ou determinou a medida da pena, não integram nem podem ser apreciadas à luz do regime previsto para os vícios do artigo 410.º do C.P.P.
Isto para dizer que, a contradição que o recorrente assinala na decisão, quanto ao que nela se escreve para fundamentar a medida das penas parcelares aplicadas a cada crime, que o tribunal considerou terem sido praticados pelo arguido, não traduz qualquer contradição da fundamentação, nos termos previstos na alínea b) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., pois quando aqui se fala em contradição insanável “entre a fundamentação e a decisão”, não se está a referir à contradição entre matéria de facto assente como provada e a errada subsunção ao direito que depois foi feita desses factos, mas antes à contradição entre a fundamentação da convicção e a decisão dada ao caso em termos de matéria de facto assente como provada e não provada ou à contradição entre os factos provados e os não provados.
O que o recorrente alega a propósito de uma eventual contradição na fundamentação de direito quanto à medida das penas aplicadas, que reputa como excessivas, será, assim, apreciado nessa sede.
Resta, assim, apreciar, neste âmbito, a valoração da não confissão do arguido, que o recorrente assinala como erro notório na apreciação da prova1, apesar de, também aqui o recorrente restringir essa valoração, não aos factos em si mesmos que o tribunal deu como provados, mas antes para evidenciar que dessa valoração resulta um erro na determinação da medida concreta das penas.
O vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do mesmo preceito, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.
O erro notório na apreciação da prova traduz, assim, um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão, que não passa despercebido aos olhos de uma pessoa comum, não dotada de conhecimentos específicos, resultando claro, em face do texto da decisão, das regras da experiência e da lógica, que a conclusão a extrair dos elementos probatórios deveria ter sido outra que não aquela que o tribunal retirou. Tem de ser um erro ostensivo e evidente e o requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio, ou mesmo «ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar», devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (Cons. Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.).
O recorrente refere que o tribunal valorou a não confissão do arguido e a não verbalização de arrependimento.
Percorrendo a decisão recorrida, no que à matéria de facto respeita, verificamos que dela apenas consta que o arguido:
“Em audiência usou do seu direito ao silêncio quanto aos factos imputados” e que “Confirmou as suas condições pessoais aludidas no relatório social”.
Na motivação dos factos provados diz-se:
“A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada do silêncio e das declarações do arguido (estas quanto às suas condições pessoais), com depoimentos prestados e os documentos e prova pericial dos autos, em especial de fls…..……” enumerando, depois, o tribunal as provas que valorou e explicitando as razões para a sua convicção quanto aos factos provados com base nessas provas e nas regras da experiência, onde não consta em que medida valorou o silêncio do arguido ou o que dele extraiu.
É evidente que o tribunal não deveria ter fundamentado dessa forma (“concatenação ponderada do silêncio e das declarações do arguido”), mas daí não resulta face ao restante da motivação que o tribunal tenha de algum modo valorado o silêncio do arguido quanto aos factos que considerou provados atinentes à sua culpabilidade. Antes, pelo contrário, resulta que a convicção do tribunal, quanto a tais factos, resultou das provas que o tribunal enumerou e analisou e que na fixação dos factos provados atinentes às condições pessoais do arguido, o tribunal valorou as declarações deste, na parte em que o mesmo confirmou o teor do relatório social.
Por outro lado, não resulta minimamente evidenciado que o tribunal recorrido, na apreciação probatória que fez quanto às provas que enumerou e valorou, tenha violado as regras da experiência ou efectuado um apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Não se verifica, pois, no texto da decisão recorrida, o vício do erro notório na apreciação da prova, sem prejuízo de, em sede de apreciação da medida das penas, nos pronunciarmos sobre a alegada valoração da não confissão dos factos pelo arguido.
2.2.2. Do enquadramento jurídico-penal dos factos provados
O recorrente entende que não se mostra preenchido o tipo objectivo do crime de pornografia pelo qual foi condenado por não estarmos perante fotografias das menores de cariz sexual ou pornográfico nem ser possível inferir o intuito libidinoso do arguido.
Vejamos, tendo em conta a posição assumida pelo Ministério Público na sua resposta – de que o arguido fez das menores em causa, através das fotografias em análise, um objecto despersonalizado para fins sexuais, pelo que forçoso é concluir que estamos perante pornografia de menores – e o que está estabelecido no artigo 176.º do Código Penal.
O recorrente não impugnou a matéria de facto provada, não havendo por isso que, nesta sede, questionar o que foi dado como provado pelo tribunal recorrido, designadamente quanto ao fim de satisfação dos intuitos libidinosos do arguido (ponto 16 dos factos provados).
O que resulta da matéria de facto provada é que, o arguido, utilizando o seu telemóvel, fotografou (e guardou as fotografias) a região genital de duas menores, então com 4 e 5 anos, sem que elas disso se apercebessem, quando essa região se encontrava coberta, pelo menos pelas cuecas.
Trata-se de fotografias que, embora não exibam qualquer actividade sexual, nem sequer os órgãos sexuais, são susceptíveis de provocar excitação a quem valore como objecto sexual crianças. São fotografias que, embora não reproduzam actos sexuais, poses sexuais ou órgãos sexuais, sugerem.
À data em que os factos ocorreram (2015) o Código Penal não previa o conceito de material pornográfico. Esse conceito apenas foi introduzido na alteração ao Código Penal operada pela Lei n.º40/2020, de 18/08, que introduziu um novo número (que passou a ser o actual n.º 8) em que se diz “considera-se pornográfico todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo”.
Já antes dessa alteração se defendia que a natureza pornográfica dos actos abrangidos por este crime inclui menores em actividades sexuais, exibindo órgãos sexuais, ou em pose, postura ou comportamentos susceptíveis de causar estímulo, excitação ou impulso sexual (José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro in Crimes Sexuais Análise Substantiva e Processual, p. 191).
Ainda que o núcleo central do conceito de pornografia abarque a actividade sexual e a representação dos órgãos sexuais, no qual não se mostram abrangidas as fotografias em causa, em virtude de os órgãos sexuais estarem em todos os casos cobertos por roupa, a verdade é que elas são susceptíveis de induzir «estímulo sexual», «excitação», «lubricidade» ou «lascívia do voyeur», isto é, de excitar sexualmente, sobretudo para quem valore como objecto sexual crianças, devendo por isso serem consideradas como imagens pornográficas. Note-se que são fotografias em que nem sequer se vê a cara das menores. O seu foco e campo de visão é apenas o da zona genital das crianças, com ou sem as pernas abertas, nuns casos com roupa e noutros apenas com as cuecas, ou a zona do peito das crianças, com roupa, bem reveladores da intenção lasciva subjacente à sua captação, que permitem a conclusão quanto à sua natureza pornográfica.
Não obstante estarmos perante imagens pornográficas, porque as mesmas foram tiradas pelo arguido sem sequer as menores se aperceberem que estavam a ser fotografadas (facto provado sob o ponto 13), a conduta do arguido enquadra-se na alínea c) do n.º1 do artigo 176.º do Código Penal (produção de material pornográfico) e não na alínea b) (utilização de menor em fotografia) como foi considerado pelo tribunal recorrido.
O conceito amplo de utilização de menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos [artº 176º, 1, b), CP] não abrange situações em que as gravações foram feitas de modo dissimulado, não tendo as menores conhecimento de que, involuntariamente, participavam nas mesmas. Sendo o bem jurídico protegido o livre desenvolvimento sexual das crianças e a autodeterminação sexual, as diversas modalidades de conduta previstas nas alíneas a) e b) do artigo 176.º, exigem que exista uma participação consciente da criança, isto é, que a mesma saiba que está a ser fotografada ou utilizada em filme, espectáculo ou gravação pornográficos.
Nesse sentido escreve Paulo Albuquerque in Comentário do Código Penal, 5ª edição actualizada, p. 785: «Os atos descritos na alínea a) e b) n.º1 são a utilização do menor em espetáculo, fotografia, filme ou gravação pornográficos. Estes actos podem envolver a prática pelo menor de atos sexuais de relevo, atos de contacto de natureza sexual, atos exibicionistas ou apenas a sua presença física no meios dos outros intervenientes no espetáculo, não bastando que o menor seja mero espetador do evento.» (sublinhado nosso)
Ora, no caso, como já se referiu, resultou provado que as menores não tomaram conhecimento de que estavam a ser fotografadas integrando, pois, a conduta do arguido a previsão da alínea c) do n.º1 do artigo 176.º do Código Penal e não a sua alínea b), o que não traduz qualquer alteração relevante da qualificação jurídica dos factos já que estamos perante o mesmo tipo de crime, embora integrado noutra modalidade de conduta.
Estando em causa a produção de imagens (fotografias) pornográficas ou de sentido pornográfico de duas menores de 14 anos, a pena prevista para os crimes é agravada de metade, nos seus limites mínimo e máximo, por força do n.º 6 do artigo 177º do Código Penal, como considerou o tribunal recorrido.
Termos em que improcede este segmento do recurso do arguido.
2.2.3. Do alegado erro na medida das penas aplicadas e da omissão de fundamentação quanto ao cúmulo jurídico.
O tribunal condenou o arguido como reincidente nas penas parcelares de 5 anos de prisão, por cada um dos crimes e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.
O arguido não questiona a condenação como reincidente. Apenas se insurge contra o que considera ser a excessividade das penas por ter sido valorado a não confissão e o não arrependimento, quando o arguido não prestou quaisquer declarações sobre os factos e terem sido considerados factos não imputados ao arguido como é a referência à natureza e quantidade de estupefacientes, invocando ainda a omissão de fundamentação quanto à pena única que, no seu entender, determina a nulidade da decisão.
Vejamos:
Antes de mais importa referir que aquilo que é referido a determinada altura na fundamentação da decisão quanto à não suspensão das penas parcelares aplicadas antes da reincidência (perfeitamente dispensável, nesta fase do procedimento da determinação da pena) em face da natureza e quantidade dos estupefacientes em causa, é um lapso manifesto da decisão, certamente um “copy paste” de outra decisão, que por lapso não foi apagado, que não assume aqui qualquer relevância. Nem se compreende porque é que o recorrente, admitindo tratar-se de um lapso manifesto, vem invocar o mesmo para evidenciar o vício do erro notório e a excessividade das penas.
Quanto ao mais.
Nos termos do artigo 40.º, nº1 do Código Penal, a pena tem como principal finalidade a tutela dos bens jurídicos, a que está associada a função de prevenção geral positiva, e a reinserção social do condenado, a que está ligada a função de prevenção especial ou de socialização. Porém, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do artigo 40.º) funcionando assim esta como uma proibição de excesso e limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª Reimpressão, p. 229-230).
Para a aplicação de uma determinada pena exige-se ao juiz uma dupla ou tripla tarefa: determinar em primeiro lugar a moldura penal abstracta que caiba aos factos provados; em seguida encontrar dentro desta moldura aplicável o quantum concreto da pena em que o arguido deve ser condenado e, em seguida, escolher a espécie ou tipo de pena a aplicar concretamente, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê, se for esse o caso.
O artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal impõe que a medida da pena seja determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, estabelecendo o seu n.º 2 que, na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as circunstâncias aí enumeradas de a) a f).
Culpa e prevenção são, por conseguinte, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de concretizar a medida da pena, sendo a moldura da culpa o limite máximo de pena adequado que não pode ser ultrapassado e que, em certa medida constitui, também, juntamente com as circunstâncias legais do artigo 71.º um travão ao livre arbítrio na medida das penas que o tribunal tem de aplicar.
Os crimes praticados pelo arguido são punidos com pena de 1ano e 6 meses de prisão a 7 anos e 6 meses de prisão (artigos 176.º, n.º1, alínea c) e artigo 177.º, n.º 6, do Código Penal).
Por força da reincidência o limite mínimo da pena aplicável a cada um dos crimes passa a ser de 2 anos de prisão e o limite máximo mantem-se em 7 anos e 6 meses de prisão (artigo 76.º, n.º1 do Código Penal).
Na decisão recorrida considerou o tribunal as supra mencionadas condições pessoais supra dadas como provadas, com especial atenção à idade do arguido na data dos factos – já não susceptível de beneficiar do regime especial para jovens por ter mais de 21 anos de idade na data dos factos - e o seu silêncio quanto ao imputado, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo directo, reconhecido nos factos, as condições do arguido, pessoais e económicas, a não confissão dos factos, a existência na data dos factos e hoje das mencionadas condenações criminais, a sua conhecida inserção social e as exigências de prevenção geral e especial.
O tribunal valorou em sede de determinação da pena a falta de confissão, ou seja, valorou o silêncio, pois consta da decisão que o arguido não prestou declarações quanto aos factos imputados.
O arguido não prestou qualquer declaração sobre os factos que lhe eram imputados no exercício de um direito que lhe é reconhecido.
O silêncio, mesmo que não o possa beneficiar, não pode, a nenhum título, prejudicá-lo.
Logo, o silêncio do arguido é um não-facto e não devia, sequer, ser dado como provado e valorado.
Desconsiderando, pois, esse não facto, isto é, não o valorando, e não devendo as penas ultrapassar o limite imposto pela culpa, importa que as mesmas cumpram as exigências de prevenção geral e especial, atenta a gravidade dos crimes cometidos.
O grau de ilicitude dos factos não é no caso acentuado – estamos apenas perante a captação de fotos à região genital e do peito de duas menores de 4 e 5 anos, quando as mesmas estavam vestidas com roupa e em que a região genital estava tapada com cuecas, sem que as próprias menores disso se tenham apercebido. A natureza pornográfica destas imagens fica quase no limiar do conceito de pornografia. O arguido tinha estas fotos guardadas no seu telemóvel e, portanto, não estamos sequer perante um caso de distribuição ou de colocação das mesmas em sites de pedofilia, mostrando-se o desvalor do resultado limitado ao acto de captação das fotografias e ao seu armazenamento no telemóvel.
O dolo do arguido é intenso, porque directo, em ambos os casos.
O arguido já sofreu, anteriormente aos factos em causa nos autos, outra condenação em pena de prisão efectiva (além daquela pelo crime de violação que serviu para fundamentar a reincidência, que não é questionada pelo arguido), designadamente em ..., por crimes de sequestro, violação e roubo e, posteriormente, em 2016, por factos, também de 2015, por crimes de rapto, violação agravada, ameaça agravada condução sem habilitação legal, em que foi condenado na pena de 19 anos de prisão, que cumpre e, em 2020, por factos de 2018, em que foi condenado na pena de 1 anos e 3 meses de prisão, por crime de evasão, a acentuarem as exigências de prevenção na vertente especial.
De acordo com um relatório pericial à personalidade do arguido elaborado em 10/03/2009, que é citado no relatório social, o arguido revela “características de funcionamento paranoide, fóbico, dependente e antissocial” e o mesmo tem tido um percurso instável ao nível das relações afectivas ou conjugais não tendo o mesmo, vínculos familiares estáveis nem relacionamento social com os seus pais adoptivos. O seu percurso profissional, ainda que iniciado muito precocemente, é marcado pela instabilidade.
A culpa do arguido é elevada, tanto mais que o arguido convivia, à data dos factos, com a tia das mães das menores, com a qual tinha tido um relacionamento amoroso e, por força desse convívio, convivia e/ou frequentava a residência das sobrinhas daquela, mães das menores, tendo ainda assim sido indiferente a esse relacionamento das menores com a tia e desta com aquelas e se aproveitado dessa relação para fotografar as menores em poses que satisfaziam a sua lascívia. Não podemos contudo deixar de ponderar na culpa os traços da personalidade do arguido evidenciados no relatório social e o seu percurso de vida que determinam, em grande medida, a incapacidade que o arguido tem em se determinar conforme o Direito.
Assim, pese embora as elevadas exigências de prevenção geral quanto a este tipo de crime e todo o tipo de abusos sexuais a menores, face ao baixo grau de ilicitude dos factos, quer quanto aos factos em si mesmos, quer quanto às suas consequências, consideram-se as penas aplicadas exageradas e muito para além da culpa do arguido e das suas condicionantes fixando as mesmas em 2 anos e 6 meses, sem a reincidência e em 3 anos de prisão com a reincidência relativamente a cada um dos crimes, dessa forma cumprindo o disposto no artigo 76.º do Código Penal.
Estando ambos os crimes em concurso importa, nos termos do artigo 77º do Código Penal fazer o cúmulo jurídico entre as penas aplicadas por forma a aplicar uma pena única.
A propósito do cúmulo invoca o recorrente a nulidade da decisão, por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º1 do Código de Processo Penal.
Querendo, certamente, referir-se à alínea a) do n.º1 do referido artigo 379.º que estabelece a nulidade da sentença quando a mesma não contiver as menções referidas no n.º2 do artigo 374.º, constatamos ser totalmente infundada essa alegação do recorrente já que o acórdão contém, ainda que de maneira não muito aprofundada, mas concisa e suficiente, os motivos de direito para o cúmulo que o tribunal recorrido realizou. O quantum da pena aplicada é matéria para apreciar face à discordância da mesma pelo recorrente e ao facto de se terem alterado as penas parcelares.
Assim:
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas em concurso (artigo 77.º, n.º2 do Código Penal).
A medida concreta da pena do concurso é determinada no quadro dessa moldura abstracta, que no caso é de 3 anos a 6 anos de prisão, segundo o critério do artigo 77.º, n.º1 do Código Penal, que manda atender ao conjunto dos factos praticados, no que está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, e à personalidade do agente espelhada na prática dos factos.
O nosso sistema penal rejeita uma visão atomística da pluralidade dos crimes e obriga a ponderar o seu conjunto, a possível conexão dos factos entre si e a relação da personalidade do agente com o conjunto dos factos, estando antes em causa na aplicação de uma pena única, «a avaliação de uma unidade relacional de ilícito, portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente» (Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166).
Conforme se escreve no acórdão do S.T.J., de 10 de Setembro de 2009, processo n.º 26/05.8.SOLSB-A.S1, 5.ª Secção «(…) a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas. Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta.»
A pena conjunta é, assim, uma pena voltada para ajustar a sanção, dentro da moldura formada a partir das concretas penas singulares, devendo ter-se em conta na sua fixação os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso (acórdão do S.T.J., de 31 de Março de 2011, acessível em www.dgsi.pt:
Estão em causa dois crimes de pornografia de menores na modalidade de produção de fotografias de carácter pornográfico, ambos praticados nas mesmas circunstâncias de tempo e modo e ambos violadores do mesmo bem jurídico, existindo assim uma estreita conexão, temporal, de motivação e actuação, entre eles e uma homogeneidade no que concerne aos meios utilizados para o seu cometimento.
As necessidades de dissuasão da prática deste tipo de crimes é muito sentida, reclamando uma intervenção vigorosa do direito penal, tendo em vista os bens jurídicos que importa proteger, e o percurso criminal do arguido e as características da sua personalidade acentuam as exigências de prevenção especial, sobretudo na vertente da reincidência.
Não podemos por outro lado ignorar o peso relativo da ilicitude de cada um desses crimes e do ilícito global, a exigir que só uma fração menor dessa pena seja considerada na pena conjunta.
Posto isto, tendo em conta a imagem global do ilícito e a personalidade do arguido que os factos espelham, fixa-se a pena única em 4 (anos) anos de prisão.
Embora esta pena admita a possibilidade de ser suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º do Código Penal, dos factos provados, designadamente quanto às condenações já sofridas pelo arguido, que cumpre actualmente uma pena de 19 anos de prisão, e quanto aos seus traços de personalidade e percurso profissional, familiar e social, não é possível fazer um juízo de prognose favorável de que a simples censura dos factos e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Por isso a pena tem de ser efectiva.
De todo o modo, as penas de prisão agora aplicadas serão eventualmente incluídas no cúmulo jurídico superveniente que importará ponderar fazer com a pena que o arguido actualmente cumpre, em função da data em que ocorreram todos os crimes.
2.2.4. Da nulidade da decisão por omissão de fundamentação quanto ao arbitramento das indemnizações atribuídas às menores.
O tribunal condenou o arguido, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, a pagar a cada uma das menores vitimas dos crimes, a quantia de 2000€ a título de reparação indemnizatória.
É discutível a recorribilidade da decisão nestes casos de arbitramento de indemnização oficiosa ao abrigo do artigo 82.º-A, em face do que dispõe o artigo 400.º, n.º2 do CPP – o recurso da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Nestes casos, em que não há pedido de indemnização civil ou “enxerto cível”, o tribunal a quo não se encontra limitado pelo valor do pedido e, por conseguinte, pode até fixar uma indemnização superior ao valor da sua alçada. Por isso, temos vindo a entender, à luz da "ratio legis" do disposto artigo 400º, nº 2, do C.P.P., que será de atender, apenas, à circunstância de a decisão impugnada ser desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada em matéria civil do tribunal da primeira instância [fixado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em 5.000,00€ (cinco mil euros)].
Ora, no caso dos autos, o valor da indemnização arbitrada a cada uma das menores é inferior a metade do valor dessa alçada, razão pela qual, não se pode conhecer do recurso nessa parte.

III - Decisão
Pelo exposto, acordam, os Juízes, da 5ª Secção deste Tribunal da Relação, em julgar o recurso do arguido parcialmente procedente e, em consequência:
1. Considerar que os factos provados integram a prática de dois crimes de pornografia de menores p. e p. pelo artigo 176.º, nº 1, alínea c) do Código Penal e não pela alínea b) do mesmo número e artigo, como foi decidido pelo tribunal recorrido, crimes, esses, agravados nos termos do disposto no artigo 177.º n.º6 do mesmo Código.
2. Alterar a decisão recorrida quanto às penas aplicadas ao arguido pela prática de cada um desses crimes como reincidente, condenando-o nas penas de 3 (três) anos de prisão, por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
3. Não conhecer do recurso quanto à parte das indemnizações arbitradas.
Sem custas.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2024
Maria José Costa Machado
João Ferreira
Sandra Ferreira
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1. Posição que é defendida por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª edição actualizada, p. 1103, quando a não confissão, mesmo que conjugada com outros meios de prova é usada para fundamentar factos provados.