Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7125/2008-4
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: VIDEOVIGILÂNCIA
PROVAS
PROCESSO DE TRABALHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Não é admissível, no processo laboral e como meio de prova, a captação de imagens por sistema de videovigilância, envolvendo o desempenho profissional do trabalhador, incluindo os actos disciplinarmente ilícitos por ele praticados.
Decisão Texto Integral:                         Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


                        A… veio instaurar, no Tribunal do Trabalho do Funchal, a presente acção emergente de contrato de trabalho, contra B…, LDª, pedindo que seja decretada a ilicitude do despedimento por ausência de factos que fundamentem a justa causa e, em consequência, que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 31 377,56 a título de diuturnidades, diferenças salariais e indemnização por antiguidade ou, em alternativa, deve a Ré ser condenada a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho com respeito pela sua antiguidade, categoria, vencimento e horário de trabalho e ao pagamento dos salários intercalares.
                        A Ré contestou oportunamente a acção.
                        Em sede de audiência de julgamento, foi requerido, pela Ré, o visionamento do “DVD, contendo imagens do vídeo que se encontra junto ao procedimento disciplinar apresentado com a contestação para prova do alegado nos artºs 17º a 25º dessa mesma contestação”.
                        A Autora opôs-se a tal visionamento

A Srª Juíza proferiu, então, o seguinte despacho:

Conforme a própria ré refere na sua contestação, no supermercado onde a Autora prestava serviço estão instaladas câmaras de circuito fechado de televisão, tendo em vista a segurança dos bens nele expostos, sendo que duas incidem em permanência sobre as caixas e as outras fazem o «varrimento» de todo o estabelecimento.

O artigo 20°, n° 1 do Código do Trabalho proíbe o empregador de utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.

A utilização desse equipamento é lícita quando tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou atentas particulares exigências inerentes à natureza da actividade desenvolvida (nº 2 do artigo 20°), estando mesma sujeita a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (artigo 28°, n° 1 da Lei n° 35/2004, de 29/07).

 É sabido que a instalação de sistemas de vídeo vigilância nos locais de trabalho envolve a restrição do direito de reserva da vida privada (constitucionalmente protegido - cf artigo 26°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa) e apenas poderá ser considerada justificada quando for necessária a prossecução de interesses legítimos e dentro dos limites definidos pelo princípio da proporcionalidade, sendo, naturalmente, inadmissível que aquele meio seja utilizado para avaliar a capacidade profissional dos trabalhadores - cf Ac. STJ de 8.02.2006 referido na base de dados do ITIJ com endereço www.dgsi.pt.

 Enquanto garantia do processo criminal, de acordo com o disposto no artigo 32°, n° 8 da Constituição da República Portuguesa, são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade fisica ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência: ou nas telecomunicações.

No caso dos autos, desconhece-se se a ré foi autorizada pela entidade administrativa a instalar o circuito de vídeo vigilância para proteger a segurança dos seus bens, embora possa aceitar-se que, tratando-se de um espaço aberto ao público onde se dirige todo o tipo de pessoas com finalidade de aquisição de produtos, é possível reconhecer o espaço como um local propício à ocorrência de delitos que justifique a necessidade dessa vigilância.

Todavia, a ré nem sequer alega que lhe tenha sido concedida tal autorização e por outro lado, sustenta o procedimento disciplinar, confessadamente, no recurso a visionamento das imagens captadas pelas câmaras instaladas no supermercado, quando é certo que as mesmas destinam-se, tão somente, a que seja precavida ocorrência de delitos não podendo serem utilizadas para efeitos de controle do desempenho do trabalhador.

Tal prova, na ausência de demonstração de que a trabalhadora tenha autorizado o tratamento de dados pessoais (cf artigo 6º da Lei n° 67/98, de 26.10 - Lei da Protecção de Dados), é ilícita, pelo que não pode ser considerada neste processo (cf neste sentido, Ac. STJ de 14.05.2008 mencionado na base de dados já referida).

Com efeito, a vídeo vigilância não só não pode ser utilizada como forma de controlar o exercício da actividade profissional do trabalhador, como não pode, por maioria de razão, ser utilizado como meio de prova em sede de procedimento disciplinar, por a divulgação da cassete constituir uma abusiva intromissão na vida privada e a violação do direito à imagem da trabalhadora - cf artigo 79º do Código Civil; Ac. TRL de 3.05.2006 referido na base de dados já identificada. .

Em face do expendido, indefere-se o requerido”.

Posteriormente, proferiu sentença a julgar parcialmente procedente a acção.

                       x

Inconformado com a referida decisão que indeferiu o visionamento do DVD, veio a Ré dela agravar,  terminando com as seguintes conclusões:

a) Sendo admitida em processo criminal a prova dos ilícitos cometidos através de gravações vídeos, e sendo os mesmos ilícitos criminais que justificaram o despedimento da trabalhadora, deverá ser admitido, no âmbito do processo de trabalho, o visionamento daquelas gravações;

b) Por se tratarem de ilícitos criminais, não está em causa o controlo do desempenho profissional da trabalhadora, pelo que não se aplicam as restrições do artigo 20º do Código do Trabalho.

c) Negando a produção da prova oferecida, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 515º do Cód Proc. Civil aplicável ex vi do artigo artigo 1º, n° 2, alínea a) do Cód Proc Trabalho.

Nestes termos e nos mais de direito,

Deve ser revogada a decisão agravada, ordenando-se, em consequência, a anulação dos actos posteriores, nomeadamente da decisão sobre a matéria de facto e da sentença que não tiveram em conta o meio de prova omitido, e a repetição da audiência de julgamento com o visionamento das gravações vídeo juntas ao procedimento disciplinar,

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA

A Autora contra-alegou.

Foram colhidos os vistos legais.

                                   x

Cumpre apreciar e decidir.

Sendo o objecto de recurso delimitado pelas conclusões do mesmo, temos que a única questão a apreciar é a de saber se é admissível, no processo laboral e como meio de prova, a captação de imagens por sistema de videovigilância, envolvendo o desempenho profissional do trabalhador, incluindo os actos disciplinarmente ilícitos por ele praticados.

                       x

Como factualidade com interesse para a decisão do recurso temos a descrita no relatório deste acórdão.

                       x

                        O direito:

                        Veio a agravante reagir contar a decisão da Srª Juíza que lhe indeferiu o pedido de visionamento de um DVD, contendo imagens de vídeo captadas no estabelecimento – supermercado - onde a Autora prestava serviço e que demonstraria a existência dos factos de que a Ré a acusa no processo disciplinar, consubstanciadores de justa causa de despedimento.

                        Sustenta que, sendo admitida tal prova no âmbito do correspondente processo criminal instaurado contra a Autora, o também deve ser no âmbito do processo de trabalho, sendo que, por se tratar de um ilícito criminal, não está em causa o desempenho da trabalhadora.

                        Sem razão, todavia, não merecendo o despacho recorrido qualquer censura, tendo o mesmo fundamentado o indeferimento da produção da referida prova de forma exaustiva e convincente, baseando-se, aliás, em jurisprudência incidente sobre a questão.

                        Neste particular campo das provas admissíveis em sede de processo disciplinar e da correspondente acção de impugnação de despedimento, há que atender, como não poderia deixar de ser, ao estatuído na nossa Lei Fundamental.

                        Assim, o artº 32º, nº 8, da Constituição dispõe que “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

No domínio da legislação ordinária temos a Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, que refere, no seu artigo 6º, que o tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para os fins previstos nas suas alíneas a) a e), mediante notificação e prévia autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (artigos 27º a 31º da lei citada).

Especificamente quanto à utilização de meios de vigilância à distância no local de trabalho, o artº 20º do Código do Trabalho dispõe nos seguintes termos:

1 – O empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.

2 – A utilização do equipamento identificado no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.

3 – Nos casos previstos no número anterior o empregador deve informar o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados.

Por seu turno, o artigo 28º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho (Regulamento do Código do Trabalho) submete a utilização de meios de vigilância à distância no local de trabalho a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (nº 1), a qual só pode ser concedida se a utilização dos meios for necessária, adequada e proporcional aos objectivos a atingir (n.º 2).

O artº 29.º do Regulamento do CT preceitua que:

Para efeitos do n.º 3 do artigo 20.º do Código do Trabalho, o empregador deve afixar nos locais de trabalho em que existam meios de vigilância a distância os seguintes dizeres, consoante os casos, “Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão” ou “Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som”, seguido de símbolo identificativo.»
                        Ora, do artº 20º do CT resulta o princípio geral de proibição de utilização, pelo empregador, de meios de vigilância à distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador. Ressalvam-se as hipóteses previstas no nº 2 do mesmo artigo (protecção e segurança de pessoas e bens, ou existência de particulares exigências inerentes à natureza da actividade que justifiquem o uso de tais meios), sendo que, de qualquer jeito, o empregador deve informar, nestes casos, o trabalhador, nos termos do nº 3 ainda do mesmo artigo.

                        Como se refere no Ac. do STJ de 22/5/2007 , in www.dgsi.pt, (Conselheiro Pinto Hespanhol) “na economia deste preceito, a utilização dos ditos meios de vigilância será sempre ilícita (ainda que com aviso prévio da sua instalação feito ao trabalhador), desde que tenha a finalidade de controlar o seu desempenho profissional (o sublinhado é nosso).

Deste modo, não tem qualquer razão a recorrente quando argumenta que, por estar em causa um eventual ilícito criminal, não estamos perante uma hipótese de controle do desempenho profissional. Este envolve toda a plenitude da prestação de serviço por parte do trabalhador, inclui todos aos actos que, no desenvolvimento da relação laboral, este venha a praticar no local sujeito a vigilância, mesmo que violadores dos seus deveres contratuais.

Por outro lado, também não colhe a argumentação de que, sendo admissível no âmbito do processo-crime instaurado contra a trabalhadora, a gravação vídeo também poderá ser utilizada no âmbito do processo de trabalho. A previsão do artº 20º do CT é, quanto à captação de imagens por videovigilância, bem explícita na sua proibição, nos termos expostos, e também importa não olvidar que o ilícito criminal e o ilícito disciplinar podem não ter, e bastas vezes não têm, campos de aplicação coincidentes, podendo determinado facto constituir ilícito criminal e não disciplinar, e  vice-versa.

Sem embargo de se referir que não está demonstrado nestes autos que tal gravação tenha sido admitida em tal processo-crime, levantando-se, a nós, legítimas dúvidas que o tenha sido, face ao disposto no artº 126º do Código de Processo Penal, o qual prevê que são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas (n.º 1), tendo por ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos (n.º 2, alínea a).

 Acresce que,  caso em apreço, não ficou demonstrado - cabendo o respectivo ónus da prova à Ré- que esta, à data dos factos, tivesse tinha sido autorizada pela Comissão Nacional de Protecção de Dados a tratar dados pessoais através de videovigilância, nem que, e como muito bem salienta a Srª Juíza, a Autora tenha autorizado o tratamento de dados pessoais.

                        Neste sentido da ilicitude da utilização de tal meio de prova em sede de processo disciplinar e de posterior acção judicial, temos o Ac. do STJ de 8/2/2006 (Conselheiro Fernandes Cadilhe) o qual, depois de salientar o necessário respeito pelo princípio da proporcionalidade, devendo a  instalação de sistemas de videovigilância nos locais de trabalho, por  envolver a restrição do direito de reserva da vida privada, apenas mostrar-se justificada quando for necessária à prossecução de interesses legítimos, devendo a sua utilização traduzir-se numa forma de vigilância genérica, destinada a detectar factos, situações ou acontecimentos incidentais, e não numa vigilância directamente dirigida aos postos de trabalho ou ao campo de acção dos trabalhadores, diz, a determinado passo:

“A colocação de câmaras de vídeo em todo o espaço em que os trabalhadores desempenham as suas tarefas, de forma a que estes se encontrem no exercício da sua actividade sob permanente vigilância e observação, constitui, nestes termos, uma intolerável intromissão na reserva da vida privada, na sua vertente de direito à imagem, e que se não mostra de nenhum modo justificada pelo simples interesse económico do empregador de evitar o desvio de produtos que ali são manuseados.

A entidade empregadora dispõe de mecanismos legais que lhe permitem reagir contra a actuações ilícitas dos seus trabalhadores, podendo não só exercer o poder disciplinar através do procedimento apropriado, efectuando as adequadas averiguações internas, como também participar criminalmente às entidades de investigação competentes, que poderão determinar as diligências instrutórias que se mostrarem convenientes.

Em qualquer caso, a instalação de câmaras de vídeo, incidindo directamente sobre os trabalhadores durante o seu desempenho profissional, não é uma medida adequada e necessária ao efeito pretendido pela entidade patronal, além de que gera um sacrifico dos direitos de personalidade que é inteiramente desproporcionado relativamente às vantagens de mero cariz económico que se visava obter”.

O mesmo Supremo Tribunal, no seu recente Acórdão de 14/5/2008, defendeu, citando a decisão de 1ª instância, idêntica doutrina, e também esta Relação de Lisboa, no Ac. de 3/5/2006 (Relatora Desembargadora Isabel Tapadinhas), estando ambas as decisões disponíveis em www.dgsi.pt, decidiu que ”sendo o fim visado pela videovigilância exclusivamente o de prevenir ou reagir a casos de furto, vandalismo ou outros referentes à segurança de um estabelecimento, relacionados com o público – e, ainda assim, com aviso aos que se encontram no estabelecimento ou a ele se deslocam de que estão a ser filmados - só, nesta medida, a videovigilância é legítima. A videovigilância não só não pode ser utilizada como forma de controlar o exercício da actividade profissional do trabalhador, como não pode, por maioria de razão, ser utilizada como meio de prova em sede de procedimento disciplinar pois, nestas circunstâncias, a divulgação da cassete constitui, uma abusiva intromissão na vida privada e a violação do direito à imagem do trabalhador, - arts. 79º do Cód. Civil e 26º da Constituição da República Portuguesa – criminalmente punível – art. 199º, nº 1, alínea b) do Cód. Penal”.

Na doutrina, e também no sentido de que a videovigilância não só não pode ser utilizada como forma de controlar o exercício da actividade profissional do trabalhador, como não pode, por maioria de razão, ser utilizado como meio de prova em sede de procedimento disciplinar vejam-se Guilherme Dray “Justa causa e esfera privada”, “Estudos do Instituto de Direito do Trabalho”, vol. II, Almedina, 2001, págs. 81 a 86 e Isabel Alexandre “Provas Ilícitas em Processo Civil”, Almedina, 1988, págs. 233 e segs.

Assim, não podem restar quaisquer dúvidas do acerto do despacho recorrido, improcedendo as conclusões do recurso.

                       x

Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao agravo, confirmando-se o despacho sob recurso.

                        Custas pela agravante.

   Lisboa, 19/11/2008

                       
Ramalho Pinto
Hermínia Marques
Isabel Tapadinhas