Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19406/19.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE DE SENTENÇA
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
OMISSÃO DE FORMALIDADES
RECLAMAÇÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO. ANULADO O ACÓRDÃO
Sumário :
I - A decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula por aplicação do n.º 1 do artigo 195.º do CPC.

II - O meio processual próprio para arguir a nulidade é a reclamação para o tribunal onde ela foi cometida, salvo na hipótese prevista no n.º 3 do artigo 199.º do CPC.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente na Quinta da..., ..., ..., propôs acção declarativa com processo comum contra BB, residente na rua ..., n.º 63, ..., ..., pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 156 000,00 (cento e cinquenta e seis mil euros), acrescida de juros de mora, contados à taxa legal desde a citação até ao pagamento.

O réu contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção.

Notificado da contestação, o autor alegou que ampliava a causa de pedir e o pedido, pedindo a título subsidiário:

a. Se declarassem nulos os contratos de mútuo;

b. Se condenasse o réu a restituir ao autor a quantia de € 135 000,00, acrescida de juros à taxa de 4% desde a citação até ao efectivo pagamento.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida, em 10-01-2021, sentença que julgou improcedente o pedido principal e procedente o pedido subsidiário, condenando o réu a pagar ao autor a quantia de € 135 000,00, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal em vigor para os juros civis, desde a data da citação do réu até integral e efectivo pagamento.

O réu não se conformou com a sentença e, em 14-05-2021, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa. No recurso impugnou ainda o despacho proferido em 23-01-2020, que admitiu a ampliação da causa de pedir e a formulação do pedido subsidiário.

Em 31-10-2021, o réu informou o processo de que teve conhecimento do falecimento do autor e requereu que o respectivo mandatário fosse notificado para juntar aos autos documento comprovativo do óbito ou facultar os elementos necessários à sua obtenção, para efeitos do artigo 270.º do CPC.

Em 8-11-2021, a mandatária do autor informou que este havia falecido em 29-10-2021 e requereu, em consequência, que a instância fosse suspensa, nos termos do artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do CPC. Juntou, com o requerimento, assento de óbito do autor.

Por despacho proferido em 15-11-2021, foi declarada suspensa a instância ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do CPC.

O despacho foi notificado ao mandatário do réu e à mandatária do falecido autor.

Em 06-07-2022, a Meritíssima juíza do tribunal da 1.ª instância, entendendo que estavam reunidos os pressupostos para a declaração de extinção da instância por deserção, considerando a falta de impulso processual, determinou a notificação do réu para se pronunciar.

Respondendo à notificação, o réu declarou que estavam reunidos os pressupostos para que fosse extinta a instância por deserção ao abrigo do artigo 277.º, alínea e), do CPC, o que devia ser declarado.

Por despacho proferido em 12-07-2022, a Meritíssima juíza da 1.ª instância declarou extinta a instância de recurso por deserção.

Notificado deste despacho, o réu arguiu a nulidade do mesmo ao abrigo do n.º 1 do artigo 195.º do CPC. Para o efeito alegou:

• Por notificação remetida via Citius, ao signatário, em 07/07/2022, o tribunal comunicou que entendia estarem reunidos os pressupostos para a declaração de extinção da instância, por efeito de deserção, posição que mereceu o acolhimento do ora requerente, nos termos de requerimento apresentado nessa mesma data;

• Todavia, por notificação emitida via Citius em 12/07/2022, o réu tomou conhecimento da sentença dessa data, pela qual “declara-se extinta a instância, de recurso, por efeito da deserção”;

• Ora, a inclusão do inciso “de recurso” altera completamente os efeitos da deserção em pauta;

• Se o tribunal queria proferir uma decisão de deserção da instância de recurso, devia ter notificado o réu para se pronunciar sobre essa matéria, o que não fez, como devia ter feito, nos termos previstos no art.º 3.º, n.º 3, do CPC;

• De resto, notificando o réu para se pronunciar sobre a deserção tout court, involuntariamente até levou o signatário ao engano;

• Tal omissão do convite ao réu para tomar posição sobre a questão oficiosamente suscitada consubstancia uma nulidade, uma vez que prejudicou efectivamente os direitos do réu, que assim se viu impedido de pronunciar sobre aquilo que o tribunal, afinal, queria decidir.

Além de arguir a nulidade, o réu interpôs posteriormente recurso de apelação do despacho que declarou extinta a instância do recurso. Justificou a interposição do recurso com a alegação de que, embora entendesse que a nulidade que invocou devia ser apreciada nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, para acautelar o entendimento de que essa nulidade só podia ser arguida em sede de recurso, interpunha recurso, nele renovando a arguição da nulidade em causa.

Por decisão proferida em 20-01-2023, a Meritíssima juíza da 1.ª instância indeferiu a arguição da nulidade. Na mesma decisão, não admitiu o recurso de apelação interposto contra o despacho que declarou extinta a instância do recurso, com a justificação de que o recurso versava sobre a nulidade arguida pelo réu e que as nulidades eram objecto de reclamação, apenas podendo ser objecto de recurso na situação a que aludia o n.º 3 do artigo 199.º do CPC, o que não era o caso.

O réu não se conformou com o despacho que indeferiu a arguição da nulidade e dele interpôs recurso de apelação para o tribunal da Relação de Lisboa, pedindo se deferisse a nulidade arguida e que, em consequência disso, fosse ele, réu, notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de estarem preenchidos os pressupostos para a extinção da instância de recurso, por deserção deste.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 29 de Junho de 2023, julgou improcedente o recurso, mantendo, em consequência, a decisão recorrida, embora com o fundamento de que a violação do princípio do contraditório determina a nulidade da decisão, a arguir mediante recurso e não através de reclamação para o tribunal que proferiu a decisão.

O réu não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista ao abrigo do artigo 671.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, pedindo se revogasse o acórdão e se determinasse a apreciação da nulidade suscitada, que devia ser julgada procedente, nos termos constantes das conclusões apresentadas na apelação de 13/02/2023, que se davam por reproduzidas.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. É sabido que existe controvérsia sobre se a nulidade decorrente da omissão de convite à parte para se pronunciar sobre questão oficiosamente suscitada consubstancia uma nulidade, que deve ser apreciada nos termos do art.º 195.º, do CPC, ou se tem de ser arguida em sede de recurso, como desde logo se fez constar nas notas prévias dos recursos interpostos em 30/09/2022 e em 13/02/2023.

2. O ora recorrente sustenta que tal nulidade deve ser apreciada nos termos do art.º 195.º do CPC., por entender que se trata de questão prévia à prolação da própria sentença, não a incorporando, mas tendo consequências sobre a sua prolação, seguindo assim o entendimento de LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRA (cfr. Código de Processo Civil Anotado, 4.ª ed., vol. 1, pág. 32).

3. Todavia, consciente de que existe igualmente a orientação de que tal questão só pode ser suscitada em sede de recurso, o réu, por cautela, arguiu-a também na apelação que, entretanto, interpôs, a qual, porém, não foi admitida, porque a 1.ª instância julgou que a matéria não poderia ser objeto de recurso, antes devendo ser julgada em sede de reclamação, como também o foi.

4. Todavia, a Relação veio a adotar a posição de que a nulidade em pauta deveria ter sido apreciada no âmbito da apelação, e não em sede de reclamação; mas, como o réu não tinha reclamado da não admissão do recurso de apelação interposto em 12302/2023, como podia e devia ter feito, já não poderia agora a nulidade ser apreciada.

5. Diz-se no acórdão recorrido que, diverso seria o entendimento, se o réu tivesse reclamado contra o despacho que não admitiu o recurso e essa reclamação procedesse, porque o sistema jurídico não pode bloquear de forma contraditória o direito ao recurso.

6. Porém, e ressalvado o devido respeito, foi isso que aconteceu. É que o sistema jurídico ficou efetivamente “bloqueado”, porque, havendo dois entendimentos quanto ao meio de suscitação da nulidade em apreço, e tendo a parte recorrido a ambos os procedimentos, não pode a mesma ficar prejudicada, porque a 1.ª instância optou pelo caminho que a Relação agora censura. É certo que o réu podia ter reclamado da decisão de não admissão de recurso, mas isso não lhe era exigível.

7. Há princípios de boa-fé e de observância de um processo equitativo que não permitem que se imponha à parte o ónus de adotar um determinado procedimento, quando o Tribunal decide que é outro o procedimento a adotar, sob pena de pervertermos uma ordem de proteção de confiança que subjaz à lei do processo.

8. O recorrente continua a entender que a suscitação da nulidade deve ser formulada em sede de reclamação, mas, mesmo que não tenha razão, tendo a 1.ª instância negado o direito a tal recurso e decidido que o julgamento da questão deve ser efetuado em sede de reclamação, não pode agora a Relação, sustentando o contrário, penalizar o réu pelo “erro” cometido pela 1.ª instância.

9. Pelo exposto, o acórdão da Relação aplicou erroneamente à situação dos autos o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 195.º, 615.º, n.ºs 1, al. d), e 4, todos do CPC, à luz dos princípios da boa-fé, do processo equitativo e da proteção da confiança, que decorrem do Estado de Direito e das regras gerais do processo civil.

Não houve resposta ao recurso.

O ora relator entendeu que não podia conhecer-se do objecto do recurso. As razões desse entendimento comunicadas ao recorrente foram as seguintes:

• Nos termos do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos;

• Do preceito decorria, como assinalavam autores como Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, páginas 399, Almedina) e Lopes do Rego (Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, página 473, Gestlegal), que cabia recurso de revista do acórdão da Relação que, pronunciando-se sobre decisão proferida na 1.ª instância, haja conhecido, no todo ou em parte do mérito da causa, ou tenha posto termo ao processo, total ou parcialmente, por razões adjectivas;

• Interpretado o preceito com este alcance, era de afirmar que estava fora dele o acórdão recorrido. Na verdade, embora tivesse sido proferido sobre decisão da 1.ª instância, o mesmo não havia conhecido do mérito da causa, nem pusera termo ao processo, nem confirmara decisão da 1.ª instância que assim tivesse decidido;

• O acórdão da Relação pronunciou-se sobre uma decisão da primeira instância proferida sobre arguição de nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC e o sentido da sua pronúncia foi o de confirmar a decisão da 1.ª instância que indeferiu a nulidade arguida. A nulidade arguida contendia com a regularidade do processo que antecedeu a decisão de julgar deserto o recurso, mais concretamente com a observância do princípio do contraditório;

• O acórdão recorrido era de equiparar, para efeitos de admissão de recurso de revista, aos acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaiam unicamente sobre a relação processual, pelo que poderia ser objecto de revista se estivesse nas condições previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, o que não sucedia.

Notificada, a recorrente pronunciou-se no sentido da admissão do recurso. Para o efeito alegou:

1. O presente recurso inscreve-se no âmbito do art.º 671.º, n.º 1, do CPC;

2. A decisão sob recurso não é uma decisão interlocutória, mas uma decisão que põe termo ao processo, nos termos previstos naquela previsão legal;

3. É certo que o inciso final do referido art.º 671.º, n.º 1, do CPC, é gerador de equívocos, porque a sua interpretação literal não corresponde ao espírito da norma;

4. Seguimos a orientação de ABRANTES GERALDES: “Advoga-se, assim uma interpretação do art. 671.º, n.º 1, que equipare aos casos em que o acórdão da Relação põe termo ao processo mediante “absolvição da instância” do réu ou de algum dos réus quanto a algum dos pedidos aqueles em que o efeito extintivo é consequência de qualquer outro motivo de ordem formal;

5. Com efeito, a decisão da 1.ª instância que indeferiu a nulidade arguida põe termo ao processo, o que a Relação confirmou, mas com um fundamento assumidamente diferente, razão pela qual não estamos perante a situação prevista no n.º 3, do art.º 671.º do CPC;

6. Se a nulidade arguida tivesse sido deferida, o processo prosseguiria a sua tramitação, mas, como não o foi, tal decisão pôs efetivamente termo à instância (e, por isso, ao processo);

7. O espírito do art.º 671.º, n.º 1, do CPC, tem a ver com a garantia de recurso para o STJ, relativamente a todas as decisões que ponham termo ao processo, mesmo que por razões de ordem formal (desde que estejam preenchidos os demais requisitos gerais e não se esteja perante uma decisão de dupla conforme, como acontece nestes autos);

8. O entendimento normativo dado ao art.º 671.º, n.º 1, do CPC, no sentido de que não há recurso para o STJ de acórdão da Relação que confirme decisão de 1.ª instância (com fundamento diferente) que indefira nulidade arguida relativamente a despacho que põe termo ao processo (no sentido em que, com a sua prolação, impõe a extinção da instância), é inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, previsto no art.º 20.º, n.º 4, da CRP;

9. A violação desse direito constitucionalmente consagrado decorre de uma interpretação desproporcionadamente restritiva relativamente à norma em causa, limitando o direito ao recurso por uma razão de ordem meramente formal e substancialmente injustificada.

O ora relator manteve o entendimento que não era admissível recurso de revista. Justificou a manutenção do entendimento nos seguintes termos:

• Que o alcance que o recorrente dava ao n.º 1 do artigo 671.º do CPC não era diferente do que foi traçado no despacho inicial do ora relator. Na verdade, diz a recorrente, invocando Abrantes Geraldes, que o citado preceito compreende tanto os acórdãos da Relação que põem termo ao processo mediante absolvição da instância do réu ou algum dos réus quanto a algum dos pedidos, como aquele em que o efeito extintivo é consequência de qualquer outro motivo de ordem formal. Foi precisamente este o alcance que o ora relator deu ao preceito ao escrever: “Do preceito decorre, como assinalam autores como Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, páginas 399, Almedina) e Lopes do Rego (Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, página 473, Gestlegal), que cabe recurso de revista do acórdão da Relação que, pronunciando-se sobre decisão proferida na 1.ª instância, haja conhecido, no todo ou em parte do mérito da causa, ou tenha posto termo ao processo, total ou parcialmente, por razões adjectivas”;

• Que não era exacta a alegação do recorrente de que a decisão que o acórdão da Relação confirmou “pôs termo ao processo”, pois citando das palavras de José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, em anotação ao artigo 671.º do CPC, “… da comparação do n.º 1 com o artigo 644-1-a resulta que “por decisão que ponha termo ao processo é de entender o mesmo que decisão que ponha termo à causa, ficando de fora de previsão a que ponha termo a procedimento cautelar (cf. Art. 370-2) e a incidente, com procedimento autónomo ou não” [Código de Processo Civil Anotado Volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, página 199];

• Que dando à expressão “que ponha termo ao processo” o sentido acabado de expor, é bom de ver que a decisão da 1.ª instância que o acórdão recorrido confirmou não se ajusta a tal sentido, visto que tal decisão pôs termo a um incidente – incidente de arguição de nulidade do procedimento que antecedeu a decisão de julgar deserto o recurso – e não à causa. A decisão que pôs termo ao prosseguimento da causa foi a que julgou deserto o recurso de apelação interposto contra a sentença proferida em 1.ª instância. É por efeito de tal decisão que a instância se extinguiu;

• Que era certo que, caso a nulidade que a recorrente arguiu tivesse sido atendida, a decisão que julgou deserto o recurso seria anulada (n.º 2 do artigo 196.º do CPC) e que, com o não foi, não houve lugar a tal anulação. Mas se o que se acaba de afirmar é certo, também é certo que o acórdão recorrido limitou-se a pôr termo a um incidente de nulidade processado depois da decisão de julgar deserto o recurso;

• Que como se havia escrito no despacho inicial, o acórdão recorrido era de equiparar, para efeitos de admissão de recurso de revista, aos acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1.ª instância que recaiam unicamente sobre a relação processual, pelo que poderia ser objecto de revista se estivesse nas condições previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC, o que não sucedia;

• Em relação à questão de constitucionalidade, o ora relator entendeu que o critério normativo que está subjacente à decisão do ora relator não era o indicado pelo recorrente, razão pela qual não se pronunciou sobre a questão de inconstitucionalidade.

O recorrente reclamou do despacho para a conferência, pedindo se deferisse a reclamação e se admitisse o recurso de revista, com as legais consequências:

Os fundamentos da reclamação foram os seguintes:

1. O recorrente interpôs recurso de revista do acórdão da Relação de Lisboa de 29/06/2023, ao abrigo do art.º 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, considerando que a Relação de Lisboa, embora confirmando a decisão da 1.ª instância, o fez com base em fundamento distinto;

2. Porém, a decisão singular não admitiu o recurso, por entender que “o acórdão recorrido está fora do alcance do n.º 1 do artigo 671.º do CPC por este preceito compreender, com relevância para o caso, os acórdãos que põem termo à causa ou que confirmem decisões com este sentido e o acórdão recorrido confirmou decisão proferida em 1.ª instância que pôs termo a um incidente, concretamente a um de arguição de nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC”;

3. O recorrente reconhece que a questão não é líquida, fruto da infeliz redação dada ao art.º 671.º, n.º 1, do CPC, o qual, de resto, tem sido objeto de crítica recorrente.

4. A decisão singular equaciona bem o tema;

5. E desde já se adianta que, se for de considerar excluídas do âmbito do art.º 671.º n.º 1, do CPC, todas as decisões que põem termo aos incidentes, com procedimento autónomo ou não [uma vez que, por natureza, os incidentes não põem termo ao processo], nesse caso, não mereceria censura a decisão sob reclamação;

6. Acontece, porém, que – e ressalvado o devido respeito e consideração pela posição do Senhor Juiz Conselheiro Relator – não nos parece que o pressuposto esteja correto, ou seja, que todas as decisões que põem termo aos incidentes devam ser consideradas como decisões interlocutórias para os efeitos do art.º 671.º, do CPC;

7. Convocamos a reflexão do Conselheiro Lopes do Rego, cujo excerto se transcreve: Da análise dos casos sumariamente enunciados decorre uma relevância profundamente diversa das múltiplas questões processuais dirimidas através das decisões interlocutórias sujeitas à regra da irrecorribilidade perante o STJ. Na realidade, estas podem dirimir meras minudências ou questiúnculas processuais menores (como frequentemente acontecia com a maioria das nulidades secundárias invocadas, antes de o n.º 2 do art. 630.º do CPC ter vindo estabelecer forte restrição quanto à admissibilidade da própria apelação), de escassíssima repercussão no desfecho da ação; ou, pelo contrário, os temas processuais dirimidos pela decisão interlocutória podem revestir uma extrema importância para as partes, ao condicionarem decisivamente o sentido do próprio julgamento de mérito e, em certos casos, colocando em causa dimensões relevantes do direito fundamental de acesso à justiça ou a regra do processo equitativo (cfr. Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Vol. II, págs. 482 e 483);

8. Ora, no caso dos autos, embora se trate de uma decisão que põe termo a um incidente, a verdade é que, em termos práticos, é a decisão em pauta que extingue a instância, inviabilizando que o Recorrente veja reapreciado em sede de recurso o exercício do seu direito. Caso a nulidade tivesse sido atendida, a decisão que considerou deserto o recurso seria anulada e teria havido uma decisão de mérito sobre o objeto do recurso;

9. Isto é, a decisão proferida sobre este incidente condiciona, em termos decisivos, o sentido do desfecho final do pleito, impedindo a prolação de uma decisão de mérito. E, nesse sentido, tem um efeito prático equivalente a uma decisão que põe termo ao processo. Pelo exposto, e salvo melhor opinião, deve entender-se que estão abrangidas pelo art.º 671.º, n.º 1, do CPC, as decisões que põem termo aos incidentes do processo que condicionam, de forma decisiva, o sentido do desfecho final do pleito, aí se incluindo a decisão que põe termo a um incidente de arguição de nulidade, cuja prolação tem o efeito prático de impedir que seja proferida uma decisão de mérito sobre o objeto do recurso;

10. O entendimento normativo adotado relativamente ao art.º 671.º, n.º 1, do CPC, no sentido de que estão fora do âmbito desta norma legal as decisões (acórdãos) que ponham termo aos incidentes de arguição de nulidade, cuja prolação tenha o efeito prático de impedir que seja proferida uma decisão de mérito sobre o objeto do recurso (assim pondo efetivo termo ao processo), é inconstitucional, por violação de uma tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo equitativo, nos termos previstos no art.º 20.º da CRP;

11. Havendo direito ao recurso de revista para as decisões que põem termo (formal) ao processo, é exigência de um processo equitativo, sob pena de inobservância de um critério de proporcionalidade, equiparar a tais decisões aqueloutras que têm um efeito prático equivalente, designadamente as que põem termo a incidentes com tal efeito.

A questão suscitada pela reclamação é a de saber se é de admitir o recurso de revista.

Os factos relevantes para a decisão da reclamação são os narrados no relatório deste acórdão.

Apreciação:

Reapreciada a questão, é de deferir a reclamação, apesar de não serem exactas algumas das alegações que a sustentam.

Assim, não é exacta a alegação de que a admissão do recurso levará à anulação da decisão que julgou deserto o recurso de apelação e à prolação de uma decisão sobre o mérito de tal recurso. Com efeito, a admissão do recurso garantirá apenas o conhecimento dele, já não a sua procedência. E a própria procedência também não garantirá a revogação do despacho que julgou deserto o recurso. Com efeito, a procedência do recurso de revista implicará tão só a revogação do acórdão e a baixa do processo à 2.ª instância para resolver a questão de saber se a decisão de julgar deserto o recurso foi proferida com observância do princípio do contraditório.

O recurso é de admitir por a decisão recorrida ser de equiparar, do ponto de vista dos seus efeitos práticos, a decisão que põe termo ao processo. Vejamos.

Em primeiro lugar, é inegável que a decisão recorrida tem influência sobre o desfecho do processo. Com efeito, a manutenção dela implicará a subsistência da decisão que declarou deserto o recurso de apelação e a subsistência dela determinará, por sua vez, o trânsito em julgado da sentença condenatória do ora reclamante proferida na 1.ª instância.

Pode, assim, dizer-se que o acórdão recorrido determina, ainda que de forma indirecta, o termo do processo.

Em segundo lugar, apesar de o acórdão recorrido ter confirmado decisão da primeira 1.ª instância que indeferiu a arguição de uma nulidade secundária e de as decisões sobre nulidades secundárias estarem excluídas do âmbito do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, a verdade é que, com a arguição de nulidade, o que a ora reclamante visou foi o despacho que declarou deserto o recurso.

Daí que, no plano dos efeitos pretendidos pela parte, não há diferença substancial entre os queridos com a arguição de nulidade do despacho que julgou deserto o recurso por inobservância adequada do princípio do contraditório e os pretendidos mediante a interposição de recurso de apelação contra tal despacho por ter sido proferido sem observância adequada do princípio do contraditório.

O comportamento processual da parte revela isto mesmo. Com efeito, além de arguir a nulidade perante o juiz que proferiu o despacho que julgou deserto o recurso, dele interpôs recurso de apelação, dizendo que o fazia para acautelar o entendimento de que a nulidade só podia ser arguida em sede de recurso.

Sucede que a Meritíssima juíza da 1.ª instância – ao contrário do que foi decidido na 2.ª instância – entendeu que o meio processual era a reclamação e não admitiu o recurso, decisão com a qual se conformou o ora recorrente.

Em terceiro lugar, a decisão que julga deserto o recurso é de considerar, para efeitos do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, como decisão que põe termo ao processo. Seguimos, a este propósito, o entendimento de Abrantes Geraldes e José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Isabel Alexandre. O primeiro dos autores citados escreve, em comentário ao artigo 671.º do CPC, que põe termo ao processo o acórdão da Relação que determine esse efeito a partir da confirmação ou da verificação primária de circunstâncias reveladoras da deserção do recurso” [Recursos em Processo Civil, Almedina, página 400]. Os restantes autores escrevem “É indiferente o fundamento processual que leve à extinção, total ou parcial, da instância: esta pode ocorrer por absolvição da instância, mas também por outras causas que a ela conduzem” [Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, página 198]. E entre as causas que conduzem à extinção da instância indicam precisamente a deserção do recurso.

Assim, dada a equiparação, no plano dos seus efeitos, entre o acórdão recorrido e um acórdão que julgasse directamente deserto o recuso de apelação, é de considerar que aquele está abrangido pelo n.º 1 do artigo 671.º do CPC.

Visto que, além de estarem verificadas as condições gerais de recorribilidade previstas no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, o acórdão recorrido confirmou com fundamentação diferente a decisão proferida na 1.ª instância, é de admitir o recurso de revista, o qual efeito meramente devolutivo.

Não havendo circunstâncias que obstem ao conhecimento do objecto do recurso, passa a conhecer-se do mesmo (artigo 652.º, n.º 4 do CPC).


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Questão suscitada pelo recurso:

Saber se o acórdão recorrido aplicou erroneamente à situação dos autos o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 195.º, 615.º, números 1, al. d), e 4, todos do CPC, à luz dos princípios da boa-fé, do processo equitativo e da proteção da confiança, que decorrem do Estado de Direito e das regras gerais do processo civil.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são os narrados no relatório deste acórdão.

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Resolução das questões:

A resposta à questão suscitada pelo recurso passa por responder à questão de saber se a nulidade decorrente da prolação de decisão sem observância do princípio do contraditório está sujeito ao regime das nulidades da sentença (artigo 615.º do CPC) ou ao das nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º do mesmo diploma.

Como assinala o recorrente na sua alegação, a questão é controvertida, com um entendimento a afirmar que a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório está ferida da nulidade prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (excesso de pronúncia) e com outro a sustentar que tal decisão está ferida de nulidade prevista no n.º 1 do artigo 5.º do CPC. Nesta tese, o meio processual próprio para reagir contra a nulidade é a reclamação perante o tribunal onde foi cometida a nulidade; naquela é o recurso (2.ª parte do n.º 4 do artigo 615.º do CPC).

Foi nestas águas que navegou o acórdão recorrido.

Pese embora o respeito que nos merece a tese do acórdão recorrido, no entender deste tribunal, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula, mas a nulidade de que padece não está prevista na 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (decisão que conhece de questão de que não podia tomar conhecimento); está prevista n.º 1 do artigo 195.º do CPC. Vejamos.

A decisão (sentença ou despacho) que conhece de questões de que não podia tomar conhecimento viola – e viola directamente - o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que proíbe ao juiz conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes e que a lei lhe não permita conhecer, ao passo que a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é tomada com violação do n.º 3 do artigo 3.º do CPC. E diz-se que ela é tomada com violação deste preceito porque tal violação ocorreu em momento anterior à prolação do despacho. Com efeito, não era no momento da decisão que devia ser observado o princípio do contraditório, era antes de ela ser proferida que o juiz tinha o dever de dar à parte a possibilidade de se pronunciar sobre a questão que iria decidir.

Logo, quando o tribunal profere uma decisão sem observância do contraditório, como prescreve o n.º 3 do artigo 3.º do CPC, não está a conhecer de uma questão de que não pode tomar conhecimento. O caso dos autos não oferece dúvidas. Decorre do regime da deserção dos recursos previsto no artigo 281.º do CPC, designadamente dos n.ºs 2, 3 e 4, que o juiz da 1.ª instância tinha o poder de conhecer da questão da deserção do recurso. Quando decide sem cumprimento do princípio do contraditório, o que o tribunal está a fazer é a omitir, no processo de decisão, uma formalidade que a lei prescreve. Socorrendo-nos das palavras de Manual de Andrade, estamos perante um desvio do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei [Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 176].

Visto que não há norma especial que sancione a omissão desta formalidade, aplica-se-lhe a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispões que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão.

A favor do entendimento que se acaba de expor aduz-se ainda o seguinte.

Em primeiro lugar, se, na realidade, a decisão proferida sem observância do princípio do contraditório configurasse um caso de excesso de pronúncia, sujeito ao regime das nulidades da sentença, o que faria sentido é que a nulidade fosse suprida nos mesmos termos em que é suprida a nulidade causada por excesso de pronúncia, o que não acontece. Com efeito, socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis a propósito da supressão da nulidade por excesso de pronúncia: “O juiz deve declarar sem efeito o que tenha escrito na sentença em relação à questão ou questões de que não podia tomar conhecimento” [Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, página 150]. Não é este o caminho que se segue para suprir a nulidade causada pela inobservância do princípio do contraditório. Embora se anule a decisão recorrida, esta anulação tem por objectivo fazer cumprir o formalismo que foi omitido e proferir nova decisão sobre a questão. Daí que a declaração de nulidade implique a notificação da parte para exercer o direito ao contraditório e a prolação de nova decisão sobre a mesma questão que tinha sido decidida anteriormente, embora precedida de um processo irregular.

Em segundo lugar, o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC.

Esta nulidade está sujeita a reclamação dos interessados perante o tribunal onde ela foi cometida (2.ª parte do artigo 196.º e n.º 1 do 197.º, ambos do CPC), salvo na hipótese prevista no n.º 3 do artigo 199.º do CPC, que não se coloca no caso.

Por todo o exposto, concluiu-se que era processualmente admissível ao ora recorrente arguir a nulidade do despacho que declarou deserto o recurso perante o tribunal da 1.ª instância com o fundamento de que tal decisão foi proferida sem observância ia do princípio do contraditório.

Quanto à questão de saber se, na realidade, tal despacho é de anular com fundamento na não observância do princípio do contraditório, já não cabe a este tribunal resolvê-la. Com efeito, quando, como sucedeu no caso, o acórdão da Relação tiver deixado de conhecer certa questão, designadamente por a considerar prejudicada pela solução dada ao litígio, em caso de procedência do recurso de revista não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer de tal questão, visto que a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista no n.º 2 do artigo 665.º do CPC é excluída da aplicação ao recurso de revista pelo artigo 679.º do CPC. A consequência da concessão da revista é a baixa do processo ao tribunal da Relação para que ele conheça da questão que não conheceu por a considerar prejudicada pela solução dada ao litígio.

Invoca-se em abono desta interpretação do artigo 679.º do CPC, na parte em que exclui da aplicação ao recurso de revista o que se estabelece no artigo 665.º do CPC, o seguinte trecho da fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2015, publicado no DR, 1.º Série, de 18 de Setembro de 2015: “Face ao estatuído na parte final do art. 679º do CPC, não é aplicável no recurso de revista a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista, para o recurso de apelação, no art. 665º, não podendo, deste modo, o STJ - não apenas, como sempre sucedeu (cfr. art. 684º), suprir a nulidade de omissão de pronúncia cometida pela Relação - mas também apreciar, pela primeira vez, questões que as instâncias deixaram de apreciar, por as terem por prejudicadas pela solução dada ao litígio.”

Cita-se ainda em abono desta interpretação, o acórdão do STJ proferido em 16-11-2023, no processo n.º 22569/18.3T8PRT.P1.S1., publicado em www.dgsi.pt, onde se fez aplicação da interpretação cima exposta.


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Decisão:

Concede-se a revista e, em consequência, anula-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa do processo ao tribunal da Relação para que decida as questões suscitadas no recurso de apelação.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o facto de não haver vencido no recurso, condena-se o recorrente nas custas do recurso por ter sido ele quem tirou proveito da concessão da revista.

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024

Emídio Francisco Santos (relator)

Maria da Graça Trigo (1º adjunto)

Fernando Baptista de Oliveira (2º adjunto)