Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0424404
Nº Convencional: JTRP00037317
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: REVOGAÇÃO
RESOLUÇÃO
RESCISÃO
DENÚNCIA
Nº do Documento: RP200411020424404
Data do Acordão: 11/02/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Revogação é a destruição voluntária da relação contratual pelos contraentes, assente no acordo destes posterior à celebração do contrato, com sinal oposto ao primitivo.
II - Resolução é a destruição da relação contratual validamente constituído, operado por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam, se o contrato não tivesse sido realizado.
III - Rescisão é a destruição dos efeitos de um negócio jurídico com base num fundamento que por lei lhe dê esse direito, e que há-de consistir na lesão de um interesse próprio.
IV - Denúncia é declaração feita por um dos contraentes, de que não quer a renovação ou a continuação do contrato.
V - A revogação obedece a uma declaração bilateral, por acordo das partes; todos os outros conceitos enunciados são preenchidos por declarações unilaterais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

“B....., SA”, com sede na Rua....., .....,

instaurou acção declarativa comum, sob a forma de processo ordinário

contra

C....., residente na Rua....., .....,

pedindo

a) -que fosse declarada a resolução do contrato de ALD celebrado com o R., relativamente ao motociclo de marca Honda, modelo...., com a matrícula ..-..-RN, com efeitos a partir de 14 de Março de 2002

e em consequência, fosse o R. condenado a:

b) - pagar à A. a quantia de € 2.254,97 correspondente aos alugueres vencidos e não pagos e respectivos juros, acrescida de juros vincendos à taxa contratual fixada (APB), acrescida de 4% sobre € 1.819,30 desde a data da petição (2003.09.11) até efectivo e integral pagamento;
c) - pagar à A. a quantia de € 236,08, correspondente às mensalidades de seguros e respectivos juros, acrescida de juros vincendos à taxa contratual fixada acrescida de 4%, a calcular sobre € 192,05, desde a data da p.i. até integral pagamento
d) - pagar à A. a quantia de € 3.103,86 a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos por esta suportados em razão directa da resolução do contrato prevista na al. b) da cláusula 16.ª do contrato;
e) - pagar à A. a quantia de € 736,46 a título de despesas efectuadas com a recuperação, reboque e venda em leilão da viatura;
f) - em custas e procuradoria condigna.

Para o efeito, alegou a A. violação do contrato celebrado entre ambos em 20 de Abril de 2001, por incumprimento das prestações mensais que se venceram entre 27 de Junho de 2001 a 27 de Dezembro de 2001, e sendo os pedidos as normais consequências previstas no contrato firmado, decorrentes da resolução do contrato.

Citado o R., não houve contestação.

O M.º Juiz considerou então confessados os factos articulados pela A., e, posteriormente, proferiu Sentença.
Nesta considerou que o pedido formulado pela A. se baseia/pressupõe a existência de uma resolução contratual que in casu sustenta não ter existido, e sustentou desconhecer-se os termos do acordo celebrado entre ambos no sentido da revogação do contrato.
E assim, com base nestas considerações,
- julgou a acção improcedente por não provada, vindo a absolver o R. do pedido.

A A. não se conformou com a Sentença, vindo a interpor recurso.
Este foi admitido como de apelação e com efeito suspensivo.
Apresentou então a A. as suas alegações de recurso.
Não houve contra-alegações.

Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite na espécie indicada, embora o efeito atribuído fosse alterado para devolutivo (porque proferida a Sentença após 15 de Setembro de 2003) – ainda que no aspecto prático, face à absolvição do R. na primeira instância, essa alteração não tenha consequências diferentes.
Foram depois os autos aos vistos.
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II - Âmbito do recurso.

Vamos começar por transcrever as conclusões apresentadas pelo apelante nas suas alegações de recurso, já que, de acordo com o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.-1 do CPC., é através delas que o âmbito do recurso fica delimitado.
Assim:
“1) A resolução é uma qualificação de direito que, como tal, o Tribunal à mesma não está vinculado;
2) Independentemente da qualificação que as partes possam dar, a existência de resolução há-de determinar-se em função dos elementos e documentos constantes do processo, maxime daqueles que vieram a integrar a sua factualidade assente
3) No caso dos autos encontram-se assentes os seguintes factos:
- O contrato in casu consubstancia-se como um contrato de aluguer de veículos automóveis sem condutor (vulgo ALD), cuja regulamentação se encontra prevista no DL n.º 354/86, de 23 de Outubro;
- No contrato em apreço as partes clausularam que o mesmo poderia ser resolvido por iniciativa do locador, sempre que o locatário incumprisse definitivamente algumas das suas obrigações;
- O R. não liquidou as mensalidades do prémio de seguro relativas aos meses de Agosto a Dezembro de 2001 (ponto 9 da matéria de facto assente);
- O R. não pagou as mensalidades relativas aos meses de Junho a Dezembro de 2001, tendo em face dessa circunstância procedido à entrega do veículo locado à recorrente em 14 de Dezembro de 2001 (pontos 6 e 10 da matéria de facto assente);
- Após a venda do veículo objecto da locação, a recorrente, por carta registada datada de 14 de Março de 2002, recepcionada pelo recorrido, declarou resolvido de comum acordo o contrato, resolução essa que produziu os seus efeitos a 2 de Janeiro de 2002 (pontos 11 e 15 da matéria assente);
- No art. 16.º do seu petitório, a recorrente alegou que ...” em face do incumprimento do contrato ..(fora) considerado resolvido o contrato em 14 de Março de 2002...”
4) Conforme se tem mostrado entendimento pacífico da mais esclarecida Jurisprudência, o art. 17.º do DL n.º 354/86, de 23/10, regula a forma e conteúdo que devem revestir os contratos de ALD, sendo que o seu n.º 4 estabelece que à esfera do (locador ) assiste o direito de “rescindir o contrato nos termos da lei”;
5) Rescindir significa, pois, e neste caso concreto, o mesmo que resolver;
6) Sendo que a remissão aos “termos da lei” se deve entender como reportado às regras gerais da resolução contratual;
7) Estabelece o art. 432.º-1 do CC. que a resolução do contrato se pode fundar na lei ou em convenção;
8) Estatui o art. 1047.º do CC. que a “resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo Tribunal, salvo, evidentemente, o caso de acordo das partes quanto á resolução) – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in CC Anotado, 311;
9) Assim se compreende que possa acontecer nos contratos como o dos autos e já não naqueles que emergem de resolução arrendatícia, onde a estabilidade contratual foi, é e sempre será, pedra de toque na nossa legislação;
10) O que resulta a admissibilidade da resolução contratual por simples meio epistolar, isto é, sem recurso às vias judiciais competentes;
11) Não se afigura que a simples entrega do veículo locado, por iniciativa do locatário, signifique a extinção da relação locatária contratual;
12) Primum, porquanto o contrato "sub judice" é um contrato com prazo certo que pressupõe o cumprimento das obrigações decorrentes até ao fim do contrato, até ao seu terminus, em obediência, aliás, ao princípio consagrado no art. 406.º do CC.;
13) Secundum, na medida em que a simples entrega do veículo locado jamais poderia significar a existência de qualquer acordo revogatório, nem muito menos, de qualquer resolução operada por iniciativa do inadimplente;
14) O recorrido não impugnou a declaração resolutiva – pois que de declaração resolutiva efectivamente se trata – que lhe foi comunicada pela recorrente;
15) Resulta que, e face à possibilidade de resolução extra judicial que o contrato dos autos permite e, considerando os reiterados incumprimentos (dos pagamentos dos alugueres devidos) perpetrados pelo locatário...
16) ...A comunicação enviada pela recorrente ao recorrido não poderá ter outro significado senão a de uma declaração resolutiva, por a tanto nos conduzir o sentido da declaração nela contido e que é aquela que se integra e vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia conduzir do comportamento do declarante e com o qual razoavelmente contaria;
17) O recorrido sempre soube do seu incumprimento;
18) Sempre conheceu as consequências daí resultantes, maxime no que á resolução contratual concerne;
19) Aceitou a declaração resolutiva na sua integralidade, donde não a ter contestado;
20) Quanto ao mais trata-se de simples “lapsus calami” que a comunicação em apreço manifesta e do qual resulta a sua evidente redundância;
21) Redundância essa que sai reforçada face aos elementos e documentos assentes, por provados, e dos quais nenhum outro sentido se poderá extrair senão aquele que nos conduz à conclusão de que a comunicação da recorrente datada de 14 de Março de 2002 contém em si uma verdadeira declaração de resolução;
22) Assim, por força da resolução reportada à data de 14 de Março de 2002 são devidos à recorrente os valores correspondentes aos alugueres devidos (os que se venceriam até final do contrato), alugueres e seguros em atraso, juros vencidos, despesas com a recuperação, reboque e leilão da viatura, juros de mora devidos à data da resolução, tudo conforme peticionado no montante de € 6.331,37
23) Ao decidir como decidiu, violou, o M.º Juiz "a quo" as disposições dos arts. 406.º, 432.º e 436.º do CC e o n.º 4 do art. 17.º do DL n.º 354/86, de 23/10.
Nestes termos (...) deverá ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser revogada a douta Sentença recorrida a qual deverá ser substituída por outra que condene o recorrido nos pedidos formulados na petição inicial, com o que se fará Justiça”
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Em face da leitura de tais conclusões podemos verificar que existe apenas uma única questão suscitada, que consiste em determinar se, perante os elementos disponíveis nos autos, poderemos concluir se estamos perante uma revogação contratual por acordo das partes ou perante uma outra figura jurídica como a resolução ou a rescisão do contrato.
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III . Fundamentação

Por ausência de contestação, foram considerados confessados na primeira instância os factos seguintes:

1) A A. tem por objecto o aluguer de veículos, com ou sem condutor, bem como de qualquer outro tipo de máquinas ou equipamentos.
2) A A. era a dona do veículo de marca Honda, modelo....., com a matrícula ..-..-RN .
3) No exercício da sua actividade, a A celebrou com o R, em 20/04/2001, o contrato de Aluguer de Veículo Sem Condutor, que teve por objecto o veículo referido em 2), nos termos do qual o R ficou obrigado, pelo período de 60 meses, ao pagamento de 61 alugueres mensais, sendo o primeiro aluguer no valor de € 1.236,34 e os restantes no valor de € 222,13, a que acresce IVA à taxa legal.
4) Aqueles pagamentos seriam efectuados por transferência bancária.
5) O veículo referido em 2) foi entregue pela A. ao R na data da celebração do contrato.
6) O R não pagou os alugueres que se venceram de 27/06/2001 a 27/12/2001, no valor global de € 1.819,30.
7) O R obrigou-se a custear, relativamente ao prazo de duração do aluguer, um seguro, cujo beneficiário seria a A., que abrangesse as eventualidades de perda ou deterioração, casuais ou não, do veículo, bem como um seguro de montante ilimitado que abrangesse a responsabilidade civil emergente dos danos provocados pela sua utilização.
8) O R pagaria o prémio do referido seguro, o qual seria a liquidar por transferência bancária.
9) O R não liquidou as mensalidades referentes ao seguro referidas em 8), desde 27/08/2001 a 27/12/2001, no valor global de € 192,05.
10) O R em face do referido em 6) e 9), procedeu à entrega do veículo locado em 14/12/2001[Na ficha de entrega da viatura – fls. 17 dos autos – consta declaração assinada pelo R. onde se refere “Entreguei de livre e espontânea vontade a viatura à B....., SA, nas condições mencionadas na presente ficha.
....., 14 de Dezembro de 2001. (segue-se assinatura do locatário bem como as referências ao número do B.I., data de emissão e entidade emitente)”]
11) A viatura foi restituída à A, tendo sido obtido para a mesma o valor comercial de € 7.980,77.
12) O R. aquando da celebração do contrato, para garantia do cumprimento integral e pontual de todas as obrigações emergentes do mesmo, entregou à A a quantia de € 2.169,77.
13) A A. suportou a quantia de € 409,50 relativo a despesas com a recuperação da viatura.
14) A A. procedeu a suas expensas ao reboque da viatura, com o que despendeu a quantia de € 151,46 e em despesas de leilão gastou € 175,50.
15) A A. enviou ao R carta registada com AR datada de 14/03/2002 e recepcionada em 21/03/02, na qual declarou "Tendo o contrato de aluguer de veículo sem condutor n.º 11.466 celebrado com V.a Ex.a em 27/04/01 sido resolvido de comum acordo em 02/01/02 e tendo sido restituída em consequência a viatura Honda ....., matrícula ..-..-RN, objecto do contrato, informamos que ficaram por regularizar os seguintes débitos:
(... ) Dívida actual € 6.112,33 - 1.225.414$00 (doc. de fls. 18 cujo teor aqui se dá por reproduzido) [Esta carta tinha indicado como assunto: “Denúncia do contrato ALD n.º 11466”, e nela vinham explicitados os créditos e débitos de ambas as partes. Como créditos da A. relatavam-se: valor actualizado dos alugueres devidos, rendas em atraso, seguros em atraso, notas de débito juros vencidos anuidade seguro part., despesas de reboque, despesas com recuperação da viatura, despesas leilão e juros de mora à data da resolução, perfazendo o sub-total de € 16.262,87; como créditos do R., o valor do veículo – € 7.980,77 e a caução entregue - € 2.169,77. Do encontro desses créditos recíprocos resultava a dívida (então) actual de € 6.112,33].
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Analisemos então a questão colocada.

Como bem referido na Sentença, a revogação do contrato distingue-se perfeitamente de outras figuras como a denúncia, a rescisão e a resolução do contrato.
A revogação é a destruição voluntária da relação contratual, pelos próprios autores do contrato, assente no acordo dos contraentes posterior à celebração do contrato, com sinal oposto do primitivo. (AntunesVarela, Obrigações, 2.ªed., 2.º-240; G. Telles, Manual dos Contratos em Geral, 348).
A denúncia é a declaração feita por um dos contraentes, em regra com certa antecedência sobre o termo do período negocial em curso, de que não quer a renovação ou a continuação do contrato (Antunes Varela, Obrigações, 2.ª ed.-242).
A rescisão é a destruição dos efeitos de um negócio jurídico com base num fundamento que por lei lhe dê esse direito, e que há-de consistir na lesão de um interesse próprio. (Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral , 350).
A resolução é a destruição da relação contratual validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam, se o contrato não tivesse sido realizado (Antunes Varela, Obrigações, 2.º-238).
Como podemos ver, enquanto a revogação obedece a uma declaração bilateral, por acordo das partes, os outros conceitos enunciados são preenchidos por declarações unilaterais.

Pois bem:
Entendeu o M.º Juiz, na douta Sentença recorrida que, no caso dos autos nos encontrávamos perante um caso de revogação contratual e não de resolução ou rescisão contratual, uma vez que numa carta dos autos, enviada pela A. ao R. (doc. 7) se refere “ter sido resolvido de comum acordo (o contrato).”
Mas salvo o devido respeito, entendemos que é muito perigoso partilhar as qualificações jurídicas apoiando-se o intérprete na enunciação qualificativa extraída dos articulados das partes ou de documentos por elas fornecidos.
Na verdade, o Tribunal não fica adstrito às possíveis qualificações das partes, tendo apenas de contar com os factos que supostamente os suportam.
Daí que, às expressões jurídicas utilizadas pelas partes nas suas mútuas relações não haja necessariamente a correspondência jurídica que, na sua formulação podem parecer.
Ora:
Na petição inicial alegou a A., entre outras coisas, que o R. deixou de pagar as rendas (de aluguer) que se venceram de 27 de Junho de 2001 a 27 de Dezembro de 2001, no valor global de € 1.819,30 (259,90 x 7) bem como as mensalidades correspondentes aos prémios de seguro desde 27 de Agosto de 2001 até 27 de Dezembro de 2001, e que este, em face do incumprimento do contrato (traduzido nesses não pagamentos), procedeu à entrega do veículo locado em 14 de Dezembro de 2001, tendo, por força do exposto, considerado “resolvido” o contrato em 14 de Março de 2002.
Qual o significado, no entanto, da expressão “...tendo, por força do exposto, considerado resolvido o contrato em 14 de Março de 2002?”:

- Quererá significar o alegado que, perante o incumprimento do R. traduzido na falta de pagamento de diversas e sucessivas prestações (alugueres e prémios de seguro), com a entrega da moto (apesar de amachucada), qualquer dos contraentes pretendia fazer cessar o contrato, sem que daí adviessem outras consequências?
- Ou quererá significar que ambas as partes acordaram em que o contrato cessasse, sujeitando-se no entanto, cada um deles, às consequências decorrentes do contrato firmado, naquele momento ou na data acordada para o efeito?

É o que vamos tentar analisar, recorrendo aos elementos disponíveis nos autos, e em observância aos preceitos legais sobre interpretação negocial.

Há que começar, antes de mais – como já atrás dissemos -, por nos desligarmos das qualificações dadas pela A. à suposta cessação do contrato (traduzida nas expressões “resolução”, “resolução por acordo”, denúncia), pois são qualificações que não vinculam o Tribunal, para partirmos à procura do real significado que um declaratário normal, colocado na posição do R. poderia retirar das citadas expressões.
Perante a indeterminação em causa, para se poder atingir o sentido da expressão utilizada e a partir dela se fazer uma correcta qualificação jurídica, há que atentar no que a esse respeito manda o CC.
Ora, de acordo com o disposto no art. 236.º-1 do CC. “A declaração negocial vale com o sentido de que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este razoavelmente não puder contar com ele.”
Por sua vez, o n.º 2 do citado artigo enuncia que “Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Significa isto que, deve colocar-se o intérprete na real posição do R., perante os dados que lhe são postos e os elementos constantes do processo.
Ora, essa parte da petição inicial (art. 16.º), onde a A. conclui ter o R. considerado resolvido o contrato em 14 de Março de 2002, remete expressamente para o doc. 6 (declaração da entrega da moto em 14 de Dezembro de 2001) e para o doc. 7 (carta da A., registada e com A/R, dirigida ao R. em 14 de Março de 2002, subordinado ao assunto: “Denúncia do contrato ALD), dando tais documentos por reproduzidos).
Ora, da declaração da entrega da moto (doc. 6) nada resulta em termos de cessação do contrato e em que modalidade, pois nele vem apenas expresso que o R, em 14 de Dezembro de 2001, “entregou voluntária e espontaneamente a moto com “depósito amachucado”.
Por outro lado, no doc.7 (fls. 18), sob o assunto “Denúncia do contrato”, refere que foi “resolvido de comum acordo” em 2 de Janeiro de 2002, e, em consequência, restituída a viatura, informando que ficaram por regularizar os seguintes débitos: (...).

Ora bem:

A primeira observação que temos a fazer é a de que este último documento (doc. 7), para o qual remete o art. 16.º da p.i., está em desconformidade terminológica com o alegado nesse artigo da p.i.
Na verdade, enquanto no art. 16.º da p.i., o A. refere que foi em face do incumprimento que o R. procedeu à entrega do veículo locado, tendo por força do exposto considerado resolvido o contrato em 14 de Março de 2002, o documento 7 - para o qual aquele artigo remete e o dá por reproduzido - começa por invocar, logo na sua epígrafe informativa do assunto a “denúncia do contrato ALD n.º 11466”, para mais abaixo enunciar que o referido contrato foi resolvido de comum acordo em 2 de Janeiro de 2002, e tendo sido restituída, em consequência, a viatura objecto do contrato, informando então que ficaram por regularizar os débitos que entretanto reclama.
Ora, deste emaranhado apenas pode concluir-se, sem que haja contradição entre qualquer das expressões utilizadas, e pondo de lado as qualificações jurídicas sobre a natureza da cessação do contrato:
- Que o R. efectivamente reconheceu ter caído em incumprimento, por deixar de ter pago definitivamente as prestações a que se havia obrigada relativamente às rendas e prémios de seguro relativos à moto.
- Que foi entregar voluntaria e espontaneamente a moto em 14 de Dezembro de 2001, amachucada no depósito.
- Que em 14 de Março de 2002 a A. enviou ao R. um carta registada com A/R, onde reclamou o pagamento de créditos decorrentes da cessação do contrato que haviam ficado por regularizar.

Em que se traduziu então o alegado acordo para a cessação do contrato?
Num acto revogatório, num acto resolutório ou num acto rescisório?

Não podemos ater-nos às expressões utilizadas pelo A., pois, conforme nos é dado ver, utiliza três expressões diferentes (“contrato (considerado) resolvido” – na p.i., “denúncia” e “contrato (já) resolvido de comum acordo”- no documento para o qual remeteu naquele artigo da petição inicial.
No entanto, se atentarmos que a A. é uma sociedade comercial, que, por natureza tem por escopo o lucro, pode-se concluir, nos termos do art. 236.º do CC., que, perante o incumprimento de um contrato celebrado sobre um bem locado fortemente desvalorizável e perecível e em que o R. havia deixado de pagar diversas e sucessivas prestações, nenhuma empresa comercial aceitaria o fim do contrato contra a pura devolução de objecto seu - o objecto locado deteriorado e bastante desvalorizado, recorde-se, pertencia à locadora -, sem que exigisse nada em troca ou que não salvaguardasse pelo menos a minorização dos prejuízos decorrentes do incumprimento. (Para além das prestações em atraso, o Réu usara durante meses o objecto locado da locadora, só o devolvendo na condição de usado e danificado – portanto fortemente desvalorizado.)
Por outro lado, se atentarmos que o R., em caso de cessação do contrato por reconhecer o seu incumprimento, quanto mais cedo devolvesse o objecto locado mais hipóteses teria de ver diminuídas as consequências dele: na verdade, ser-lhe-ia permitido abater às demais consequências jurídicas o valor obtido com o próprio objecto locado (em constante desvalorização), veria diminuída a expressão atinente aos juros moratórios das prestações ainda não vencidas, e veria creditada também a seu favor a caução entregue o mais rapidamente possível.
Fácil nos é concluir, ainda, que perante o incumprimento do R. e utilização que este entretanto fosse fazendo do objecto locado, mais complicado para a A. ficaria o recebimento dos seus créditos, quer pelo avolumar das obrigações decorrentes para o R., quer pela dificuldade de realizar a mesma liquidez com a venda do objecto locado, dada a sua constante desvalorização.
Pode concluir-se portanto, que qualquer declaratário normal, colocado na posição do R. concluiria que com a entrega da moto e sua aceitação por parte da A., não ficava tudo solucionado.
Quem aceitaria que alguém alugasse uma moto por sessenta meses, andasse com ela durante nove, pagasse apenas a prestação inicial, não pagasse os prémios de seguro há seis meses, e depois a viesse entregar desvalorizada, amachucada no depósito, e depois o respectivo locador, dono da moto, ao aceitá-la receber, quisesse com esse gesto significar que estava tudo bem, tudo devidamente resolvido entre eles – nada mais havendo a pagar -, e esquecesse tudo o demais, designadamente o dinheiro do investimento que o locador tivera de aplicar na aquisição da moto, a desvalorização derivada do uso e dos danos apresentados, as despesas necessárias para a fazer transportar, reparar e vender, bem como a renúncia às demais utilidades do negócio?
Ninguém poderia entender isso, designadamente o locatário, ora R., porque sabia perfeitamente e não poderia ignorar que a A. existe como sociedade comercial, para ter lucros (legítimos), mas não para renunciar a eles e ainda suportar elevados prejuízos, que apenas poderiam ser imputáveis a ele R., pela simples razão de que na actividade comercial “não há almoços grátis”, e “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”.
A aceitação da A. na recepção da moto, não pode pois significar que houve acordo revogatório do contrato. Não significou o acordo da locadora para essa ausência de consequências. Sintomático, subsidiariamente, que o R. nem tenha contestado o pedido da A. formulado nesta acção.
Esse comportamento de ambas as partes, tem de ser vista como uma solução de compromisso mutuamente vantajosa dentro do quadro mais negro que se perspectivava.

A referência à qualificação “resolução do contrato por comum acordo” de que dá nota R. no documento 7 (fls. 18), traduz apenas, portanto, na esteira do disposto no art. 236.º do CC., o juízo de conformidade do R. face à sua aceitação de inadimplente contratual em que havia caído, e no qual a aceitação da A. da devolução da moto só pode ser interpretado como acto minorizador dos danos a que ficaria adstrito o R. e que teria de indemnizar, na sequência desse incumprimento.
Trata-se portanto, salvo o devido respeito, de (acordo de) aceitação das consequências do seu incumprimento entregando logo o objecto locado, e não pura e simplesmente um acordo revogatório do contrato, como sustentado na não obstante douta Sentença recorrida.

Ao entregar a moto – que a A. aceitou receber – estava o R. a manifestar a sua concordância à rescisão contratual, faculdade que nos termos do art. 17.º-4 do DL 354/86, atrás citado, está conferido ao locador em caso de incumprimento definitivo por parte do locatário.
Estamos assim perante uma aceitação voluntária do R. na rescisão do contrato, ou seja, na não contestação ou não oposição a essa determinação da A.
Em face do exposto, concorda-se com a A. no inconformismo para com a absolvição do R.
O contrato cessou por rescisão da locadora, baseada no incumprimento culposo do R.-locatário, ao abrigo do disposto no art. 17.º-4 do DL atrás citado e 406.º do CC.
As quantias peticionadas pela A. têm também o seu suporte contratual nas condições gerais do contrato de ALD, apresentado como doc. n.º 4, designadamente nas cláusulas 6.ª, 12.ª, 16.ª 22.ª , pelo que a apelação da A. merece inteiro acolhimento.
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IV. Deliberação

Na procedência da apelação, revoga-se a não obstante douta Sentença recorrida substituindo-a por outra em que se condena o R., em consequência da rescisão contratual por incumprimento culposo do R., no pagamento à A. das quantias peticionadas.
Custas pelo R. em ambas as instâncias.
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Porto, 02 de Novembro de 2004
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes