Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1997/08.8TAVCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: ADVOGADO
ARGUIDO
REPRESENTAÇÃO
DEFENSOR
Nº do Documento: RP201110121997/08.8TAVCD-A.P1
Data do Acordão: 10/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO.
Decisão: INDEFERIDA.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No processo penal, o arguido que é advogado não se pode auto-representar na prática de actos que a lei reserva ao defensor [art. 64.º, n.º 1, do CPP]. Esta solução legal é conforme à CRP e não afronta as disposições constantes de instrumentos internacionais sobre a matéria, designadamente, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Reclamação n.º 1997-08
Vila do Conde.

O arguido recorreu do despacho de fls. 348-9, que lhe indeferiu a arguição de nulidades.
Por despacho de fls. 388-9, o Ex.mo juiz não admitiu o recurso com base no entendimento de que o arguido, mesmo que seja advogado, não pode pessoalmente recorrer, apenas através de mandatário ou defensor. No caso o arguido tinha mandatário mas optou por recorrer pessoalmente, pelo que o recurso não foi admitido.
Reclama o arguido, agora através de mandatário.
Quid iuris?
Na vigência do anterior EOA – DL n.º 84/84, de 16 de Março –, perante o direito, reconhecido aos advogados, de litigar em causa própria, decorrente do disposto nos artigos 54º e 164º desse diploma, questionava-se se, em processo crime, o arguido que fosse advogado podia assumir a sua defesa dispensando-se a nomeação de defensor ou a constituição de advogado.
Nesse contexto normativo o melhor entendimento era o de que o direito, reconhecido aos advogados, de litigar em causa própria, decorrente do disposto nos artigos 54º e 164º do Estatuto da Ordem dos Advogados, não era válido em processo penal. Como proficientemente se disse no Parecer do Conselho Geral, da Ordem dos Advogados, Parecer CG n.º E-21/1997, de 2 de Junho de 1999 [Carlos Pinto de Abreu] o código deontológico dos advogados estabelecia claros limites ao patrocínio e consequentemente ao modo de defesa dos interesses do constituinte. O anterior art. 76º do Estatuto da Ordem dos Advogados considerava-os «servidores da justiça e do direito» e o art. 78º impedia-os de advogar contra lei expressa, de usar meios ilegais e de promover diligências prejudiciais à aplicação da lei ou à descoberta da verdade, regras estas obviamente extensíveis a todos os defensores penais. O defensor não é um servidor incondicional e submisso dos interesses do arguido. A fidelidade ao Direito e à Justiça é o limite imposto pela lei à fidelidade ao arguido. Nem todas as instruções e estratégias deste são obrigatórias para o seu defensor. Há pois uma autonomia relativa da posição do defensor. A defesa penal apresenta-se, pois, como um interesse de ordem pública, por isso, o direito de defesa é irrenunciável, podendo o defensor ser imposto ao próprio arguido.
Num processo de estrutura acusatória, os poderes que por lei são atribuídos ao defensor não são em muitas situações conciliáveis com a sua posição de arguido, v.g. os arts 141º, nº 6, 326º, 352º, 360º, do Código de Processo Penal. Além disso, são evidentes as incompatibilidades práticas de se ser simultaneamente arguido e advogado, designadamente na audiência de julgamento, considerando v.g. o lugar a ocupar na sala, o uso de toga, e as formalidades respeitantes às suas próprias declarações, às instâncias e inquirições das testemunhas e às possíveis acareações. Basta, assim, a leitura do estatuto processual do arguido e do defensor constante do Código de Processo Penal, art.º 57º a 67º e a ponderação concreta dos respectivos direitos e deveres para concluir que são inconciliáveis na mesma pessoa.
Foi essa realidade que levou o legislador a dizer no art.º 1º n.º10 da Lei n.º 49/2004 de 2004-08-24 [Lei que define o sentido e o alcance dos actos próprios dos advogados e dos solicitadores], que nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor, essa função é obrigatoriamente exercida por advogado, nos termos da lei.
Como é sabido a interposição de recurso é acto que só o defensor pode levar a cabo, art.º 64º n.º1 al. d), do Código de Processo Penal. Esta solução legislativa, de proibição da auto-representação em processo penal, é também a única que se compagina com o actual EOA – Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro –, que consagra, entre o mais, que o advogado exercita a defesa e interesses que lhe são confiados com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável, art.º 76º n.º1. E não se restringe aos advogados arguidos, abrange também os advogados ofendidos, acórdão do TC nº 325/2006 e n.º 338/2006 e Acórdão do TRC de 30-03-2011, e os magistrados, na qualidade de arguidos ou ofendidos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1-07-2009 [Armindo Monteiro].
A conformidade constitucional deste entendimento e solução legislativa tem sido reiteradamente afirmada pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente, Acórdãos n.º 497/89, 252/97, 578/2001 e 960/06.
Também não procede a alegação, de que este entendimento viola as regras do Pacto Internacional e da Convenção Europeia, pois em Portugal o arguido tem uma panóplia de direitos, que ultrapassa o exigido nesses instrumentos internacionais. Assim, o arguido, pode defender-se a si próprio, nas declarações que decidir prestar, é-lhe também conferido o direito de, a todo o momento, intervir para requerer, esclarecer, ripostar, apresentar exposições ou entregar memoriais. Tais direitos estão formalmente consagrados por lei e constam, entre outros, dos art. 61º, nº 1, 98º, 272º, nº 1, 292º, nº 2, 332º, 341º, al. a), 343º, nºs 1 e 2 e 361º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mais: beneficia do direito de ser o último a dirigir-se ao tribunal de julgamento logo após o término das alegações e antes de proferida a decisão final. Como se referiu no Parecer do CG da Ordem dos Advogados n.º E-21/1997, de 2 de Junho de 1999, o arguido tem um direito de intervenção amplíssimo que permite dizer que, para além da "defesa técnica" de que dispõe por intermédio do seu mandatário constituído ou defensor oficioso, no direito processual penal português se garante um amplo "direito de auto-defesa", o qual respeita os compromissos internacionais a que o Estado Português se vinculou. É pois, e de forma ampla, permitido ao arguido "estar presente ao processo", e "defender-se a si próprio".
No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 1-07-2009 [Armindo Monteiro]: da leitura do acórdão no caso Engel e outros poderia deduzir-se que, escreve Ireneu Cabral Barreto, In Comentário à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág., 117, o acusado que pode defender-se por si não tem direito a um defensor oficioso, mas a al. c), do n.º 3, do art.º 6.º, da CEDH, não erige em direito absoluto o de o acusado se defender a si próprio, podendo os Estados pela via legislativa ou por via judicial impor a obrigação de a defesa ser confiada por advogado. Mesmo ante a comunicação do Comité dos Direitos do Homem, de 18.4.2006, Portugal não anuiu a modificar “ ex professo “ ou sem o ser, o direito interno no sentido pretendido pelos arguidos, não havendo razões válidas para divergir de um entendimento enraizado ao nível da jurisprudência e doutrina, [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 316, nota 2, Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal de 1929, I, págs. 285/286, Parecer n.º E -21/97, do CGOA, de 4.5.99, os Acs do STJ, de 19.3.98, BMJ 475, 495, da Rel. Évora, de 25/9/99, CJ, 1999, III, 291, da Rel. Porto, de 5.6.2002, da Rel. de Guimarães, de 3.5.2004, P.º n.º 390 /04 e da Rel. Coimbra de 13.6.2007, P.º n.º 910/06.1TBCTR.C1].
Como também concluiu o Provedor de Justiça, [http://www.dnoticias.pt/dossier/justica/251775-porque-e-que-em-portugal-o-arguido-nao-se-pode-defender-a-ele-proprio?quicktabs_2=1, consultado em 10.102011] é distinta a obrigatoriedade de constituição de advogado para a defesa do acusado em processo penal, concretamente assegurando aquele a defesa "técnica" deste, da possibilidade que o acusado tem, enquanto arguido, de estar presente e intervir directamente em vários momentos do processo que contra o mesmo corre, o que é amplamente assegurado pelo nosso processo penal. Ora esta realidade é subestimada por quem afirma a violação dos aludidos pactos: o direito interno português, além de garantir ao arguido um amplíssimo direito de intervenção pessoal no processo, ainda lhe garante uma defesa de qualidade, exigindo que seja assistido por mandatário ou defensor. Uma dupla garantia.
Conclui-se, assim, que em processo penal, o arguido advogado não se pode auto-representar na prática de actos que a lei reserva ao advogado/defensor. Esta solução legal é conforme a constituição e não afronta as disposições constantes de instrumentos internacionais sobre a matéria, designadamente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, bem pelo contrário cumpre as orientações dos mesmos decorrentes no sentido de que o acusado tem o direito de estar presente e intervir nos processos judiciais que contra o mesmo correm e, neste sentido, defender-se a si próprio.
Decisão:
Indefere-se a reclamação.
Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3UC.

Porto 12 de Outubro de 2011.
Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto
António Gama Ferreira Ramos