Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0723574
Nº Convencional: JTRP00041024
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
ALTERAÇÃO
QUALIFICAÇÃO
Nº do Documento: RP200801290723574
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 263 - FLS 186.
Área Temática: .
Sumário: Se os factos alegados pelo réu o permitirem, o tribunal, ao abrigo do disposto nos arts. 264º, 265º e 664º do CPC, deve qualificar o incidente como de intervenção acessória provocada, apesar de o réu ter qualificado indevidamente o incidente como de intervenção principal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

A Ré B………., Ldª,
requereu a intervenção principal, como seus associados, de
C………., Ldª,
D………., Ldª,
E………., Spa.
Alegou, para tanto, que os chamados realizaram a obra e forneceram os equipamentos e materiais denunciados como “defeitos de construção”, “fuga de pressão na caldeira”, “fugas nos tubos dos radiadores” e “canalização deficiente”, eventuais causadores das manchas, humidades e fissuras referidas no art° 7° da petição inicial da acção em que é demandada por
F………. e G……….
na qual é formulado o pedido de eliminação de defeitos da moradia que foi vendida aos AA.
Notificados, os Autores opuseram-se ao chamamento, defendendo que a Ré não alega a causa do chamamento nem justifica o interesse que através dele pretende acautelar, sendo certo que no caso se não verificam os pressupostos da intervenção principal.
O Mmº Juiz do Tribunal a quo proferiu despacho no qual indeferiu a pretensão formulada de intervenção provocada.

Inconformada veio a Ré interpor o presente recurso tendo para o efeito nas alegações oportunamente apresentadas aduzido a seguinte matéria conclusiva que passamos a reproduzir:
1. Atenta a factualidade constante dos articulados, a relação material controvertida não se limita ao contrato de compra e venda;
2. A relação material controvertida abarca os terceiros chamados pela Ré, os quais também são sujeitos passivos dessa relação, uma vez que quer a primeira chamada, quer as restantes, podem responder directamente perante os Autores ao lado da Ré, conforme decorre da aplicação do artigo 1225.º do Código Civil e do D.L.383/89 de 6 de Novembro;
3. É, por isso, perfeitamente fundamentada a intervenção principal das chamadas.
SEM PRESCINDIR
4. A Ré na contestação requereu a intervenção explicitando o seu interesse, ou seja, que pretende que os terceiros chamados respondam pelo prejuízo que a eventual perda desta demanda importe para ela.
5. Aliás da leitura da contestação resulta inequivocamente qual o interesse da Ré;
6. Assim sendo, o Meritíssimo Juiz ao não entender como fundamentada a intervenção principal, deveria ter convidado a Ré a rectificar o seu requerimento no sentido de requerer a intervenção acessória ou, uma vez que não está adstrito à qualificação feita pelas partes, ter, desde logo, aceite a intervenção como acessória;
7. Esta atitude é um poder/dever que deveria ter sido cumprido de forma a evitar a eventual perda de uma faculdade processual por parte da Ré, conforme preceituam os artigos 264.º, 265.º, 265.º-A e 664.º, todos do C.P.C.
8. A decisão recorrida viola os artigos 264.º, 265.º, 265.º-A, 320.º, 325.º, 330.º e 664.º, todos do C.P.C., 1225.º Código Civil e D.L.383/89 de 6 de Novembro.
Termina pedindo que o despacho recorrido seja revogado e, consequentemente, substituído por outro que admita a intervenção requerida ou, assim não se entendendo, por outro que convide a Ré a rectificar o seu requerimento no sentido de requerer a intervenção acessória ou por um que admita, desde logo, a intervenção como acessória.
Não foram apresentadas contra alegações.
Mostram-se colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Adjuntos pelo que importa apreciar e decidir.

THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3 do Código Processo Civil, como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial.
As questões que estão subjacentes no âmbito de apreciação do presente recurso para além do que se mostra apreciado na decisão traduzem-se perante o elenco das conclusões formuladas no seguinte:
a) Determinar da admissibilidade do pedido de intervenção principal formulado pela Ré;
b) Perante tal impossibilidade processual a sua admissibilidade nos termos formulados como intervenção acessória ou ainda assim se não considerando a formulação de convite à sua correcção.

DOS FACTOS E DO DIREITO
A matéria factual de relevância para a decisão é a que supra em súmula se mostra constante do relatório.
Vejamos
No despacho proferido foi indeferida a pretensão da Ré de intervenção qualificada de provocada com fundamento que estando em causa o pedido de reparação dos defeitos por esta da fracção que foi vendida aos AA., o mesmo pedido baseia-se no contrato de compra e venda celebrado entre ambos e assim tal como se apresenta a relação material controvertida, os chamados ainda que tenham sido efectivamente e respectivamente a empreiteira da obra de pichelaria e aquecimento central e fornecedor e fabricante de materiais por aquela colocados, não são da mesma sujeitos passivos e como tal não podem ser abrangidos por tal chamamento que se destina a fazer intervir na acção quem nela pudesse de inicio intervir espontaneamente, ou seja os sujeitos passivos da relação material controvertida que à acção serve de causa de pedir sendo todavia como alias na mesma se reconhece susceptível de “intervenção acessória caso se demonstre o interesse no chamamento que subjaz a tal intervenção.”

Tal como foi deduzida a acção, direccionada apenas a responsabilizar a Ré como vendedora do imóvel, a intervenção da empreiteira efectivamente nunca poderia ocorrer ao abrigo de uma situação de listisconsórcio ou de coligação tal como previsto nos artsº 28º e 30º.
Não existe de facto, segundo o que é alegado, relação substancial contratual entre os autores e a empreiteira, já que os autores adquiriram directamente o imóvel à ré, quando o mesmo estava completamente acabado na sua construção.
Assim necessariamente que se teria de afastar o incidente de intervenção principal provocada.
Os factos que a ré alega não configuram na verdade essa situação.
Porém existe uma relação conexa (por parte da empreiteira) com o contrato de compra e venda dos autores à ré, mas essa verifica-se tão só entre a Ré e essa empreiteira como fornecedor dos materiais colocados e do aquecimento central.
Ora o que se verifica e independentemente de se ter qualificado – A Ré – que o tipo de intervenção era a principal não pode justificar por si só o indeferimento, já que se trata de qualificar factos e não o incidente em si.
A Ré no final da sua contestação requerera, como se referiu, a intervenção provocada dos chamados e como é dito no despacho recorrido a Ré alega em concreto que o pedido de intervenção se deve à circunstância de os mesmos terem intervindo na execução dos trabalhos na construção do prédio objecto da transacção onde se reclama a rectificação do defeitos e ter cooperado na eliminação de defeitos detectados e ser a responsável exclusiva dos mesmos.
Ora esta alegação não pode deixar de interpretar-se como uma alegação a sustentar a existência dessa relação conexa e configuradora de um eventual direito de regresso sobre os chamados por parte da ré, caso se venham a provar os defeitos invocados pelos Autores. E daí ter pedido a sua intervenção provocada (embora se reconheça que lhe veio a chamar erradamente intervenção principal).
Retira-se da contestação e da sua articulação no que se reporta ao incidente da que a pretensão da Ré é a de que aqueles sejam seus associados (stricto sensu auxiliares – art. 330º nº 1) na causa, para que na eventualidade de virem a provar-se os defeitos que os Autores alegam possa intentar acção de regresso contra os mesmos.
Dispõe o art. 330º, nº 1 que:

"O réu que tenha acção de regresso contra um terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal".
E o nº2 do art. 331º, estatui que:
“O juiz, ouvida a parte contrária, deferirá o chamamento quando, face às razões alegadas, se convença da viabilidade da acção de regresso e da sua conexão com a causa principal”.
Conforme ensina o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, a intervenção do terceiro é requerida “para auxiliar o réu na sua defesa e a sua actividade não pode exceder a discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso que fundamenta a intervenção (art. 330º, nº 2). Com este chamamento, o demandado obtém não só o auxílio do terceiro interveniente, como também a vinculação deste último à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (art. 332º, nº 4). Portanto, a intervenção do terceiro não é acompanhada de qualquer alteração no objecto da causa e, menos ainda, de qualquer cumulação objectiva". [1]
Para tal todavia tem de suscitar-se o incidente de intervenção de terceiros, sendo o adequado, o da intervenção acessória provocada.
Os factos alegados pela Ré permitem a sua qualificação como integradores deste incidente de intervenção acessória provocada.
A intervenção provocada que foi requerida pela Ré com os factos alegados insere-se, no âmbito da intervenção acessória, que também é uma intervenção provocada e não principal.
A intervenção principal, perante uma acção visa proporcionar a terceiros (que são os intervenientes), o listisconsórcio ou a coligação com alguma das partes da causa.
No caso dos autos aqueles, tal como foi configurada a acção pelos autores não tem um interesse em intervir igual ao da ré, pois que a sua relação com o que se discute na acção é conexa ou dependente daquela que é discutida na acção entre as partes principais trata-se antes de uma intervenção ao abrigo do artº 330º.
Esta intervenção acessória ou subordinada, sub-espécie do incidente de intervenção principal, substituiu o antigo incidente de chamamento à autoria, inspirado na romana litis denuntiatio, por se entender, face à estrutura do incidente de intervenção principal, que se não justificava a autonomia que a lei outrora lhe consagrava.[2]
Com este incidente de intervenção acessória provocada pode a ré contar com o auxilio na sua defesa relativamente à discussão das questões susceptíveis de se repercutirem na acção de regresso ou de indemnização invocada como fundamento do chamamento.
Não é mais do que “um incidente de intervenção acessória suscitado pelo réu que pretende fazer intervir no processo o sujeito passivo de uma relação jurídica material controvertida conexa com a que é objecto da acção” [3]
A intervenção (acessória) de terceiro, nos termos do transcrito preceito, contra quem o primitivo R. afirma ter acção de regresso, para ser indemnizado, em caso de sucumbência, destina-se essencialmente, não a obter a condenação do chamado mas a estender-lhe a força do caso julgado formado na acção[4]
Destina-se a “impor-lhe o efeito do caso julgado resultante da sentença a proferir contra o réu chamante e dispensar este de, na acção de indemnização, a propor contra aquele, fazer a prova de que na demanda anterior empregou todos os esforços para evitar a condenação”[5].
O chamado, por via da intervenção acessória, não é parte principal na causa e a sua actuação visa auxiliar a defesa do chamante “não para obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível, mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante”[6].
Esta qualificação do incidente de intervenção acessória provocada pode e deve ser efectuada por parte do tribunal ao abrigo do disposto nos artigos 264º, 265-A e 664º, nada impedindo a tal, a existência do requerimento formulado pela Ré que apelidou erradamente de intervenção principal.
Dispõe aquele normativo que “quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações”.

Escreve J. Pereira Baptista [7] que “segundo este novo princípio de adequação formal… será viável a adopção, “ex officio”, de um esquema processual peculiar, mediante a determinação da prática dos actos mais ajustados ao fim do processo e das adaptações convenientes e necessárias, sempre que a tramitação legalmente prevista não se revele adequada às especificidades da causa”.
Segundo este mesmo autor, devendo as partes ser ouvidas, o juiz não está delimitado, na sua actuação, pela concordância das mesmas partes, assim se afastando a versão final que constava originalmente do Dec-Lei nº 329–A/95, na medida em que, revestindo o direito processual natureza de direito público, se afigurou mais correcto que a sua aplicação não ficasse dependente de assentimento das partes, pela elementar razão de que será o juiz, enquanto exerce funções de soberania, quem deverá providenciar, pela própria autoridade em que está investido, pela adequação, nas vertentes da sua necessidade e dos respectivos termos concretos.
Este princípio interpenetra-se claramente, mercê do espaço de actuação que concede ao juiz, com a liberdade de adequação dos actos processuais que a lei atribui ao mesmo julgador no art. 664º, segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do art. 264º”.
Tal normativo impõe ao juiz que respeite e não altere a causa de pedir, devendo manter-se no quadro fáctico determinante da acção, não podendo imiscuir-se nas asserções produzidas pelas partes que fundamentam as conclusões.
Porém, sendo estas conclusões inadequadamente qualificadas sob o ponto de vista jurídico, nada impede o juiz, antes tudo o aconselha, a proceder à qualificação acertada.
O que significa que o juiz age livremente no tocante à qualificação da causa de pedir independentemente da que é feita pelas partes.
“Pelo que respeita ao direito, o juiz move-se livremente. Não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Pode ira buscar regras diferentes daquelas que as partes invocaram (indagação); pode atribuir às regras invocadas pela partes sentido diferente do que estas lhes deram (interpretação); pode fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram (aplicação)”.[8]
Outra forma de actuação será contrariar o espírito subjacente à reforma processual civil que o Código imprime, a qual de alguma forma “liberalizou” a relação entre as partes e o tribunal, colocando o acento tónico “na supremacia do direito substantivo sobre o processual, os princípios da cooperação e da descoberta da verdade material”, procurando-se, acima de tudo, alcançar uma decisão de mérito pronta e verdadeiramente justa.
Assim há que ordenar o prosseguimento do incidente pela sua admissibilidade nos termos indicados dos artigos 331º e seguintes.
Concede-se razão à agravante, impondo-se a revogação do despacho.

DELIBERAÇÃO
Nestes termos em face do exposto pela procedência das conclusões recursivas formuladas concede-se provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro, onde se admita o incidente como de intervenção acessória provocada, fazendo-se prosseguir os seus ulteriores termos.
Sem custas.

Porto, 29 de Janeiro de 2008
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Henrique Luís de Brito Araújo
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha

________________
[1] In Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Ed., p.179
[2] Cfr. Salvador da Costa in Os incidentes da Instância, pág.120
[3] Cfr. Salvador da Costa op. Citada, pág.121 e também Ac. RC de 18.10.1983-CJ, ano 1983, tomo IV, pág.59.
[4] Acs. STJ, de 01/06/2003, e de 10/11/2005, em ITIJ/net, procs. 04A1767 e 05A1538
[5] Ac. RL, de 13/2/97, BMJ, 464/604
[6] Lopes do Rego, em Comentários ao Código de Processo Civil, 252 e seguintes.
[7] In Reforma do Processo Civil – Princípios Fundamentais, 1997, pag. 66 e nota 114
[8] Código de Processo Civil Anotado, 5º, 453