Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1177/12.8T2OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL USADO
GARANTIA DE UM ANO
RESPONSABILIDADE DO VENDEDOR
DEFEITOS
Nº do Documento: RP201401211177/12.8T2OVR.P1
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A venda de um veículo usado por um vendedor profissional a um consumidor, para além de beneficiar da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor, encontra-se igualmente pelo regime constante do Dec. Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.
II - O consumidor/comprador de um veículo usado tem sempre direito, imperativamente, à garantia de um ano quanto ao bom estado e bom funcionamento do veículo, podendo aquele conjuntamente com o vendedor estabelecer um regime mais favorável, não podendo restringir o limite imposto por lei, nem, obviamente, afastá-lo.
III - O facto de se tratar de um veículo com mais de treze anos, comprado pelo preço de 2.250,00 €, e que, tendo sido examinado no momento da celebração do contrato não apresentava defeitos, não afasta por, si só, a responsabilidade do vendedor, não se afigurando contrárias à boa-fé as pretensões do comprador à reparação das deficiências manifestadas menos de dois meses após a entrega – sobreaquecimento do veículo – ou à sua substituição por um outro equivalente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1177/12.8T2OVR.P1 – Apelação

Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Maria de Jesus Pereira
2º Adjunto: Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção):
I – RELATÓRIO
B… intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo sumário, contra C…, com domicílio profissional no estabelecimento comercial denominado D…,
pedindo a condenação do Réu:
“a) A reparar o automóvel dos autos e a entregá-lo ao autor em perfeitas condições de circulação e funcionamento, eliminando os defeitos “supra” relatados;
“b) Caso a reparação não se mostre viável, a substituir o veículo do autor por outro, do mesmo modelo ou outro equivalente e marca, sem defeitos, pois que os defeitos que o mesmo ostenta não foi o réu capaz de suprir e ainda conceder ao autor novo prazo de garantia sobre este veículo;
“c) Sempre a pagar ao autor a quantia de €:375,00, a título de danos patrimoniais, bem como,
“d) A pagar ao autor a quantia de €:2758,00 a título de danos morais;
“e) Mais seja condenado a pagar ao autor a quantia pela privação de uso do veículo que venha a ser apurada a final ou em liquidação de sentença;
“f) A pagar juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas anteriormente, desde a citação para contestar, o que desde já se requer, e até integral pagamento das mesmas.
Para tal, alega, em síntese:
em 13 de Novembro de 2010, comprou ao Réu, comerciante automóvel, um veículo automóvel no estado de usado;
tal veículo veio a apresentar vários defeitos de funcionamento, que o Autor denunciou junto do réu o qual, apesar de algumas tentativas, não solucionou;
desde Janeiro de 2011, o Autor viu-se privado do aludido veículo automóvel, o que lhe provocou um dano não patrimonial que computa em € 2.758,00;
O Réu contestou, arguindo a exceção da caducidade do direito do autor, defendendo-se ainda por impugnação.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu o réu do pedido.
Inconformado com tal decisão, o autor dela veio interpor recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
I - A situação de um consumidor (o autor) que adquire um veículo automóvel em estado usado (com 13 anos) a um comerciante (réu), que detém um estabelecimento comercial, que explora com escopo lucrativo, destinado precisamente ao comércio de compra para revenda de veículos automóveis, verificando-se, durante o prazo de garantia, e ainda que o veículo tenha sido examinado antes da venda, não apresentando defeitos aparentes, que o veículo apresenta defeitos oportunamente denunciados àquele vendedor pelo consumidor, que impedem que o veículo circule, exigindo o consumidor do vendedor a reparação de tais defeitos, não viola aquele consumidor as regras da boa-fé ao exigir aquela reparação.
II - O vendedor responde pelas falhas ou defeitos relatados nos autos, já que, embora se tratasse de um veículo usado, os mesmos manifestaram-se antes de decorrido um ano após a venda, presumindo-se que tal falha existia já na data em que o bem foi entregue ao consumidor, não tendo o réu/vendedor ilidido aquela presunção.
III - O réu recusou efetuar a reparação do veículo vendido ao autor, entrou em incumprimento definitivo, sem necessidade de outra interpelação deste, dando ao autor fundamento para dele exigir, para além daquela reparação, indemnização por todos os danos decorrentes daquele incumprimento pontual da sua obrigação, entre eles a indemnização pela privação do uso e os danos patrimoniais.
IV - Ao não decidir assim violou o tribunal a quo as disposições conjugadas dos artigos 60º/1 da Constituição da República Portuguesa, 4º da Lei n.º 24/96 de 31/07, 2º/2, 3º, 5º do DL n.º 67/2003 de 08/04, 334º e 921º do C.C.
Conclui pela revogação da sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a ação procedente.
O Réu apresentou contra-alegações, invocando a incompetência relativa do Tribunal da Relação do Porto para a apreciação do presente recurso, uma vez que não tendo a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto entrado em vigor, a comarca do Baixo Vouga pertence ao distrito judicial do centro, com sede em Coimbra, concluindo, no mais, pela improcedência do recurso.
Cumpridos os vistos legais, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 684º, nº3, 2 685º-A, do Código de Processo Civil, na redação do DL 303/2007, de 24 de Agosto[1], as questões a decidir são as seguintes:
1. Questão prévia – competência do Tribunal da Relação do Porto.
2. Se o autor goza de algum dos direitos por si reclamados.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Questão prévia – (in)competência relativa do Tribunal da Relação do Porto.
À data da propositura da presente já se encontrava em vigor o art. 171.º, n.º 1, da Lei 52/2008, de 22 de Agosto, encontrando-se instalada a comarca piloto do Baixo-Vouga desde 14/04/2009 – cfr. art. 47.º e 49.º do DL 25/2009, de 26-01), comarca esta que pertence ao Distrito Judicial do Centro, com sede em Coimbra (Mapa I anexo à LOFT).
Contudo, a referida Lei veio a estabelecer várias disposições transitórias, de entre as quais se destaca o art. 174.º da Lei 52/2008, de 22 de Agosto, segundo o qual “a competência territorial dos tribunais da Relação, tal como definida no DL n.º 186-A/99, de 31 de Maio, se mantém em vigor até 31 de Agosto de 2010”, competência que veio a ser temporalmente alargada, desta vez até 01/09/2014 (redação introduzida pelo art. 162º da Lei do Orçamento 2010 – Lei n.º 3-B/2010, de 28-04 – no art. 187.º, n.º 5, da citada Lei 52/2008, de 22 de Agosto); isto é, até 31 de Agosto de 2014, para os tribunais da Relação, a composição do respetivo distrito judicial e a inerente competência territorial continuam a estar determinados nos Mapa I, II e V aludidos nos artigos 1.º e 2.º, n.º 2, do Regulamento à anterior LOFTJ (o referido DL 186-A/99) – o mesmo é dizer, a competência territorial dos tribunais da Relação continua a reportar-se, até 31/08/2014, aos perímetros territoriais em tais Mapas estabelecidos.
Ora, em tais Mapas, o perímetro territorial de Ovar está, em matéria de recursos, atribuído à competência territorial do Tribunal da Relação do Porto.
Em consequência, improcede a invocada exceção de incompetência territorial deste tribunal.
*
A. Matéria de facto.
São os seguintes, os factos dados como provados na decisão recorrida, que não foram objeto de impugnação por parte do apelante:
1.º O Autor é dono de um veículo automóvel de marca Fiat, modelo …, matrícula ..- ..-IO, que adquiriu, em estado de usado, ao Réu, em 13 de Novembro de 2010, no estabelecimento comercial denominado D….
2.º O Réu é comerciante, dedicando-se, efetivamente e com caráter lucrativo, ao comércio de compra para revenda de veículos automóveis, possuindo, para o efeito, o referido estabelecimento comercial.
3.º O preço de aquisição do dito veículo foi de €:2.250,00, acrescido de €:60,00 para pagamento do registo de aquisição a favor do Autor junto da Conservatória do Registo Automóvel, que foi efetuado pelo Réu.
4.º O pagamento do veículo passou pela entrega ao Réu, que os aceitou, de um sinal no montante de €:200,00 e de dois cheques nos montantes de €:1.110,00 (€:1.050,00 +€:60,00) e de €:1.000,00, datados de 13/11/2010 e 15/11/2010.
5.º O Réu não entregou ao Autor qualquer fatura ou recibo pela compra e venda efetuada.
6.º No dia em que comprou o veículo, o filho do Autor, E…, detetou um problema um vidro elétrico e uma porta danificados.
7.º Um dos vidros traseiros não abria nem fechava.
8.º A porta dianteira fazia um barulho enorme aquando da abertura da mesma.
9.º Desta situação, o filho do Autor deu conta ao Réu no dia seguinte à sua aquisição, solicitando-lhe que efetuasse a reparação daquelas avarias.
10.º O Réu disse-lhe que levasse o automóvel às suas instalações para lhe reparar tais anomalias.
11.º O filho do Autor entregou ao Réu o automóvel para reparação na semana seguinte, tendo ido busca-lo no final dessa semana, e tendo-lhe o Réu garantido que a porta e vidro estavam compostos.
12.º O filho do Autor procedeu à reparação do veículo a expensas suas, tendo pago, para o efeito, no dia 17 de Dezembro de 2010, a quantia de €:150,00 (cento e cinquenta euros).
13.º Na oficina em que o filho do Autor procedeu à reparação, foi informado que para resolver o problema do “soluçar”, o veículo precisava de uma bobina e de cabos de vela.
14.º Na semana seguinte, o filho do Autor voltou a levar o veículo à oficina referida em 13.º para substituir tais peças, tendo pago €:175,00 (cento e setenta e cinco euros).
15.º O filho do Autor comprou também um amortecedor de mala e bobina, para eliminar defeitos do veículo de matrícula ..-..-IO, pelas quais pagou €:50,00 (cinquenta euros),
16.º No dia 6 de Janeiro de 2011, o filho do Autor foi confrontado com o sobreaquecimento do automóvel.
17.º O filho do Autor, quando ligou o automóvel, o respetivo ponteiro da temperatura começou a subir e, antes que atingisse o vermelho, viu-se obrigado a imobilizar o veículo, o que ocorreu em …, no … da Junta de Freguesia.
18.º O filho do Autor deixou o veículo arrefecer e depois levou-o para casa, que ficava apenas a uns metros de distância.
19.º No dia seguinte, o filho do Autor deslocou-se a uma oficina nas proximidades da sua residência, onde lhe foi dito para recorrer à assistência em viagem.
20.º O filho do Autor recorreu à assistência em viagem, que, chegada ao local, avisou que o veículo teria de ser rebocado, porque apresentava sinais (fumo pela vareta do óleo e borbulhar da água do motor quando quente) de ter a cabeça do motor queimada ou danificada.
21.º O automóvel foi rebocado e levado para o stand e oficina do Réu, onde chegou a 7 de Janeiro de 2011.
22.º O filho do Autor pediu ao Réu que efetuasse a reparação do veículo, ao que este se propôs suportar o custo da mão-de-obra, sendo as peças pagas pelo Autor.
23.º Com o contrato de compra e venda do veículo, foi emitido a favor do Autor, um documento intitulado “Título de Garantia”, do qual decorre que:
a) O Réu prestou uma garantia de um ano;
b) Os órgãos garantidos foram o motor e a caixa de velocidades.
24.º O veículo adquirido pelo Autor, aquando da venda, tinha mais de treze anos de antiguidade.
25.º Tratando-se de um veículo usado, adquirido para revenda, com muitos anos de uso, o Autor bem conhecia que, em adequação ao preço do veículo, adquiria necessariamente um veículo com peças e órgãos com muito desgaste.
26.º Antes da entrega, o veículo foi verificado e objeto de manutenção, não apresentando qualquer deficiência ou defeito.
Encontra-se ainda assente, por acordo e confissão[2], o seguinte facto, que se adita, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 659º, nº3, e 712º, nº1, al. a), do CPC:
27º - O veículo continua até hoje imobilizado no Stand do réu onde permanece sem ser reparado.
B. O Direito.
1. Se o autor goza de algum dos direitos por si reclamados.
Pretende o autor, com a presente ação, a responsabilização do réu pelos defeitos do veículo por si adquirido, no estado de usado, no Stand deste.
O Réu opõe-se a tal responsabilização, com fundamento em que, tratando-se de um carro usado e com muitos anos de uso, sabia o autor que adquiria necessariamente um carro com peças e órgãos com muito desgaste, só respondendo por qualquer falta de conformidade no momento em que o bem é entregue ao comprador, sendo que na declaração de garantia entregue ao autor consta expressamente que a obrigação de reparação não abrange o desgaste de cada uma das peças do veículo.
O juiz a quo, reconhecendo embora a existência de alguns dos defeitos alegados pelo autor considerou que, tratando-se de um veículo com mais de 13 anos de antiguidade, comprado pelo preço de 2.250,00 €, e que tendo sido examinado no momento da celebração do contrato, não apresentava defeitos, a invocação dos direitos ínsitos no art. 4º, nº1, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, na redação do Dec. Lei nº 67/2003, de 08 de Abril, violaria as regras da boa-fé.
O autor não se conforma com tal decisão, invocando a seu favor o regime de venda de bens de consumo constante do Dec. Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, nomeadamente da falta de conformidade prevista no seu art. 3º, nº2, 1ª parte, e a nosso ver, com toda a razão.
Encontrando-se assente nos presentes autos que nos encontramos perante uma venda de bens de consumo, a situação em apreço, para além de beneficiar da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec. Lei nº 67/2003, de 08 de Abril), encontrar-se-á ainda abrangida pelo regime da venda de bens de consumo constante do Dec. Lei nº 67/2003, de 8 de Abril (que veio transpor para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva 1999/44/CE relativa à venda e garantias de bens de consumo), com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Dec. Lei nº 84/2008, de 21 de maio.
Com efeito, o regime contido no Dec. Lei nº 67/2003 é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, neles se incluindo a venda de bens em segunda mão – arts. 1º-A, e 1º-B, al. b), na redação do Dec. Lei nº 84/2008.
Segundo o nº1 do art. 2º do citado diploma, o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que estejam conformes com o contrato de compra e venda, estabelecendo o seu nº2 uma presunção de que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos factos descritos nas alíneas a) a d), de entre as quais se destacam os seguintes:
“c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) não apresentem as qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem (…)”.”
No caso em apreço, as deficiências apresentadas no veículo vendido ao autor – vidro traseiro que não abria nem fechava, porta dianteira que fazia um barulho enorme aquando da sua abertura, “soluçar” do veículo, sobreaquecimento do veículo com sinais de ter a cabeça do motor queimada ou danificada –, correspondendo a faltas de qualidade e desempenho habituais nos bens do tipo em causa, levariam ao preenchimento da presunção de falta de conformidade com o contrato.
Contudo, segundo a sentença recorrida, o facto de se tratar de um veículo com mais de treze anos, comprado pelo preço de 2.250,00 € e que, no momento da celebração do contrato, foi examinado não apresentando qualquer deficiência ou defeito, levaria a que a pretensão do autor de responsabilização do réu pelas referidas deficiências “ultrapassasse os limites da boa-fé”.
Vejamos o que o se extrai, a tal respeito, do regime da venda de bens de consumo.
Segundo o nº3 do citado art. 2º do DL 67/2003, não se considera existir a falta de conformidade prevista no nº1, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la.
Ora, apesar dos factos dados como provados relativamente ao conhecimento que o autor teria do estado do veículo à data da sua aquisição – tratar-se de um veículo com mais de treze anos, sabendo o autor que adquiria necessariamente um veículo com peças e órgãos com muito desgaste e tendo, no momento da celebração do contrato, sido examinado não apresentando qualquer deficiência ou defeito –, deles não se pode extrair que ele tivesse conhecimento das deficiências que o mesmo veio a apresentar nos dois meses seguintes ou que não pudesse razoavelmente ignorá-las.
Aliás, poderemos mesmo afirmar que delas não tinha conhecimento, uma vez que foi dado como provado que, no momento da celebração do contrato o veículo foi examinado sem que tivesse sido detetada qualquer deficiência.
E será que o facto de se tratar de um veículo com mais de treze anos, nos autorizaria a concluir que o comprador não poderia ignorar a ausência de qualidades que se vieram a manifestar pouco depois da sua aquisição, considerando-se que aceitou o produto tal como ele se apresentava?
Como refere João Calvão da Silva[3], o que está em causa no nº3 do art. 2º, não é propriamente a inexistência de falta de conformidade: se na conclusão do contrato o comprador conhece ou não pode razoavelmente ignorar a não conformidade – defeitos aparentes, visíveis, ictu oculi – no circunstancialismo do caso, do que se trata é da não responsabilização do vendedor por aquele defeito. Porque o consumidor aceita o produto tal como ele é, a sua entrega será conforme o contrato, pelo que o comprador não poderá prevalecer-se dos direitos resultantes da falta de conformidade.
Ora, no caso em apreço, não nos encontramos perante defeitos que o comprador conhecesse ou devesse conhecer – o carro estaria a funcionar normalmente quando o experimentou –, sendo que, de acordo com o nº2 do art. 342º, era sobre o vendedor que incumbiria o ónus da prova de que o comprador conhecia ou não podia razoavelmente desconhecer a não conformidade do bem na conclusão do contrato.
De harmonia com o disposto no art. 3º do citado diploma, o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, presumindo-se existentes já nessa data as faltas de conformidade que se manifestem no prazo de dois anos a contar da entrega, para as coisas móveis, salvo quando for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
Ou seja, provada pelo comprador a existência do defeito manifestado dentro do prazo de dois anos, no caso de bem móvel, a lei libera o comprador da prova de que o defeito é anterior à entrega.
Conexionado com tal presunção se encontra ainda o prazo de garantia previsto no art. 5º do citado diploma, segundo o qual o consumidor pode exercer os direitos previstos no art. 6º quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois anos a contar da entrega do bem.
E os direitos do consumidor são igualmente tutelados no caso de venda de bens móveis usados, caso em que o prazo de garantia pode ser reduzido a um ano, por acordo entre as partes (nº2 do art. 5º do DL 67/2003).
O prazo de dois anos da duração da garantia ou da responsabilidade é, assim, redutível por acordo das partes, no caso de coisa móvel usada, em atenção à mais baixa expetativa que o consumidor razoavelmente terá acerca da qualidade e performance de bem já usado e com (mais ou menos) idade, prazo durante o qual o comprador poderá exercer os direitos reconhecidos no art. 4º contra o vendedor profissional.
O DL n.º 67/2003, veio também regular as chamadas “garantias voluntárias” ou de bom funcionamento, ou seja, a declaração pela qual o vendedor, o fabricante ou qualquer intermediário promete reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se, de qualquer modo, da coisa defeituosa vincula o seu autor nas condições constantes dela e da correspondente publicidade (artigo 9º).
A garantia voluntária é aplicável em tudo o que possa conferir mais e melhor proteção ao consumidor, mas não afasta, nem pode afastar o conteúdo (mínimo) da garantia legal.
Face ao caracter injuntivo dos direitos conferidos ao consumidor pelo DL 67/2003 (art. 10º), em nome da ordem pública de proteção ou ordem pública social, e como tal, irrenunciáveis, é à luz do disposto no nº2 do art. 5º que terá de ser interpretada a “garantia de usado” fornecida pelo réu a quando da venda, e que se mostra junta a fls. 32 – embora aí se refira a concessão de uma garantia de seis meses relativa ao motor e à caixa de velocidades, e sob o ponto 6 das cláusulas gerais a aceitação “do prazo de garantia de 12 meses, de acordo com o nº2 do artigo 5º do Dec. Lei nº 67/2003”, nunca tal declaração poderá ser interpretada no sentido de reduzir ou limitar o âmbito da garantia legal constante de tal norma.
Ou seja, e ao contrário do defendido pela ré, a “declaração de garantia” por si emitida, nunca poderia implicar uma redução do período legal de garantia para menos de um ano, nem a sua limitação aos vícios mencionados da respetiva declaração, valendo unicamente na parte em que possa constituir um reforço da garantia legal.
Voltando à questão da responsabilização da ré.
Encontrando-se assente: a) a existência de “defeitos”; b) que os mesmos se manifestaram nos dois meses seguintes à sua entrega ao autor; é quanto basta para se considerar verificada a responsabilidade do vendedor pela não conformidade com o contrato, sem que se descortine qualquer má-fé por parte do autor nessa tentativa de responsabilização.
Como refere Calvão da Silva[4], na venda de automóveis usados, a qualidade e o comportamento razoavelmente esperável pelo consumidor terá em conta o tempo da precedente utilização e mesmo a idade do veículo.
Contudo, se um bem usado pressupõe um desgaste normal em função da sua utilização ou do tempo, esse desgaste não poderá nunca por em causa a sua funcionalidade e performance, tendo em consideração o fim a que o mesmo é destinado. E, o mínimo que se pode esperar de um veículo automóvel, ainda que adquirido em segunda mão, é que circule sem problemas e sem risco de ficar imobilizado por excessivo aquecimento do motor.
Assim, se o comprador de um automóvel usado terá de ter a consciência de que o mesmo terá sido sujeito a algum desgaste, correspondente à sua antiguidade e aos quilómetros percorridos, que os bancos poderão estar puídos, que os pneus e outras peças de desgaste mais rápido, tendo tido algum uso, poderão ter de vir a ser substituídos num prazo mais curto que se fossem novos, de qualquer modo, será suposto que se trate de um veículo que se encontre apto a funcionar, pelo que, qualquer avaria que importe a paralisação do veículo caberá dentro da responsabilidade do vendedor, desde que ocorra dentro daquele período de um ano após a compra, a não ser que o vendedor, com os seus especiais conhecimentos, alegue e prove que a avaria em questão se deve a alguma peça de desgaste rápido, que sempre teria de ser sujeita a substituição periódica (ou que a avaria se devesse a imprudente utilização ou ato do comprador).
Ora, no caso em apreço, embora a ré alegue, na sua contestação, que o sobreaquecimento da viatura se deveu à “junta da colaça queimada”, e que este é um órgão sujeito a desgaste e a manutenção, o certo é que tais factos não foram dados como provados.
Como tal, teremos de concluir pela responsabilização do réu.
Analisemos agora as concretas pretensões do autor.
Em caso de falta de conformidade com o contrato, o nº1 do artigo 5º do DL 67/2003, atribui ao consumidor os seguintes quatro direitos primários: a) de reparação da coisa b) ou a sua substituição; c) à redução adequada do preço; c) ou à resolução do contrato.
E o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos, salvo se se manifestar impossível ou constituir abuso de direito – nº 5 do art. 5º.
Ora, se há quem entenda que a alternatividade ou escolha do consumidor consagrada em tal norma é relativa, prevendo-se como que uma hierarquia entre os direitos aí previstos: em primeiro lugar, a reparação ou substituição do bem, e em segundo lugar, a redução do preço ou a resolução do contrato[5], o certo é que o autor, no caso em apreço, respeitou tal prioridade.
Com efeito, o autor pede, a título principal, a condenação do réu na reparação do veículo e só se não for possível, a sua substituição por outro com iguais características.
E não se atinge de que modo é que tais pretensões possam violar as regras da boa-fé, sendo que, nem sequer é alegado que a realização de qualquer uma delas se mostre desproporcionada para o vendedor (não é alegado qual o valor necessário à reparação da anomalia em causa, nem que ele seja excessivo face ao valor do veículo).
O Autor tem assim direito à reparação do veículo ou à sua substituição nos termos por si peticionados.
Quanto ao reembolso das quantias que gastou com a reparação do vidro elétrico e as portas danificadas, no valor de 150,00 €, mais 175,00 € e 50,00 € para substituição de um amortecedor, bobina e cabos de velas, não provou o autor que tenha exigido a sua reparação ao réu e que esta lhe tenha sido negada (cfr. factos dados como não provados sob as alíneas c) a i), da decisão sobre a matéria de facto), pelo que a pretensão do autor será de improceder.
O art. 12º, nº1 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, na redação do DL 67/2003), prevê ainda o direito do consumidor à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou de prestações de serviços defeituosos, a exercer em cumulação ou em alternativa aos quatro referidos direitos primários.
Ao contrário do estabelecido quanto aos demais direitos – reparação, substituição, redução do preço e resolução do contrato –, do nº4 do art. 12º não consta que a atribuição do direito de indemnização seja concedida independentemente de culpa, pelo que, sendo a regra geral a da responsabilidade subjetiva (arts. 483º nº1 e 798º do CC), entende-se que a mesma só existirá em caso de culpa do vendedor, ainda que a mesma se presuma, por força do disposto no art. 799º do CC[6].
A exigência de culpa excluirá, desde logo, o direito à indemnização a título de danos morais, uma vez que se encontra afastada a culpa do vendedor na falta de qualidades apresentada pelo veículo – o veículo foi experimentado aquando da compra não aparentando quaisquer deficiências. De qualquer modo, nenhum facto foi dado como provado a tal título, sendo que, só os danos de gravidade bastante seriam indemnizáveis (art. 496º do CC).
O Autor peticiona ainda o pagamento de uma indemnização pela privação do veículo, equivalente ao valor aluguer/dia de um veículo igual ao do autor.
Segundo o nº2 do artigo 4º do DL 67/2008, tratando-se de coisa móvel, a reparação ou substituição devem ser realizadas num prazo máximo de 30 dias, sem grave inconveniente para o consumidor.
Tendo o autor, a 7 de janeiro de 2011, deixado o veículo no Stand do réu para que o reparasse, e uma vez reconhecida a obrigação de reparação por parte do réu, este incorreu em mora ao não efetuar até hoje tal reparação.
Contudo, não só a pretensão a uma indemnização equivalente ao valor do aluguer/dia surge como manifestamente desproporcionada face ao valor do veículo em questão (dado o período de tempo entretanto decorrido, ultrapassaria largamente o valor do mesmo), como haverá que ter em consideração que também o credor se encontrava obrigado a não concorrer para o agravamento dos danos, podendo ele próprio ter procedido à reparação em causa face à inação prolongada por parte do réu.
Como tal, recorrendo à equidade e ao abrigo do disposto no nº3 do art. 566º do Código Civil, tem-se por adequada a fixação da indemnização pela privação do veículo no valor de 400 €.
A apelação será de proceder, parcialmente.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a Apelação parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida, condenando-se, em consequência o réu a:
a) A reparar o automóvel dos autos e a entregá-lo ao autor em condições de circulação e funcionamento, eliminando os defeitos referidos nos pontos 16º e 17º da matéria de facto constante da sentença;
“b) Caso a reparação não se mostre viável, a substituir o veículo do autor por outro, do mesmo modelo ou outro equivalente e marca;
c) a pagar ao autor uma indemnização no valor de 400,00 €, pela privação de uso do veículo.
As custas da ação e da apelação deverão ser suportadas pelo Apelante e pelo Apelado, a meias e em partes iguais.

Porto, 21 de Janeiro de 2014
Maria João Areias
Maria de Jesus Pereira
Maria Amália Santos
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[1] Tratando-se de decisão proferida antes da entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos vigente à data da sua prolação – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 15, e João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, Almedina, pág. 118.
[2] Não só da leitura da contestação já resultaria a aceitação de tal facto, como, tendo posteriormente sido notificado para proceder à entrega dos documentos da viatura que se encontrariam no interior desta, o réu respondeu alegando que o autor abandonou o seu veículo e as chaves na oficina do réu e que desde esse momento não mexeu ou mandou mexer no dito automóvel, por não ser sua pertença (requerimento de 20.09.2012, constante do processo eletrónico). Ora, de tal resposta, resulta inequivocamente que o veículo continuava, aquela data na oficina do réu. Por fim, ouvido em depoimento de parte, o réu “confessa igualmente que o veículo se encontra nas suas instalações desde Janeiro de 2011 até à apresente data” (cfr., ata da audiência de julgamento de 15 de Novembro de 2012, onde tal confissão se encontra reduzida a escrito). De qualquer modo, em nosso entender, a prova de tal facto não era sequer era necessária à responsabilização do réu: alegado e provado pelo autor que deixou o carro na oficina do réu para reparação, com uma avaria que implicava a imobilização do veículo, sempre seria ao réu que teria de alegar que o veículo já lá não se encontrava ou que se encontrava em condições de circular.
[3] “Venda de Bens de Consumo”, 4ª ed., Almedina 2010, pág. 93, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança”, Almedina, 5ª ed., 2008, pág. 61.
[4] “Venda de Bens de Consumo”, pág. 116.
[5] Cfr., neste sentido, João Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, Almedina, 5ª ed., 2008, pág. 166.
[6] Cfr., neste sentido, Sara Larcher, “Contratos Celebrados Através da Internet: Garantias dos Consumidores contra vícios de Compra e Venda de Bens de Consumo”, publicado in “Estudos Do Instituto de Direito do Consumo”, vol. II, pag. 221 e 22, e João Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança”, pág. 132.
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V – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC.
1. A venda de um veículo usado por um vendedor profissional a um consumidor, para além de beneficiar da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor, encontra-se igualmente pelo regime constante do Dec. Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.
2. O consumidor/comprador de um veículo usado tem sempre direito, imperativamente, à garantia de um ano quanto ao bom estado e bom funcionamento do veículo, podendo aquele conjuntamente com o vendedor estabelecer um regime mais favorável, não podendo restringir o limite imposto por lei, nem, obviamente, afastá-lo.
3. O facto de se tratar de um veículo com mais de treze anos, comprado pelo preço de 2.250,00 €, e que, tendo sido examinado no momento da celebração do contrato não apresentava defeitos, não afasta por, si só, a responsabilidade do vendedor, não se afigurando contrárias à boa-fé as pretensões do comprador à reparação das deficiências manifestadas menos de dois meses após a entrega – sobreaquecimento do veículo – ou à sua substituição por um outro equivalente.

Maria João Areias