Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0550813
Nº Convencional: JTRP00037791
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
DESISTÊNCIA
RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
BOA-FÉ
Nº do Documento: RP200503070550813
Data do Acordão: 03/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - A desistência por parte do dono da obra num contrato de empreitada pode ser feita "ad nutum", por parte do dono da obra, ao invés da resolução, que carece de invocação e prova de causa resolutiva.
II - Se o Autor, dono da obra, na sequência de divergência com o empreiteiro acerca da execução do contrato, é injuriado e coagido a pagar aquilo que entende não dever - tendo este sido condenado em processo-crime - é legítima a resolução do contrato de empreitada com fundamento de que aquele comportamento foi determinante para a perda de confiança na prestação do Réu, o que não se confunde com desistência por parte do dono da obra.
III - Aquele comportamento antiético violou as regras da boa-fé, por parte do empreiteiro, comprometendo de forma irreversível, a relação de confiança, ínsita no agir com lisura, foi legitimadora, constituiu justa causa, de resolução do contrato, por parte do dono da obra, por, definitivamente, ter comprometido a relação de confiança, que é um dos deveres acessórios de conduta na execução dos contratos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B.........., intentou, em 22.03.2001, pelo Tribunal Judicial da Comarca de .......... – .. Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, – contra:

C..........

Pedindo:

Que se declare o contrato de empreitada, celebrado entre A. e R., resolvido com justa causa, condenando-se este:

A) A pagar ao Autor a quantia de Esc. 546.067$00, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a data de entrada da presente acção em juízo, até efectivo e integral pagamento;

B) A pagar ao Autor a quantia, a liquidar em execução de sentença, correspondente à verba que este vier a desembolsar para reparação de um muro referido na petição inicial, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde o seu desembolso, até efectivo e integral pagamento;

C) A pagar ao Autor uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, correspondente aos prejuízos comprovadamente sofridos com a resolução do contrato.

Alegou, em síntese, que:

- o Réu acordou com o Autor executar a empreitada de pedreiro e cimenteiro de duas moradias deste, pelo preço de 15.000.000$00, e que o pagamento desta quantia seria faseado e conforme o andamento da obra;

- No decurso dos trabalhos e após algumas entregas, surgiram divergências sobre diversos aspectos, o que motivou reunião;

- Nesta, além de ter ficado esclarecido que todas as movimentações de terras e contenção dos terrenos seriam por conta e risco do empreiteiro — embora tivessem sido feitas pelo Autor os desaterros e terraplanagens iniciais —, foi feito um plano escalonado de pagamentos;

- No total, o Autor pagou ao Réu 11.250.000$00 (além de 380.000$00, referentes a “trabalhos a mais”);

- Em consequência de aterros e movimentações de terras levados a cabo pelo R. junto ao muro do lote do vizinho, este fissurou e entortou numa extensão de 12 metros, pelo que o proprietário daquele já interpelou o Autor para o reparar, interpelação que este endossou ao Réu;

- Uma reunião entretanto marcada na obra para resolver esse problema terminou com agressões várias ao Autor por parte do Réu e filhos, o que deu origem a procedimento criminal;

- Com base nesses factos, o Autor rescindiu de imediato o contrato invocando justa causa e comunicou isso ao Réu;

- Faltava então executar parte dos trabalhos, pelo que, na sequência de “medição da obra” já feita, se concluiu que o Autor já pagara a mais 540.000$00, quantia que o R., apesar de interpelado, se recusou a devolver;

- Como o Réu se recusava a desocupar a obra, esta esteve parada durante mais de três meses;

- E teve o Autor de contratar novo empreiteiro – factos estes que se repercutirão no custo final ainda a apurar.

Na contestação o Réu (fls. 21 a 34), alegou, em suma, que:

- apesar de os pagamentos serem de acordo com o andamento da obra, as entregas eram mensais, mas em Maio/2000 o Autor nada pagou; de Maio a Julho/2000, o R. exigiu o pagamento dos “trabalhos a mais” necessários e acordados pelo valor de 600.000$00;

- como o Autor não acedeu, o Réu em Julho suspendeu os trabalhos por 15 dias;

- na primeira reunião referida pelo Autor como motivada por divergências mas que, assim, foi devida à falta de pagamentos por ele, aquele valor foi reduzido para 380.000$00, tendo também sido adiantados mais 500.000$00 e elaborado o tal plano de pagamentos;

- Os aterros e depósito de terras imputados ao Réu e referidos pelo Autor como causadores dos danos no muro foram efectuados por uma empresa, mas por conta e risco do próprio Autor, tendo-se logo após isso evidenciado as fissuras e o entortamento;

- A interpelação para reparar o muro endossado pelo Autor ao Réu foi artimanha daquele para se furtar ao cumprimento das suas obrigações porque este, nessa data, lhe exigiu pagamentos em falta e o ameaçou de recorrer à via judicial;

- Os factos alegados como causa da resolução não são verdadeiros, apenas os filhos do Réu tendo intervindo, afastando-se este; aliás, no regime do contrato de empreitada não existe a figura da “rescisão com justa causa”, o que ocorreu foi desistência do dono da obra;

- Impugnou o rol dos trabalhos em falta;

- A alegada “medição da obra feita” não foi efectuada como o autor alega e é incorrecto o método e o resultado do cálculo apresentado; aliás, mesmo assim, o R. ainda teria a haver do Autor 540.000$00.

Em reconvenção, baseando-se na “desistência da obra” pelo dono, formulou o pedido de condenação do Autor no pagamento de indemnização, no valor de 3.827.000$00, sendo 1.500.000$00 relativos ao proveito que deixou de obter e o restante de despesas e trabalhos realizados (1.350.000$00 + 560.000$00), IVA respectivo (229.500$00 + 92.500$00) e juros moratórios (95.500$00).

Na Réplica (fls. 58 a 65), o Autor impugnou que tivesse sido acordada a periodicidade mensal dos pagamentos, que a razão e valor dos “trabalhos a mais” tivesse sido a invocada pelo Réu; explica que o adiantamento de 500.000$00 se deveu a chantagem do Réu; de resto, impugnou a factualidade alegada por este, percutindo na versão da p.i, terminando por pedir a condenação do Réu como litigante de má-fé em multa e indemnização a liquidar em execução de sentença.

O Réu apresentou tréplica (fls. 73 a 76), impugnando, mais uma vez, a versão do Autor e reiterando a sua.

Respondeu ainda o Autor (fls. 85), dizendo que a Réplica deve ser desentranhada e pronunciando-se sobre os documentos.

Após, o Autor produziu “articulado superveniente” (fls. 122) alusivo ao facto de já ter sido reparado o muro mencionado na p.i., liquidando o respectivo custo e “reformulando” o pedido da alínea B) assim:

“Condenar o Réu a pagar ao Autor a quantia de esc. 234.000$00, acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde 29/10/2001 (data do seu desembolso) até efectivo e integral pagamento”.

Admitido tal articulado e notificado o réu, este nada lhe opôs (fls.126).

Marcou-se e realizou-se Audiência Preliminar (fls. 136 a 147), na qual se proferiu Saneador tabelar, se inventariou a “Matéria de Facto Assente” e se enumerou a controvertida na “Base Instrutória”, sem qualquer reclamação.
***

A final foi proferida sentença que:

Julgou em parte procedente, a acção e, em consequência:

a) — Declarou resolvido, por culpa do Réu, o contrato de empreitada.

b) — Absolveu o Réu C.......... de todos os demais pedidos contra ele formulados pelo Autor.

c) – Julgou totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção e, em consequência, absolveu o Autor da totalidade do pedido contra ele formulado.
***

Inconformado recorreu o Réu, que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1 — A Douta Sentença recorrida patenteia, em si, inúmeras contradições, revelando-se também omissa no que se refere à prova produzida.

2 — A Douta Sentença recorrida, ao não tomar em consideração a vontade real das partes, constante das duas Adendas feitas ao contrato de empreitada, decidindo contrariamente ao aí plasmado, violou as normas constantes do artigo 405° e ss do Código Civil.

3 — Violando, consequentemente, as expectativas das partes, uma vez que o Réu, ora recorrente, fundadamente havia confiado no conteúdo daquelas Adendas, subscritas por ambas as partes.

4 — Mais violou, o Tribunal “a quo”, o plasmado nos artigos 752° e 236°, n°1, do Código Civil, ao proferir um juízo de censura relativamente ao conteúdo das Adendas em apreço, decidindo contrariamente ao teor das mesmas, reguladoras da vontade real das partes bem como a orientação seguida pela STJ, no que a esta matéria respeita.

5 — O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” ao decidir pela resolução do contrato em causa, ao invés, da desistência do dono da obra, baseando a sua decisão no “intuitu personae” pretere o disposto no artigo 1230° do Código Civil, nos termos do qual esse “intuitu personae” não se presume, antes tem que ser provado pelo Autor e conforme se vislumbra dos factos dados como assentes, tal não sucedeu.

6 – A Douta Sentença recorrida atribui ao Réu, ora recorrente, factos que face à análise dos depoimentos das testemunhas, prestados em sede de audiência de julgamento, não foram por este praticados, já que o mesmo não teve qualquer intervenção no aludido “desaguisado”.

7 — Nestes termos, a Douta Sentença recorrida, ao decidir pela improcedência do pedido reconvencional, formulado pelo Réu, ora recorrente, viola os preceitos legais aí mencionados.

Pelo que se deixa dito, requer-se a revogação parcial, nos termos sobreditos, da Douta Sentença recorrida e, consequentemente, a condenação do Autor, aqui recorrido, no pedido reconvencional, formulado pelo Réu, aqui recorrente.

O Autor contra-alegou batendo-se pela confirmação do julgado.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:

Especificação:

A) — Por orçamento de 15/09/1999, apresentado pelo réu, no valor global de 15.000.000$00 (€ 74.819,68), o autor adjudicou-lhe a empreitada de pedreiro e cimenteiro para construção de duas moradias nos lotes 34 e 35 fase B, Urbanização .........., em .......... .

B) — As obras iniciaram-se em Abril de 2000, após a conclusão dos desaterros e terraplanagens efectuados por conta do autor.

C) — Com a adjudicação e início dos trabalhos, entregou o autor ao réu a quantia de 3.500.000$00 (€ 17.457,93), em 29/04/2000, por conta do orçamento.

D) — Foi acordado, entre autor e réu, que os pagamentos faseados da obra se fariam de acordo com o andamento da mesma.

E) — Em 30/06/2000, o autor entregou ao réu nova tranche de 1.000.000$00 (€4.987,98), por conta do citado orçamento.

F) — Em finais de Julho de 2000, a pedido do autor, houve uma reunião com os técnicos responsáveis pelos projectos, arquitectos D.......... e E.........., para se delinear um esquema de pagamentos e clarificar certos aspectos relacionados com as tarefas englobadas no orçamento.

G) O Autor adiantou ao Réu as quantias de:

- 880.000$00 (€ 4398,42), em 01/08/2000, sendo 380.000$00 (€ 1895,43) por trabalhos a mais e 500.000$00 (€ 2493,99) como antecipação referente a um futuro pagamento.
- 850.000$00 (€ 4239,78), em 08/08/2000.
-1.350.000$00 (€ 6733,77), em 28/08/2000.
-1.350.000$00 (€ 6733,77), em 22/09/2000.
-1.350.000$00 (€ 6733,77), em 10/10/2000.
-1.350.000$00 (€ 6733,77), em 02/11/2000.

Montantes esses que, adicionados aos adiantamentos referidos em C) e E), totalizam 11.630.000$00 (€ 58.010,20), sendo 11.250.000$00 (€ 56.114,76), por conta do orçamento e 380.000$00 (€1 895,43), por trabalhos a mais.

H) — O muro contíguo ao lote 35, pertença do prédio vizinho, havia sido construído pelo réu, porquanto foi este que levou a cabo a empreitada de pedreiro da moradia lá edificada.

I) — Em 22/03/2001, data de entrada da presente acção, o muro encontrava-se torto e fissurado.

J) — O proprietário do muro danificado, já interpelou o autor para reparar o muro, sob pena de interposição da respectiva acção judicial

K) — Dá-se por integralmente por reproduzido o teor da notificação judicial avulsa, bem como da certidão relativa à mesma, juntas a fls. 10 a 13 — [notificação requerida pelo Autor, em 7.2.2001, após a resolução do contrato pelo Autor, intimando o Réu para reparar o muro de um vizinho, por si alegadamente danificado; dando-lhe notícia da medição da obra, intimando-o para pagar 540 contos, montante pago em excesso, e intimação para desocupar a obra de imediato].

L) — O autor agendou, para 06 de Dezembro de 2000, pelas 16.00 horas, uma reunião na obra, assegurando a presença do dono do muro, do técnico responsável e de um perito na matéria.

M) — No dia 06 de Dezembro de 2000, pelas 16.00 horas, o autor, acompanhado da mulher, encontrou-se na obra com o referido técnico responsável pela mesma, arquitecto E.........., e com o proprietário do lote vizinho, Sr. F.......... .

N) — À reunião referida em L), compareceram o réu, os seus três filhos e o empregado do Réu.

O) — Foi solicitada a intervenção policial, cuja participação ficou registada sob o n.° ...., na Esquadra da P.S.P. de .......... .

P) — Foram apresentadas as consequentes queixas-crime que correm termos de inquérito nos Serviços do Ministério Público do Tribunal de .........., com o n.°.../00...... .

Q) — O Autor, no dia 07/12/2000, enviou ao réu, e este recebeu, a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 14 e cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

R) — Na data da resolução do contrato de empreitada referente à obra de pedreiro e cimenteiro, para conclusão da mesma faltavam executar os seguintes trabalhos:
-A totalidade dos pavimentos ao nível do rés-do-chão.
-90% das paredes interiores no lote 35.
-Todos os muros de vedação dos terrenos.
-Roços e ranhuras de picheleiro, electricista e gás.
-Construção de anexos, constituídos por garagens e lavandarias.
-Betonilhas em grosso em todos os pavimentos.
-Caixas de saneamento e águas pluviais.

Tudo conforme auto de medição da obra que se dá por reproduzido.

S) — O réu efectuou escavações de 20cm de fundura, nos pavimentos do lote 34 B.

T) — O réu efectuou fundações com lintéis para os anexos da moradia do lote 34 B.

U) — Por carta de 27 de Dezembro de 2000, o autor convocou o réu, para participar na medição da obra, acompanhado, se assim o entendesse, de um perito de sua confiança.

V) — No dia aprazado para a medição da obra, 06/01/2001, compareceram o autor acompanhado de um perito, e o réu, acompanhado do filho G.......... .

W) — O Autor, por notificação judicial avulsa de 09 de Fevereiro de 2001, interpelou o réu para pagar a quantia de 540.000$00 (€ 2693,51).

X) — Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos documentos juntos a fls. 7 e 8 [adendas ao contrato, datadas de 1.8.2000, relativas às moradias em construção, documentos onde se discriminam as fases de pagamento e os preços].

Y) — Já foi reparado o muro referido em 1), sendo que o autor pagou, em 29/10/2001, pela construção de tal muro, a quantia de 234.000$00 (€ 1167,19).
***

Da Base Instrutória:

1. — No decurso da execução da empreitada pelo Réu, este procedeu, por sua conta e risco, a movimentos de terras na obra.

2. — O muro contíguo ao lote 35 fissurou e entortou numa extensão de 12 metros.

3. — A reunião referida em L) foi agendada para nela ser discutido o problema do muro.

4. — Quando estavam todos — autor, sua esposa, arquitecto E.........., Sr. F........., junto ao muro — surgiu o Réu, acompanhado dos seus três filhos, G.........., H.......... e I.........., e de um empregado, todos com ar ameaçador, provocatório e intimidatório.

5. — O Autor, apercebendo-se da intenção do grupo, transmitiu ao réu, que assim não poderia resolver o problema pelo que ia abandonar o local para evitar aborrecimentos.

6. — Quando o Autor tentou ausentar-se do local, foi, de imediato e pela força, impedido de o fazer pelos acompanhantes do réu, que o retiveram no local cerca de uma hora.

7. — Durante esse tempo, estiveram, Autor e sua mulher, sujeitos a violentação moral e física.

8. — O filho do arguido, I.........., agarrou o braço do Autor e disse: “Oh meu filho da puta, tu daqui não sais vivo se não pagares o que deves ao meu pai, nem que te fodas”.

9. — Os filhos do arguido, H.......... e I.........., gritavam para o Autor, dizendo-lhe: “Seu filho da puta, caloteiro, vigarista, advogado de merda, hoje matamos-te aqui”, tendo-lhe o próprio Réu dito também: “filho da puta, caloteiro”.

10. — O Autor tentou, do seu telemóvel, ligar para a Polícia, o filho do Réu, I.........., desferiu-lhe um murro no braço, dizendo: “Tu e ela morrem aqui hoje, se não pagares”.

11. — O mesmo I.......... encostou o Autor contra um muro e berrando para ele disse: “Eu mato-te, eu mato-te, seu filho da puta”.

12. — Quando a mulher do Autor tentou socorrê-lo, o I.......... deitou-lhe as mãos ao pescoço, dizendo “nenhuma puta me põe as mãos em cima”.

13. — O I.......... e o H.......... empurraram o Autor contra o muro do lote contíguo à sua propriedade.

14. — A intervenção policial referida em O) foi motivada pelos factos atrás descritos.

15. — Na data da resolução do contrato de empreitada, faltava executar apenas 10% das paredes interiores do Lote 34 B.

16. — No dia 06/01/2001, foi feita uma inspecção à obra.

17. — Com base nela, o Eng.º. do Autor elaborou os cálculos constantes dos documentos de fls. 11 e 12, aqui reproduzidos.

18. — O Réu tinha conhecimento dessa inspecção.

19. — A obra esteve parada três meses porque o Réu se recusou a desocupá-la, não obstante as interpelações referidas nos documentos juntos a fls. 10 e 15.

20. — Uma semana antes da ocorrência dos factos que levaram à resolução do contrato, Autor e Réu encontraram-se na obra com o Arquitecto E.........., onde foi discutido o problema do muro.

21. — O técnico responsável pelo projecto fez saber ao Réu que o entortamento do muro e as respectivas fendas se deviam aos aterros por ele efectuados e ao deficiente calçamento do mesmo.

22. — A laje de cobertura só foi concluída nos primeiros dias de Dezembro de 2000.

23. — E nessa data faltava ainda executar parte das paredes interiores, assim como os pavimentos a nível do rés-do-chão, nas duas moradias.

24. — E estava pendente a questão do muro.

25 — Os trabalhos “a mais” referidos em G) foram acordados.

26. — Na sequência de divergências, foi delineado um plano de pagamentos.

27. — A cada uma das fases referidas no documento junto a fls. 7, correspondem trabalhos de natureza diversa que implicam a utilização de materiais diferentes em termos de custo, bem como diferente tempo de trabalho dispendido.

28. — O Réu reclamou ao Autor débitos (de 1.350.000$00 e 560.000$00).

29. — E o Autor não os pagou.

Fundamentação:

A questão objecto do recurso — aferida pelo teor das conclusões do recorrente — que, em regra, delimitam o seu âmbito, afora as questões de conhecimento oficioso, consiste, essencialmente, em saber se, ante os factos provados, o Tribunal recorrido deveria ter julgado que o Autor desistiu do contrato celebrado com o Réu e condenado o Autor, no pedido reconvencional, e não que houve válida resolução por parte daquele.

Vejamos:

Não dissentem as partes que, entre o Autor e o Réu, foi celebrado um contrato de empreitada — tendo por objecto obras de pedreiro e cimenteiro para construção de duas moradias — sendo o Autor o dono da obra e o Réu o empreiteiro.

Dos factos provados A) a E) assim resulta inquestionavelmente.

O art. 1207° do Código Civil define:
“Empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação a outra a realizar certa obra, mediante um preço”.

O contrato de empreitada é, pois, bilateral, oneroso e sinalagmático.

O sinalagma, no contrato de empreitada, é genético e funcional. É genético porquanto a reciprocidade das prestações do empreiteiro e do dono da obra, nasce no momento em que é celebrado o contrato, e é funcional porque perdura durante a sua execução.

A execução de um contrato de empreitada implica para o empreiteiro a assunção de uma obrigação de resultado.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 3ª edição, 2°, 72, define obrigação de resultado “como aquela em que o devedor, ao contrair a obrigação, se compromete a garantir a produção de certo resultado em beneficio do credor ou de terceiro”.

O Professor Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, 1980, 1°-358 define-a “como aquela em que o devedor está adstrito à efectiva obtenção do fim pretendido”.

A sentença recorrida considerou, com base na carta escrita pelo Autor, em 7.12.2000, recebida pelo Réu, que aquele resolveu o contrato na sequência de graves desavenças, entre ambos que viriam a culminar, até, com a condenação em processo-crime do Réu e seus filhos.

Em tal carta afirma o Autor: “…Face aos deploráveis acontecimentos verificados junto ao lote 35 onde fui por V.Exa., pelo seu empregado e pelos seus filhos, ameaçado, injuriado e difamado, ao mesmo tempo que era por banda dos seus filhos, I.......... e H.........., agredido, manietado e sequestrado, durante mais de uma hora e meia, só me podendo ausentar do local e sentido livre na minha pessoa quando a polícia chegou e os identificou, conforme participação policial, venho notificá-lo de que deve parar de imediato a obra de pedreiro.
Pois, em virtude do sucedido que levou a uma total perda de confiança na sua pessoa, venho resolver o nosso contrato de empreitada, por justa causa, com efeitos imediatos...”. (destaque e sublinhados nossos).

O Réu entende que com tal comportamento o Autor desistiu da empreitada e, como tal, deve indemnizá-lo.

A questão que, antes de mais, se coloca, pese embora estarem envolvidos na declaração do Autor termos jurídicos, que o Réu como empreiteiro não deve ignorar, no essencial, é a de interpretar tal declaração negocial.

Poderá, apesar da clareza dos seus termos, ser entendida como desistência da empreitada como pretende o Réu?

No que concerne à interpretação da declaração negocial rege o art. 236° do Código Civil que dispõe:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

Deve pois, enjeitar-se o entendimento que se apegue, somente, à estrita literalidade do texto — “quantum verba sonant” — menorizando a autêntica pretensão das partes e os fins económicos que com o contrato visavam.

Todavia, porque a pesquisa do sentido verdadeiramente querido pelas partes nem sempre é fácil, importa que a ponderação e equilíbrio dos interesses em causa sejam sopesados.

“Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, “a vontade real do declarante”, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)”. — Ac. do STJ, de 14.1.1997, in CJSTJ, 1997, 1, 47.

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. 1, pág. 233, em nota ao art. 236° do Código Civil, ensinam:

“…A regra estabelecida no n° 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n° 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n° 2).
(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.
Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.
(...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”

“O declaratário normal deve ser uma pessoa para com “razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” — Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995,
208.

Ora, não obstante a mencionada carta aludir a “resolução do contrato de empreitada”, o Réu sustenta que a decisão deveria ter considerado que o Autor desistiu do contrato e, por isso, deveria indemnizá-lo nos termos do pedido reconvencional.

“O dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra” [“A desistência por parte do dono da obra não corresponde a uma revogação ou resolução unilateral, nem, rigorosamente, a uma denúncia do contrato, dados os especiais efeitos prescritos neste artigo. A empreitada é eficaz até ao momento da desistência, ficando o dono da obra proprietário de tudo aquilo que já, estiver executado e dos próprios materiais não incorporados, se o seu custo for computado a indemnização. E, além disso, obrigado a indemnizar o empreiteiro, não só pelos danos emergentes como pelos lucros cessantes, tal como se houvesse resolução pelo não cumprimento da obrigação imposta ao desistente — “Código Civil Anotado” – Pires de Lima e Antunes Varela, vol. III, pág.908]

“A desistência por parte do dono da obra é uma faculdade discricionária, não carece de fundamento, apresenta-se como insusceptível de apreciação judicial e não carece de qualquer pré-aviso, nem de forma especial.
A desistência tem eficácia ex nunc”. — “Direito das Obrigações — Parte Especial — Contratos”, de Romano Martinez, pág. 422.

O referido autor assinala que a desistência por parte do dono da obra pode ter como fundamento o facto de “ter perdido a confiança no empreiteiro”.

No caso em apreço é manifesto que a resolução do contrato, que é inquestionável face aos termos da declaração do Autor, se baseou no facto de o Autor ter sido maltratado e humilhado pelo Réu e seus filhos, tendo tais divergências por fundo a questão da execução do contrato, o que, razoavelmente, levou a que o Autor não quisesse que o Réu, que o agredira e injuriara, continuasse a executar as obras; a relação de confiança e de boa-fé que deve existir entre os contraentes estava ferida de morte a inviabilizar a continuação do Réu como empreiteiro.

A desistência por ser feita “ad nutum”.

No caso em apreço, o Autor invocou, não na desistência, mas na resolução, o motivo porque o resolvia — “a total perda de confiança em virtude do sucedido”.

Mas será tal invocação relevante para a resolução do contrato?

Do n°1, 2ª parte do art. 1230° do Código Civil pode concluir-se que o contrato de empreitada, em regra, não é estabelecido “intuitu personae” mas, no caso em apreço, muito embora nada a propósito tenha sido alegado pelo Autor, o certo é que, tratando-se de um obra de pequena dimensão, e sendo o Réu empresário em nome individual e tendo apresentado proposta para a empreitada, certamente que o Autor o conhecia, ou nele confiava, pelo que a violação da confiança assume repercussão mais grave.

A par dos deveres acessórios de conduta, postulados pelo agir de boa-fé, existe no relacionamento contratual um conjunto de deveres não escritos, mas implicados na relação de confiança que são imprescindíveis para que a execução do contrato decorra com normalidade e segurança, não devendo qualquer das partes estar sujeita a comportamentos antijurídicos e antiéticos da outra; existindo eles, não é tolerável que, em obediência cega à regra da pontualidade dos contratos a parte “molestada” com comportamentos daquela natureza não possa, validamente, pôr termo à relação negocial, invocando a resolução do contrato. [Como bem se refere na sentença recorrida, citando Brandão Proença, in “A Resolução do Contrato no Direito Civil”, 1982, págs. 63 e 70/1: “O fundamento ético-jurídico e o interesse económico-social do cumprimento recíproco do contrato ou da sua estabilidade, referidos genericamente nos art°s 406°, 1, 1ª parte, e 762°, do Código Civil, podem ser postos em crise por situações de inexecução “subjectiva” ou em hipóteses objectivamente “injustas”, é também à luz da consideração que “a racionalidade do instituto resolutivo está decisivamente conexionada com as incidências contratuais (éticas) ao principio da boa-fé na dupla direcção em que é afirmada (as obrigações de lealdade e de cooperação, integrantes de um verdadeiro dever de cumprir “qua tale”) que deve aferir-se da justeza da aplicação do instituto”]

“Claro que na conformação dos ditames em que se concretiza a regra da conduta de boa-fé podem pesar as específicas expectativas das partes, assim como as representações usuais de quem se encontra no tipo de situações em causa.
Um contrato, por exemplo, convoca no próprio espírito dos seus autores um conjunto de condições e formas de interacção que se não esgota nos deveres negocialmente assumidos aquando da sua celebração.
Ele emerge no seio de teias de expectativas, mais ou menos institucionalizadas, que constituem como que sistemas de referência (extracontratuais) do programa contratualmente estabelecido.
Estas podem consistir, tanto em representações ligadas à pessoa do outro contraente, ao seu comportamento ou a afirmações por ele produzidas, como em pressuposições ligadas às circunstâncias ambientais do negócio, gerais ou particulares, susceptíveis de interferir com a sua execução [...].
[...] Compreende-se, nesta ordem de considerações, que certas imposições de comportamento decorrentes da boa fé cessem se se demonstrar que o sujeito não acalentava efectivamente aquelas expectativas cuja consideração era devida em termos de lealdade, probidade ou razoabilidade de conduta. — “Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil” — Carneiro da Frada, págs. 454 e 457.

Consideramos, assim, que o comportamento antiético e violador das regras da boa- fé, por parte do Réu, comprometendo de forma irreversível e dolosa, a relação de confiança, ínsita no comportamento de boa-fé, foi legitimadora, constituiu justa causa, de resolução do contrato por parte do Autor.

Sem que lobriguemos o sentido da argumentação do apelante, sustenta ele que o Tribunal recorrido decidiu em sentido contrário às adendas ao contrato, constantes de fls. 7 e 8, [relativas ás duas moradias com a discriminação dos pagamentos e os preços,] e violou as expectativas das partes.

Tais adendas são de 1.8.2000 e o contrato foi celebrado em 15.9.1999.

Se o apelante quer, com tal alegação, significar que, aquando da resolução — que na sua tese foi desistência do contrato — já havia executado fases da obra previstas nas adendas e ter direito ao preço, estamos perante uma questão de ónus de prova que lhe competia.

Dos factos provados não resultou que à data em que o Autor pôs termo ao contrato, o Réu fosse credor de alguma quantia.

De notar que todas as quantias pagas pelo Autor referidas em G) o foram, posteriormente, à data das referidas adendas ao contrato inicial, não tendo o Réu feito prova de que era credor das quantias que alegou serem-lhe devidas — respostas negativas aos quesitos 55°, 56°, e 60°.

Finalmente, sustenta o apelante, ainda em defesa da sua tese da desistência do dono da obra que o comportamento invocado pelo Autor, para romper o contrato — o “desaguisado” — não teve o Réu como interveniente, como resulta de depoimentos prestados em audiência.

Antes de mais, dizer que a insinuada impugnação do julgamento de facto não merece pronúncia, pelo facto do Réu não ter dado cumprimento ao ónus imposto no art. 690-A, n°1, do Código Civil.

Depois, que não corresponde à verdade que o Réu tivesse sido estranho aos factos censuráveis que envolveram o Autor e sua mulher J.......... .

A sentença proferida em processo-crime, em 20.1.2003, — fls. 401 a 436 transitada em julgado — condenou-o, além do mais, num crime de coacção grave, na forma tentada, previsto e punido pelo art. 155°, n°1, al. a) e 23° do Código Penal, na pessoa do assistente B......... na pena de 8 (oito) meses de prisão; num crime de injúria, p. e p. pelo art. 181°, do CP, na pessoa do assistente B.......... na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de 3 (três) euros; num crime de injúria, p. e p. pelo art. 181°, do CP, na pessoa da assistente J.......... na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 3 (três euros).

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena de 8 (oito) meses de prisão e 115 (cento e quinze) dias de multa à taxa diária de 3 (três) euros, a pena de prisão aplicada foi suspensa pelo período de um ano.

Pelo quanto expusemos soçobra o recurso.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo Réu/apelante, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

Porto, 7 de Março de 2005
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale