Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3434/10.9TJVNF.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: BENFEITORIAS
VALOR DEDUTÍVEL
LEVANTAMENTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PEDIDO GENÉRICO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RP201305073434/10.9TJVNF.P2
Data do Acordão: 05/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - As benfeitorias feitas por um donatário que é, ao mesmo tempo, interessado na herança do doador, não são uma dívida da herança, mas antes um valor dedutível ao acesso dos bens doados, cujo valor deve ser o que tinham à data da abertura da sucessão (art° 2109° n°1 CCiv), menos o valor acrescentado pelo donatário.
II - Não existindo acordo quanto à existência de benfeitorias no prédio doado ao Autor marido, em vida do "de cujus", sequer quanto ao respectivo valor, as partes devem ser remetidas para os meios comuns.
III - O conceito de detrimento que é o conceito-chave para se apurar da possibilidade de levantamento, ou não, das benfeitorias úteis (art° 1273° n°2 CCiv), não contende com uma abstracta noção de "valor", mas antes com o aumento ou a diminuição da potencialidade de gozo da coisa benfeitorizada, o aumento do valor "comum" da coisa ou a "beneficiação" ou "valorização" do objecto, levando em linha de conta o próprio destino da coisa, v.g., a construção para habitação.
IV - O resultado pedido de "condenação do R. a pagar o valor daquilo que os AA. despenderam a título de benfeitorias" é inviável, à luz da norma que regula o objecto da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa (art° 479° n°s 1 e 2 CCiv) e que exigia se ponderasse "empobrecimento" e "enriquecimento", a fim de se achar a medida da obrigação de restituição.
V - O convite ao aperfeiçoamento dos articulados, previsto no art° 508° n°3 CPCiv, constitui uma faculdade ou um simples poder discricionário do Juiz, cuja inércia ou não aplicação concreta é insusceptível de sindicância pelo tribunal "ad quem".
VI - A consequência para a formulação de um pedido genérico, em infracção da previsão legal do art° 471° CPCiv, é a absolvição da instância, por se tratar de um pressuposto processual inominado que impede a apreciação do mérito da causa, nos termos dos art°s 288° e 493° n°2 e da previsão não taxativa do art° 494° n°1 CPCiv.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
• Rec.3434/10.9TJVNF.P2. Relator – Vieira e Cunha. Decisão recorrida de 25/1/2013.
Adjuntos – Desembargadores Maria Eiró e João Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº3434/10.9TJVNF, da 2ª Vara Cível da comarca do Porto.
Autores – B…… e mulher C…...
Réu – D…...

Pedido
a) a reconhecer que os Autores «são os únicos donos e proprietários das benfeitorias realizadas e localizadas» no prédio urbano, que identificaram, que lhes foi doado pelos progenitores do Autor marido, «acrescidas dos encargos necessários para a sua realização»;
b) a reconhecer, «para além da aquisição originária, titulada pela doação efectuada aos Autores», «a aquisição», por parte destes últimos, «por usucapião», «das benfeitorias» por eles «realizadas» sobre o ajuizado prédio urbano;
c) «a abster-se de perturbar o gozo e fruição das benfeitorias realizadas pelos Autores e que, entre outras, aquelas que constituem a sua casa de morada da família, até à data em que proceda ao seu integral e efectivo pagamento, concedendo-se-lhes, depois disso, um prazo razoável, nunca inferior a seis meses, para que os donos e proprietários das benfeitorias possam encontrar outra habitação»;
d) «a pagar integralmente todas as benfeitorias realizadas e suportadas única e exclusivamente pelos Autores, no montante global de € 179.250,00, acrescido de juros moratórios legais contados desde 19/02/2010, tudo com a sanção compulsória de € 100,00 por cada dia de atraso no pagamento integral e pontual das benfeitorias realizadas pelos Autores, ou, alternativamente, na sobretaxa de juros prevista no nº 4 do art. 829º-A do CC ».
Em alternativa, na alínea e) do petitório, os Autores, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, pediram, nos termos do art. 479º, nº 1, do Cód. Civil, a condenação do Réu a pagar-lhes o valor de tudo quanto tivessem realizado a título de benfeitorias no prédio recebido, pelos Autores, em doação e que foi adjudicado ao Réu no âmbito do processo de inventário que, sob o nº 4994/05.1TBBRG, correu termos no 1º Juízo Cível de Braga.

Tese dos Autores
Por doação dos pais do Autor marido, este adquiriu, por conta da respectiva legítima, um prédio urbano, situado na freguesia de …. (…..), Famalicão.
À data da doação, a construção existente no dito prédio, degradada e inabitável, foi demolida e reconstruída.
Os Autores elaboraram projecto de construção e requereram licença de ampliação e reconstrução, junto da Câmara Municipal, pagaram escavações e desaterro.
O valor global do construído ascende comercialmente a € 170 000.
Em Conferência de Interessados, no inventário por óbito dos pais do Réu e do Autor marido, aquele licitou e, mais tarde, viu ser-lhe adjudicada a titularidade do dito prédio doado.
No citado inventário, os interessados foram remetidos para os meios comuns, para averiguação do valor da casa de morada descrita, enquanto benfeitoria pelos AA. realizada no prédio doado.
Tese do Réu
A petição inicial é inepta, por ininteligível, posto que parte do princípio que “benfeitorias” são coisas corpóreas, objecto de direito de propriedade.
Os pedidos cumulados – reivindicação, com fundamento em aquisição originária, e indemnização por benfeitoria – são incompatíveis.
O prédio foi avaliado no inventário por forma actualizada, contendo a construção de habitação unifamiliar nele existente, e o Réu depositou tornas tendo em conta todo o existente. Não intervindo, como demandados, todos os demais interessados no inventário, o Réu é parte ilegítima.
Impugna motivadamente a alegação dos Autores.

Sentença Recorrida
Na primeira das sentenças proferidas pelo Mmº Juiz “a quo” foi julgada procedente a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, decorrente de ineptidão da petição inicial e, em consequência, o Réu foi absolvido da instância.
Interposto recurso de apelação, a douta sentença transitou em julgado, na parte em que conheceu da ineptidão, quanto aos pedidos formulados supra sob as alíneas a) a d), por não impugnada nessa dita parte.
Todavia, o douto Acórdão da Relação do Porto antes proferido nos presentes autos, com data de 11/12/2012, “julgou procedente a arguição da nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia e, conhecendo em substituição do tribunal recorrido, interpretou o pedido formulado sob a alínea e) do petitório como um pedido subsidiário”, ordenando o prosseguimento dos autos.
A douta sentença agora em recurso, datada de 25/1/2013, julgou improcedente o referido pedido subsidiário, formulado sob a alínea e) supra mencionada, do mesmo absolvendo o Réu.

Conclusões do Recurso de Apelação dos Autores
I – A sentença está ferida do vício da nulidade (artº 668º nº1 al.d) CPCiv).(…)
III – O Recorrido não pôs em causa as benfeitorias, na sua qualificação – artº 82º da Contestação.
IV – Independentemente da qualificação jurídica dada pelos Recorrentes às benfeitorias, como necessárias e úteis, o Recorrido pretende a sua entrega.
V – Ora a medida do enriquecimento traduz-se em tudo quanto corresponde ao edifício existente por força da reconstrução, remodelação e ampliação do prédio urbano existente à data da doação, e suportado economicamente pelos Recorrentes.
VI – Ao pretender a destrinça entre benfeitorias necessárias e úteis, o Mmº Juiz excedeu a questão suscitada pelas partes.
VII – Mais existe erro de julgamento. (…)
IX – O Recorrente marido alegou e provou que recebeu por doação de seus pais um prédio urbano, facto aceite pelo Recorrido.
X – Facto igualmente reconhecido no inventário.
XI – Admitindo que no prédio existem benfeitorias.
XII – Benfeitorias úteis, porque o prédio recebido estava em total estado de degradação e inabitável. (…)
XVII – Não pode oferecer discussão que as diversas construções e obras efectuadas pelos Recorrentes aumentaram o valor da coisa benfeitorizada.
XVIII – E devem ser consideradas úteis.
XIX – Após a licitação e adjudicação do imóvel no inventário, sem nele se incluir o edifício construído pelos Recorrentes – operou-se uma transmissão que não pode significar a transmissão da benfeitoria para a esfera patrimonial do Recorrido.
XX – Não existe causa/justificação para o enriquecimento à custa dos Recorrentes e para o empobrecimento destes. (…)
XXII – O recorrido não alegou ou provou factos que permitam concluir que as benfeitorias úteis não podem ser levantadas sem detrimento da coisa. (…)
XXVII – Toda a edificação implantada ter-se-á de considerar benfeitoria necessária e útil. (…)
XXX – A decisão ora em recurso constituiria a prática de um claro abuso de direito. (…)
XXXII – A remoção das benfeitorias, necessárias ou úteis, prejudicaria o fim específico da coisa benfeitorizada e danificaria o prédio, o que é facto notório. (…)
XXXV – Na petição inicial afirmou-se que “a restituição das benfeitorias úteis e necessárias realizadas não é possível em espécie”. (…)
XL – Parece aos Recorrentes que a edificação em causa não pode deixar de considerar-se uma benfeitoria útil. (…)
XLVIII – A medida do enriquecimento do Recorrido resulta do obtido à custa dos Recorrentes, corresponde ao valor do edifício quie ingressou na sua esfera patrimonial e cuja aquisição foi custeada apenas pelos Recorrentes, empobrecidos.
XLIX – Está em discussão o enriquecimento sem causa do Recorrido, decorrente da adjudicação do imóvel efectuada no âmbito do processo de inventário. (…)
LII - O facto de não haver elementos para determinar a medida do exacto empobrecimento da Autora não leva, só por si, à improcedência da acção fundada em enriquecimento sem causa.
LIII – Segundo o artº 569º CCiv, quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, como se comprova igualmente no artº 471º nºs 1 e 2 CPCiv, nas suas várias alíneas. (…)
LX – Limitando-se a percepção do direito invocado pelos Apelantes, viola-se o preceituado no artº 20º CRP. (…)
LXIII – O estado dos autos permite apurar a medida do empobrecimento dos Recorrentes e do enriquecimento do Recorrido, e permite o prosseguimento dos mesmos para a fase de instrução, ainda que seja necessário proceder à liquidação da medida do enriquecimento.
LXIV – Caso não se atenda ao supra exposto, sempre poderia o Mmº Juiz convidar os Recorrentes, nos termos do artº 508º nº3 CPCiv. (…)
LXIX – Salvo melhor opinião, não interessa para os presentes autos qual o valor do prédio benfeitorizado, para efeitos de apurar o enriquecimento do Recorrido.
LXX – Importa apenas aferir do valor da moradia hoje existente. (…)
LXXIII – A moradia unifamiliar assenta sobre sapatas e alicerces de considerável profundidade, que se implantaram de tal forma a assegurar que o edifício receba a estabilidade necessária ao tipo de construção em causa, sendo, como se intui, de todo inamovível.
LXXIV – Os factos alegados pelos Recorrentes são os essenciais para permitir individualizar a situação jurídica alegada e o julgador deve privilegiar a solução definitiva do litígio, com prevalência sobre questões de processo.
LXXV – Violou a sentença as normas dos artºs 20º CRP, 264º nº2, 378º nº1 als. a) e b), 471º nº2, 508º nº3, 514º nº1, 660º nº2 e 661º nº2 CPCiv e 473º, 479º e 1273º CCiv e os princípios da justiça, da proporcionalidade, da igualdade e do justo equilíbrio.

Em contra-alegações, o Réu pugna pela confirmação do decidido.

Factos Provados
Por escritura pública de doação lavrada no dia 15/2/93, o Autor marido adquiriu o prédio urbano sito no lugar de …., na freguesia de … (….), do concelho de Vª Nª de Famalicão, descrito na CRP sob o nº 26.047 e inscrito na matriz respectiva sob o artº 82º (artº 1º da P.I.).
Tal prédio foi doado ao Autor marido por seus pais E.....s e F….., por escritura de 15/2/93, por conta da legítima dele donatário (artºs 2º e 3º da P.I.).
O prédio doado tinha uma construção anterior a 7/8/51 (artº 4º da P.I.).
Tal prédio encontra-se registado na competente CRP, a favor do A. marido, desde 13/8/93, com o ónus de eventual redução de doação sujeita à colação (artºs 5º e 6º da P.I.).
E inscrito igualmente a favor do Autor marido, sob o artº 843º da matriz urbana da freguesia de …. ….. (artº 7º da P.I.).
Foi requerida, junto da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, em 29/6/93, licença e autorização para efectuar uma operação urbanística de ampliação e reconstrução no prédio em causa (artº 15º da P.I.).
A construção ora existente é uma moradia unifamiliar de quatro frentes, com dois pisos – semi-cave e rés-do-chão elevado – anexos (telheiro de garagem) e arranjos exteriores (artº 23º da P.I.).
No âmbito do processo de inventário dos bens deixados por óbito dos pais do Autor marido e do Réu, que são irmãos germanos, foi relacionado, como verba pertencente ao acervo hereditário dos ali inventariados, o prédio doado aos AA. (artº 47º da P.I.).
Tal processo correu termos no 1º Juízo Cível da Comarca de Braga, sob o nº 4994/05.1TBBRG (artº 48º da P.I.).
Em Conferência de Interessados, realizada no dia 19/2/2010, o interessado e aqui Réu D….. licitou sobre o prédio doado aos AA., adjudicando para si a respectiva titularidade (artº 49º da P.I.).
No citado processo de inventário, foi proferido douto despacho judicial, incidente sobre as reclamações às declarações do cabeça-de-casal que, em parte, foi do seguinte teor:
“A doutrina e a jurisprudência defendem que as benfeitorias feitas pelo donatário na coisa doada pelo “de cujus” não são uma dívida da herança, mas um valor dedutível ao acesso dos bens doados; para efeitos de colação ou de licitação nos bens doados, o valor destes é o que tinham à data da abertura da sucessão (artº 2109º CCiv), menos o valor acrescentado pelo donatário, para além das despesas de conservação.”
“O donatário não é um terceiro, relativamente às benfeitorias realizadas na coisa doada, porque nele, por efeito do contrato de doação, se confundiram as qualidades de proprietário e de possuidor da coisa; aqui há uma posse causal ou um “jus possidendi”, também chamada posse como exterioração de outro direito real.”
“(…) Conclui-se que as benfeitorias devem ser relacionadas de forma autónoma, atribuindo-se um valor que será considerado para deduzir ao valor do bem doado nas operações de partilha; não se justifica proceder à relação como passivo da herança, face à natureza particular do direito do donatário em relação ao bem doado, que não permite qualificá-lo como terceiro.”
“Cumpre ao cabeça-de-casal atribuir um valor às benfeitorias, sem prejuízo de virem a ser objecto de avaliação.”
“No caso concreto, apenas foram reconhecidas por todos os interessados, como benfeitorias nos bens doados, a construção levada a efeito pela interessada G…..”
“No que respeita às demais construções, não existe acordo dos interessados, apenas a cabeça-de-casal admite que os interessados B….. e H….. executaram obras nos bens doados; porém, os interessados reclamantes não descrevem as obras que executaram, nem o seu valor e extensão, para além de não indicarem a prova dos factos que alegam.”
“Assim, quanto às construções realizadas pelos interessados B...... e H......, remetem-se os interessados para os meios comuns, ao abrigo do artº 1350º CPCiv.”

Fundamentos
As questões colocadas pelo presente recurso são as seguintes:
- Saber se a sentença se encontra ferida de nulidade, pois que, ao exigir que os AA. tivessem efectuado a destrinça entre benfeitorias necessárias e úteis, o Mmº Juiz a quo excedeu a questão suscitada pelas partes (artº 668º nº1 al.d) CPCiv).
- Saber se o Réu deveria ter alegado e provado factos donde se retirasse que as benfeitorias não poderiam ser levantadas sem detrimento da coisa – aliás, que a sua remoção prejudica o fim da coisa benfeitorizada constitui facto notório e afirmar o contrário constituiria abuso de direito.
- Saber se deve considerar-se assente que o prédio recebido se encontrava em total estado de degradação, inabitável, e, como tal, as obras realizadas consubstanciaram benfeitorias úteis; saber se, em todo o caso, o processo deveria seguir os respectivos termos, com prolação do despacho de condensação.
- Saber se o facto de não haver elementos para determinar a medida do empobrecimento do Autor não conduz à improcedência da acção, por força do disposto nos artºs 569º CCiv e 471º nºs 1 e 2 CPCiv; entender o contrário viola o disposto no artº 20º CRP.
- Saber finalmente se, caso assim se não entendesse, deveria o Julgador ter proferido despacho nos termos do artº 508º nº3 CPCiv.
Apreciemo-las seguidamente.
I
Na acepção legal, benfeitorias constituem “todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa” (artº 216º CCiv).
Daí que, por força da extensão do direito de propriedade ou do direito subjectivo à semelhança da propriedade, na base de um “jus possidendi”, o conceito de benfeitoria apenas assuma relevo quando o benfeitorizante não é o proprietário da coisa, nem o titular de relação jurídica que legitime a posse.
É o caso do donatário não dispensado de colação para igualização da partilha – na verdade, se as benfeitorias foram realizadas na coisa doada, o donatário não é terceiro relativamente a essas benfeitorias, nele se confundindo as vestes de proprietário e de possuidor em nome próprio da coisa doada.
Daí também que correctamente se haja decidido por douto despacho proferido no processo de inventário, supra transcrito nos “factos provados”, que as benfeitorias feitas por um donatário que é, ao mesmo tempo, interessado na herança do doador, não são uma dívida da herança, mas antes um valor dedutível ao acesso dos bens doados. Como se escreveu no Ac.S.T.J. 8/11/94 Col.III/128 (relatado pelo Consº Santos Monteiro), “para efeitos de colação ou de licitação nos bens doados, o valor destes é o que tinham à data da abertura da sucessão (artº 2109º nº1 CCiv), menos o valor acrescentado pelo donatário, para além das despesas de conservação.”
Segue-se que, por não ter existido acordo quanto à existência de benfeitorias no prédio doado ao Autor marido, em vida do “de cujus”, sequer quanto ao respectivo valor, as partes foram remetidas para os meios comuns.
E a presente acção ordinária traduz, efectivamente, a acção comum para a qual as partes vieram a ser remetidas no inventário.
Porém, o dito inventário prosseguiu os seus termos normais e, a final, o prédio doado ao Autor marido foi, após licitação, adjudicado ao ora Réu, por sentença judicial já transitada em julgado.
II
Nos termos do disposto no artº 2115º CCiv, o donatário (sujeito à colação) é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de boa fé, sendo-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artºs 1273ºss. CCiv.
Nos termos do disposto no artº 1273º nºs 1 e 2 CCiv, o possuidor de boa fé tem direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que haja feito, e a levantar as benfeitorias úteis, desde que inexista detrimento da coisa; no caso de detrimento da coisa, não se levantando as benfeitorias, o possuidor de boa fé deve ser satisfeito do respectivo valor, por parte do titular do direito, segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Por benfeitorias necessárias entendem-se aquelas que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa benfeitorizada (artº 216º nº3 CCiv) – repare-se que se não encontra aqui em causa uma noção de “valor” da coisa (perda ou diminuição de valor), mas de perda ou de deterioração da coisa tal como materialmente existente. Equivalem a reparações – ut Prof. Menezes Cordeiro, Tratado – Parte Geral, II/176.
Da mesma forma, o conceito de detrimento que é o conceito-chave para se apurar da possibilidade de levantamento, ou não, das benfeitorias úteis, não contende com uma abstracta noção de “valor”, mas antes com o aumento ou a diminuição da potencialidade de gozo da coisa benfeitorizada (neste sentido, Prof. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª ed., pg. 113), o aumento do valor “comum” da coisa (Consº Rodrigues Bastos, Notas, I/278) ou a “beneficiação” ou “valorização” do objecto (Prof. Menezes Leitão, Dtºs Reais, 2ª ed., pg. 78), levando em linha de conta o próprio destino da coisa, v.g., a construção para habitação (cf. Prof. M. Wolff, Derecho de Cosas, Barcelona, 1970, pg. 594).
A questão abstracta do “valor” aflora apenas quando se trata de indemnizar o possuidor pelo equivalente em dinheiro, quanto a benfeitorias úteis, segundo as regras do enriquecimento sem causa – artºs 1273º nº2 e 479º CCiv.
Justamente, versa sobre o “valor da indemnização por benfeitorias” o pedido ainda em apreciação nos presentes autos, cumprindo-nos agora debruçarmo-nos sobre o teor da impugnação recursória.
III
Em primeiro lugar, para afirmar a inexistência de qualquer conhecimento com “excesso de pronúncia”.
Se a “causa de pedir” é o facto jurídico ou o título gerador do direito invocado - ut S.T.J. 17/1/95 Bol.443/353, ela não confunde com as razões jurídicas invocadas pelo autor (o Tribunal é livre de as qualificar – da mihi facto dabo tibi jus). E foi a essa qualificação que procedeu a douta sentença recorrida – não utilizando, para o efeito, senão a interpretação da matéria alegada, em função do direito invocado e do pedido formulado.
Depois, para igualmente afirmar que o direito à indemnização por benfeitorias passa pela respectiva caracterização, em termos que se possam subsumir aos normativos legais – neste sentido, quem invoca o direito (no caso, os Autores) é quem possui o ónus de prova dos factos constitutivos do mesmo direito (artº 342º nº1 CCiv).
Ora, o pedido formulado pelos Autores, ao reportar-se ao instituto do enriquecimento sem causa, conduz à necessária classificação da pretensão como no âmbito da indemnização por “benfeitorias úteis” (e não já “benfeitorias necessárias”, indemnizáveis nos termos gerais, isto é, sem sujeição às limitações impostas pelo instituto do enriquecimento sem causa).
Isso é também o que parece decorrer da alegação dos Autores – tendo recebido um prédio que incluía uma construção para habitação “em total estado de degradação e inabitável” (artº 8º da P.I.) não procederam nessa construção a quaisquer reparações, antes a demoliram e aí construíram uma casa com outras características.
É certo que os AA. não invocam, em termos factuais, por um lado a totalidade da quantia por eles AA. despendida na construção da sobredita casa de habitação (descrevem apenas alguns itens dos seus gastos, v.g., nos artºs 14º e 22º da P.I.); por outro lado, não especificam qual o valor do prédio à data da doação, de forma a se poder avaliar em concreto o montante do enriquecimento.
Essa ponderação entre os montantes exactos do empobrecimento e do enriquecimento era indispensável, face à norma do artº 479º nºs 1 e 2 CCiv, que fixa a medida da obrigação de restituição no menor dos dois montantes – seja o do empobrecimento, por um lado, seja o do locupletamento, por outro.
Dir-se-á que o artº 569º CCiv não impõe ao autor a indicação da importância exacta em que avalia a indemnização pelos danos sofridos – na mesma sequência, a norma do artº 471º nº1 al.b) CPCiv, proveniente da Reforma de 95/96, permite a formulação de um pedido genérico “quando o lesado pretenda usar da faculdade conferida pelo artº 569º CPCiv”.
Só que, se bem observarmos o pedido em análise, aquele que resta (sob a al.e), depois de os demais pedidos terem sido abrangidos pela consideração da ineptidão da petição inicial, ali se pede a condenação genérica do Réu a pagar aos AA. “o valor de tudo quanto os mesmos tenham realizado a título de benfeitorias no prédio recebido”, ainda que “através do instituto do enriquecimento sem causa”.
Ora, é esse resultado (“a condenação do Réu a pagar o valor daquilo que os AA. despenderam a título de benfeitorias”) que é inviável, à luz da norma que regula o objecto da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa – a norma do artº 479º nºs 1 e 2 - e que exigia se ponderasse “empobrecimento” e “enriquecimento”, a fim de se achar a medida da obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa.
Sem a alegação de tal ponderação, não pode afirmar-se a procedência do pedido, apenas estribado no valor “que os RR. despenderam”.
Na verdade, os limites do enriquecimento sem causa são dois, consoante o que se mostre mais elevado, como assinala o Prof. Menezes Cordeiro, Tratado – Obrigações, III/248: “deve ser restituído o enriquecimento em concreto (1º limite)” – desconhece-se qual foi, ou a forma de o calcular, pois não vem alegado o valor do prédio, antes de incorporadas benfeitorias; “até ao montante do dano em abstracto ou do dano em concreto” (2º e 3º limites) – não foram pura e simplesmente alegados valores que permitissem avaliar se este dano, as quantias efectivamente despendidas, superavam o valor do locupletamento.
Não estão assim dados os elementos que permitam a quantificação da prestação em liquidação posterior, como defendem as doutas alegações de recurso.
E, aliás, note-se que a invocada norma do artº 569º se reporta à obrigação de indemnizar, ou seja, à obrigação de reparar um dano – artº 562º CCiv, o que é diverso da obrigação de restituir o enriquecimento – as dogmáticas do enriquecimento e da responsabilidade são diversas (cf. Prof. Menezes Cordeiro, op. cit., pg. 220).
Por isso, em rigor, o pedido genérico foi formulado em desobediência à previsão taxativa do artº 471º nº1 CPCiv, nas suas diversas alíneas – os Autores formularam um pedido genérico, quando nada os impedia de formular um pedido específico.
Quanto às consequências de tal vício, entendemos que a posição mais adequada não é a da improcedência de mérito do pedido – posição esta que foi assumida pelo Consº Manuel Gonçalves Salvador, Revista dos Tribunais, 88º/5ss., bem como no Ac.R.L. 21/7/71 Bol.209/190, cits. in Ac.R.L. 23/3/93 Col.II/122, relatado pelo Consº Sousa Inês.
Entendemos antes, com o Ac.S.T.J. 8/2/94 Col.I/97, relatado pelo Consº Fernando Fabião, e demais doutrina que cita, entre ela Prof. Antunes Varela, Drs. José M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual, 2ª ed., pgs. 104ss., que “seja no saneador, seja na sentença final, a consequência para a formulação de um pedido genérico, em infracção da previsão legal, é a absolvição da instância, por se tratar de um pressuposto processual inominado e ser da natureza destes implicar a absolvição da instância e impedir a apreciação do mérito da causa, nos termos dos artºs 288º, 493º nº2 e 494º nº1 CPCiv”.
O conhecimento da procedência de excepções dilatórias de conhecimento oficioso tem precedência sobre o conhecimento de mérito do pedido.
IV
Seria então caso de ordenar a aplicação, pela instância recorrida, do disposto no artº 508º nº3 CPCiv, que determina que “o juiz pode convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”?
Independentemente das razões aduzidas na douta sentença recorrida, que temos por adequadas e aqui nos dispensamos de repetir, a verdade é que a jurisprudência tem maioritariamente interpretado a norma, de resto como o seu próprio texto inculca (“o juiz pode…”), como uma faculdade ou um simples poder discricionário do Juiz, cuja inércia ou não aplicação concreta é insusceptível de sindicância pelo tribunal “ad quem” – neste sentido, por todos, cf. S.T.J. 27/11/07 Col.III/162 (Consº João Camilo), Ac.R.L. 5/2/04 Col.I/100 (Desembª Fernanda Isabel Pereira), Ac.R.P. 19/2/04 Col.I/186 (Consº Mário Cruz) e Ac.R.L. 12/10/06 Col.IV/73 (Desemb. Manuel Gonçalves).
Não vemos razão válida para divergir dessa jurisprudência maioritária, pelo que, sufragando-a, entendemos estar-nos vedado sindicar o uso dos poderes referidos no artº 508º nº3 CPCiv, pelo Mmº Juiz “a quo”.
Em suma, de uma improcedência do pedido formulado, julgamos ser antes de absolver o Réu da instância, face à formulação ilegal de pedido genérico, nos termos dos artºs 471º, 493º nº2 e 494º nº1 CPCiv, por nos encontrarmos perante verdadeira excepção dilatória inominada.
O princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artº 20º CRP, não contende com os ónus processuais de alegação, prova e concretização do alegado, que impendem sobre as partes, consequência dos princípios dispositivo e de auto-responsabilização, já que o tribunal não lhe é exigível nem pode personalizar, assumindo para si, seja a substituição das partes, seja o suprimento da falta de exercício por estas dos seus poderes.

A fundamentação poderá ser resumida desta forma:
I – As benfeitorias feitas por um donatário que é, ao mesmo tempo, interessado na herança do doador, não são uma dívida da herança, mas antes um valor dedutível ao acesso dos bens doados, cujo valor deve ser o que tinham à data da abertura da sucessão (artº 2109º nº1 CCiv), menos o valor acrescentado pelo donatário.
II – Não existindo acordo quanto à existência de benfeitorias no prédio doado ao Autor marido, em vida do “de cujus”, sequer quanto ao respectivo valor, as partes devem ser remetidas para os meios comuns.
III – O conceito de detrimento que é o conceito-chave para se apurar da possibilidade de levantamento, ou não, das benfeitorias úteis (artº 1273º nº2 CCiv), não contende com uma abstracta noção de “valor”, mas antes com o aumento ou a diminuição da potencialidade de gozo da coisa benfeitorizada, o aumento do valor “comum” da coisa ou a “beneficiação” ou “valorização” do objecto, levando em linha de conta o próprio destino da coisa, v.g., a construção para habitação.
IV – O resultado pedido de “condenação do R. a pagar o valor daquilo que os AA. despenderam a título de benfeitorias” é inviável, à luz da norma que regula o objecto da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa (artº 479º nºs 1 e 2 CCiv) e que exigia se ponderasse “empobrecimento” e “enriquecimento”, a fim de se achar a medida da obrigação de restituição.
V – O convite ao aperfeiçoamento dos articulados, previsto no artº 508º nº3 CPCiv, constitui uma faculdade ou um simples poder discricionário do Juiz, cuja inércia ou não aplicação concreta é insusceptível de sindicância pelo tribunal “ad quem”.
VI - A consequência para a formulação de um pedido genérico, em infracção da previsão legal do artº 471º CPCiv, é a absolvição da instância, por se tratar de um pressuposto processual inominado que impede a apreciação do mérito da causa, nos termos dos artºs 288º e 493º nº2 e da previsão não taxativa do artº 494º nº1 CPCiv.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Na procedência da excepção dilatória inominada de formulação de pedido genérico ilegal, absolver o Réu da instância, quanto ao pedido formulado sob e), na Petição Inicial.
Custas pelos Apelantes.

Porto, 07/V/2013
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa