Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0521121
Nº Convencional: JTRP00038603
Relator: ALZIRO CARDOSO
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
SOCIEDADE POR QUOTAS
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
Nº do Documento: RP200512130521121
Data do Acordão: 12/13/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 201 - FLS 195 A 202 F/V
Área Temática: .
Sumário: I - Só por si, a assinatura do contrato-promessa de compra e venda pelos sócios de uma sociedade não constitui deliberação social.
II - A consequência da celebração pelo gerente de uma sociedade por quotas de contrato entre a sociedade e o próprio gerente, directamente ou por interposta pessoa, decorre, com as necessárias adaptações, do princípio geral estabelecido no artº 261º do C. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I – Relatório
B.......... instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária, contra C.........., Lda e D.........., Lda, pedindo que:
a) Se declare nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia, sob o n.º 295, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 243, sito na Rua .........., n.º ..., por contrário à lei – art. 6º, n.º 1 do CSC e art. 160º do CC; se declare nulo e de nenhum efeito, por falta de deliberação dos sócios – artigo 246, n.º 2, al. d) do CSC;
b) Sem prescindir, que se declare o acto anulável, por se tratar de negócio consigo mesmo, nos termos do artigo 261º do Código Civil;
c) Ou que se declare nulo, pelo facto do comportamento dos dois sócios gerentes consubstanciar uma situação de abuso de direito – art. 334º do Código Civil;
d) E, em consequência que se ordene o cancelamento do registo do imóvel a favor da 2ª Ré na Conservatória do Registo Comercial da Maia, caso o mesmo se tenha verificado.

Fundamentou o pedido alegando, em resumo, que:
No dia 2 de Outubro de 2002, E.........., outorgando na qualidade de gerente da 1ª Ré e de procurador do também gerente F.........., ambos em representação da 1ª Ré, venderam à 2ª Ré, que estava no acto representada pelo referido F.........., pelo preço de € 150.000,00, um prédio urbano composto de edifico de um pavimento, destinado a habitação, com dependência e quintal, sito no .........., Maia;
A 1ª Ré tem por objecto social a construção de prédios para venda e revenda e projectos, sendo seus sócios o Autor, E.......... e F.........., estando o seu capital social, no montante de € 27.000,00, dividido em três quotas iguais no valor nominal de € 9.000,00, pertencentes a cada um dos sócios;
No pacto social foram nomeados gerentes da 1ª Ré todos os sócios, sendo necessário para vincular a sociedade a intervenção de dois dos gerentes;
A 2ª Ré é uma sociedade unipessoal cujo único sócio é F..........;
A referida venda celebrada em 2-10-2002 foi feita contra e sem o consentimento do Autor, tendo os sócios da 1ª Ré, E.......... e F.......... agido em conluio e com intenção de o prejudicar;
A venda excedeu os limites da capacidade da sociedade 1ª Ré, o que acarreta a incapacidade desta para praticar tal acto que, por isso, é nulo e contrário à lei, por serem nulos os actos praticados por titulares de órgãos de sociedade comercial que não sejam abrangidos pela capacidade desta;
Acresce que a referida escritura de compra e venda não foi precedida de deliberação dos sócios, por forma a dar cumprimento ao estatuído no art.246º, n.º 2, al. d) do CSC, o qual, dispõe que depende de deliberação dos sócios a alienação ou oneração de bens imóveis, se o contrato social não dispuser diversamente, como é o caso.
E tratou-se de um negócio feito pelo gerente F.......... consigo mesmo, configurando a referida venda uma situação de abuso de direito, já que o gerente F.......... sobrepôs o seu interesse pessoal ao da sociedade, 1ª Ré, sendo a sua conduta jurídica e eticamente reprovável.

Citados, os Réus contestaram, defendendo-se por impugnação e concluindo pela improcedência da acção.
Findos os articulados foi dispensada a audiência preliminar, proferiu-se despacho saneador, seleccionaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória, sem reclamações.
Instruída a causa procedeu-se a julgamento, constando a decisão sobre a matéria de fato do despacho de folhas 165-167.
Finalmente foi proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando a nulidade do contrato de compra e venda celebrado por escritura pública de 2 de Outubro de 2002, através do qual, o sócio E.........., outorgando na qualidade de gerente e procurador do sócio gerente F.........., ambos em representação da 1ª Ré, declarou vender, e a 2ª Ré, declarou comprar, pelo preço de € 150.000,00 (Esc. 30.000.000$00), o prédio urbano composto de um pavimento, destinado a habitação, dependência e quintal, sito no .........., na Rua .........., n.º ..., freguesia e concelho da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º 925 e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º 243; e ordenou o cancelamento do registo do imóvel a favor da 2ª Ré D.........., Lda na Conservatória do Registo Predial da Maia, caso o mesmo se tenha já verificado.

Inconformadas as Rés interpuseram o presente recurso de apelação tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões:
1. É possível a junção em sede de Recurso de documento ainda não existente nos autos ou, que se torne necessário em virtude da fundamentação jurídica da Sentença;
2. Assim, é atempada e justificada a junção de contrato assinado pelos três sócios gerentes da sociedade, quando o que existe nos autos só está assinado por dois e, foi determinante na fundamentação da sentença recorrida;
3. Litiga de má fé na modalidade de “venire contra factum proprium” e abuso de direito o sócio que delibere através de escrito particular e unânime a venda de imóveis da sociedade aos sócios e depois, vem colocar em causa a escritura definitiva que foi executada em cumprimento das deliberações que ele próprio tomou;
4. Um denominado contrato promessa de compra e venda, assinado pelos três únicos sócios e gerentes da sociedade onde se promete vender um imóvel a um dos sócios, constitui uma deliberação válida;
5. Esta deliberação é válida já que consta de escrito unânime, fora de assembleia geral;
6. Um contrato promessa de compra e venda outorgado por todos os sócios constitui o documento avulso, escrito, particular que a lei exige para a deliberação ser válida, já que manifesta uma vontade realizável;
7. É válida a escritura de compra e venda de um imóvel outorgada pela sociedade a um dos sócios gerentes, precedida que foi de autorização concedida pela deliberação unânime dos três únicos sócios, constante de denominado “contrato promessa” e nos termos que dele constam;
8. Ficando a sociedade vinculada pela escritura que se lhe seguiu.

O Autor contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

Corridos os vistos cumpre agora decidir.

II – Fundamentos
1.De facto
Por não ter sido impugnada nem haver fundamento para a alteração da mesma no quadro da enumeração taxativa do n.º 1 do artigo 712º do CPC, tem-se como assente a seguinte matéria de facto que foi considerada provada pela 1ª instância:
1. O Autor é sócio gerente da primeira Ré, sociedade por quotas, cujo objecto social consiste na actividade de construção de prédios para venda e revenda dos adquiridos para esse fim e projectos – alínea A) dos factos assentes.
2. Além do autor são sócios gerentes da 1ª Ré, E.......... e F.......... – al. B)
3. Para vincular a sociedade, 1ª Ré, é necessária a intervenção de dois gerentes – al. C).
4. Em 11-09-2002, encontrava-se registada a favor da 1ª Ré a aquisição do prédio urbano composto de um pavimento, destinado a habitação, dependência e quintal, sito no .........., na Rua .........., n.º ..., freguesia e concelho da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º 925 e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º 243 – al. D).
5. O referido prédio havia sido adquirido pela 1ª Ré em 29 de Maio de 2000 a G.........., pelo preço de Esc. 30.500.000$00 (€ 152.133,35) – al. E).
6. Em 2 de Outubro de 2002 o sócio E.........., outorgou na qualidade de gerente e procurador do sócio gerente F.........., ambos em representação da 1ª Ré, a escritura de compra e venda junta a fls. 46 e 47, mediante a qual, a 2ª Ré adquiriu à 1ª Ré, pelo preço de € 150.000,00 (Esc. 30.000.000$00), o prédio identificado em D) – al. F).
7. O referido F.......... é o único sócio da 2ª Ré – al. G)
8. Em 21 de Maio de 2001, entre o Autor e a 1ª Ré foi celebrado o contrato junto aos autos a fls. 49 a 52, mediante o qual a 1ª Ré prometeu vender e o Autor comprar a esta, o apartamento do tipo T4, sito na Rua .........., n.º .., 4º andar direito e lugar de garagem duplo, área fechada e arrumos, pelo preço de Esc. 35.000.000$00 (€ 174.579,26), nos demais termos e condições que aqui se dão por integralmente reproduzidos – al. H)
9. Na mesma data, entre a 1ª Ré e F.........., foi celebrado outro contrato promessa, junto aos autos a fls. 53 a 56, mediante o qual aquela prometeu vender a este o prédio referido em D) pelo preço de Esc. 30.000.000$00 (€ 152.133,35), nos demais termos e condições que aqui se dão por integralmente reproduzidas – al. H).
10. O Autor é filho e cunhado dos sócios da 1ª Ré, E.......... e F.........., respectivamente.
11. Em meados de 2001 o sócio da 1ª Ré, F.........., acordou com os restantes sócios em ceder a respectiva quota em termos e condições que não foram apurados – resp. ques. 1º.
12. O Autor só teve conhecimento da outorga da escritura referida em 6. no segundo semestre do ano de 2002 – resp. ques. 10º
13- A 2ª Ré construiu um edifício num prédio por ela adquirido – resp. ques. 12º
14. O prédio identificado em D) e adquirido pela 2ª Ré, conforme o referido em F), situa-se nas traseiras e não tem frente para a rua .......... – resp. ques. 17º
15. No dia 29-05-00, por escritura pública de compra e venda, H.......... e mulher, declararam vender o prédio identificado em D) pelo preço de 30.500.000$00, e a 1ª Ré, representada pelos sócios gerentes E.......... e F.........., declarou comprar aquele imóvel por aquele preço.

2. De direito
Em face das conclusões das apelantes que, como é sabido delimitam o objecto do recurso, as questões a decidir consistem, no essencial, em saber se o contrato-promessa de compra e venda, assinado por todos os sócios, configura uma deliberação por escrito, de consentimento da sociedade vendedora à impugnada compra e venda e, na afirmativa, se esta deve ser considerada válida e eficaz em relação à sociedade.
Vejamos:
Como se refere na sentença recorrida, a impugnada compra e venda configura uma situação de negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, na medida em que o sócio F.......... interveio simultaneamente como representante das duas Rés, vendedora e compradora, sendo esta uma sociedade unipessoal da qual é o único sócio e gerente.
Em face do disposto nos artigos 397º, n.º 2 e 251º n.º 1, al. g) do CSC e 261º do Código Civil, quando o gerente de uma sociedade por quotas queira celebrar consigo qualquer contrato, terá de obter previamente uma deliberação da sociedade que representa para celebrar tal negócio. Consentimento que tem de ser dado por deliberação dos sócios, na qual o sócio interessado não pode votar nem por si, nem por representante (citado artigo 251º, al. g), do CSC).
Considerando que não existiu a necessária deliberação social previamente à celebrada compra e venda, a sentença recorrida concluiu que a vontade formada e declarada pelos sócios gerentes da 1ª Ré C.........., Lda em vender o imóvel não pode ser imputada à dita sociedade, o que acarretaria a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre as duas Rés por não poder produzir os efeitos a que se dirigia.
Discorda a apelante deste entendimento, não porque não considere necessária a deliberação dos sócios, mas sim porque entende que tendo sido celebrado um contrato-promessa de compra e venda subscrito por todos os sócios, deve entender-se que existiu deliberação por escrito.
É certo que ao contrário do que se afirma na sentença recorrida, resulta do documento junto com as alegações do recurso que o contrato-promessa de compra e venda foi efectivamente assinado pelos três sócios da 1ª Ré.
Mas daí até poder concluir-se que houve deliberação por escrito a autorizar a prometida venda vai uma grande distância.
Como bem referem as apelantes, os sócios de qualquer tipo de sociedade comercial podem tomar deliberações, tanto em assembleia geral (regularmente convocada e reunida ou, estando presentes todos os sócios, mesmo sem essas formalidades prévias), como deliberações unânimes por escrito (n.º1 do artigo 54º do Código das Sociedades). Podendo a deliberação unânime por escrito constar de um documento avulso que em regra será um escrito particular (cf. artigo 63º n.º 1, do CSC).
A deliberação unânime por escrito é portanto uma forma admitida pela lei de todos os sócios deliberarem sobre assuntos respeitantes à sociedade sem se reunirem em assembleia.
Mas ao contrário do que defendem as apelantes, só por si, a assinatura do contrato-promessa de compra e venda pelos três sócios da 1ª Ré não constitui uma deliberação social.
A deliberação unânime por escrito é uma forma de todos os sócios deliberarem sobre assuntos respeitantes à sociedade sem se reunirem em assembleia.
Mas, para existir deliberação unânime por escrito, tem de haver e tem de ser manifestada no documento a vontade de proferir deliberação em determinado sentido (v. Ac. do STJ de 16-03-99, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, p. 161).
Ora, lido o contrato-promessa de compra e venda, em parte alguma do mesmo se retira a manifestação de vontade dos sócios de deliberar e muito menos de deliberar no sentido de dar o consentimento da sociedade ao negócio do sócio gerente F.......... consigo mesmo.
Mas com o devido respeito, a celebração do contrato de compra e venda, sem a necessária prévia deliberação dos sócios, não acarreta a declarada nulidade.
No âmbito das sociedades anónimas, são nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar (artigo 397º n.º 2, do CSC).
Porém, nas sociedades por quotas, não existe disposição semelhante, nem aquela pode ser considerada aplicável por não existir conselho de administração.
A consequência da celebração pelo gerente, sem prévio consentimento por deliberação dos sócios, de contrato entre a sociedade e o próprio gerente, directamente ou por pessoa interposta, decorre, com as necessárias adaptações, do princípio geral estabelecido no artigo 261º do Código Civil.
Dispõe a citada disposição legal que “È anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração…”.
Disposição que não pode deixar de aplicar-se à representação da sociedade pelo gerente quando este queira consigo celebrar qualquer contrato e não tenha previamente obtido o consentimento da sociedade por deliberação dos sócios.
O facto do Autor ter outorgado o invocado contrato-promessa em nada impede a impugnação da posterior compra e venda, em cuja escritura não participou, nem ao contrário do que sustentam as apelantes, ocorre o invocado abuso de direito, não integrando os factos assentes a previsão do artigo 334º do Código Civil.
Termos em que improcedem as conclusões das apelantes, impondo-se a confirmação da decisão recorrida, mas com alteração da declaração de nulidade do contrato de compra e venda em causa para a de anulação do mesmo contrato.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida mas com alteração da declaração de nulidade do contrato de compra e venda em causa para a de anulação do mesmo contrato.
Custas pelas apelantes.
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Porto, 13 de Dezembro de 2005
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves