Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00041691 | ||
Relator: | MARIA ADELAIDE DOMINGOS | ||
Descritores: | DIVÓRCIO RELAÇÕES PATRIMONIAIS | ||
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Nº do Documento: | RP200810060853627 | ||
Data do Acordão: | 10/06/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 351 - FLS. 29. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I- Tendo a dissolução do casamento sido decretada por decisão proferida na sequência de um pedido de divórcio por mútuo consentimento, no qual não se discute a culpa dos cônjuges, por contraposição ao divórcio litigioso onde tal sucede, os efeitos patrimoniais do divórcio retroagem à data da propositura da acção ou do pedido de divórcio por mútuo consentimento. II- Esta regra funciona automaticamente, não carecendo de ser invocada pelos cônjuges para que o Tribunal a tenha em consideração. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3627/08-5 (Apelação) (Proc. n.º …….(06.9TBVCD) Acordam no Tribunal da Relação do Porto I – RELATÓRIO B…………… instaurou acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra C………….., alegando, no que aqui releva e em resumo, o seguinte: Foi casado com a ré, de quem se divorciou, em Maio de 2002, tendo a separação de facto ocorrido em Junho de 2001. Através de inventário, em Novembro de 2004 procedeu-se à partilha dos bens comuns. Porém, desde a separação de facto até à partilha, suportou integralmente pagamentos relativos a várias despesas resultantes de dívidas comuns do casal, devendo ser reembolsado em metade pela ré, uma vez que no processo de inventário os valores pagos foram arrolados como passivo, mas por falta de acordo quanto à sua existência e reconhecimento, a apreciação da questão foi relegada para os meios comuns. Concluiu pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe 50% das seguintes quantias: - € 1.0374,63 correspondente às prestações mensais do empréstimo para aquisição da casa de morada de família; - € 1.452,10 pelo seguro de vida associado ao crédito à habitação; - € 546,82 pelo seguro multi-risco associado ao mesmo crédito; - € 900,00 relativo a despesas da administração do condomínio da referida habitação; - € 8.636,20 referente às prestações mensais do empréstimo para aquisição de um veículo automóvel; - € 474,44 relativo ao pagamento do respectivo seguro de responsabilidade civil; - € 91,43 relativo ao imposto sobre veículos automóveis; - € 23,34 pela inspecção obrigatória do mesmo veículo, totalizando o pedido a quantia de €11.313,18, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento. Na contestação, a ré defendeu que todas as questões suscitadas nesta acção foram resolvidas no processo de inventário, negando qualquer responsabilidade pelo pagamento das quantias peticionadas, tanto mais que, após a separação, foi o autor quem tirou todo o proveito dos bens comuns, ao contrário da ré que teve de arrendar uma casa, despendendo com a renda e despesas domésticas o valor de € 200,00 mensais. Na resposta, o autor manteve, no essencial, o defendido na petição inicial. Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 8.004,88, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo pagamento. O valor da condenação corresponde a metade do valor das quantias peticionadas relativas às prestações do empréstimo para aquisição da casa de morada de família, aquisição do veículo e pagamento dos prémios de seguro de vida e multi-risco associados à habitação. Porém, ponderando que a ré tinha tido despesas com a aquisição de uma habitação e com a utilização de meios de transporte, recorrendo à equidade, determinou que às quantias devidas pelo empréstimo para aquisição da casa de morada de família e aquisição do veículo automóvel fossem descontados, respectivamente, €1.500,00 e € 1.000,00. No mais, absolveu a ré do pedido. Inconformada apelou a ré, formulando, no essencial, as seguintes conclusões: 1- Não existe direito à restituição das quantias objecto da condenação. 2- Não houve qualquer enriquecimento para o autor por ter pago a totalidade das prestações do crédito à habitação da casa de morada de família porque era ele quem a habitava. 3- Também não sofreu qualquer empobrecimento porque não teve de suportar qualquer outra despesa com a habitação, que sempre usufruiu, já que a partir da data do divórcio, 28 de Maio de 2002, foi-lhe atribuída a casa de morada de família e acabou por lhe ser adjudicada nos autos de inventário. 4- A ré após a separação, em Junho de 2001, suportou o pagamento da renda da casa onde passou a viver, gastando € 200,00 mensais. Assim, entre Junho de 2001 e Novembro de 2004 dispendeu a quantia de € 8.000,00. 5- Por isso, o desconto da quantia de € 1.500,00 é insuficiente face ao valor suportado pela ré. O valor a descontar deve ser o totalmente gasto ou, pelo menos, metade, não se justificando o recurso a juízos de equidade para fixação do mesmo. 6- A ré desde a data da separação de facto, também deixou de usufruir a utilização do veículo automóvel pertença do casal, usando-o o autor em exclusivo, pelo que teve de se socorrer de outros meios de transporte. 7- O valor a descontar, atendendo à equidade, deveria corresponder a metade das despesas suportadas pela ré. 8- Por não ter existido empobrecimento do autor, nem enriquecimento da ré, nem se verificar falta de causa justificativa, foram violadas as disposições dos artigos 473.º e 566.º do Código Civil, devendo ser revogada a sentença recorrida. Nas contra-alegações o autor, por uma lado, defendeu haver enriquecimento para a ré porque não teve de suportar encargos a que estava obrigada, beneficiando da valorização do bem e, por outro lado, o seu empobrecimento porque teve de pagar à instituição bancária valores que diminuíram o passivo comum e determinaram o pagamento de um valor superior nas tornas que teve de pagar à ré. Apesar disso, pugnou pela manutenção da decisão. II- FUNDAMENTAÇÃO 1. Objecto do Recurso: Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 3 do CPC, as questões essenciais a decidir são as seguintes: a)- Co-responsabilização da ré pelas dívidas contraídas pelo casal e respectivo quantum; b)- Dedução das despesas suportadas pela ré, após a separação de facto, relacionadas com a sua habitação e utilização de meios de transporte. 2. De facto: Considera-se assente a seguinte factualidade: 1. Autor e ré foram casados entre si, tendo-se se separado de facto em Junho de 2001. 2. Deram entrada do processo de divórcio por mútuo consentimento em 6 de Maio de 2002 na Conservatória do Registo Civil de Vila do Conde, tendo sido o divórcio decretado por decisão do Ex.mo Sr. Conservador em 28/5/2002, com transito no mesmo dia. 3. No âmbito desse processo de divórcio por mútuo consentimento, autor e ré acordaram que a casa de morada de família ficasse atribuída ao autor (documento de fls. 138 e ss). 4. Na data em que se separaram, Junho de 2001, autor e ré tinham em comum débitos juntos das seguintes entidades: - D…………., S.A.: débito contraído para aquisição da habitação do casal; - E…………..: débito contraído para aquisição do veículo automóvel do casal. 5. Entre Junho de 2001 e Novembro de 2004, data em que foi realizada a conferência de interessado no âmbito do inventário instaurado para partilha dos bens comuns, e onde ocorreu acordo de composição de quinhões, o autor pagou ao D…………, S.A. a quantia de €10.374,63 correspondente às prestações que se venceram naquele período de tempo. 6. E pagou à financeira E…………, no mesmo período de tempo, a quantia de €8.636,20. 7. Durante aqueles 41 meses, o autor pagou ainda: - €900,00 a título de quotas à administração do condomínio da fracção “A” do prédio sito na ……….., n.º …., em ……, Vila do Conde, propriedade de ambos; - €474,44 pelo seguro automóvel de responsabilidade civil relativo ao veículo de marca Ford, modelo Escort, com a matrícula ..-..-JT, propriedade de ambos; - €1.452,10 pelo seguro vida, associado ao crédito à habitação, supra referido; - €546,82 pelo seguro multi-riscos associado ao crédito à habitação, supra referido; - €127,39 pelo seguro do motociclo de matrícula 2VCD-..-.., propriedade de ambos; - €91,43 pelo imposto sobre veículos automóveis relativo ao automóvel supra referido; - €23,34 relativa à inspecção obrigatória realizada sobre o mesmo veículo automóvel. 8. Toda as quantias referidas em 4., 5. e 6. foram relacionadas no inventário que correu termos pelo 3º Juízo Cível deste tribunal para a partilha de bens comuns, sob o n.º ………./03.0 (documento de fls. 65 e ss) 9. No âmbito da respectiva conferência de interessados a ré declarou não aprovar o passivo relacionado e por despacho judicial foram as partes relegadas para os meios comuns (documento de fls. 65 e ss) 10. No âmbito dessa mesma conferência, por acordo das partes o veículo automóvel, o motociclo e o imóvel supra referidos foram adjudicados ao autor, bem como o passivo ainda existente junto do D………….., S.A., decorrente da aquisição do imóvel (documento de fls. 65 e ss). 11. Para apuramento das tornas declararam as partes que esse passivo ainda existente nessa data seria abatido ao valor do imóvel (documento de fls. 65 e ss). 12. No seguimento desse acordo de composição de quinhões o autor pagou à ré a quantia de €10.000,00 a título de tornas (documento de fls. 65 e ss). 13. Desde Junho de 2001 que a ré não mais entrou no imóvel supra referido e que constituía a casa de morada de família. 14. Após a separação do casal foi o autor quem sempre conduziu e utilizou o veículo automóvel. 15. Desde que ocorreu a separação do casal a ré sempre viveu em casas arrendadas, pagando em média uma renda mensal de €200,00. 2. De Direito: A primeira questão que importa analisar é a da eventual co-responsabilização da ré pelas dívidas contraídas pelo casal e respectivo quantum. Resulta dos factos provados que autor e ré foram casados entre si, separam-se de facto em Junho de 2001, tendo o divórcio por mútuo consentimento sido decretado por decisão de 6 de Maio de 2002, transitada em julgado nesse mesmo dia. Em Novembro de 2004, em processo de inventário, procederam à partilha dos bens que tinham sido do casal. Decorre do artigo 1688.º do Código Civil (CC) que as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento. Consequentemente, por força da eficácia constitutiva da sentença de divórcio, os efeitos da dissolução do casamento produzem-se com o trânsito em julgado da respectiva sentença, aliás conforme prescreve a primeira parte do n.º 1 do artigo 1789.º do CC. Porém, a referida eficácia constitutiva sofre uma excepção no que diz respeito às relações patrimoniais entre os cônjuges, uma vez que os efeitos patrimoniais do divórcio retroagem à data da propositura da acção de divórcio, conforme expressamente prescreve a segunda parte do referido n.º 1 do artigo 1789.º. E, nos casos de divórcio litigioso, caso os cônjuges o requeiram, e quando a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante de um deles, podem esses efeitos patrimoniais retroagir à data da cessação da coabitação fixada na sentença (n.º 2 do artigo 1789.º). Do confronto entre o disposto no n.º 1 e n.º 2 do artigo 1789.º resulta, então, que tendo a dissolução do casamento sido decretada por decisão proferida na sequência de um pedido de divórcio por mútuo consentimento, no qual não se discute a culpa dos cônjuges, por contraposição ao divórcio litigioso onde tal sucede, os efeitos patrimoniais do divórcio retroagem à data da propositura da acção ou do pedido de divórcio por mútuo consentimento.[1] Em relação ao divórcio por mútuo consentimento, esta regra funciona automaticamente, não carecendo de ser invocada pelos cônjuges para que o juiz a tenha em consideração.[2] Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, pode-se proceder à partilha dos bens comuns, por acordo ou em processo de inventário. No que concerne às dívidas comuns dos cônjuges entre si ou em relação a terceiros, decorre dos artigos 1689.º e 1697.º, n.º 1 do CC que as mesmas apenas podem ser pagas no momento da partilha, procedendo-se, se necessário a um encontro de responsabilidade. Na partilha procede-se à conferência de dívidas, mas também é o momento para os cônjuges exigirem reciprocamente o pagamento das dívidas entre si. Assim sucede quando, por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, tenham respondido bens de um só deles, o que acontecerá quando a dívida for solidária (artigo 1695.º, n.º 1) e um dos cônjuges pagou voluntariamente mais do que outro. Nesses casos, o solvente torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer (artigo 1697.º, n.º 1). Na partilha exigirá, se quiser, esse pagamento. Realizada a partilha, de acordo com as regras próprias decorrentes do regime de bens do casal, cada um dos ex-cônjuges é considerado titular dos bens que lhe couberam na mesma, com efeitos reportados à data da propositura da acção de divórcio, considerando, por um lado, que a partilha tem efeito meramente declarativo limitando-se a tornar certa a situação anterior[3] e, por outro lado, o regime do já mencionado n.º 1 do artigo 1789.º. Revertendo, agora, ao caso dos autos, o casamento do autor e da ré foi celebrado segundo o regime supletivo da comunhão de adquiridos, uma vez que consta do assento de casamento junto aos autos que não houve convenção antenupcial (artigo 1717.º). Consequentemente, por os bens em referência nos autos, terem sido adquiridos após o casamento do autor e da ré e não se ter provado factualidade susceptível de integrar a excepção legal, são bens comuns do casal (alínea a) e b) do artigo 1724.º, artigos 1722.º e 1723.º e 1726.º e seguintes). Correspondentemente são dívidas comuns do casal, da responsabilidade de ambos cônjuges, as dívidas contraídas, perante terceiros, durante a vigência do casamento, na proporção de metade para cada um deles (artigos 1691.º, alínea a) e 1730.º, n.º 1). Sendo assim, as quantias peticionadas pelo autor, por se reportarem ao pagamento das obrigações contraídas pelos cônjuges para aquisição de bens comuns, ou que resultaram dos normais encargos da sua fruição e utilização, são dívidas comuns que a ambos responsabilizam, na referida proporção. O facto do autor ter pago, após a separação de facto, a totalidade desses encargos não exonera a ré da sua responsabilidade. O autor limitou-se a exercer os poderes de administração dos bens comuns, poder esse que, embora cabendo aos dois cônjuges, pode ser exercido, segundo as circunstâncias, por cada um deles, sem prejuízo da eventual prestação de constas no momento próprio, caso a mesma seja exigida (alínea f) do n.º 2 do artigo 1678.º).[4] Não tendo a ré procedido ao pagamento das prestações e das quantias em referência nos autos após a separação de facto, altura em que as partes fizeram vidas e economias completamente distintas e autónomas, cessando de facto a “comunhão de vida” que caracteriza o casamento, por presunção judicial ou hominis, simples ou de exercício, partindo desse facto conhecido (base da presunção), podemos concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-nos das regras da experiência comum e das regras de probabilidade, que o autor fez esses pagamentos com dinheiro do seu bolso, ou seja, com dinheiro seu (artigos 349.º, 350.º do CC). [5] Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, aquele que cumpriu tornou-se devedor do outro pela que haja satisfeito além da parte que lhe competia (artigo 1697.º, n.º 1). Porém, esse crédito só é exigível no momento da partilha de bens do casal. Acontece que a ré, na partilha, não aprovou o passivo correspondente. Tendo as partes sido remetidas, por essa razão, para os meios comuns, a condenação no pagamento da parte que lhe cabe nessa responsabilidade, teria de ocorrer neste processo. Em conclusão, e face às regras jurídicas atrás referenciadas, os efeitos patrimoniais do divórcio por mútuo consentimento que decretou a dissolução do matrimónio das partes, reportam-se à data da propositura do pedido de divórcio, ou seja, 6 de Março de 2002 e não à data da separação de facto, Junho de 2002, por não se verificarem os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 1789.º do CC. Para além disso, e conforme se referiu, a titularidade dos bens comuns partilhados afere-se, igualmente, por essa data e não pela da partilha, como consequência do princípio da retroactividade da partilha à data da produção dos efeitos patrimoniais do divórcio. Por os bens em causa nos autos terem sido adquiridos pelos ex-cônjuges durante a constância do matrimónio, celebrado sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos, são considerados bens comuns. Consequentemente, todas as obrigações contraídas pelos cônjuges, perante terceiros, para pagamento desses bens, são dívidas comuns do casal, da co-responsabilidade de ambos, na proporção de metade para cada um deles (artigos 1717.º, 1724.º, 1691.º, n.º 1.º, alíneas a), e 1730.º, n.º 1 do CC). A ré é responsável, na proporção de metade, pelas dívidas comuns contraídas durante a pendência do casamento, mas essa responsabilidade situa-se entre a data da separação de facto e data da apresentação do pedido de divórcio, ou seja, entre Junho de 2001 e 6 de Março de 2001, sendo irrelevante, para este efeito, a data da partilha. A imputação desta responsabilidade à ré resulta directamente das regras próprias do direito matrimonial e não das regras do regime do enriquecimento sem causa, uma vez que o carácter residual deste instituto jurídico determina a sua não aplicabilidade sempre que haja outro meio jurídico que possibilite ao lesado outro meio de ser indemnizado (artigos 473.º e 474.º do CC). Por conseguinte, improcede a alegação da recorrente quando invoca a exoneração da sua responsabilidade em relação às dívidas objecto da condenação em primeira instância. Analisada a questão da co-responsabilidade da apelante, há que determinar o seu quantum. Em sede recursória apenas estão em causa os débitos relativos ao pagamento das prestações do empréstimo com a aquisição da casa de morada de família, com a aquisição do veículo automóvel e com o pagamento dos seguros de vida e multi-riscos. A ré foi condenada a pagar metade do valor das prestações correspondentes a 41 meses que, como já vimos, abrangem um período superior ao da sua responsabilidade. De facto, apenas é responsável pelo pagamento de metade do valor das prestações referente a 11 meses (Junho de 2001 a Maio de 2002). Assim sendo, a ré é responsável pelo pagamento total de € 2. 818,38, assim obtidos: - € 1.391,72 relativo às prestações do empréstimo para aquisição da casa de morada de família [€10.374,63 : 41m x 11m : 2]; - € 1.158,51 relativo às prestações do empréstimo para aquisição do veículo [€8.636,20 : 41m : 11m x 2]; - € 194,79 relativo ao pagamento dos prémios do seguro de vida [€1.452,10 : 41m x 11m : 2]. - € 73,36 relativo ao pagamento dos prémios do seguro de vida [€546,82 : 41m x 11m : 2]. b)- Dedução das despesas suportadas pela apelante, após a separação de facto, relacionadas com a sua habitação e utilização de meios de transporte. Insurge-se a apelante contra a sentença recorrida por considerar que os montantes a descontar deviam ser superiores, fundamentando o seu raciocínio nas razões sintetizadas nas conclusões das alegações. Pois bem, o que está em causa, antes de mais é determinar qual o fundamento jurídico com base no qual se ordenou o referido desconto. A sentença fundamentou-se na equidade. As partes invocam as regras do enriquecimento sem causa, embora cada uma reivindique para si o empobrecimento e impute ao outro o enriquecimento. A análise desta questão tem de passar, em primeiro lugar, por uma explicitação de ordem processual. A ré não formulou qualquer pedido contra o autor pedindo a sua condenação no pagamento dos prejuízos que sofreu por ter arrendado uma casa ou por não ter podido utilizar o veículo. A ré, para fundamentar que nada devia ao autor, invocou essas despesas, mas para se desresponsabilizar do pagamento das quantias peticionadas. Consequentemente, vigorando no processo civil o princípio do dispositivo e do pedido, e existindo regras processuais próprias para a dedução de pedidos do réu contra o autor, e não tendo as mesmas sido accionadas, os poderes do tribunal estavam circunscritos à factualidade alegada e provada e aos meios processuais accionados pela parte. Disto resulta, que os descontos ordenados na sentença não correspondem a qualquer pedido da parte, o que só por si, determinaria a insubsistência da decisão. Não obstante esta conclusão, e ressalvando entendimento diferente, sempre se dirá que a mesma não poderá subsistir também por razões substantivas. A redução do valor da condenação sedimentou-se apenas nas regras da equidade. No nosso ordenamento jurídico a equidade pode ser uma fonte mediata de direito apta a resolver casos singulares. Como refere Oliveira Ascensão “A equidade é tipicamente um critério formal de decisão de casos singulares, pois não se eleva nem necessita elevar-se à formulação de regras. A equidade dita soluções para casos, atendendo às peculiares características destes”.[6] Entendida com esta latitude, poderia resolver todos os casos, substituindo todos os critérios normativos, com graves repercussões na segurança jurídica e na justiça. Por isso, as ordens jurídicas impõem critérios restritivos. No nosso ordenamento jurídico, e conforme resulta do artigo 4.º do CC, a equidade só é critério utilizável nas situações ali referidas: quando a própria lei assim o estabelecer, por acordo das partes nas relações jurídicas disponíveis e quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à clausula compromissória. A lei prevê, consequentemente, em várias disposições legais, a possibilidade dos tribunais julgarem segundo juízos equitativos, nomeadamente quanto à determinação do quantum dos danos indemnizáveis (artigo 566.º, n.º 3 do CC), pressupondo que a aferição da responsabilidade decorre do preenchimentos dos requisitos da obrigação de indemnizar (artigos 483.º e 562.º do CC). Não era esta a situação dos autos. A responsabilidade da ré estava quantificada. Neste caso, o recurso à equidade não visou ultrapassar a indeterminação do quantum indemnizatório, foi utilizada como critério redutor do valor já quantificado, e nessa medida, não assentou em qualquer norma jurídica que autorizasse o uso de tal critério decisório. Consequentemente, também por esta razão, a decisão, nessa parte, não pode ser confirmada. Finalmente, e em relação ao enriquecimento sem causa, instituto jurídico que as partes invocam para defenderem teses opostas, já concluímos que a obrigação de restituir os valores acima computados resulta da aplicação das regras jurídicas reguladoras dos efeitos do divórcio, do regime de bens, das regras sobre dívidas dos cônjuges e sobre a partilha. Importa, agora, analisar da aplicabilidade do regime do enriquecimento sem causa em relação aos descontos ordenados pela sentença recorrida. O artigo 473.º do CC enuncia o princípio geral do enriquecimento sem causa e os seus requisitos. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (n.º 1). A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou (n.º 2). Assim, são elementos do enriquecimento sem causa, a verificação simultânea dos seguintes requisitos: existência de um enriquecimento verificado à custa de outrem; o correspondente empobrecimento de outrem; a inexistência de causa justificativa desse enriquecimento e ausência de outro meio jurídico para se obter a indemnização devida. Em regra, só existe enriquecimento sem causa quando ocorra uma deslocação patrimonial, ou seja, o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro, decorrente do mesmo facto, que gera uma vantagem patrimonial, que se pode traduzir no aumento do activo ou na poupança de uma despesa. O empobrecimento consiste na situação inversa e no correspondente sacrifício de ordem patrimonial. A ausência de causa justificativa para a deslocação patrimonial traduz-se na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios, legitime o enriquecimento ou o empobrecimento. A natureza subsidiária da obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa determina, conforme prescreve o artigo 474.º do CC, que não há lugar à restituição por virtude dele quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de indemnização ou de restituição, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento. A razão desta subsidiariedade reside na necessidade de limitar os pressupostos amplos e genéricos consignados no artigo 473.º, sob pena de se “…efectuar uma aplicação indiscriminada desta cláusula geral, colocando em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo”. [7] No caso em apreço, e na perspectiva da ré, as despesas que teve com o arrendamento da casa onde passou a habitar e as despesas que presumivelmente teve com a utilização de outro meio de transporte que não o veículo do casal, determinaram o correspondente empobrecimento do seu património, podendo dizer-se que estava preenchido o requisito “empobrecimento”. Mas já o mesmo não acontece em relação ao requisito “enriquecimento”, uma vez que não ocorreu, em consequência desse empobrecimento, o correlativo enriquecimento do património do autor, na medida em que o mesmo continuou a habitar e a utilizar os bens que também lhe pertenciam e sobre os quais tinham direito de uso e fruição, ainda que não em exclusivo. Para além disso, o autor foi suportando, na parte que lhe cabia e na parte que cabia à ré, os custos e os encargos inerentes às obrigações assumidas por ambos, diminuindo o passivo do casal, o que se veio a reflectir no valor do activo relacionado no inventário, na composição dos respectivos quinhões e nas tornas que a ré recebeu. Consequentemente, e concluindo, também não era à luz do instituto do enriquecimento sem causa que se poderia ordenar a redução dos valores devidos pela ré ao autor. O recorrente, porque só parcialmente obteve vencimento, deve suportar as custas na proporção do decaimento (artigo 446.º, n.º1 e 2 do CPC). III- DECISÃO Nos termos e pelas razões expostas, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, condenado a ré no pagamento da quantia de € 2.818,38 (Dois mil oitocentos e dezoito euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora desde 12.09.2006 até efectivo pagamento, à taxa legal de 4%. Custas pelo recorrente na proporção do decaimento. Porto, 06 de Outubro de 2008 Maria Adelaide de Jesus Domingos Maria Isoleta de Almeida Costa Abílio Sá Gonçalves Costa ____________ [1] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2008, página 670. [2] Ac. RL, de 02.06.2007, processo 3839/2006-7, www.dgsi.pt. [3] Pereira Coelho, “Direito das Sucessões”, 2.ª ed., 1968, página 247 e seguintes. [4] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, ob. cit., página 372, explicita que a alínea f) do n.º 2 do artigo 1678.º, apesar de se reportar apenas aos bens próprios do outro cônjuge, por maioria de razão também se aplica à administração exclusiva dos bens comuns. [5] Neste sentido, veja-se o acórdão supra. [6] Oliveira Ascensão, “O Direito. Introdução e Teoria Geral”, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª edição, página191. [7] Luís Menezes Leitão, “O enriquecimento sem causa no Código Civil de 1966”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Coimbra Editora, Vol. III, 2007, página 16. |