Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6557/09.3TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201111036557/09.3TBVNG.P1
Data do Acordão: 11/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Compete a quem se arroga do direito à restituição o ónus da alegação e prova de todos os factos que constituem os pressupostos do enriquecimento sem causa, mesmo do facto negativo da ausência de causa justificativa do enriquecimento.
II - Uma vez declarado não provado este facto, a sua alteração só pode ocorrer mediante a correspondente impugnação da decisão de facto, invocando erro de julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 6557/09.3TBVNG.P1 – 3ª Secção (apelação)
Varas Mistas de Vila Nova de Gaia

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Pinto de Almeida
Adj. Desemb. Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, residente na …, .., casa ., …., intentou acção declarativa, com processo sumário, contra C…, residente na Rua …, n.º …, R/C Direito Frente, ….-… Vila Nova de Gaia, alegando, aqui sinopticamente, que o R., verbalmente, lhe prometeu vender o direito a metade de determinado apartamento de que era comproprietário da outra metade, depois de adquirir aquela metade à então comproprietária, a sua ex-mulher.
A título de antecipação do preço do direito prometido, a A. entregou ao R. a quantia de € 21.000,00, por crédito numa conta bancária dele e de que o mesmo se serviu para adquirir a metade do direito de propriedade, tornando-se, assim, proprietário exclusivo da fracção, registando-o a seu favor.
Desde aquela aquisição que o R. não cumpriu a promessa, nem demonstrou em nenhum momento intenção de o fazer, não obstante as diversas interpelações da Autora para o efeito.
A quantia entregue ao R. tem carácter de sinal e a promessa é nula por vício de forma, devendo o R. restituir à A. a quantia que, dela, recebeu, acrescida de juros desde a citação.
Caso se entenda que há abuso de direito da A. na invocação da nulidade, então o R. deverá ser condenado a restituir o sinal em dobro (€ 42.000,00) em razão do seu incumprimento injustificado.
De novo, subsidiariamente, sempre lhe assiste o direito à restituição da quantia que entregou ao R. com base no instituto do enriquecimento sem causa, já que há um enriquecimento dele sem causa justificativa, com o consequente empobrecimento da A.
Terminou com a dedução dos seguintes pedidos:
«Deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, por via dela:
A) Ser o contrato-promessa declarado nulo por vício de forma e consequentemente ser o Réu condenado a restituir à Autora o montante de Eur. 21.000,00 (vinte e um mil euros) a título de restituição, a que acrescerão juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
B) Se se entender não poder a Autora invocar a nulidade do contrato-promessa por vício de forma por tal constituir abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, ser o Réu condenado a pagar à Autora o montante de Eur. 42.000,00 (quarenta e dois mil euros) a título de restituição em dobro do sinal.
Sem Prescindir, à cautela
C) Subsidiariamente, devolver à Autora a quantia de Eur. 21.000,00 (vinte e um mil euros), a título de enriquecimento sem causa, acrescido de juros à taxa legal a partir da data em que o Réu teve conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento até à data de devolução efectiva e integral da referida quantia.» (sic)

Citado, o R. contestou a acção impugnou parcialmente os factos alegados na petição inicial, indicando, por seu lado, que viveu em união de facto com a A., no apartamento visado, tendo nascido um filho desse relacionamento. Confirma a existência da indicada transferência bancária, mas a título de doação por entender que essa era uma forma de demonstrar ao R. todo amor que por ele sentia. E foi motivada pelo ciúme doentio e pela vingança que, depois da separação, a A. intentou a acção, com invenção do seu alegado fundamento, nunca antes lhe tendo manifestado tal pretensão.
Por outro lado, o contestante utilizou o dinheiro doado para fazer face a despesas normais correntes do agregado familiar, tais como vestuário, calçado, alimentação, água, luz, consultas médicas e medicamentosas.
Conclui que a acção deve improceder, com a absolvição do R. dos pedidos.
A A. apresentou articulado de réplica opondo-se à matéria de excepção invocada pelo demandado, que considerou falsa.
Por despacho, a Ex.ma Juiz fixou à acção o valor de € 42.000,00, corrigindo a forma de processo da sumária para a forma ordinária e remeteu os autos para as Varas Mistas de Vila Nova de Gaia que aceitaram a competência.
Realizada audiência preliminar, nela foi proferido despacho saneador tabelar, seguido de factos assentes e de base instrutória, de que não houve reclamação.
Instruído o processo e concluída a discussão da causa, com respostas fundamentadas à matéria da base instrutória, foi proferida sentença que culminou com o seguinte segmento decisório:
«Pelo exposto, julgo a presente acção procedente e absolvo o Réu do pedido formulado.
Custas pela Autora, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.»

Inconformada, a A. recorreu, por apelação, em matéria de Direito, resumindo e concluindo o recurso nos seguintes termos, ipsis verbis:

«I - Resultaram provadas nos autos transferências, no valor de 21.000,00€, da conta da a. para a conta do R..
II - Sem que tenha havido causa para tais transferências.
III – A A. demonstrou, na medida do que lhe competia e do que era exigível – tendo e, conta que se trata de prova de facto negativo – a ausência de causa.
IV - Sendo que nãos e provou, bem, assim, a causa da deslocação patrimonial invocada pelo R. também não se provou.
V - O que só por si deveria ter sido bastante para, como se lê na douta decisão recorrida, “convencer da falta de causa” o Tribunal a quo e impunha fosse procedente o pedido subsidiariamente formulado, de indemnização com base no instituto do enriquecimento sem causa.
VI – O R., tendo sido oportunidade de provar o facto positivo – a suposta causa do enriquecimento – não logrou fazê-lo!
VII - Sendo que tal facto – a prova da causa – era verdadeiramente impeditivo do direito invocado, pelo que sempre onerar o R. e não a Autora.
VIII – A douta sentença recorrida fez, como tal, errada aplicação das regras do ónus da prova e do instituto do enriquecimentos em causa.»
Pretende, assim, que a decisão recorrida seja anulada e “substituída por outra que julgue improcedente[1] o enriquecimento sem causa e condene o R. ao pagamento da indemnização peticionada”.

O R produziu contra-alegações, com as seguintes conclusões, ipsis verbis:
«1. A Recorrente limita-se a apresentar argumentos que, supostamente, conduziriam a “uma errada aplicação das regras do ónus da prova e do instituto do enriquecimento sem causa.”
2. Esta deveria indicar nas suas conclusões “as normas jurídicas violadas e o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas”.
2. Ou, então, deveria mencionar, “os concretos pontos que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
3. Uma vez que não logrou fazê-lo nas suas conclusões, deve o recurso interposto pela recorrente ser rejeitado por violação do disposto nos artigos 685º-A e 685º-B, ambos do C.P.C.
4. O objecto da acção e que competia à Recorrente provar consistia no facto de a transferência de 21.000,00€ ter sido feita em virtude da celebração de um contrato promessa celebrado entre recorrente e recorrido.
Ou, que,
5. A recorrente devia, subsidiariamente, ser indemnizada com base no instituto do enriquecimento sem causa.
6. Assim, nos termos disposto no artigo 342º do C.C “àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
7. Em conformidade, tal ónus de prova recaía sobre a aqui recorrente e nunca sobre o recorrido.
8. Assim, considerando a matéria dada como provada a decisão não podia ser outra, sob pena, aí sim, de haver contradição entre os factos dados como provados e a decisão final.».
Visa, deste modo, a improcedência da apelação e a confirmação da sentença recorrida.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As questões a decidir --- excepção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A., acima transcritas (cf. art.ºs 660º, nº 2, 684º e 685º-A, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-lei nº 30372007, de 24 de Agosto).
A A. apenas discute a subsunção jurídica levada a efeito na 1ª instância, considerando verificados, no caso, os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, no sentido de que cumpriria ao R. demonstrar o facto positivo da causa justificativa para a transferência bancária efectuada da A. recorrente para o R. recorrido.
Importa averiguar se é assim.
*
*
III.
São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal a quo:
1. Sob o nº 00208/070685-D da 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, freguesia de …, encontra-se descrita a fracção autónoma designada pela letra “D”, composta por rés-do-chão direito frente, com área coberta de 73 m2, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sita em Rua …, n.º …, R/C, direito, frente, ….-…, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia (al. A) da MFA).
2. Sobre o referido prédio incidem os seguintes registos de propriedade:
- G 1 – ap. 13/121187 – aquisição provisória por natureza, posteriormente convertida em definitiva, a favor de C… e de D…, casados no regime de comunhão de adquiridos, em comum e partes iguais, por compra., - G 2 – ap. 34/090806 – aquisição de ½ a favor de C…, divorciado, por compra. (al. B) da MFA).
3. Sobre o mesmo prédio incide hipoteca a favor do E…, por empréstimo, para garantia do capital de € 20.000,00 e do montante máximo de € 26.895,00, registado pela ap. 61/250906 (al. C) da MFA).
4. A Autora, em 11 de Abril de 2006, transferiu para a conta de que o Réu era titular no F… com o nº …………, a quantia de € 21 000,00 (al. D) da MFA).
5. Em 2005, Autora e Réu passaram a viver juntos em situação análogo à dos cônjuges, na fracção habitacional referida em A) (al. E) da MFA).
6. Tal relacionamento prolongou-se até Agosto de 2008 e dele nasceu um filho (al. F) da MFA).

IV.
Vejamos agora se os factos provados são de molde a manter a decisão final recorrida ou se deve vingar o recurso que sobre ela recaiu.
Depois de se referir aos requisitos do instituto jurídico, a M.ma Juiz deixou expresso que “tendo a Autora estruturado o segundo pedido subsidiário que formula com base no enriquecimento sem causa, competia-lhe alegar e provar os respectivos pressupostos designadamente a ausência de causa justificativa para o enriquecimento (art.° 342°, nº l, do Código Civil[2]). E acrescenta que “… segundo as regras do ónus da prova, não basta que se não prove a existência de uma causa de atribuição; é necessário convencer da falta de causa”.
Já a recorrente defende que, por se tratar da prova de um facto negativo (a ausência de causa do enriquecimento), de demonstração substancialmente difícil, caberia ao R. fazer a prova da suposta causa do enriquecimento, ou seja, do facto “verdadeiramente impeditivo do direito invocado”. Ainda na sua perspectiva, a A. demonstrou, na medida que lhe competia e lhe era exigível, a ausência de causa.
Na parte colocada em crise no recurso --- e a que estamos limitados ---, o fundamento da acção residirá no enriquecimento sem causa, instituto que está previsto nos art.ºs 473º e seg.s[3].
De acordo com o nº 1 daquele normativo «aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou». E o nº 2 determina que «a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
É necessário que haja um enriquecimento, que pode consistir na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, através do aumento do activo patrimonial, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária, ou ainda, havendo poupança de despesas.
A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa, porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.
O enriquecimento carece de causa justificativa porque, segundo a própria lei, deve pertencer a outra pessoa. E como referem Pires de Lima e A. Varela[4], «quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa». E, com vista a abranger todas as situações de enriquecimento injusto, referem ali ainda aqueles ilustres professores que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento. O enriquecimento não terá causa justificativa quando, segundo os princípios legais, não haja razão de ser para ele; quando, segundo o sistema jurídico, deve pertencer a outrem e não ao efectivo enriquecido. Acontecendo a falta de causa justificativa do enriquecimento quando não existe uma relação ou um facto que, à luz do direito, da correcta ordenação jurídica dos bens ou dos princípios aceites pelo ordenamento jurídico, legitime tal enriquecimento, por dever pertencer a outra pessoa, por se tratar de uma vantagem que estava reservada ao titular do direito.
A obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição. Normalmente, a vantagem patrimonial alcançada por um deles emerge do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. O valor que entra no património de um é o mesmo que sai do património do outro.

A obrigação de restituir não visa reparar o dano do lesado --- esse é o fim da responsabilidade civil ---, mas suprimir ou eliminar o enriquecimento de alguém à custa de outrem.
Embora sem interesse directo para o caso, damos apenas conta de que entendem alguns que para haver lugar à obrigação de restituir, é ainda necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição; que --- como referem ainda aqueles autores, na ob. cit., pág. 402 --- “não haja de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro acto jurídico”.
E mesmo que admitamos a doutrina mais moderna, no sentido de que a interconexão necessária ou indispensável entre o enriquecimento e o dano pode ser indirecta, podendo o desvio ser indirecto, ele não pode deixar de operar entre as duas esferas (do enriquecido e do empobrecido)[5].
Entrando propriamente no âmago da questão, é praticamente pacífico que o ónus da alegação e prova dos pressupostos do enriquecimento sem causa é de quem o invoca, designadamente quanto à “falta de causa justificativa” (cf. art.º 342º, nº 1). Não basta que não se prove a existência de causa justificativa; é necessário alegar e convencer o tribunal da sua falta[6].
De facto, está consagrado no nosso ordenamento jurídico o princípio da substanciação, segundo o qual não basta a indicação genérica do direito que se pretende fazer valer, sendo antes necessário a indicação especificada dos factos constitutivos desse mesmo direito. Também é seguro que, como corolário do princípio dispositivo, recai sobre o autor o ónus de alegar os factos de cuja prova seja possível concluir pela existência do direito invocado --- art. 264º, nº 1, do Código de Processo Civil. Competindo-lhe, pois, ainda segundo a dita teoria da substanciação, articular factos essenciais e concretos que se insiram na previsão da norma que acolherá o arrogado direito, como meio, desde logo, de satisfação do princípio do contraditório, para, dessa forma, o réu cabalmente se poder defender.
Se o onerado com o ónus em apreço não fizer a prova dos factos que lhe são impostos, a causa será julgada contra ele[7].
Também segundo o acórdão desta Relação de 23.6.2009[8], na acção de enriquecimento sem causa, incumbe a quem invoca essa situação --- normalmente o empobrecido --- a prova do enriquecimento de outrem, que tal enriquecimento é a razão do seu empobrecimento, mas também que tem na sua génese uma causa injusta (artigo 473°, n.º 1). E só se a causa do enriquecimento for injusta é que há a obrigação de restituir, não se for pura e simplesmente desconhecida.
É este o critério indicado na sentença, aliás, emergente da regra geral sobre o ónus da prova, previsto no art.º 342º, como ali se fez notar.
Contudo, a apelante dá conta da sua dificuldade em demonstrar um facto negativo: que o enriquecimento não teve causa (ou que, se a teve, perdeu-a). Parece considerar, por isso, que seria mais fácil exigir-se do R. a demonstração de uma causa justificativa.
Como vimos, este entendimento não nos parece defensável; viola a lei. Mas, investiguemos um pouco mais…
O ónus da prova traduz-se na imposição pela lei, a cada uma das partes, do ónus de provar determinados factos (afirmações de facto) susceptíveis de levar o juiz a formular uma decisão favorável ou desfavorável, consoante se funde na afirmação de facto da parte a quem incumbia a prova ou na afirmação do facto contrário[9].
Se um facto considerado fundamental para a decisão não for alegado nem provado pela parte que tinha o ónus de o fazer, sofrerá as consequências da sua inércia, isto é, verá rejeitada a sua pretensão ou julgado o pleito contra si.
Como princípios gerais, estabelece-se no artigo 342°, consagrando o critério da normalidade[10], que «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1); «a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito compete àquele contra quem a invocação é feita» (n.º 2).
Assim, a obrigação de provar incumbe à parte que alegou o facto que pretende fazer prevalecer, pelo que, não o provando não pode a outra parte ser obrigada a provar aquele que, por impugnação, alegou. É, como vimos, uma manifestação do princípio do dispositivo. Aquele a favor de quem certo facto pode produzir um direito é que se deve acautelar com os meios de prova.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.5.1999[11], cabe ao autor a afirmação dos factos que, segundo a norma substantiva, servem de pressupostos ao efeito jurídico pretendido, tendo, assim, o ónus de afirmar os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão; ao réu incumbe, por sua vez, a afirmação dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo autor, competindo-lhe, portanto, a prova de factos impeditivos ou extintivos da pretensão da contraparte, determinados de acordo com a norma em que assenta a excepção por ele invocada.
Com efeito, invocando a A. o enriquecimento sem causa do R., designadamente a ausência de causa justificativa do enriquecimento, não pode deixar de recair sobre ela o ónus de demonstrar os respectivos factos constitutivos. E se dúvida houvesse sobre a repartição do ónus da prova sempre se resolveria contra ela, ao abrigo dos art.ºs 342º, nº 3, do Código Civil e art.º 516º do Código de Processo Civil.
Menezes Cordeiro[12] é lapidar: «Na falta de normas ou de convenções específicas sobre o ónus da prova, deve-se partir da regra fundamental negativa do ónus da prova. Uma vez que as normas jurídicas só funcionam quando se verifiquem as respectivas previsões, o juiz não poderá aplicá-las quando não constate, no domínio dos factos, a ocorrência dos pertinentes acontecimentos. A decisão surgirá contrária a quem pretenda a aplicação da norma: será o fundamento material do ónus da prova.». E acrescenta mais adiante[13] que «no caso de um non liquet – portanto: de não se ter podido apurar, afinal, o que aconteceu, com referência aos factos em litígio – o juiz ficaria, na falta de outra regra, impedido de proceder quer à aplicação positiva, quer à negativa. Mas a decisão não pode ser omitida. O ónus da prova torna-se, nessa altura, numa norma de decisão do caso. E a decisão cairá contra quem, invocando os factos decisivos, não logre demonstrá-los.
O caso sub judice, cai no âmbito da aplicação da regra geral. Não estamos perante nenhum dos casos especiais previstos no art.º 343º, nem existe fundamento legal para considerar a existência de inversão de ónus da prova ao abrigo do art.º 344º.
E rejeitada que foi pelo nosso sistema jurídico civil a máxima tradicional “negativa non sunt probanda”, quer o art.º 515º do Código de Processo Civil, quer o art.º 342º do Código Civil impõem ao autor o encargo de provar os factos que servem de fundamento à acção, quer sejam positivos, quer sejam negativos[14].
A propósito, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008[15] que “há que não confundir factos constitutivos do direito, sejam eles positivos ou negativos, cuja prova incumbe à parte que invoca o direito, seja por acção ou reconvenção, com as regras próprias do ónus probatório relativas às acções de simples apreciação negativa (cfr. arts. 342º e 343º CC). Não é pelo facto de estarmos perante um facto negativo que se inverte o ónus da prova nem tão-pouco pela dificuldade que isso naturalmente representa”.
Também Vaz Serra[16] ensina que a regra negativa non sunt probanda, quando entendida no sentido de que não carecem de prova os factos negativos, não parece de aceitar, pois, se o direito, que se faz valer, tem como requisito um facto negativo, deve este facto ser provado por quem exerce o direito, precisamente como os factos positivos que sejam requisitos dos direitos exercidos. Não há motivo para soluções diferentes nos dois casos, dado que os factos negativos não têm que se presumir pela mera circunstância de o serem, nem seria razoável que se impusesse à outra parte o ónus de provar o facto positivo contrário.
Escreve ainda Vaz Serra[17], que o juiz deve decidir, caso os factos sejam incertos, contra a parte a quem incumbia esse ónus. É este o chamado ónus objectivo ou material.
Não esqueçamos que a recorrente se conformou com a matéria de facto dada como provada e não provada, e que nos cingiu ao âmbito da aplicação do Direito.
Anselmo de Castro[18] ensina que não há que tomar em conta a maior ou menor facilidade da prova do facto em causa, por uma outra das partes. Tal consideração será unicamente relevante no plano de livre apreciação das provas pelo juiz na formação da sua convicção, mais ou menos exigente consoante os casos, plano já ultrapassado --- como ocorre no caso sub judice ---, no momento da decisão da causa segundo a regra de ónus da prova.
A 1ª instância convenceu-se desta falta de prova, motivou-a e a apelante conformou-se com ela ao não invocar erro de julgamento da respectiva matéria de facto. E sendo apenas a esse nível, do julgamento em matéria de facto, como vimos, que se poderia invocar a dificuldade de prova do facto negativo da “ausência de causa justificativa do enriquecimento”, e nunca através da inversão do ónus da prova, no caso inadmissível, é manifesto que não podemos considerar agora constituído o alegado direito de crédito da A. por sobrar a possibilidade (mera possibilidade que seja) do enriquecimento do R. ter por base uma causa conforme ao ordenamento jurídico.
Nesta intelecção, não resulta sequer da aplicação das regras legais sobre distribuição do ónus da prova um efeito gritante ou inadequado. E faltando prova de factos essenciais à demonstração da constituição do direito de crédito da A., não existe também a obrigação de restituir, nos termos do art.º 473º.

SUMÁRIO (art.º 713º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1- É do autor o ónus da prova dos factos que constituem os pressupostos do enriquecimento sem causa que invoca como fundamento do seu direito à restituição, designadamente o facto negativo da ausência de causa justificativa do enriquecimento.
2- Confrontado com a necessidade de ter que demonstrar um facto constitutivo do direito, essencial e negativo, de prova difícil, que a 1ª instância não deu como provado --- não se situando o caso entre as especialidades previstas no art.º 343º ou de inversão do ónus da prova ao abrigo do art.º 344º, ambos do Código Civil --- só através do reexame da prova e da eventual alteração da matéria de facto provada e não provada, na 2ª instância, com base no princípio da livre reapreciação da prova, será possível vir a reconhecer o direito do autor.
3- Para o efeito, compete-lhe invocar o erro de julgamento em matéria de facto, com adequada impugnação nos termos da lei do processo (art.º 685º-B na redacção que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (art.º 690º-A, na redacção que a precedeu)).
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*
VI.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença da 1ª instância.
Custas da apelação pela A. recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Porto, 3 de Novembro de 2011
Filipe Manuel Nunes Caroço
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
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[1] Terá querido escrever-se “procedente”.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[4] In Código Civil anot., 2ª edição, Vol. I, pág.s 400 e 401. V.d. também a. Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, Almedina vol. I, pág. 438.
[5] António Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2º Vol., AAFDL, pág.s 54 e 55.
[6] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.1.2007, in Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 28, citando, entre outros, Vaz Serra, e de 18-06-2009, in www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.7.2009, in www.dgsi.pt, citando doutrina.
[8] In www.dgsi.pt.
[9] Gonçalves Sampaio, A Prova por Documentos Particulares, Almedina 2010, 3ª edição, pág. 39.
[10] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. III, pág. 294.
[11] BMJ 487/277.
[12] Tratado de Direito Civil, V, 2011, pág. 465.
[13] Pág. 466.
[14] Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., pág. 288.
[15] Proc. nº 07A4705, in www.dgsi.pt, citando no mesmo sentido Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, pág. 148 e 149.
[16] Provas (Direito Probatório Material), BMJ 110/120.
[17] Ob. cit., pág. 116.
[18] Direito Processual Civil Declaratório, Almedina 1982, Vol. III, pág.s 354 e 355.
[19] O sublinhado é nosso.