Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00033548 | ||
Relator: | CONCEIÇÃO GOMES | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA AGRAVAÇÃO PELO RESULTADO CRIME PÚBLICO | ||
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Nº do Documento: | RP200201160141092 | ||
Data do Acordão: | 01/16/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | T J BRAGANÇA 2J | ||
Processo no Tribunal Recorrido: | 274/00 | ||
Data Dec. Recorrida: | 03/05/2001 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS. | ||
Legislação Nacional: | CP95 ART145. | ||
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Sumário: | O crime de ofensas à integridade física agravados pelo resultado é um crime autónomo em relação ao crime de ofensas à integridade física simples pelo que o exercício da acção penal não está dependente de queixa. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto 1. RELATÓRIO 1.1.No Tribunal Judicial de Bragança o Mº Pº, acusou em processo comum, com intervenção de juiz singular os arguidos Félix ..... e Helder ....., que são reciprocamente ofendidos, imputando-lhes a prática, em autoria material, ao arguido Félix ..... de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p., pelo art. 143º, do CP, e ao arguido Helder ..... de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP. 1.2. O ofendido Félix ..... deduziu contra o arguido Helder ....., pedido de indemnização civil, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 2 423 707$00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo ofendido em consequência da conduta do arguido (fls.82). 1.3. No dia 05MAI01, em audiência de discussão e julgamento, o demandante e o demandado acordaram quanto ao pedido de indemnização civil, e os arguidos/ofendidos desistiram das queixas que formularam um contra o outro, e aceitaram as referidas desistências (fls. 150 a 151). 1.4. Por despacho de 05MAI01, proferido em acta, o Mmº Juiz, com o fundamento de que os crimes em causa são ambos de natureza semi-pública, uma vez que o nº 2, do art. 145º, do CP é um mero prolongamento do tipo de crime constante do art. 143º, não obstante a oposição do Magistrado do Mº Pº, quanto ao crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP, admitiu as desistências de queixa, e homologou-as, declarando extinto o procedimento criminal (fls.151). 1.5. Inconformado com este despacho, relativamente à homologação da desistência de queixa apresentada por Félix ....., Mº Pº dele veio interpor o presente recurso, o qual motivou, concluindo nos seguintes termos: “1. O crime p. e p., pelo art. 145º, do CP é um crime autónomo relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p., pelo art. 143º, nºs1 e 2, do CP. 2. Não tendo o legislador incluído no corpo do preceito definição diferente natureza, o crime do art. 145º tem natureza pública; 3. e tendo esta natureza, a desistência de queixa por parte do ofendido é irrelevante; 4. por isso, o Mmº Juiz “a quo” não a deveria ter homologado, nem consequentemente declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido Hélder .....; 5. o douto despacho recorrido violou as normas dos arts. 116º, nº2, do CP, e ainda as normas dos arts. 48º e 51º, nº3, do CPP. 6. Deve portanto ser revogada, para que possa prosseguir o procedimento criminal instaurado contra o arguido Hélder .....”. 1.6. Na 1ª instância não houve Resposta. 1.7. O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, porquanto e em síntese, o art. 145º, do CP, consagra um tipo legal de crime autónomo, relativamente ao tipo fundamental estabelecido no art. 143º, e que, ao contrário deste, tem natureza pública, não admitindo desistência de queixa. Ao lado dos tipos fundamentais ou tipos base de tipicidade criminal, existem os tipos de delitos construídos a partir deles, com acrescento de elementos, que constituem circunstâncias modificativas, dando lugar aos crimes qualificados ou privilegiados – cfr. Eduardo Correia, dir. Criminal, I, Vol, pág.s 308-09; Jescheck, Tratado de Direito Penal, parte geral, I Vol, pags. 382.63 (tradução espanhola). Do facto de se tratar de um tipo de delito autónomo ou na expressão de Jescheck, de variante dependente, não se extraírem quaisquer consequências, sendo mister recorrer á interpretação da norma que o prevê, sendo certo que no art. 145º, CP, nenhuma restrição é imposta à oficiosidade do procedimento – cfr art. 48º e segs do CPP. 1.8. Foram colhidos os vistos legais. *** 2. FUNDAMENTAÇÃO. 2.1. Constam dos autos as seguintes ocorrências processuais com relevância para a questão a decidir: 2.1.1. Em 26ABR00 Hélder ..... apresentou queixa crime contra Félix ....., por factos ocorridos em 20ABR00 integradores de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p., pelo art. 143º, nº1, do CP. 2.1.2. Em 28ABR00 Félix ....., apresentou igualmente queixa crime contra Hélder ....., por factos ocorridos em 20ABR00 integradores de um crime de ofensa à integridade física agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP 2.1.3. Instaurado o respectivo inquérito, no Tribunal Judicial de Bragança, o findo o mesmo o Mº Pº, em 06OUT00 deduziu acusação em processo comum, com intervenção de juiz singular contra os arguidos Félix ..... e Helder ....., reciprocamente ofendidos, imputando-lhes a prática, em autoria material, ao arguido Félix ..... de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p., pelo art. 143º, do CP, e ao arguido Helder ..... de um crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP (fls. 69 a 70) 2.1.4. O ofendido Félix ..... deduziu contra o arguido Helder ....., pedido de indemnização civil, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 2 423 707$00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo ofendido em consequência da conduta do arguido (fls.82). 2.1.5. No dia 05MAI01, em audiência de discussão e julgamento, o demandante e o demandado acordaram quanto ao pedido de indemnização civil, e os arguidos/ofendidos desistiram das queixas que formularam um contra o outro, e aceitaram as referidas desistências (fls. 150 a 151). 2.1.6. Por despacho de 05MAI01 proferido em acta o Mmº Juiz com o fundamento de que os crimes em causa são ambos de natureza semi-pública, uma vez que o nº 2, do art. 145º, do CP é um mero prolongamento do tipo de crime constante do art. 143º, não obstante a oposição do Magistrado do Mº Pº, quanto ao crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP, admitiu as desistências de queixa, e homologou-as, declarando extinto o procedimento criminal (fls.151). *** 3. O DIREITO 3.1. O objecto do presente recurso, tendo em atenção as conclusões da motivação, que delimitam o seu objecto, cinge-se à questão de saber se o crime de ofensa à integridade física agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP, tem natureza pública ou semi-pública, e consequentemente se a desistência de queixa por parte do ofendido Félix ....., homologada pelo despacho recorrido, é ou não válida e eficaz. 3.2. A ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa integra o crime de ofensa à integridade física, distinguindo o Código Penal as ofensas à integridade física simples (art. 143º), ofensas à integridade física graves (art. 144º), ofensas à integridade física agravadas pelo resultado (art. 145º), ofensas à integridade física qualificadas (art. 146º), ofensas à integridade física privilegiadas (art. 147º) e ofensas à integridade física por negligência (art. 148º). Com efeito, o art. 143º, nº1, do CP, determina que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”, dispondo o nº 2, do citado normativo que “O procedimento criminal depende de queixa”. Este é o tipo legal fundamental em matéria de crimes contra a integridade física, “ofensa ao corpo ou à saúde de outrem”, a partir do qual se construiu uma série de variações qualificadas, - ofensas à integridade física graves (art. 144º), ofensas à integridade física agravadas pelo resultado (art. 145º), ofensas à integridade física qualificadas (art. 146º), ofensas à integridade física privilegiadas (art. 147º) e ofensas à integridade física por negligência (art. 148º) (vide, neste sentido Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol I, pág. 220, e Ac da RP de 18OUT00, in CJ 2000, Tomo IV, pág. 234 –236, citado na motivação de recurso). 3.3. Por seu turno o art. 145º, do CP, consagra que: “1.Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido: a) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do art. 143º; b) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do art. 144º. 2. “Quem praticar as ofensas previstas no art. 143º e vier a produzir as ofensas previstas no art. 144º é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”. O crime de ofensas à integridade física agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, do CP, é um crime preterintencional em que o resultado, excede a intenção do agente, ou seja, em que para além de um crime de ofensas corporais doloso, o resultado é imputado a título de negligência. 3.3.1. O crime preterintencional encontrava-se previsto no art. 361º, do CP de 1886, segundo o qual “Se, por efeito necessário da ofensa, ficar o ofendido privado da razão ou impossibilidade por toda a vida de trabalhar, a pena será de prisão de dois a oito anos. § único A mesma pena agravada, será aplicada, se a ofensa corporal for cometida voluntariamente, mas sem intenção de matar, e contudo ocasionar a morte”. Neste preceito, a lei protegia a integridade física e a vida contra as ofensas corporais voluntárias com resultados muito graves – a morte, a alienação ou a impossibilidade permanente de trabalhar. No § único do aludido preceito previa-se o então chamado “homicídio preterintencional”, em que o resultado morte não podia ser imputado dolosamente ao autor que só teve intenção de ofender corporalmente, exigindo-se a negligência do agente, quanto à produção do resultado, em face do princípio basilar do direito penal, consagrado no art. 44º, nº7, do mesmo Código, de que sem culpa não há responsabilidade criminal (vide Maia Gonçalves, in Código Penal Português, de 1886, 4ª Ed., pág. 580-581, Eduardo Correia, in Direito criminal, I, 440 e segs., Figueiredo Dias, in Responsabilidade pelo resultado e crimes preterintencionais, 1961, págs. 126º e segs. e jurisprudência citada na anotação 1., ao aludido preceito, por Maia Gonçalves). 3.3.2. No art 145º, do CP, revisto pelo DL. nº 48/95, de 15MAR, conforme afirma Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricenses do Código Penal, Vol I, pág. 240, «Estamos perante um delito qualificado pelo resultado que se caracteriza por uma especial combinação de dolo e negligência (crime preterintencional). O delito fundamental doloso (aqui a lesão da integridade física) é por si só susceptível de punição, no entanto, a pena é substancialmente elevada com base numa especial censurabilidade do agente, uma vez que o perigo específico que envolve esse comportamento se concretiza num resultado agravante negligente (morte ou lesão da integridade físicas graves)». (…) «Através deste tipo legal protege-se a integridade física e a vida, uma vez que a não existir esta disposição a punição seria feita através das regras do concurso, o que implicaria necessariamente a consideração autónoma e diferenciada dos dois bens jurídicos (lesão da integridade física dolosa e homicídio negligente). Existe uma punição agravada em relação aos dois crimes (fundamental doloso e agravante negligente) que pressupõe bens jurídicos distintos» 3.3.3. Do exposto resulta o crime de ofensa à integridade física agravada pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, não só pela natureza dos bens jurídicos tutelados, ou seja, a integridade física e a vida, como também tendo em atenção, a história do preceito, que radica no crime preterintencional, previsto no art. 361º, § único, do CP de 1886, como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, trata-se de um crime autónomo em relação ao tipo legal fundamental, previsto no art. 143º, do CP, e não “um mero prolongamento do tipo de crime constante do art. 143º”, conforme se afirma no despacho sob sindicância. Com efeito, no Preâmbulo do DL nº 48/95, de 05MAR95, afirma-se expressamente, no nº7, que «Também no domínio dos crimes contra a integridade física optou-se por uma sistemática mais coerente, operando-se uma considerável simplificação: fazer incidir critérios de agravação e de privilégio sobre a base de existência de um crime de ofensa à integridade física simples. De referir ainda a consagração de um tipo de ofensa à integridade física qualificada por circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou de perversidade do agente, a exemplo do que sucede no homicídio». Conforme salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, «ao lado dos tipos fundamentais ou tipos base de tipicidade criminal, existem os tipos de delitos construídos a partir deles, com acrescento de elementos, que constituem circunstâncias modificativas, dando lugar aos crimes qualificados ou privilegiados – cfr. Eduardo Correia, Dir. Criminal, I, Vol, pág.s 308-09; Jescheck, Tratado de Direito Penal, parte geral, I Vol, pags. 382.63 (tradução espanhola)». 3.4. Analisando os diversos tipos de ilícitos que a partir do tipo legal fundamental em matéria de crimes contra a integridade física, “ofensa ao corpo ou à saúde de outrem”, se construiu uma série de variações qualificadas, verifica-se que, apenas no tipo legal fundamental previsto no art. 143º, (ofensas à integridade física simples) e no tipo previsto no art. 148º, (ofensas à integridade física por negligência), o legislador fez depender de queixa o respectivo procedimento criminal, sendo que nos restantes tipos qualificados, ofensas à integridade física graves (art. 144º), ofensas à integridade física agravadas pelo resultado (art. 145º), ofensas à integridade física qualificadas (art. 146º), não exige a lei a queixa, para efeitos de procedimento criminal. E, também como se afirma na motivação de recurso, o crime de maus tratos a cônjuge, p. e p., pelo art. 152º, nº2, do CP, tinha natureza semi-pública, antes da alteração introduzida pela Lei nº 7/2000, de 27MAI, a qual veio precisamente suprimir a natureza semi-pública deste crime, o qual passou a ter natureza pública. Acresce que, conforme se refere no Ac da RP de 18OUT2000, in loc. cit., a propósito do crime do ofensas corporais qualificadas, cuja orientação, seguimos de perto, «a exigir-se a queixa, o legislador estaria a contradizer-se». E citando Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime”, págs. 66 e segs., afirma-se no citado arresto, «é tripla a função da queixa e da acusação particular: Por um lado, pode o significado criminal relativamente pequeno do crime (bagatelas criminais e pequena criminalidade) tornar aconselhável, de um ponto de vista político criminal, que o procedimento criminal respectivo só tenha lugar se quando tal corresponder ao interesse e à vontade do titular do direito de queixa. Por outro lado, serve a função de evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa , em certa hipótese, representar uma inconveniente ou inadmissível intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem. Finalmente, pode servir a função específica de protecção da vítima. O legislador, quis de forma indiscutível, aumentar substancialmente as penas nos crimes contra as pessoas, para reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais». 3.5. Ora, sendo o crime de ofensas à integridade física agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, do CP, um crime autónomo em relação ao crime de ofensas à integridade física simples, p. e p., pelo art. 143º, do CP, nele não se prevendo que o exercício da acção penal está dependente de queixa, a prossecução da acção penal está na disponibilidade do Mº Pº, para a prossecução do “jus puniendi” do Estado. Do exposto resulta, que tendo o crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, do CP, natureza pública, não dependendo de queixa, o exercício da acção penal, compete ao Ministério Público, ex ofício, (art. 48º, do CPP), sendo, por isso irrelevante e ineficaz a desistência por parte do ofendido, não tendo tal desistência, qualquer eficácia para extinguir o procedimento criminal. Neste sentido o despacho recorrido fez uma incorrecta interpretação do art. 145º, nº 2, do CP, e violou o disposto no art. 116º, nº2, do CP, e nos arts. 48º e 51º, nº3, do CPP. *** 4. DECISÃO. Termos em que, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogar a decisão recorrida a qual deve substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos, quanto ao crime de ofensas corporais agravadas pelo resultado, p. e p., pelo art. 145º, nº2, do CP, imputado ao arguido Helder ..... na acusação pública . Sem tributação. A taxa de conversão em euros prevista no art. 1º do Regulamento CE nº 2 866/98 do Conselho a todas as referências feitas anteriormente em escudos, é aplicada automaticamente, como decorre do art. 1º, nº2, do DL nº 323/01, de 17DEZ. *** Porto, 16 de Janeiro de 2002 Maria da Conceição Simão Gomes Manuel Cardoso Miguez Garcia Pedro dos Santos Gonçalves Antunes |