Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9830872
Nº Convencional: JTRP00024358
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: COMPRA E VENDA
PRÉDIO URBANO
AQUISIÇÃO
CÂMARA MUNICIPAL
EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
COLISÃO DE DIREITOS
Nº do Documento: RP199810229830872
Data do Acordão: 10/22/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T CIRC OLIVEIRA AZEMEIS
Processo no Tribunal Recorrido: 569/94
Data Dec. Recorrida: 01/30/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS / TEORIA GERAL.
DIR ADM ECON - EXPRO UTIL PUBL.
Legislação Nacional: CONST76 ART266.
CCIV66 ART335.
RAU90 ART47 N1.
CEXP91 ART2 ART9.
DL 794/76 DE 1976/11/05 ART27 ART28.
DL 100/84 DE 1984/03/28 ARTÚNICO.
Sumário: I - Nas transmissões a título oneroso de imóvel sobre os quais se hajam constituído contratos de arrendamento urbano, a Administração Pública não pode exercer o direito de preferência conferido pelo artigo 27 do Decreto-Lei n.794/76, de 5 de Novembro.
II - A mesma Administração, ao adquirir, por negociação particular, bens imóveis, em vez de enveredar pela expropriação por utilidade pública, terá de considerar, além dos outros interessados, os direitos dos arrendatários de prédios urbanos.
III - Impõe-se-lhe, portanto, o respeito pelo direito de preferência atribuído a estes últimos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto
I - Margarida ... intentou no tribunal da comarca de Vale de Cambra a presente acção ordinária contra
" Cooperativa ... " e Município de ... em que peticionou que lhe seja reconhecido o direito de haver para si o prédio urbano que habita alienado.
Para tal alegou que, em 1 de Setembro de 1988, a Ré Cooperativa lhe deu de arrendamento, pelo prazo de cinco anos, renovável por sucessivos e iguais períodos, uma casa de habitação de rés-do-chão e andar, sita no lugar ..., ..., ..., com destino a habitação e com uma renda que hoje se cifra em esc. 5.000$00 mensais.
Em 18 de Novembro de 1993, o R. Município adquiriu
à restante Ré, por contrato de dação em pagamento, vários prédios, entre os quais aquele onde a A. habita.
Embora na escritura tituladora daquele se fale numa dação em pagamento, do conteúdo da mesma conclui-se tratar-se de uma dação em cumprimento.
A A. só tomou conhecimento do negócio celebrado em 2/3/94, através de carta que o R. Município lhe enviou, pretendendo exercer o direito de preferência relativamente ao referido prédio, cujo valor calcula proporcionalmente em esc. 2.100.000$00.
Apenas contestou o Município o qual veio alegar o seu desconhecimento relativamente à qualidade de arrendatária da A., tendo os prédios sido adquiridos com destino à construção de uma via rápida, já que havia dificuldade na efectivação da sua expropriação amigável.
Replicando, a A. manteve o alegado no articulado inicial.
Prosseguido a acção os seus termos, na sentença final aquela veio a ser julgada totalmente procedente, conferindo à A. o direito a haver para si o prédio urbano em causa, pelo preço de esc. 7.423.590$00, substituindo-se ao R. Município.
Do decidido recorreu este último, que apresentou as conclusões:
1ª - A Autora, apesar de arrendatária do prédio alienado, não é titular do direito de preferência na respectiva alienação.
2ª - A posição contratual da Autora, enquanto arrendatária, não é afectada com o não reconhecimento da preferência, a qual se mantém incólume até que a Administração promova a respectiva expropriação e o consequente pagamento da indemnização devida.
3ª - Ao contrário do que pressupôs a sentença recorrida, o Município Recorrente sempre reconheceu que a Autora mantinha a sua posição contratual de arrendatária, desde que fosse provado o respectivo contrato de arrendamento.
4ª - O direito de preferência invocado pela Autora tem efeito retroactivo, pelo que, no caso de ser reconhecido, tudo se passa como se o negócio tivesse sido realizado directamente entre o obrigado/vendedor e o preferente.
5ª - O direito de preferência não incide sobre uma coisa, mas sobre um contrato e pressupõe igualdade de condições entre adquirente e preferente.
6ª - Através do contrato aquisitivo, o Município Recorrente visou facilitar a construção de uma via rápida e outros objectivos de interesse público, pois havia dificuldades com a expropriação amigável dos prédios.
7ª - Visando a Administração a prossecução do interesse público, o contrato dos autos foi determinado por esse mesmo interesse.
8ª - O domínio das coisas pertencentes ao Estado e
às autarquias é insusceptível de preferência, por contrariar a natureza daquele domínio.
9ª - O contrato aquisitivo celebrado entre os Réus é um contrato formalmente de direito privado, mas ditado por razões de interesse público, devendo ser assimilado aos contratos administrativos.
10ª - Trata-se de um contrato imperativo, ou necessário, imposto pelo Código das Expropriações, como pressuposto de qualquer aquisição de bens pela Administração Pública, e com diligências pré-contratuais legalmente regulamentadas.
11ª - Tal contrato é também por isso insusceptível de exercício de um direito preferência, porque lhe falta um dos pressupostos essenciais: a igualdade de posições entre preferente e preferido ( adquirente ), entre a Autora e o Município Recorrente.
12ª - A Autora não está em igualdade de condições com o Município, porque este contratou com obediência a princípios de ordem pública a que um particular
é alheio, e fê-lo por imposição legal ( o artigo
2º do Código das Expropriações ).
13ª - Admitir o direito de preferência do particular seria abrir uma brecha e uma contradição no sistema jurídico, pois se por um lado se obriga a Administração a tentar adquirir os bens pela via do direito privado, negociando nas melhores condições em termos de interesse público, por outro impor-se-lhe-ia a sujeição ao direito potestativo aquisitivo de um terceiro, pelo qual ela perderia para um particular aquilo que foi obrigada a adquirir.
14ª - Quando muito, surgiria uma colisão de direitos: o direito da Administração a adquirir e a prosseguir o interesse público, por um lado, e o direito do particular a preferir, por outro.
15ª - Nessa hipótese, a colisão seria sempre resolvida pela prevalência do direito superior, que é o do interesse público.
16ª - Na sentença recorrida fez-se errada interpretação e aplicação do artigo 2º do Código das Expropriações, do artigo 47º do RAU e dos artigos 1304º e 335º CCivil.
Respondendo, a apelada pronunciou-se pela manutenção da decisão proferida.
Corridos os vistos legais, há que apreciar.
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II - Há a considerar provados os seguintes factos:
" A A. ocupa uma casa de habitação de rés-do-chão e andar, sita no lugar de ..., ..., ..., que a Coperativa ... lhe deu de arrendamento em 1 de Setembro de 1988, pelo prazo de cinco anos, renováveis por sucessivos e iguais períodos, e por uma quantia mensal que hoje é de esc. 5.000$00 - (A), (1º), (2º),
(3º) e (4º).
A referida casa está inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo 1190º e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº 00988, de 23 de Março de 1995 - doc. de fls. 63 a 67 - (B).
Por escritura pública de dação em pagamento, lavrada em 18 de Novembro de 1993, a fls. 24 e segs. do Livro nº 44 do Notário Privativo da Câmara Municipal de ..., a Ré Cooperativa entregou ao R. Município, entre outros, o referido prédio urbano - doc. de fls. 9 a 14 - (C).
Os outorgantes da referida escritura clausularam que o R. Município, através dela, fica proprietário de tal prédio urbano, bem como dos restantes prédios ali incluídos - doc. de fls. 13v. - (D).
Todos os prédios referidos na escritura, incluindo o aludido, foram negociados entre os R.R., pelo valor global de esc. 54.606.735$00 - (E).
A celebração do negócio constante da referida escritura foi precedida de deliberação da Câmara Municipal de ..., datada de 4 de Fevereiro de 1992
- doc. fls. 41 - (F).
Tal deliberação foi antecedida de contactos entre ambos os R.R., realizados em 28 de Dezembro de 1988 e 6 de Fevereiro de 1989 - doc fls. 42 e 43 - (G).
A Câmara Municipal de ... enviou à A., em 2 de Março de 1994, uma carta do seguinte teor:
Serve o presente para notificar V.Exª de que, por contrato de dação em pagamento, celebrado por escritura pública de 18-11-93, adquiriu esta Câmara Municipal de ... todo o património da Cooperativa ..., passando, assim, a ocupar, desde essa data, a posição de proprietária.
Pretendendo colocar este património adquirido ao serviço do Concelho, propomos a desocupação das instalações que V.Exª tem vindo a ocupar.
- doc. fls. 15 - (5º).
O referido prédio vale hoje esc. 7.423.590$00 - (7º).
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III - O recorrente veio alegar que a improcedência da dação não afecta a qualidade de arrendatária da A. - conclusões 2ª) e 3ª).
Todavia, dado que o objecto da presente acção se traduz no exercício do direito de preferência por parte da recorrida, não há que questionar a relevância ou irrelevância do contrato de arrendamento, no caso de soçobrar a pretensão por aquela deduzida em juízo, pelo que, consequentemente, fica desde logo prejudicado o conhecimento do conteúdo daquelas indicadas conclusões.
Refere igualmente o recorrente que a A. não é titular do direito peticionado, uma vez que o contrato celebrado entre os R.R. foi ditado por razões de interesse público, sendo insusceptível de preferência o domínio das coisas pertencentes ao Estado e às autarquias.
Com efeito, a deliberação camarária que constituiu factor determinante para a outorga do contrato celebrado pelos R.R. entre si, teve por fundamento facultar ao recorrente terrenos destinados à execução de uma via rápida entre duas localidades e a realização de outros objectivos de interesse público
- vide fls. 41.
Ora, não tendo sido questionada pelo recorrente a natureza jurídica atribuída pelo tribunal a quo ao negócio celebrado - dação em cumprimento -, diversa aliás da qualificação constante do documento titulador do mesmo, há desde logo a referir que, em tais circunstâncias, e tratando-se o objecto do contrato de um prédio urbano, os respectivos arrendatários gozam do direito de preferência quanto à transmissão do direito de propriedade, desde que o arrendamento se haja prolongado por um período temporal superior a um ano - art. 47º, nº1 do R.A.U.
Assim, e dado que " a procedência da acção de preferência tem como resultado a substituição do adquirente pelo autor, com efeito retroactivo, no contrato celebrado, tudo se passando, em princípio, como se o contrato tivesse sido celebrado ab initio entre o alienante e o preferente " - vide " Das Obrigações em Geral " do Prof. Antunes Varela, vol.
I, 8ª edição, pág.386 -, torna-se irrelevante o alegado pelo recorrente quanto à insusceptibilidade de preferência relativamente ao domínio das coisas pertencentes ao Estado e às autarquias - conclusão
8º) -, uma vez que, só após a celebração do contrato entre os R.R., o prédio preferendo passou a integrar o domínio autárquico.
E, se é certo que, no conjunto das normas que integram o R.A.U., a única limitação ao exercício pleno do direito legal de preferência conferido ao arrendatário, reside na necessidade da licitação, no caso de serem dois ou mais os preferentes - vide nº2 do citado art.47º -, daí decorre, em nosso entender, que, no domínio das transmissões a título oneroso de imóveis, relativamente aos quais se hajam constituído contratos de arrendamento urbano, não possa haver lugar, por parte da Administração Pública, ao exercício do direito de preferência conferido pelo art. 27 do Dec-Lei nº794/76, de 5 de Novembro, atendendo a que o exercício de tal preferência pode ser acompanhado da não aceitação do preço convencionado
- vide art. 28º do mesmo diploma -, circunstância esta manifestamente colidente com a génese do mecanismo da licitação.
Porém, na situação sub judice, nunca poderia haver lugar ao exercício, por parte do recorrente, do aludido direito de preferência, já que tal pressupunha a existência, do antecedente, de uma portaria, conferindo-lhe tal direito, o que manifestamente se não verifica - vide art.2 do Decreto nº862/76, de
22 de Dezembro.
Temos portanto que, estando vedada ao apelante a aquisição do prédio de que a A. é arrendatária, com prevalência sobre esta, por força de um direito de preferência que a lei eventualmente lhe conferisse, apenas lhe restaria, para a realização do interesse público, subjacente à integração do imóvel no seu património, lançar mão do instituto da expropriação por utilidade pública.
Ora, neste domínio, constitui regra basilar para a Administração, a obrigatoriedade da tentativa prévia de aquisição dos bens pela via do domínio privado
- vide preâmbulo do Dec-Lei nº438/91, de 9 de Novembro, e art. 2º do Cód. Expropriações de 1991.
Porém, e na utilização da aludida via, devem ser considerados os direitos dos proprietários, como igualmente os dos demais interessados, como tais se considerando, e entre outros, os arrendatários de prédios urbanos - vide arts. 2º e 9º do Cód. Exprop. de 1991.
Houve pois, por parte do legislador, a clara e nítida percepção do direito de preferência que assistia aos últimos, relativamente a uma eventual transferência da propriedade dos bens, em consequência da outorga de um contrato de direito privado, tendo os mesmos por objecto, celebrado com os respectivos proprietários, pelo que, consequentemente, não pode merecer acolhimento, por distorção do pensamento legiferante, o alegado pelo recorrente, de que o contrato celebrado o foi por imposição do normativo expropriativo - vide conclusão 12º).
Ainda, e por outro lado, a aceitar-se a tese do recorrente de que contratou em obediência a princípios de ordem pública, o que exclui a igualdade de posições entre preferente e adquirente - conclusões 11º) e 12º) -, incorrer-se-ia, desde logo, na frontal violação do princípio constitucional, vertido no art.
266º da Constituição da República, que impõe à Administração Pública, na prossecução do interesse público, o respeito pelos direitos legalmente protegidos dos cidadãos, uma vez que, a um direito de preferência legalmente atribuído ao arrendatário de um prédio urbano, sobrepor-se-ia o interesse público ditado por uma autarquia, sem qualquer outro apoio legal, que não o decorrente de uma deliberação da própria entidade interessada, cuja competência não abrange a elaboração de normas jurídicas gerais e abstractas, derrogatórias de outras já existentes - vide art. 51 do Dec-Lei nº100/84, de 29 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo artigo único da Lei nº18/91, de 12 de Junho.
Referiu ainda o recorrente que sempre deveria subsistir, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, o contrato celebrado com o seu co-réu, relativamente ao imóvel preferendo, uma vez que, existindo uma colisão entre o direito da Administração a adquirir e a prosseguir o interesse público e o direito do particular a preferir, sempre a mesma deverá ser resolvida através da prevalência do direito superior, que é o do interesse público - conclusões 14º) e 15º).
Porém, a colisão de direitos, de que decorre a prevalência daquele que deva considerar-se superior, pressupõe a existência e validade dos direitos em concorrência - vide art. 335 do Cód. Civil e
" Pressupostos da Responsabilidade Civil " do Prof.
Pessoa Jorge, pág.201.
Ora, na situação sub judice, e como foi já explanado, ao recorrente não assiste qualquer direito, decorrente de estatuição legal, que lhe atribua uma posição prevalente relativamente ao direito ora exercido pela
A., este sim fundado em diploma legal, pelo que, consequentemente, não pode lançar-se mão da solução propugnada pelo legislador para o caso da ocorrência da colisão de direitos, por inexistência dos pressupostos da mesma.
Improcedem pois todas as conclusões do recorrente.
X
IV - Face ao exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença apelada.
Sem custas - art. 2º, nº1, alínea e) do Cód. Custas Judiciais.
X
Porto, 22 de Outubro de 1998.
José Joaquim de Sousa Leite.
António Alberto Moreira Alves Velho.
Camilo Moreira Camilo.