Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NETO DE MOURA | ||
Descritores: | CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO OU ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA DEPOIMENTO INDIRECTO ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL | ||
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Nº do Documento: | RP2013102311671167/11.8TAESP.P1 | ||
Data do Acordão: | 10/23/2013 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | REENVIO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto e apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela. II – Há contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, se concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão proferida. III – O julgador deve preocupar-se em ser claro, racional e objetivo na motivação da decisão, de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objeto de controlo. IV – Depoimento direto é aquele em que a testemunha que o presta revela uma aquisição originária do conhecimento dos factos, ao passo que no depoimento indireto esse conhecimento do depoente é uma aquisição derivada (em segunda mão), não resulta de uma perceção (visual, auditiva, olfativa, etc.) direta e imediata, antes é transmitido por outrem. V – O tribunal pode valorar os depoimentos dos órgãos de polícia criminal que abordaram e acabaram por deter a arguida, na parte em que afirmaram que ela, quando interpelada (declarações não formalizadas em auto) no âmbito de medidas cautelares realizadas, admitiu ter sido a autora dos factos. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1167/11.8 TAESP.P1 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho Recurso penal Relator: Neto de Moura Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto I - Relatório No âmbito do processo comum que, sob o n.º 1167/11.8 TAESP, corre termos pelo 1.º Juízo do Tribunal da Comarca de Espinho, B…, devidamente identificada nos autos, foi submetida a julgamento, por tribunal singular, acusada pelo Ministério Público da prática de um crime de danos simples previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal. C…, melhor identificado nos autos, deduziu pedido de indemnização civil, contra a arguida. Realizada a audiência, com documentação da prova oralmente produzida, com data de 31.10.2012, foi proferida sentença que, julgando improcedentes, quer a acusação, quer o pedido cível, absolveu totalmente a arguida (fls. 153 e segs.). Inconformado, o Ministério Público recorreu da sentença absolutória para este Tribunal de Relação e da respectiva motivação extraiu as seguintes “conclusões” (em transcrição integral[1]): I. A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” padece do vício de contradição insanável da fundamentação, na medida em (que) foram considerados não provados factos que à luz da apreciação crítica dos meios de prova vertida na decisão recorrida deveriam ser tidos como provados; II. Ao atribuir acrescida credibilidade ao depoimento dos agentes policiais, deveria o Tribunal “a quo” dar como provado que a arguida estava agachada junto do veículo “Smart” e que ao aperceber-se da viatura policial saiu apressadamente do local conforme resulta do texto da acusação pública; III. Os agentes de autoridade ao referirem no seu depoimento aquilo que a arguida lhes disse limitaram-se a agir dentro das suas competências, no sentido de colher notícias do crime e descobrir os seus agentes; IV. Está-se assim face a depoimentos que devem ser valorados segundo o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127° do Código de Processo Penal e não perante depoimentos inatendíveis; V. Ao não ter valorado tais depoimentos, o Tribunal recorrido fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 55°, n.º 2, 249°, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 356.º, n.º 7, do Código de Processo Penal. Pretende, assim, que, no provimento do recurso, seja revogada a sentença proferida em 1.ª instância. * A arguida apresentou resposta à motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, que sintetizou nas seguintes conclusões: 1.ª - Perante a factualidade provada e face à motivação da douta decisão recorrida e à sua fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica, verifica-se que na mesma foi feita criteriosa ponderação das circunstâncias provadas e não provadas, concluindo-se (e bem) pela absolvição da arguida; 2.ª - A falta de impugnação da matéria de facto, por incumprimento, pelo Recorrente, do ónus previsto explicitamente nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, não pode deixar de levar à sua improcedência do recurso, prejudicando o conhecimento da matéria de facto; 3.ª - O Recorrente pode não concordar com a convicção do julgador, na sequência da prova produzida, mas este é soberano na sua convicção, como corolário do princípio da livre apreciação da prova plasmado naquele preceito legal; 4.ª - No caso «sub judice», a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada está devidamente motivada e da forma pormenorizadamente descrita relativa à sua convicção, não se denotando, de acordo com o texto da decisão recorrida, quaisquer contradições seja entre os factos provados e não provados, nem entre estes e a respetiva justificação probatória; 5.ª - Quanto à questão da não valoração, na respetiva parte, do depoimento dos Srs. Agentes conforme à forma descrita na decisão censurada, entende a Recorrente que a Douta Sentença recorrida julgou com acerto e perfeita observância dos factos assentes e provados e da lei aplicável, não podendo a questão, conscientemente, ser resolvida de outra maneira. Pugna, pois, pela improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida. * Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu douto parecer em que, divergindo da posição do Ministério Público na 1.ª instância, se pronuncia pela rejeição do recurso, por manifesta improcedência. * Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, naturalmente sem resposta de quem foi afectado pela interposição do recurso. * Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir. II – Fundamentação São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum e delimitam o horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj). Mas, sendo esta a regra, nada obsta a que (antes se impõe que) o tribunal aprecie outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insupríveis e dos vícios da sentença, estes previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal. Conforme resulta das conclusões do recurso que ficaram transcritas, o recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto e fá-lo pelas duas vias legalmente possíveis: invocando um dos vícios da sentença enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal e erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância[2]. Assim, identificamos como questões a decidir as seguintes: - se a sentença recorrida está afectado pelo vício de contradição insanável da fundamentação; - se o tribunal errou na apreciação e valoração que fez da prova produzida. * Definido o objecto do recurso, é fundamental conhecer a factualidade que o tribunal recorrido considerou provada e não provada e como analisou e valorou a prova produzida. Factos provados: 1. Entre os dias 28 e 29 de Novembro de 2011, a hora não concretamente apurada, mas antes da 01h00 da manha do referido dia 29, pessoa cuja identidade não se conseguiu apurar dirigiu-se ao automóvel Smart, de matrícula ..-..-XX, pertencente ao ofendido C…, que se encontrava estacionado na Rua .., em Espinho, e, de forma não concretamente apurada, efectuou vários riscos na frente e na parte lateral esquerda da referida viatura, torceu as escovas do pára-brisas e partiu a antena exterior do veículo, dessa forma causando ao ofendido um prejuízo no valor de 462,75 € (quatrocentos e sessenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos), IVA incluído. 2. A arguida trabalha como empregada de escritório nesta cidade de Espinho, auferindo o vencimento mensal líquido de 650,00 €. 3. Vive sozinha em casa arrendada, pagando o montante mensal de 410,00 € a título de renda. 4. Tem um filho já maior. 5. Além das despesas correntes, a arguida suporta o pagamento mensal de cerca de 100,00€ relativo a liquidação de crédito pessoal. 6. A arguida é pessoa bem considerada no meio social onde se move, sendo tida como pessoa calma, cordata e educada, boa amiga e boa colega de trabalho. 7. Do certificado de registo criminal da arguida nada consta. Factos não provados O tribunal considerou não provado que: 1. Os factos descritos em 1. dos Factos Provados tenham ocorrido no dia 29 de Novembro de 2011, cerca da 01h00. 2. Tenha sido a arguida quem, entre os dias 28 e 29 de Novembro de 2011, a hora não concretamente apurada, se tenha dirigido ao automóvel Smart, de matrícula ..-..-XX, pertencente ao ofendido C…, que se encontrava estacionado na Rua .., em Espinho, e, munida de umas chaves, tenha efectuado vários riscos na frente e na parte lateral esquerda da referida viatura, tenha torcido as escovas do pára-brisas e tenha partido a antena exterior do veículo. 3. Já depois de fazer os estragos descritos, a arguida se tenha apercebido que se aproximava do local uma patrulha da PSP de Espinho, tendo-se agachado para não ser vista e saído apressadamente do local. 4. A arguida tenha agido livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de danificar o veículo pertencente ao ofendido, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade do respectivo dono. 5. A arguida soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei. 6. Para além dos danos causados no veículo, o ofendido se tenha sentido muito envergonhado e humilhado. 7. Não tendo até hoje recuperado e esquecido o que a arguida fez, sem qualquer motivo ou razão. 8. O ofendido tenha sofrido um forte abalo psíquico pelo facto de ver o seu veículo naquele estado. * O alegado vício da contradição insanável da fundamentação A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova são vícios da sentença (previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal) que têm de resultar do respectivo texto, são de conhecimento oficioso (por isso que podem ser conhecidos por tribunal que só conheça de matéria de direito) e a sua verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º, n.º 1, ou, sendo requerida a renovação da prova e havendo razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio, serão supridos no tribunal de recurso (art.º 430.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal). Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. O recorrente invoca o vício da contradição insanável da fundamentação, que o texto da sentença evidenciaria, pelas razões que podemos sintetizar assim: Na fundamentação da matéria de facto, o tribunal considerou que os depoimentos das testemunhas, ambos agentes da PSP, D… e E…, se revelaram, no essencial, credíveis “quanto às circunstâncias que rodearam a interpelação que fizeram à arguida”, sendo que as circunstâncias que despoletaram essa intervenção foram dois precisos movimentos daquela: estar ela agachada junto ao veículo Smart e, por outro lado, ter-se levantado de imediato e seguido uma passada apressada quando avistou o veículo onde seguiam os agentes de autoridade. Ora, tendo os referidos agentes de autoridade relatado esses factos nos depoimentos que prestaram na audiência, apesar de o tribunal lhes ter reconhecido credibilidade, contraditoriamente, não deu como provados aqueles factos que constavam do texto da acusação. Pode dizer-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável i) entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou ii) entre a fundamentação e o dispositivo da decisão. Dizendo de outro modo, haverá contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica(va) decisão oposta, ou não justificava a decisão. Ou seja, “a fundamentação pode apontar para uma dada decisão e a decisão recorrida nada ter a ver com a fundamentação apresentada” (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2.ª edição, 2000, pág. 339). Como vimos, o tribunal seu, efectivamente, como não provado que “… a arguida se tenha apercebido que se aproximava do local uma patrulha da PSP de Espinho, tendo-se agachado para não ser vista e saído apressadamente do local” (n.º 3 do enunciado de factos não provados). Apesar de se ter omitido que era junto do veículo da marca “Smart”, matrícula ..-..-XX (a viatura danificada), que a arguida estaria agachada quando se aproximou a patrulha da PSP, é isso que está implícito e decorre do encadeamento dos factos não provados, sobretudo do que está descrito no n.º 2. Vejamos o que, sobre este concreto ponto da matéria de facto, se pode extrair do texto da decisão recorrida. Na página 5, diz-se: “A este propósito, e uma vez que nos estamos a debruçar sobre as declarações prestadas pelos Srs. Agentes, há, desde já, que dizer que os depoimentos de ambos se mostraram consentâneos entre si e se afiguraram, no essencial, credíveis quanto às circunstâncias que rodearam a interpelação que fizeram à arguida. Assim, ambos relataram que, cerca da 01h00 da madrugada do dia 29 de Novembro de 2011, iam a circular pela Rua.. no sentido Poente-Nascente, numa viatura descaracterizada, quando se aperceberam da presença dum vulto – que depois viram ser a arguida – agachado junto de um veículo que se encontrava estacionado perto do cruzamento entre a Rua .. com a Rua ..”. E, mais adiante (pág. 6), podemos ler o seguinte: “Ambos os Agentes relataram que, à aproximação do veículo em que seguiam - uma viatura descaracterizada – a arguida levantou-se de imediato e dirigiu-se para Norte na rua .. numa passada apressada, passando pela frente do veículo em que seguiam. (…) Ambos os Agentes afirmaram que não viram a arguida debruçada sobre o carro ou a fazer quaisquer estragos no mesmo, tendo-a, apenas, interceptado por terem estranhado o comportamento, estando primeiro agachada junto do Smart e tendo-se levantado de rompante ao se aperceber da aproximação de um carro, com um comportamento que consideraram suspeito e comprometido”. Dos trechos citados resulta, cristalinamente, que a fundamentação probatória apontava para uma decisão – a de considerar provados aqueles factos -, mas a decisão efectivamente proferida foi a oposta. É, pois, manifesta a contradição entre a decisão (de considerar não provado estar a arguida agachada junto ao veículo “Smart” e ter-se levantado de imediato e seguido em passo estugado quando avistou o veículo em que vinham os agentes de autoridade) e a respectiva fundamentação, que justificava decisão contrária. Ao contrário do que afirma a arguida na sua resposta à motivação do recurso (aliás, secundada pelo Ex.mo PGA no seu douto parecer), não se trata aqui de discordância do recorrente quanto à forma como foi apreciada e valorada a prova produzida e, portanto, de pretender contrapor (e sobrepor) a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos à convicção que o tribunal de 1.ª instância teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência. Note-se que a dúvida (considerada insuperável) que assaltou a mente da Sra. Juíza do tribunal a quo e que determinou a decisão pro reo respeita à autoria dos danos causados no veículo automóvel “Smart”, matrícula ..-..-XX. Relativamente ao facto de a arguida, nas aludidas circunstâncias de tempo e lugar, estar agachada junto desse veículo automóvel e, à aproximação da viatura em que se faziam transportar os agentes policiais, se ter levantado e, de imediato, abandonado apressadamente o local, a Sra. Juíza reafirma na página nove da sentença a sua convicção de que assim aconteceu: “…não sendo plausível que os Agentes tenham parado sem se terem apercebido de algo estranho, o que nos leva a crer que, de facto, a arguida pudesse estar agachada junto do Smart” (sublinhado nossso). Ora, esse facto é relevante para a decisão, pois que, conjugado com outros (nomeadamente o facto de a arguida, na altura em que foi abordada pelos agentes policiais, empunhar um conjunto de chaves e também o facto de a viatura não apresentar qualquer estrago quando foi estacionada pelo seu condutor habitual na manhã do dia 28.11.2011), constitui uma base indiciária muito consistente para um juízo de inferência. Por tudo isto, entendemos que a sentença recorrida está, realmente, afectada pelo vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Erro na apreciação e valoração da prova – não valoração dos depoimentos dos OPC Escusado será discorrer longamente sobre a função da fundamentação das sentenças, até pela singeleza do caso. Importa, no entanto, dizer que o cumprimento do dever de fundamentação da sentença reclama, além do mais, a indicação e o exame crítico das provas em que o tribunal se alicerçou para formar a sua convicção (n.º 2 do art.º 374.º do Cód. Proc. Penal). A formação dessa convicção há-de decorrer de uma valoração racional e crítica - de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, designadamente de psicologia judiciária - das provas. O julgador deve preocupar-se, sobretudo, em ser claro, racional e objectivo na motivação da sua decisão, de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objecto de controlo. Isto porque a livre convicção, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva[3]. É este o entendimento há muito sedimentado no âmbito da jurisdição constitucional, de que destacamos os acórdãos com os n.ºs 1165/96 e 464/97 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Ao nível do Supremo Tribunal de Justiça está, também, sedimentado o entendimento de que a motivação visa, não só o controlo da legalidade dos meios de prova produzidos em audiência, mas também a reconstituição do processo lógico-mental seguido pelo julgador. Importa reconhecer que a Sra. Juíza do tribunal a quo fundamentou, exaustiva e proficientemente, a decisão que tomou em matéria de facto. Ora, perante uma sentença devidamente fundamentada, para que possa (deva) ser revogada ou alterada, não basta apontar o error in judicando, “impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou o conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão” (acórdão da Relação de Coimbra, de 30.03.2010, disponível em www.dgsi.pt/jtrc). A questão que aqui se coloca é a de saber se o tribunal podia (devia) valorar os depoimentos dos agentes da PSP que abordaram (e acabaram por deter) a arguida na parte em que afirmaram que esta, quando por eles interpelada, admitiu ter sido quem provocou os danos (riscos na frente e parte lateral esquerda, escovas do limpa pára-brisas torcidas e antena exterior partida) que o veículo “Smart”, de matrícula ..-..-XX, apresentava porque, habitualmente, estaria mal estacionado e impediria a passagem do seu próprio veículo automóvel. Na primeira instância respondeu-se negativamente a essa questão, com um duplo fundamento: - tais declarações não podem ser valoradas, nos termos das disposições normativas conjugadas dos artigos 357.º e 356.º, n.º 7, do Cód. Proc. Penal; - mesmo para quem entende que nada obsta a que os OPC relatem o que lhes foi transmitido, informalmente, pela pessoa (um eventual suspeito) que depois veio a ser constituída arguida e que esses depoimentos podem ser plenamente valorados, é imperioso que não se vise contornar a proibição contida no citado artigo 356.º, n.º 7, e que se respeite o comando do artigo 59.º do Código Processo Penal (e cita-se, neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 24.01.2012, proferido no Proc. n.º 35/07.2 PJAMD. L1-5), o que não teria acontecido neste caso, já que as “declarações confessórias” da arguida, “configuráveis como declarações de arguido prestadas a órgão de polícia criminal, foram vertidas em auto sem que se tenha dado cumprimento ao disposto no artigo 59.º do Código Processo Penal”. O aresto citado (também mencionado na resposta do Ministério Público) foi relatado pelo mesmo relator deste acórdão e não se antolha qualquer razão válida para alterar o entendimento aí perfilhado e que expressámos assim: «Ao contrário do que é afirmação corrente, a lei processual penal não proíbe o depoimento indirecto[4]. Só a admissibilidade do “depoimento de ouvir dizer” justifica que haja um preceito legal (o artigo 129.º do Cód. Proc. Penal) a regular os termos em que pode ser produzido e valorado em julgamento o depoimento indirecto. (…) A regra é a de que a testemunha deve ser inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo (art.º 128.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal), mas não é, de todo, proibido o testemunho de ouvir dizer, desde que se indique a pessoa a quem se ouviu dizer e que essa pessoa seja chamada a depor (1.ª parte do n.º 1 do citado artigo 129.º) ou, mesmo não se fazendo comparecer a fonte do conhecimento dos factos para ser inquirida, isso aconteça por impossibilidade devida a morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (2.ª parte do n.º 1 do mesmo preceito legal). Como se esclarece no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/99 (DR, II, de 09.11.1999), “…embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule), o princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações”. São abundantes as decisões judiciais sobre este tema e, em particular, sobre a questão da admissibilidade dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal, e pode dizer-se que existe dessintonia entre a jurisprudência (quer dos tribunais comuns, quer do Tribunal Constitucional) e a doutrina portuguesa (pelo menos, uma parte dela) sobre esta matéria. As divergências começam logo a propósito do que deve entender-se por depoimento indirecto e por isso convém precisar este conceito. Depoimento directo é aquele em que a testemunha que o presta revela uma aquisição originária do conhecimento dos factos, ao passo que no depoimento indirecto esse conhecimento do depoente é uma aquisição derivada (em segunda mão), não resulta de uma percepção (visual, auditiva, olfactiva, etc.) directa e imediata, antes é transmitido por outrem. Como se escreveu, com sageza, no acórdão do TRP, de 24.09.2008 (www.dgsi.pt), “o critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade, o seu depoimento é directo, se não, é indirecto”. Na doutrina, o Prof. G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 221) avança a seguinte definição: “Conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos”. Na mesma linha, M. Simas Santos, Leal-Henriques e João Simas Santos (“Noções de Processo Penal”, Rei dos Livros, 2010, p. 202), realçam, como critério de distinção, a natureza (directa ou indirecta) do contacto que a testemunha teve com os factos objecto de prova: “Tem-se conhecimento directo de um facto quando dele se colheu percepção através dos sentidos, isto é, quando se apreende o facto por contacto imediato com ele por intermédio dos olhos, dos ouvidos, do tacto, etc. O conhecimento é indirecto quando provém de percepção exterior a esses mesmos sentidos e só chega à área do depoente através de veículos que lhe são alheios. Assim, sempre que alguém relata um facto com base num conhecimento apreendido por si próprio através dos seus sentidos diz-se que faz um depoimento por ciência directa; quando o relata com base num conhecimento que obteve por intermédio de outrem ou por elementos informativos que não colheu de forma imediata (v.g., por ouvir dizer, através de um documento, de uma fotografia, de um filme, etc.) diz-se que faz um depoimento por ciência indirecta”. Na prática, nem sempre se faz a mais adequada aplicação destas noções. No acórdão do STJ, de 30.09.1998 (processo n.º 366/98-3.ª), afirma-se que não estamos perante depoimento indirecto proibido se o ofendido/demandante civil, prestando declarações, diz “o que ouviu directamente da boca do arguido”; não constitui depoimento indirecto a afirmação de uma testemunha de que ouviu o arguido dizer que era o condutor de um automóvel que acabara de intervir num acidente de viação (acórdão do TRP, de 07.02.2007, www.dgsi.); não profere depoimento indirecto o agente da PJ que em audiência depõe relatando o que lhe foi transmitido pelo arguido e por uma empregada sua (acórdão do TRL, de 15.03.2007, processo n.º 2287/07-9.ª); as declarações de uma testemunha relatando a conversa que manteve com a arguida não constituem depoimento indirecto (acórdão do TRP, de 04.07.2007, processo n.º 0647256); se uma testemunha conta que o arguido lhe disse que foi participante num furto e até lhe indica, com pormenores significativos (posteriormente confirmados) onde se encontram os objectos furtados, não está a fazer um depoimento indirecto (acórdão do TRG, de 25.05.2009, processo n.º 359/06GVCRM.G1). Porém, como bem se observa no acórdão do TRG, de 11.02.2008, CJ XXXIII, Tomo I, 296; Relator: Des. Cruz Bucho), há que distinguir: “Quando a testemunha relata em tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo porque a testemunha dele teve conhecimento directo por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos. Mas, no caso em apreço, não é esta conversa o facto que interessa ao tribunal, mas antes o de saber se foi o arguido quem agrediu fisicamente a ofendida e, quanto a esta realidade, o depoimento daquelas testemunhas é manifestamente indirecto na medida em que, relativamente ao mesmo, as referidas testemunhas não possuem conhecimento directo, já que o seu conhecimento resultou do que ouviram dizer a ofendida”. Volvendo ao nosso caso, verifica-se que a testemunha RG, agente da PSP que, na altura, estava no exercício das suas funções, narrou que recebeu uma comunicação para se dirigir ao …, na freguesia …, e aí chegado constatou que GN tinha dois orifícios num dos membros inferiores, pois tinha sido baleado. Em conversa com o GN, este contou-lhe o que tinha acontecido. Neste segmento, tal como na parte em que relata as medidas cautelares que tomou para recolha e preservação de provas, a testemunha faz um depoimento directo, pois transmite aquilo que percepcionou (viu e ouviu) directamente no local. No entanto, do acervo de factos (os que o tribunal a quo considerou não provados) que sustentam a imputação que o Ministério Público faz aos arguidos CG, JM e FB da autoria dos crimes de rapto, roubo agravado e ofensa à integridade física simples e ao último, ainda, do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, não teve a testemunha RG conhecimento directo, porque não os presenciou, e o que sabe é aquilo que o ofendido GN lhe contou e que ele consignou no auto de notícia que elaborou. Nessa parte, porque esses factos não pertenciam ao universo cognitivo do depoente, é de primeira evidência que temos um depoimento indirecto. O tribunal recorrido fez a destrinça, considerando que estava vedado o aproveitamento do relato do agente RG “relativamente ao que lhe foi dito por GN” por ser depoimento indirecto e por isso não o valorou como meio de prova. Na mente de algumas pessoas, persiste a ideia de que os órgãos de polícia criminal (OPC) sofrem de uma espécie de capitis diminutio que os excluiria da prova testemunhal (no seu “Código de Processo Penal Anotado”, 9.ª edição, o Sr. Conselheiro Maia Gonçalves, dá-nos notícia dessa tese peregrina). É óbvio que nada impede um inspector da Polícia Judiciária, um agente da PSP, um soldado da GNR, etc., de depor sobre factos de que tomou conhecimento. Por outro lado, é, igualmente, claro que não se questiona aqui a proibição de um órgão de polícia criminal depor sobre o conteúdo de declarações que recolheu, quer de testemunhas, quer de pessoas já constituídas arguidas, e que foram formalizadas em auto (n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal). A questão coloca-se em relação às declarações não formalizadas em auto prestadas perante um órgão de polícia criminal: é admissível e poderá ser valorado o depoimento de um agente da polícia que reproduz o que ouviu dizer à vítima de um crime ou a uma pessoa que depois vem a ser constituída arguida? Vamos cingir a nossa análise à primeira hipótese, ou seja, aquela em que o OPC relata aquilo que ouviu da vítima, pois foi através do ofendido que a testemunha RG tomou conhecimento dos factos que consubstanciam os referidos ilícitos penais. O Prof. Germano Marques da Silva[5], a este propósito, pronuncia-se nos seguintes termos: “Poder-se-ia questionar se as pessoas referidas no art.º 356.º poderão ser inquiridas sobre o conteúdo de declarações que não foram reduzidas a auto. Parece-nos que é de aplicar o princípio geral traduzido no brocardo quod non est in auto non est in mundo. Tudo o que for relevante deve constar do auto e se há declarações que do auto não constam não podem ser consideradas”. No entanto, sentiu necessidade de afirmar que os agentes policiais não sofrem de qualquer incapacidade nem impedimento: “Os órgãos de polícia criminal podem testemunhar sobre todos os factos de que tenham conhecimento directo, só não podendo ser objecto do seu depoimento os conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ser reduzidos a auto e não foram, sendo a leitura desse auto também proibida. Por isso que os órgãos de polícia criminal possam testemunhar sobre todos os factos de que tomaram conhecimento fora do processo, nomeadamente declarações feitas pelo arguido ou terceiros, observando-se, neste caso, as regras do testemunho indirecto”. Radical é a posição de Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário…, 347, anotações 7, 8 e 9): “…não é admissível o depoimento do agente policial que ouviu declarações feitas por uma testemunha ou declarante depois da prática dos factos criminosos, mesmo que essa pessoa venha a falecer antes da audiência (…). Se as declarações dessa pessoa ao agente policial tivessem sido registadas por escrito elas não poderiam ser lidas na audiência (artigo 356.º, n.º 4), salvo se o Ministério Público, o assistente e o arguido estivessem de acordo na sua leitura (artigo 356.º, n.º5), e, portanto, não tendo sequer sido reduzidas a escrito, não passam de uma «conversa informal» mantida pelo agente policial cujo conteúdo não pode ser reproduzido em audiência. Dito de outro modo, o artigo 356.º, n.º 7, também veda o aproveitamento em julgamento de conversas informais havidas, antes ou depois da abertura formal do inquérito, entre os agentes policiais e quaisquer testemunhas ou declarantes, ainda que estas pessoas venham a falecer posteriormente ou a padecer de anomalia psíquica superveniente ou seja impossível localizá-las (…)” – anotação 7. “A mesma conclusão vale correspondentemente para os depoimentos dos agentes policiais que mantiveram conversas informais com o suspeito ou arguido depois da prática do crime e fora do inquérito” - (anotação 8). “Em síntese, o depoimento dos agentes policiais está sujeito a um regime diferente de quaisquer outras testemunhas, em virtude da proibição legal dos artigos 356.º, n.º 7, e 357, n.º 2. Esta proibição veda o aproveitamento na audiência do depoimento do agente policial sobre declarações que ouviu dos suspeitos, arguidos, testemunhas, assistentes, ofendidos, partes civis, lesados ou quaisquer outros declarantes, quer elas tenham sido feitas antes ou depois da abertura formal do inquérito, quer o agente policial venha ser instrutor do inquérito ou não. A única excepção a esta regra tolerada pela proibição legal dos artigos 356.º, n.º 7, e 357, n.º 2, é a do depoimento do agente policial quando depõe sobre as declarações que ouviu fazer durante a prática da actividade criminosa. Esta, e só esta, é uma prova directa do facto criminoso inteiramente lícita” - (anotação 9). Este entendimento, que se insere numa corrente doutrinária que tem uma posição extremista sobre proibições (de produção e de valoração) de prova, não tem tido acolhimento na jurisprudência, como se vê, v.g., pelo acórdão do STJ, de 15.02.2007, www.dgsi.pt (Relator: Cons. Maia Costa), que, depois de considerar irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre os agentes policiais e os arguidos, pois essas conversas podem ser uma forma ilegítima de frustrar o direito do arguido ao silêncio, sustenta: “IV – De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (artigo 249.º do CPP). V – Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo. VII – O que o artigo 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artigo 249.º do CPP”. É evidente que aos órgãos de polícia criminal não está vedado ter com determinadas pessoas conversas que não são formalizadas em auto. Essas conversas podem reportar-se a factos que estão em investigação e a fonte de informação pode até ser um suspeito do crime investigado. Aliás, ao abrigo do disposto nos artigos 55.º, n.º 2, 249.º e 250.º do Cód. Proc. Penal, os órgãos de polícia criminal podem e devem colher notícias do crime, descobrir os seus agentes e praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição. Nada impede que os agentes de investigação, em audiência, deponham sobre o conteúdo dessas diligências, incluindo sobre o conteúdo das conversas havidas com suspeitos que, entretanto, foram constituídos arguidos e mesmo que estes, na audiência, se remetam ao silêncio. Essencial é, no entanto, que as conversas não visem contornar ou iludir a proibição contida no n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal e que seja respeitado o comando do art.º 59.º do mesmo diploma legal. Isso mesmo resulta dos seguintes acórdãos, seleccionados pelas evidentes afinidades que têm com o caso sub judice: Acórdão do S.T.J. de 20.11.2002 (C.J./Ac.s STJ, Ano X, Tomo III, 232. Relator: Cons. Virgílio de Oliveira). (…) Acórdão do S.T.J. de 24.02.93 (C.J./Ac.s STJ, Ano I, Tomo I, 202. Relator: Cons. Armando Pinto Bastos). (…) Acórdão da Relação de Coimbra de 18.06.2003 (C.J. XXVIII, Tomo III, 51. Relator: Desembargador Oliveira Mendes). (…) Acórdão do S.T.J., de 08.01.2003 (C.J./Ac.s STJ, 2003, Tomo I, 149; Relator: Cons. Lourenço Martins). (…) Acórdão do TRC, de 02.02.2005 (CJ XXX, Tomo I, 42): (…) Acórdão do TRP, de 24.09.2008 (www.dgsi.pt): (…) Acórdão do TRL, de 10.11.2005 (www.dgsi.pt): (…) Feita esta breve incursão pela doutrina e pela jurisprudência, é tempo de tomar posição sobre a questão submetida à nossa apreciação, ou seja, se podia (devia) ser valorado o depoimento prestado na audiência pelo agente RG (naturalmente, na parte em que tem de ser considerado um depoimento indirecto). Importa fazer notar que aquele OPC nunca tomou declarações (nem participou na sua recolha) ao ofendido. Referimo-nos, é claro, a declarações que tivessem sido (ou devessem ter sido) formalizadas com a elaboração do respectivo auto, como aconteceu com as que o ofendido GN prestou perante um inspector da Polícia Judiciária, a entidade competente para a investigação deste caso (cfr. auto a fls. 56 e segs.). As únicas declarações que o agente RG ouviu do ofendido foram aquelas a que já aludimos, quando ele estava ferido depois de ter sido baleado numa perna e lhe contou o que tinha acontecido. Por conseguinte, são declarações que, manifestamente, não cabem na previsão do n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal. (…) Quando estão em causa direitos e garantias fundamentais do arguido, o juiz deve ser intransigente na sua defesa, cabendo-lhe assegurar que o processo seja justo, equitativo, transparente, o que passa por garantir o respeito por princípios fundamentais como sejam o da imediação e do contraditório. O problema está em que a orientação doutrinária que o tribunal recorrido acolheu e seguiu acriticamente é unilateral por se preocupar apenas com as garantias da defesa e ignorar finalidades primárias que o processo penal tem de prosseguir, como sejam a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a tutela de direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da norma jurídica violada. Não podendo pretender-se que seja conseguida a qualquer preço, a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico. Com efeito, componente essencial do princípio do Estado de Direito é a ideia de justiça, a qual exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio. Como em adequada síntese refere João Conde Correia[6]: “A máxima protecção dos direitos fundamentais colocaria barreiras intransponíveis à descoberta da verdade e, em consequência, à realização da justiça, e a busca da verdade a todo o custo eliminaria os mais elementares direitos, conduzindo a uma mistificação da justiça. Este conflito revela-se, em toda a sua amplitude, de forma exponencial, no domínio dos meios de prova e de obtenção da prova. Com efeito, o interesse punitivo do Estado e a plêiade de métodos, tendentes a determinar a existência de um facto ilícito, a punibilidade do seu autor e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, dada a natureza das coisas, podem afrontar, de forma grave e irreversível, os direitos fundamentais inerentes a um ser livre e digno”. Sempre que se verifique a existência de uma tensão entre princípios e interesses fundamentais potencialmente conflituantes, há que procurar a sua harmonização. Ora, no já citado acórdão do TC n.º 440/99 (que reproduz os fundamentos de um outro, com o n.º 213/94, do mesmo tribunal), a este propósito, escreveu-se: “…entende-se que a regulamentação consagrada na norma do n.º 1 do art.º 129.º do Código de Processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law). A disciplina contida no referido art.º 129.º, n.º 1 (…) também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório; de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination. Só assim não será (isto é, as pessoas referidas não são chamadas a depor), se a inquirição não for possível, «por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas». Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto. Tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção (cf. o artigo 127.º do Código de Processo Penal)”. Tendo decidido trilhar caminho oposto, o Colectivo de juízes que julgou este caso desenvencilhou-se mal na tarefa do balanceamento das finalidades em tensão, pois optou, unilateral e exclusivamente, pela afirmação dos interesses e direitos da defesa, em total detrimento da realização da justiça, um valor, também, com tutela constitucional. Por isso não pode manter-se a decisão de excluir do processo probatório o depoimento indirecto da testemunha RG». Embora tendo em mira uma situação diversa da que aqui se discute (já que o OPC relatou, no seu depoimento, aquilo que ouviu da pessoa do ofendido), as considerações ali expendidas e a posição assumida são, mutatis mutandis, válidas para este caso. Importa frisar que não se trata de valorar “declarações confessórias” da arguida (que só relevam se forem feitas em audiência de julgamento ou, sendo efectuadas em momento anterior, se forem lidas nos termos permitidos pelo artigo 357.º do Cód. Proc. Penal), mas antes o depoimento de agentes policiais que, em cumprimento das determinações legais pertinentes (cfr. artigo 249.º do Cód. Proc. Penal), trataram de colher informação sobre quem tinha provocado os estragos na viatura automóvel (e, nas mencionadas circunstâncias, essa informação só poderia ser obtida da arguida, então mera suspeita) e verteram no auto de notícia que elaboraram a informação obtida. Também digno de registo (porque não é o que habitualmente acontece) é a total correcção dos procedimentos adoptados pelos agentes policiais. Ao contrário do que se afirma na sentença, não tinha que ser dado imediato cumprimento ao disposto no artigo 59.º do Cód. Proc. Penal pelas razões que o recorrente, douta e assertivamente, explana na motivação do recurso. Com efeito, dada a natureza semi-pública do crime de dano, poderia nem sequer haver processo se não fosse apresentada queixa e, por conseguinte, era inoportuna a imediata constituição da, então, suspeita como arguida. Por outro lado, cabe aqui realçar que, ainda ao contrário do que se diz na sentença recorrida, a proibição contida no n.º 7 do art.º 356.º do Cód. Proc. Penal refere-se, apenas, às declarações recolhidas (quer de testemunhas, quer de pessoas já constituídas arguidas) e que foram formalizadas em auto, e não também às informações colhidas pelo OPC no âmbito das necessárias medidas cautelares que lhe compete tomar, mesmo que obtidas de alguém que é suspeito e pode vir a ser arguido. Os desenvolvimentos que, entretanto, se verificaram na jurisprudência sobre esta questão da valoração do depoimento indirecto não justificam qualquer inflexão na posição assumida no aresto citado. Bem pelo contrário, pode dizer-se que se consolidou o entendimento jurisprudencial que propugnamos e que tende a ser a orientação claramente dominante. É o que decorre das decisões que aqui recenseamos: Da Relação de Coimbra, salientamos o acórdão de 15.02.2012 (relatado pelo Desembargador Dr. Paulo Guerra), em que se defende, com desenvolvida fundamentação, que “não constitui depoimento indirecto - portanto, não enquadrável no art.º 129.º, do C. Proc. Penal e, portanto, não constituindo prova proibida -, o depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu o arguido dizer, isto mesmo que o arguido não preste declarações na audiência, no exercício do seu direito ao silêncio”[7]. Situação que ocorre frequentemente é aquela em que, chamado a intervir em casos de acidente de viação, o OPC, cumprindo o seu dever, indaga quem são os condutores dos veículos intervenientes e submete-os ao teste de alcoolemia. No acórdão da Relação de Coimbra de 11.09.2013 (relado pelo Des. Dr. José Eduardo Martins) decidiu-se que “tendo o arguido relatado, espontaneamente, a órgão de polícia criminal, antes da existência de processo e, consequentemente, em momento anterior ao da constituição do primeiro na dita qualidade, o acto de condução em estado de embriaguez que praticou, a valoração do depoimento do segundo, ao narrar, em audiência de julgamento, o acima descrito, não viola qualquer norma processual penal, nomeadamente o disposto nos artigos 356.º, n.º 7, do CPP”[8]. Ainda da mesma Relação, merecem referência os acórdãos de 26.06.2013, relatado pelo Desembargador Dr. Correia Pinto (“tendo o arguido relatado espontaneamente a certa testemunha, órgão de polícia criminal, antes da existência de qualquer processo e, consequentemente, antes da sua constituição na dita qualidade, terem sido por si colocados laços visando a captura de espécies cinegéticas, a valoração positiva do depoimento da referida testemunha, que relatou, em audiência de julgamento, o que ouviu o arguido afirmar, não viola o disposto nos artigos 356.º e 357.º do CPP) e de 09.05.2012, de que foi relator o Sr. Desembargador Alberto Mira (“no caso, tendo os arguidos relatado espontaneamente aos Agentes de Polícia J… e N…, antes da existência de processo e, consequentemente, antes da constituição daqueles na dita qualidade, o acto subtractivo versado nos autos, a valoração dos depoimentos das duas referidas testemunhas, ao narrarem em audiência o que ouviram dizer aos arguidos, não viola qualquer norma de índole processual penal, nomeadamente, o disposto nos artigos 356.º, n.º 7 e 357.º, n.º 2, ambos do C. Proc. Penal”). Desta Relação do Porto, salientamos o acórdão de 17.04.2013, relatado pelo Desembargador Dr. José Carreto (III - Está excluído das conversas informais o conhecimento que foi trazido ao agente policial por parte do arguido ou de outra fonte permitida, bem como o prestado espontaneamente pelo arguido limitando-se o agente policial a ouvir pois que, se o arguido tem o direito a não prestar informações (que o possam incriminar), nada o impede de o fazer voluntária e conscientemente; e está ainda excluído o recolhido em investigação, mesmo do arguido, no âmbito das medidas cautelares nos termos do art° 249° CPP. IV – Todas estas situações não se enquadram na proibição do n° 7 do art° 356 do CPP. V – Ainda que se entenda que se trata de depoimento de “ouvir dizer”, não se está perante prova proibida. VI - O depoimento indirecto, de "ouvir dizer" é livremente apreciado pelo tribunal como os demais depoimentos desde que seja identificada a pessoa de quem se ouviu dizer e essa pessoa seja chamada a depor (art° 129°, n.º l do CPP e salvo a situação excepcional de impossibilidade de chamamento); e só não valerá como meio de prova se a pessoa não for chamada a depor, ou o depoente não identificar a fonte do seu conhecimento (art° 129°, n.º 3 CPP). VI – Como os agentes policiais indicaram a fonte, a arguida, e estando esta presente em audiência aquando dessa prestação o depoimento, não ocorre proibição de valoração do depoimento ainda que a arguida se tenha remetido ao silêncio) e da Relação de Évora o acórdão de 04.06.2013, relatado pelo Sr. Desembargador João Gomes de Sousa (“4. As “conversas informais” são um expediente para tornear direitos em nome de uma suposta verdade “descoberta” pelo investigador policial que, dessa forma, pretende determinar o resultado do julgamento. São, portanto, um expediente de má policia. Um abuso. Uma fraude à lei e ao Direito. 5. Se o meio de prova “declarações de arguido” não cumpre a regra da “tipicidade de interrogatório” de arguido e surge através, de “conversa informal” ocorre o vício processual da inexistência do meio de prova “declarações de arguido”. 6. Mas as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, o que cria situações de facto de fronteira e de difícil solução. 7. Quando o ainda não arguido não foi constituído arguido, podendo considerar-que que há motivo para tal, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal qualquer declaração daquele não pode ser utilizada como prova. 8. Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido, antes de este o ser ou haver obrigação de constituição, se não houver culpa das forças policiais no atrasar da formalização daquela constituição. 9. Face ao ordenamento português parece indubitável que o simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válida se ainda não havia obrigação de constituição como arguido. 10. Se as entidades policiais agem dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.) e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida. 11. Por isso que a questão não se centra em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido, já que são sempre proibidas após a constituição como arguido. E nunca são antes da constituição como arguido, excepto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição”). Por último, do Supremo Tribunal de Justiça, importa referir os acórdãos de 19.09.2012, relatado pela Ex.ma Conselheira Isabel Pais Martin (V - O depoimento da testemunha AV, baseado no que ouviu dizer a arguido no processo e, assim, consubstanciando um depoimento indirecto, na medida em que plenamente sujeito ao contraditório, em audiência, tanto mais que, a requerimento de arguido, foram feitas diligências com vista a aferir da sua credibilidade, pode ser livremente valorado pelo Tribunal, enquanto um dos meios de prova em que se baseou para dar por provados os factos relativos ao recorrente TM. VI - Ao recorrente TM, bem como aos restantes arguidos, foram dadas todas as oportunidades de se pronunciar sobre esse meio de prova e de o confrontar; se não o quiseram fazer, no exercício do seu direito ao silêncio, do que se trata é de uma verdadeira impossibilidade de interrogar os arguidos, cujas conversas consigo a testemunha AV relatou. Assim, na interpretação que fazemos do n.º 1 do art. 129.°, em conjugação com o art. 128.° do CPP, dando por reproduzidos os fundamentos do Ac. do TC n.º 440/99, de 08-07, sobre o depoimento da testemunha AV não incide qualquer proibição de prova) e de 27.06.2012, relatado pelo Sr. Conselheiro Santos Cabral [XVI - O n.º 1 do art. 129.º do CPP (conjugado com o n.º 1 do art. 128.º) deve ser interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio. XVII - O direito ao silêncio do arguido circunscreve-se a uma dimensão positiva que lhe confere a faculdade de se manter em silêncio ao longo de todo o processo e, em especial, na audiência de julgamento (arts. 61.º, n.º 1, al. d) e 343.º, n.º 1, in fine), sem que tal comportamento possa ser interpretado em seu desfavor. Colide com o princípio da legalidade da prova (art. 125.º do CPP) a atribuição ao direito ao silêncio do efeito negativo de obstaculizar qualquer depoimento sobre o que o mesmo referiu anteriormente. XVIII - A proibição do art. 129.º do CPP visa os testemunhos que pretendam suprir o silêncio do arguido, mas não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, v.g. as providências cautelares a que alude o art. 249.º do CPP. XIX - O relato de órgãos de polícia criminal sobre afirmações ou contribuições do arguido (v.g. factos, gestos, silêncios, reacções) de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligências de prova (v.g. interrogatórios, acareações) e que não o devessem ser sobre tal formalismo, bem como no âmbito de actos de investigação e meios de obtenção de prova (v.g. buscas, revistas, exames ao local do crime, reconstituição do crime, reconhecimentos presenciais, entregas controladas) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento válido e eficaz por se mostrarem alheias à tutela dos arts. 129.º e 357.º do CPP. XX- A indicação feita pelos arguidos à entidade policial sobre o local onde ocorreu o homicídio pode e deve ser valorada em sede de depoimento da mesma entidade policial)[9]. Como se pode constatar, na decisão recorrida optou-se pela solução (de não valorar os depoimentos indirectos) que, tendo os favores da doutrina, está em dessintonia com o entendimento que tem prevalecido na jurisprudência. * É legítima a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal que assente na violação de qualquer dos passos que conduzem a essa convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação, ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos. Ora, como vimos, na apreciação que fez da prova, o tribunal a quo excluiu indevidamente meios de prova: os depoimentos das testemunhas D… e E…, na parte em que eram depoimentos indirectos não foram valorados. Esse desaproveitamento de meios de prova, por si só, faz com que o resultado do processo probatório (uma resposta de não provado em relação à questão essencial; foi a arguida quem provocou os estragos que a viatura automóvel “Smart”, de matrícula ..-..-XX, evidenciava na madrugada de 29.11.2011?) esteja, necessariamente, viciado. Tendo uma base probatória mais alargada (com a valoração, em pleno, dos depoimentos das referidas testemunhas), a decisão em matéria de facto será uma decisão nova, provavelmente diferente, que poderá dar lugar à condenação da arguida. Decidindo-se que existem meios de prova que foram excluídos do processo probatório, mas erradamente, pois deviam ter sido valorados, o tribunal terá de proceder a uma nova apreciação da prova na sua globalidade e se for este tribunal da relação a fazê-lo estará a decidir em primeira e única instância a matéria de facto, dado que, dessa decisão, qualquer que ela seja, não haverá recurso[10]. Com efeito, é bem sabido que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, pois que duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso. O recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados e o que se impõe aqui é uma reponderação da totalidade do material probatório, incluindo os meios de prova indevidamente excluídos, e uma nova decisão da matéria de facto que há-de resultar dessa reapreciação. Importa frisar que não temos aqui um erro-vício da sentença dos contemplados no n.º 2 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal. Estamos, isso sim, perante um erro de direito, pois o tribunal recorrido violou regras sobre o modo de formação da convicção, já que não fez a correcta interpretação e aplicação de normas sobre proibição (de produção e valoração) de provas. Esse erro requer uma nova decisão em matéria de facto que, pelas razões que acabámos de expor, tem de ser proferida na primeira instância, proporcionando assim aos sujeitos processuais a possibilidade de contra ela reagir[11]. É certo que, como também vimos, a decisão recorrida está afectada pelo vício de contradição entre a fundamentação e a decisão em matéria de facto (limitada ao ponto, oportunamente, identificado, ou seja, estar a arguida agachada junto ao veículo “Smart”, matrícula ..-..-XX, e ter-se levantado de imediato e seguido em passo acelerado quando avistou o veículo em que vinham os agentes de autoridade), mas a sanação desse vício decisório não requer a realização de novo julgamento, ainda que limitado a esse ponto, pois basta que o tribunal a quo extraia as devidas consequências da avaliação que faz da prova produzida. III – Decisão Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que resulte da apreciação e valoração da globalidade dos meios de prova postos a disposição do tribunal, incluindo a valoração, na sua plenitude, dos depoimentos testemunhais de D… e E…, indevidamente excluídos do processo de formação da convicção do tribunal, e da qual (sentença) seja expurgado o vício decisório que afecta a sentença recorrida. Sem tributação. (Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas). Porto, 23-10-2013 Neto de Moura Vítor Morgado (Voto vencido, de acordo com as razões que invoco em anexo) Dr. Baião Papão, com voto de desempate ______________ [1] Apenas com a correcção de pequenos erros ortográficos. [2] Como se pode ler no acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), “a partir da reforma de 1998 passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. [3] A prova não pode nunca basear-se numa intuição da verdade de uma proposição. [4] Absolutamente proibido é o depoimento que se limita a reproduzir vozes ou rumores públicos (art.º 130.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal). [5] “Op. cit.”, 231. [6] Revista do Ministério Público, n.º 79, 45 [7] Do mesmo relator, e no mesmo sentido, o Ac. do TRC, de 13.12.2011. [8] No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 17.09.2013 (relator: Des. António João Latas), de cujo sumário destacamos o seguinte: I - A identificação do condutor de veículo interveniente em acidente de viação perante agente da fiscalização do trânsito traduz o cumprimento de um dever geral de obediência às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito, ou dos seus agentes, desde que devidamente identificados como tal (art. 4º do C. Estrada), sendo certo que no caso de intervenção em acidente o art. 89º C. Estrada impõe mesmo ao condutor a obrigação de se identificar perante os restantes intervenientes. II - Assim, ainda que aquela identificação venha posteriormente a constituir indício da autoria de crime em processo penal contra o arguido, a mesma não pode considerar-se declaração extraprocessual protegida pelo direito à não autoincriminação, sob pena de esvaziamento do dever de identificação e apresentação de documentos imposto pelo direito estradal. [9] Todos os acórdãos citados estão acessíveis em www.dgsi.pt [10] Assim também o acórdão do TRL, de 11.10.2006, www.dgsi.pt (Relator: Des. Carlos Almeida), embora a situação aí apreciada fosse a inversa, isto é, de depoimento indirecto que foi indevidamente valorado e por isso se impunha uma nova apreciação da prova. [11] Sobre esta questão de provimento condenatório de recurso de decisão absolutória, J.M.Damião da Cunha (“O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória”, Publicações Universidade Católica, Porto 2002, 519) pronuncia-se no sentido de que “não deve haver possibilidade de um tribunal superior alterar uma decisão, de absolutória para condenatória, porque não é possível declarar culpado um arguido sem que essa declaração seja precedida por uma audiência de julgamento (ou uma qualquer renovação de prova) em que lhe sejam concedidas, ex novo, todas as possibilidades de defesa. Ou seja, a declaração de absolvição pode ser “revogada”, mas não alterada (se se quiser, pode ser “cassada”, mas não “reformada”). _________________ Voto vencido, no que respeita à principal questão objeto do presente acórdão: a de saber se o tribunal devia valorar os depoimentos dos agentes da PSP, na parte em que afirmaram que a arguida lhes terá dito, quando por eles interpelada, que admitiu ter sido ela quem provocou os danos (riscos na frente e parte lateral esquerda, escovas do limpa-para-brisas torcidas e antena exterior partida) que o veículo “Smart”, de matrícula ..-..-XX, apresentava, porque, habitualmente, estaria mal estacionado e impediria a passagem do seu próprio veículo automóvel. Em bom rigor, constituindo os testemunhos dos referidos agentes, neste segmento, depoimentos indiretos do que terão ouvido “admitir” pela arguida e não sendo permitida a leitura de tais declarações (cfr. artigo 357º nº 1 do Código de Processo Penal), não podem ser valorados, por força do disposto, conjugadamente, no nº 2 do mesmo artigo 357º e no nº 7 do artigo 356º do mesmo diploma. De resto, porque não formalizadas, tais declarações nunca poderiam ser lidas em audiência, por lógica impossibilidade, não passando de uma “conversa informal” mantida pelos agentes policiais, que não podem ser reproduzidas em audiência, quer tenham sido feitas antes ou depois da abertura formal do inquérito – neste sentido, ver Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição páginas 362-363 (anotação nº 7 ao artigo 129º) e 920 (anotação nº 17 ao artigo 356º); ver, também no mesmo sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, 5ª edição, páginas 230-231; ver ainda os acórdãos do S.T.J. de 29/1/1992, in C.J./S.T.J., 1992, tomo I, página 22, e de 11/7/2001, C.J./S.T.J., 2001, tomo III, página 166. Na verdade, entendo que foi intenção do legislador pôr travão aos abusos a que se prestaria a admissão de depoimentos sobre declarações não formalizadas nos autos, pois o controlo da veracidade e autenticidade de tais depoimentos indiretos seria remetido para uma perigosa casuística. Tal não significa, obviamente, que não sejam atendidos os depoimentos dos agentes da PSP em causa, na parte em que constituem depoimentos diretos – por exemplo, nos segmentos em que relatam as atitudes tomadas pela arguida ao verificar que estava a ser observada. Vítor Morgado |