Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
269/10.2GBOVR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: FURTO QUALIFICADO
INFIDELIDADE
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
DANO DECORRENTE DA PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RP20131009269/10.2GBOVR.P2
Data do Acordão: 10/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Vindo o arguido acusado da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, nº 1, a), do Código Penal, e tendo sido condenado pela prática de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º do mesmo Código, por não se ter provado a intenção de apropriação do objeto em causa, mas apenas a intenção de causar prejuízo à sociedade proprietária desse objeto através da privação do uso do mesmo, não se verifica alteração, substancial ou não substancial, de factos em relação aos que constam da acusação.
II - Não deixa de verificar-se o elemento do tipo de crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º do Código Penal, que se traduz no caráter alheio dos interesses lesados quando o agente é sócio da sociedade lesada.
III - Em caso de subtração de um bem, e não se provando a intenção de apropriação do mesmo, o dano a que se reporta o artigo 224º, nº 1, do Código Penal como elemento do crime de infidelidade, há-de ser o que decorre da privação do uso desse bem, e não o equivalente ao valor do mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr269/10.2GBOVR.P2

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso da douta sentença do Juízo de Instância Criminal (Juiz 2) da Comarca do Baixo Vouga - Ovar que o condenou, pela prática de um crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º do Código Penal, na pena de cento e sessenta dias de multa, à taxa diária de seis euros e cinquenta cêntimos, assim como no pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais, à demandante “C…, Ldª”, da quantia de doze mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data para contestar o pedido de indemnização civil até integral pagamento.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«I - O acervo probatório constante dos autos, nomeadamente, o confronto do depoimento do arguido, com os depoimentos das testemunhas D…, E…, F… e G… e do teor dos documentos, nomeadamente, da ata de destituição do recorrente de gerente, da alegada fatura do crivo e bem assim da conformação desta por banda da vendedora, determinam que a matéria de facto constante da decisão e aí alinhada sob os itens 1 (esta respeitante ao valor da máquina e quanto ao seu funcionamento) e 3 sejam considerados não provados e, assim, se absolva o recorrente;
II – A não ser assim e, tendo-se alterado os factos pelos quais o recorrente vinha acusado e, tratando-se não de uma mera qualificação jurídica diversa ou alteração não substancial, mas alteração substancial, já que estamos em face de uma incriminação autónoma (com factos manifestamente diferentes daqueles que integram o tipo legal de furto), a sentença condenatória é nula;
III – Para que pudesse vingar a condenação pelo tipo de infidelidade, necessário se mostraria que a acusação tivesse provado a consciência da ilicitude e vontade de prejudicar o ofendido, o que, manifestamente, não sucedeu, pois, o arguido referiu que não tinha qualquer consciência de que estava a cometer qualquer crime, já que era gerente e, apenas, pretende acertar as contas com os demais sócios e entregar o crivo à denunciante.
IV – Além de tudo isso, não se vê donde resulte qualquer prejuízo para a denunciante, quando esta tem a sua atividade parada (aliás, todos referem que o crivo à data da retirada do local já não estava a ser utilizado) e, logo que apuradas as contas, o crivo volta à sua titularidade.
V – Por outro lado, sendo o arguido também detentor de parte do capital social da ofendida, aliás, seu gerente, à data, e, como tal, também ele proprietário do crivo, não se vê que se lhe possa assacar qualquer responsabilidade criminal.»

O Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância apresentou resposta à motivação do recurso, pugnando pelo não provimento do mesmo.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, reiterando a posição assumida pelo Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a sentença recorrida é nula, por dela constar uma alteração substancial de factos em relação aos que constam da acusação;
- saber se não se verificam todos os elementos objetivos do crime de infidelidade, por o arguido ser sócio da sociedade que terá sido prejudicada;
- saber se não se verificam todos esses elementos, por não se ter verificado qualquer prejuízo para essa sociedade;
- saber se não se verifica o elemento subjetivo desse crime, por não se ter provado que o arguido agiu com consciência da ilicitude e com a vontade de prejudicar a sociedade;
- saber se a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na douta sentença recorrida no que se refere ao valor do crivo a que nela se faz referência.

III – É o seguinte o teor da fundamentação da douta sentença recorrida:

«(…)
Fundamentação de Facto
Da discussão primitiva da causa, resultaram provados e não provados os seguintes factos:
1. O Arguido em data não concretamente apurada, mas cerca de um mês antes do início do mês de Agosto de 2010, por se ter incompatibilizado com os restantes sócios da sociedade “C1…, Lda.”, com sede na Rua …, em Ovar, da qual, ao tempo dos factos, era sócio-gerente, retirou um crivo de areias pertencente à Sociedade, avaliado em cerca de 12.000,00€, do pinhal onde se encontrava em funcionamento, sito no …, em Ovar, e levou-o consigo.
2. O Arguido não devolveu o apontado crivo à referida Sociedade.
3. O Arguido nos factos acima mencionados agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito conseguido de causar prejuízo e que agia contra a vontade da sua legítima proprietária e que por isso praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis.
4. O Arguido não tem antecedentes criminais.
Não resultaram provados quaisquer outros enunciados de facto com interesse para a presente decisão.
Com efeito, não se provou que:
- O valor do crivo descrito nos factos provados fosse diferente do que aí consta;
- A Ofendida ao ficar privada do uso do crivo sofre prejuízos pelo facto de a areia não ser crivada e ter de a vender a um preço inferior;
- A areia sem ser crivada é vendida por metade do preço;
- E que por tal facto a Ofendida tenha tido um prejuízo de 16.469,00€.
*
Da discussão da causa, após repetição do julgamento circunscrito à questão enunciada supra, resultaram provados os seguintes factos:
5. O Arguido apresentou a sua última declaração de rendimentos no nosso País no ano de 2007, ano correspondente ao da cessação de actividade, tendo um lucro tributável apurado de €2244,53; é casado mas encontra-se separado de facto; tem dois filhos com 21 e 16 anos de idade; quando em Portugal vive em caso do ex-sogro, não pagando rende; actualmente encontra-se a trabalhar em Espanha; o percurso profissional do arguido é marcado por trabalhos ocasionais e temporários, o que se traduz em forte instabilidade profissional e um agravamento das suas dificuldades financeiras; frequentou a 4ª classe do ensino.
*
Motivação quanto aos factos resultantes da primitiva discussão da causa, a qual se transcreve:
A motivação da decisão de facto tem como objectivo primacial o de aprimorar junto dos sujeitos processuais, de forma contundente, a força persuasiva do julgamento da matéria de facto.
É uma tarefa que se realiza com tranquilidade de espírito, porquanto o registo dos depoimentos prestados em audiência foi registado em suporte digital.
Para a presente decisão de facto o Tribunal estribou-se inicialmente nas declarações do próprio Arguido que referiu ter levado o crivo descrito nos factos provados para sítio que não revelou em sede de audiência de discussão e julgamento, ou sequer aos Sócios da Sociedade Participante.
Terá erigido tal tarefa cerca de um mês antes de ser destituído da gerência da apontada sociedade. Ora, da concatenação destas declarações, com a acta de fls. 67, resulta com meridiana clareza que o Arguido terá subtraído o crivo aos poderes da sociedade cerca de 30 dias antes de 2 de Agosto de 2010. Daí ter-se considerado tal data como referência para a apontada subtração.
Para além do Arguido, que esclareceu a sua conduta acima descrita, a referida subtracção foi ainda corroborada por D…, E… e H….
De outro prisma, o Arguido, em sede de declarações por si prestadas, confirmou não ter devolvido o crivo aos poderes da Sociedade Participante. Sendo certo que o teor da certidão comercial da apontada empresa e da acta de flsl 67 resulta igualmente a qualidade de gerente do Arguido.
A prova dos factos descritos em 3 derivou da formação do Arguido em conjugação com o conjunto de qualidades de uma pessoa que assumiu e aceitou desempenhar um cargo de gerência, que por inerência de funções terá que ter necessariamente a consciência do prejuízo e do delito ali retratados, ou de qualquer outra acção que prejudique a sociedade que represente.
Tanto mais que o Arguido tem formação e teve plena consciência do prejuízo que causou, e causa, à referida Sociedade ao não devolver o apontado crivo, o qual é peça fundamental do escopo societário, ante o objecto negocial ínsito na respectiva certidão do teor comercial (cfr. fls. 53).
Os depoimentos de I…, J… e de K…, foram bastantes para considerar não provados os enunciados de facto referidos como tal, na medida em que dos apontados depoimentos não resultou que a Participante tenha dito os prejuízos ali retratados. Veja-se que I… e K… nunca compraram areia crivada, mas por vontade própria, e que J… nunca adquiriu areia sem estar crivada, igualmente por vontade própria, e já não por qualquer contingência da Sociedade Participante.
O valor do crivo foi suportado, sem qualquer margem de dúvida, pela factura descrita a fls. 6 (complementada pela informação de fls. 357).
Por último, também analisámos as certidões constantes no processo e as facturas de fls. 91 a 96, que por si não infirmam a conclusão a que chegámos relativamente aos alegados prejuízos da sociedade.
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Motivação referente aos factos apurados após repetição do julgamento:
Para apuramento e fixação das condições económicas do arguido o Tribunal baseou-se na declaração de rendimentos para efeitos de IRS a fls. 496 e ss. e no teor do Relatório Social de fls. 507 a 510.
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Dos factos que resultaram provados após a repetição do julgamento, restrito ao apuramento dos rendimentos do arguido, somos levados à mesma conclusão jurídica a que se chegou na primitiva decisão, com excepção do montante a fixar em termos de quantitativo diário.
Assim, por nada haver a alterar quantos aos factos 1. a 4., passa-se a transcrever a mesma:
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Do crime
De acordo com o artigo 224º do Código Penal, “quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico aqui protegido é o património de outra pessoa, já o agente passivo do crime é o titular do interesse patrimonial prejudicado. Aliás, como observa PAULO PINTO ALBUQUERQUE[1] no caso de uma sociedade, é o património desta e não o dos respectivos sócios o protegido pela norma penal.
O crime de infidelidade é um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e de resultado, quanto à forma de consumação da lesão ao objecto da acção.
O tipo objectivo de crime perfila-se na provocação de prejuízo patrimonial importante a interesses patrimoniais do sujeito passivo, no caso a Sociedade Participante, sendo que o prejuízo é importante, na medida em que se traduz em cerca de 12.000,00€ (ou seja, pelo menos, o valor do crivo). Aliás, a importância do valor pode até aferir-se por apelo às definições ínsitas no artigo 202º, al. a) do Código Penal.
Os poderes do agente, de acordo com o tipo, incluem a administração e fiscalização do património, ambos vectores compreendidos na gerência comercial, sendo que no caso a gravidade dos deveres violados encontra-se estribada na privação de uso de uma máquina.
Já a fonte dos poderes do agente poderá emergir de lei ou de acto jurídico, no caso derivou do contrato de sociedade e da nomeação de gerente.
No plano subjectivo o crime apenas permite o dolo (art. 14º do Código Penal), como tal admite-se aquele elemento em qualquer das suas três modalidades, seja directo, necessário ou eventual.
Em face do exposto, considerando os deveres sufragados no artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais, e o facto de o Arguido, sócio gerente, conscientemente ter subtraído à sociedade Participante uma máquina do seu objecto e finalidade comercial, causando prejuízos, pelo menos no montante do valor da apontada máquina, incorreu no crime de infidelidade acima descrito.
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Medida da pena.
Nos termos do artigo 40º, do CP., “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”
Pelo que, a reacção criminal ao facto ilícito nunca poderá ultrapassar a medida da culpa, e terá como objectivo a protecção de valores, a pacificação social e primacialmente a reintegração do agente na sociedade.
Aduz-se do artigo 40º, daquele diploma, que o fundamento da pena se encontra estribado na culpa. Esta tem como função limitar a medida da pena, a qual é temperada por exigências de reintegração do agente na sociedade.
A culpa “enquanto pressuposto da pena, definirá o seu limite máximo, o pano de fundo, a moldura dentro, e só dentro, da qual as exigências da prevenção, como fins da pena, lhe fixarão a medida”[2]
Na verdade, decorre dos princípios básicos do sistema jurídico-penal “de que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida.”[3]
Nos termos do art. 70º, do CP., “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Sendo que “ a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele...”
A definição da pena a aplicar deve ser feita em várias fases.
Primeiro, deve-se achar a moldura penal abstracta. Para tanto, parte-se do tipo de crime que o arguido cometeu e verifica-se se a moldura penal encontrada é modificada, ou substituída por outra, em virtude da ocorrência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes.
De seguida, deve o julgador, uma vez encontrada aquela moldura penal abstracta, achar dentro dessa moldura a pena que cabe ao caso concreto.
Quando haja ao dispor mais do que uma espécie de penas, por exemplo pena alternativa ou de substituição, deve o juiz escolher a pena a aplicar.
Assim, no caso concreto, a moldura penal do crime de infidelidade ascende a pena de prisão até três anos, ou pena de multa, sendo esta de 10 a 360 dias - cfr. art. 47º, nº1, do CP.
No caso concreto não há circunstâncias agravantes ou atenuantes.
Atendendo às circunstâncias aduzidas no art. 71º, nº2, do CP., depõe contra o Arguido a modalidade do dolo, a qual revestiu a forma mais intensa, bem como o valor nada desprezível do objecto descrito nos factos provados.
A seu favor releva a data distanciada da prática da conduta criminosa e o facto de não ter antecedentes criminais.
Já o desvalor de acção do Arguido não é acentuado.
Por outra via, não tem antecedentes criminais.
Por último, não deixou de contribuir com a descoberta da verdade ao ter assumido ter privado a Sociedade da referida máquina e ter assumido ainda não ter procedido à sua devolução.
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Por tudo o que foi exposto, e pelo facto de se entender que a pena de multa é suficiente para acautelar as exigências dos fins das penas, decide-se condenar o Arguido B… na pena de multa de 160 (CENTO E SESSENTA) dias.
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Da fixação da Taxa Diária
Uma vez determinados os dias de multa, há que formular o cálculo do respectivo quantitativo diário da mesma, uma vez que, para o efeito são tidos em conta a situação económica e os encargos pessoais do arguido.
No que respeita ao quantitativo diário da multa dispõe o n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, que a cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 (cinco euros)e €500 (quinhentos euros), que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Quanto a este quantitativo deve atender-se à situação económica e financeira do agregado familiar do arguido e aos seus encargos pessoais, tendo presente, por um lado, a dignificação da pena de multa enquanto medida punitiva e dissuasora, e por outro, que aquele quantitativo não deve exceder o montante de que o agente possa dispor, sem prescindir da satisfação das suas necessidades básicas.
Ora, tendo em conta as condições económicas e sociais do arguido, reputamos como adequada a aplicação de uma taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), uma vez que, não obstante as demonstradas dificuldades finaceiras e as normais despesas de sobrevivência, actualmente dispõe de uma actividade profissional no estrangeiro e não tem despesas de habitação quando se encontra em Portugal.
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Também quanto à parte cível nada há a alterar à sentença primitiva, a qual se transcreve infra.
Da excepção dilatória de litispendência.
A litispendência encontra-se prevista nas excepções dilatórias descritas no artigo 494º, al. i), do CPC, e pressupõe a repetição de uma causa que se encontre em litígio, tal como consagrado no artigo 497º, nº1, do CPC.
De outro prisma, de acordo com o artigo 498º, nº1, do CPC, tem como requisitos uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, sendo que há identidades de sujeitos quando as partes são aos mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (cfr. nº2, 3 e 4, do artigo 498º).
Ora, no que respeita a esta matéria, perscrutados os articulados de fls. 248 a 282-E, verifica-se que inexiste identidade do pedido e da causa de pedir.
Aliás, a causa de pedir aqui em apreço traduz-se, para além do mais, nos próprios factos descritos na acusação, susceptíveis de sustentar a responsabilidade civil aquiliana peticionada.
Assim, atento o exposto, julga-se manifestamente improcedente a excepção dilatória invocada.
Sem taxa de justiça excepcional.
*
Nos termos do artigo 129º do Código Penal a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
O direito que a Demandante pretende fazer valer contra o Arguido inscreve-se no domínio da responsabilidade civil extra-contratual, também conhecida por aquiliana, em que a imposição da obrigação de indemnização depende da verificação dos pressupostos plasmados no artigo 483º do Código Civil.
Tais pressupostos são os seguintes:
a) facto voluntário do agente;
b) ilicitude;
c) culpa;
d) dano;
e) e nexo de causalidade entre esse dano e a conduta do agente.
De outro vector, de acordo com o artigo 562º daquele Código, aquele que estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, caso não tivesse ocorrido o evento que despoletou a obrigação de reparação - restitutio in naturam.
Ora, in casu tais requisitos mostram-se preenchidos.
Nessa medida, decide-se atribuir à Demandante Civil a pretensão indemnizatória que a mesma formulou nos autos, pese embora circunscrita ao valor de doze mil Euros, ou seja o valor do crivo documentado nos autos.
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a sentença recorrida é nula, por dela constar uma alteração substancial de factos em relação aos que constam da acusação.
Nos termos do artigo 379º, nº 1, b), do Código de Processo Penal, é nula a sentença que condenar por factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 359º e 359º do mesmo Código (preceitos relativos à alteração, substancial ou não substancial de factos em relação ao que consta da acusação e a alteração de qualificação jurídica, também em relação ao que consta da acusação).
Pretende este regime assegurar os direitos de defesa do arguido (que deve saber os factos e qualificação jurídica que lhe possam ser imputados, para dessa imputação poder defender-se cabalmente), assim como o respeito pelo princípio acusatório (isto quanto a uma eventual alteração substancial de factos), o qual exige que a delimitação do objeto do processo caiba ao titular da ação penal e escape à iniciativa do próprio juiz que irá decidir.
O arguido vinha nestes autos acusado da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, nº 1, a), do Código Penal, por se ter apropriado de um crivo pertença da sociedade de que era, na altura, sócio-gerente.
Por ele próprio ter alegado (na sua contestação e nas suas declarações prestadas em audiência) que nunca teve intenção de se apropriar desse crivo, foi-lhe comunicada, durante a audiência (ver fls. 384 e 385), nos termos do artigo 358º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, a eventualidade de vir a ser condenado pela prática do crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º do Código Penal, o que veio a suceder efetivamente.
Vejamos.
Está em questão, não uma simples alteração de qualificação jurídica, mas uma alteração relativa a um facto: deixaria de verificar-se a intenção de apropriação de um bem pertença de uma sociedade que terá sido subtraído e passaria a verificar-se a simples intenção de causar prejuízo a essa sociedade por meio dessa subtração. Essa alteração de facto acarretará uma alteração de qualificação jurídica (de um crime de furto qualificado para um crime de infidelidade)
Poderá, porém, considerar-se que estamos perante um minus em relação ao que consta da acusação, que não chega sequer a configurar uma alteração não substancial de factos, não se justificando, sequer, o cumprimento do artigo 358º do Código de Processo Penal. Tem sido esse o entendimento unânime da jurisprudência em situações análogas (ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de novembro de 1999, in B.M.J. 491, pg, 173; de 23 de março de 1992, in C.J., 1992, II, pg. 9; de 10 de junho de 2003, in C.J.-S.T.J., 2003, II, pg. 315; e o acórdão desta Relação de 28 de Março de 2007, in C.J., 2007, pg. 211), como as de uma condenação por furto em relação a uma acusação por roubo em que só não se provou a violência, ou uma condenação por furto simples em relação a uma acusação por furto qualificado em que só não se provou a ocorrência da circunstância qualificativa em questão. E é assim porque o arguido, quando se defende da acusação que representa o mais, necessariamente se defende do que possa representar um menos em relação a essa acusação.
No caso em apreço, a alteração até resulta da alegação da própria defesa. Ora, esta circunstância, e mesmo que se considerasse que estaríamos perante uma alteração não substancial de factos, sempre estaria, de qualquer modo e por esse motivo, dispensado o cumprimento do artigo 358º do Código de Processo Penal, como resulta do nº 2 deste artigo. Mesmo assim, por algum excesso de zelo (num propósito de maior transparência processual, como é reconhecido no despacho de fls. 403 e 404 a propósito de uma outra comunicação de alteração de factos), foi cumprido tal preceito.
Em nada foram postergados, pois, os direitos de defesa do arguido, que não viu em nada afetada a possibilidade de se defender face à imputação de prática dos factos e do crime por que veio a ser condenado.
E também importa dizer que nunca a alteração em causa (de um crime de furto de um objeto pertencente a uma sociedade para um crime de infidelidade, por a subtração desse objeto sem intenção de apropriação, com igualdade de todas as outras circunstâncias, constituir um meio de a ela causar prejuízo) representaria uma alteração substancial de factos. Não estaríamos, de qualquer modo, perante um “crime diverso”, no sentido, habitualmente seguido pela doutrina e jurisprudência, de “facto histórico unitário” composto por todas as ações do agente que tenham “um conteúdo ilícito semelhante e uma estreita continuidade espácio-temporal” (ver artigo 1º, f), do Código de Processo Penal e notação ao mesmo de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2009, pgs. 40 a 42). “Crime diverso” não é, pois, necessariamente “tipo de crime diverso” (só o será necessariamente se a este corresponder uma moldura abstrata da pena mais grave). O conteúdo ilícito do crime de infidelidade e do crime de furto é, neste caso, tendo em conta todas as demais circunstâncias, idêntico, sendo também evidente a igualdade dessas demais circunstâncias (para além da diferença quanto à simples intenção de causar prejuízo em vez da intenção de apropriação).
Impõe-se, assim, negar provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2. – Vem o arguido e recorrente alegar, por outro lado, que não se verificam todos os elementos objetivos do crime de infidelidade, por ele ser sócio da sociedade que terá sido prejudicada.
Estatui o artigo 224º, nº 1, do Código Penal que comete o crime de infidelidade «quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por ato jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante».
Necessário é, pois, para que se verifique a prática deste crime, a lesão de interesses patrimoniais alheios.
Alega o arguido que não estão em causa interesses alheios por ser sócio da sociedade supostamente lesada.
No entanto, e como é óbvio, a sociedade tem uma personalidade jurídica própria e distinta da dos seus sócios, tal como tem um património próprio e distinto do dos seus sócios. Estes não são proprietários (ou comproprietários) dos bens da sociedade. Esses bens são, pois, alheios em relação a cada um dos sócios.
E, do mesmo modo, deve dizer-se que os interesses da sociedade são, nalguma medida, autónomos e distintos em relação aos de cada um dos sócios. Se é verdade que cada um destes poderá ser indiretamente prejudicado com os prejuízos da sociedade, também é certo que não é ele o único que desse modo é indiretamente prejudicado, também os outros sócios o são. E se é certo que um sócio que causa prejuízo à sociedade, é desse modo indiretamente prejudicado, também é certo que assim também causa prejuízo indireto aos outros sócios. Em suma, os interesses da sociedade também são alheios em relação ao interesse de cada um dos sócios.
A jurisprudência tem-se dividido a respeito de uma situação similar, a do eventual furto ou dano de bens de que se é comproprietário ou integrados na comunhão conjugal de bens de que se é co-titular. Há quem considere que estamos, nesses casos e para tais efeitos, perante bens alheios (ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de julho de 2011, in C.J.-S.T.J., 2011, II, pg. 241; desta Relação de 5 de maio de 1999, in B.M.J. 487, pg, 36, e da Relação de Coimbra de 30 de novembro de 2005, in C.J., 2005, V, pg. 47) e há quem não o considere (ver, por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de julho de 1996, in B.M.J. 459, pg. 170; e desta Relação de 29 de janeiro de 1997, in B.M.J. 463, pg. 636; de 26 de novembro de 1997, in B.M.J. 471, pg. 457, e de 16 de março de 2005, in C.J., 2005II, pg. 208). Mas a questão que agora nos ocupa é algo diferente (não estamos perante bens comuns, mas perante bens de uma pessoa jurídica distinta), pelo que nem sequer essa dúvida se suscita no caso em apreço.
Impõe-se, assim, negar provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 3. - Vem o arguido e recorrente alegar, por outro lado, que não se verificam todos os elementos objetivos do crime de infidelidade, por a sociedade proprietária do objeto que terá subtraído não ter sofrido prejuízos decorrentes de tal subtração.
Como já acima foi referido, comete o crime de infidelidade, nos termos do artigo 224º, nº 1 do Código Penal, «quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por ato jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante».
O arguido vinha acusado da prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, nº 1, a), do Código Penal, por se ter apropriado de um crivo pertença da sociedade de que era, na altura, sócio-gerente. Veio a ser condenado pela prática de um crime de infidelidade, p. e p. pelo citado artigo 224º, nº 1, do mesmo Código. A razão desta alteração de qualificação jurídica prende-se com a ausência de prova da intenção de apropriação desse crivo, mantendo-se a prova da intenção de causar prejuízo a essa sociedade através da subtração desse objeto.
Alega o arguido e recorrente que não se provou tal prejuízo.
Na verdade, afirma-se, clara e inequivocamente, na douta sentença recorrida que não se provou que a sociedade em causa, ao ficar privada do uso desse crivo, tenha sofrido prejuízos pelo facto de a areia que vendeu não ser crivada e ser, por isso, vendida a um preço inferior. E também não se provou que essa privação tenha causado à sociedade algum outro tipo de prejuízo.
Considerou, porém, a douta sentença recorrida que o prejuízo sofrido pela sociedade se traduziu no valor do crivo subtraído pelo arguido. Desse modo estaria verificado o elemento objetivo do crime de infidelidade que se consubstancia na ocorrência de um prejuízo para interesses alheios decorrente da atuação do agente. E essa atuação fez incorrer o arguido em responsabilidade civil, com obrigação de indemnização no dano que equivale, precisamente, ao valor desse crivo.
Afigura-se-nos existir algum equívoco nesta parte da douta sentença recorrida.
Se o crime praticado fosse o crime de furto (como constava da acusação), por o arguido se ter apropriado do objeto em causa, sem que este tivesse sido e pudesse vir a ser recuperado, podia dizer-se que o prejuízo sofrido pela sociedade correspondia ao valor desse objeto. Mas não se provou que o arguido tenha agido com a intenção de se apropriar desse objeto (e, por isso, não foi o arguido condenado pela prática de crime de furto). Provou-se apenas que o subtraiu, com intenção de o devolver posteriormente (o que afasta a intenção de apropriação), mas também com a intenção de causar prejuízo à sociedade. Importa, porém, verificar se esse prejuízo ocorreu efetivamente. Esse prejuízo traduzir-se-ia, não no valor do próprio crivo, mas em danos decorrentes da privação do seu uso pela sociedade. E não se provou, como vimos, que essa privação tenha causado à sociedade algum dano.
Não estão, pois, verificados todos os elementos objetivos do tipo de crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º, nº 1, do Código Penal, por que o arguido e recorrente foi condenado.
Impõe-se, assim, conceder provimento ao recurso, absolvendo-se o arguido e recorrente do crime por que foi condenado.

Fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas na motivação do recurso.

Não há lugar a custas (artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal)

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, absolvendo o arguido e recorrente, B…, do crime de infidelidade, p. e p. pelo artigo 224º do Código Penal, por que vinha acusado.

Notifique

Porto, 9/10/2013
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
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[1] In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pág. 618 e segs.
[2] In CORDEIRO, Adelino Robalo, no estudo “A determinação da pena”, Jornadas de Direito Criminal - Revisão do Código Penal - Alterações ao sistema sancionatório e parte especial, pág.44..
[3] In DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português - as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág.72.