Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP00034270 | ||
Relator: | CLEMENTE LIMA | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA OBJECTO DO CRIME COISA MÓVEL DIREITOS ELEMENTOS DA INFRACÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP200205220210509 | ||
Data do Acordão: | 05/22/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | T J MAIA 1J | ||
Processo no Tribunal Recorrido: | 71/01 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO. | ||
Legislação Nacional: | CP95 ART205. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | Sendo o objecto da acção do crime de abuso de confiança previsto no n.1 do artigo 205 do Código Penal coisa móvel alheia, não constituem objecto do crime créditos e quaisquer outros direitos que não são coisas em sentido material nem em sentido jurídico. Quando a coisa móvel alheia é constituída por objectos fungíveis, nomeadamente por dinheiro, o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não é integrado pela mera confusão ou o simples uso da coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos, ao que terá de acrescer o correspondente dolo. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, precedendo conferência, na Relação do Porto: I 1. Nos autos de instrução n.º ../.., do -.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da....., precedendo despacho de arquivamento do Ministério Público e instrução que atempadamente requereu, a assistente, MARIA....., interpôs recurso do despacho de não pronúncia (fls. 393-402) do arguido, CELESTINO....., extraindo da correspondente motivação as seguintes conclusões:1.ª - A assistente requereu a abertura da instrução para verificação da existência de indícios dos seguintes factos essenciais: 2.ª - Assistente e arguido constituíram entre si a sociedade «G....., L.da», para abrir um «snack-bar» e «pub», com ambiente musical. 3.ª - A assistente adiantou à sociedade 7.500.000$00, que foram depositados numa conta de depósito bancário. 4.ª - O arguido aproveitou-se do acesso a essa conta bancária para efectuar levantamentos em proveito pessoal no valor de pelo menos 2.500.000$00. 5.ª - Era o arguido quem controlava as receitas e despesas, quem efectuava os pagamentos aos fornecedores e recebia dos clientes, mas sem qualquer arquivo ou registo do dinheiro que entrava em caixa. 6.ª - Na verdade, o arguido subtraía o dinheiro proveniente das receitas do estabelecimento. 7.ª - Em resultado desse contínuo desvio de fundos, a G....., L.da não reembolsou o financiamento que obteve do Banco M....., avalizado pelos sócios, nem reembolsou os 7.500 contos de suprimentos feitos pela assistente. 8.ª - E ainda se apropriou de 587.340$00, que recebeu da U....., como gerente da G....., L.da. 9.ª - Na verdade, o arguido desfalcou a G....., L.da em benefício do seu consumo pessoal e de um negócio paralelo, o restaurante aberto ao lado, «O P.....». 10.ª - O montante do dinheiro subtraído excede, numa estimativa cautelosa, € 50.000,00. 11.ª - Na instrução, confirma-se a existência de indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de abuso de confiança, nas circunstâncias indicadas pela assistente. 12.ª - Acontece que o despacho recorrido procede a uma errada análise dos indícios colhidos. 13.ª - Desde logo, a decisão recorrida dá desde logo como assente que o arguido entrou para a sociedade com 7.500.000$00, tal como a assistente, quando os extractos de conta revelam que, além dos 7.500.000$00 depositados pela assistente, só foram depositados mais 4.950.000$00. 14.ª - Em seguida, dá como assente que as despesas com a instalação e o início do funcionamento do estabelecimento superaram em 500.000$00 a quantia de 15.000.000$00, como afirma o arguido, contrariando a assistente, que estima esse custo em 12.000.000$00, apenas baseada na palavra dele. 15.ª - E classifica como despreocupação uma evidente recusa e obstrução sistemática do arguido a apresentar contas. 16.ª - O facto descrito em 4., constitui crime de abuso de confiança. 17.ª - Ora, a assistente sustenta essa acusação em fotocópias de cheques da conta do Banco A.... levantados pelo arguido, que apresenta com a queixa que inicia o inquérito. 18.ª - Ao todo, em proveito pessoal do arguido, temos nos autos a comprovação, mais do que simples indícios, da subtracção de 2.656.180$00, retirados à conta da sociedade. 19.ª - Inexplicavelmente, a decisão instrutória omite, pura e simplesmente, qualquer referência a todos os cheques de grande valor emitidos e recebidos pelo arguido, ao balcão ou depositando na sua conta do Banco B...... 20.ª - Concentra a atenção apenas em dois cheques de pequeno montante e revela, nas considerações que faz, a linha de pensamento que inquina a decisão instrutória. 21.ª - Mas o arguido não se limitou a apropriar-se de parte do dinheiro inicialmente investido na G....., L.da e depositado na conta Banco A.....: em dois anos à frente do estabelecimento, como resulta inequivocamente dos elementos recolhidos no inquérito e na instrução, e é reconhecido na decisão instrutória, não depositou um centavo das receitas do estabelecimento nas contas bancárias da sociedade. 22.ª - Com as despesas de instalação pagas pelo dinheiro inicialmente investido e pelo empréstimo de 3.000.000$00 do Banco M....., e sem pagar cerca de um ano de renda até ao encerramento compulsivo do estabelecimento da sociedade, o arguido apropriou-se de tudo o que excedeu o que pagou aos fornecedores a quem não ficou a dever. E a partir de Junho de 1997 deixou de entregar quaisquer elementos susceptíveis de permitir organizar a contabilidade ao contabilista. 23.ª - Para não pronunciar o arguido, a decisão instrutória socorre-se das suas«explicações»: «... a explicação resultante da versão do arguido – o estabelecimento G....., L.da teve outras despesas para pagar e custos de exploração que consumiam e, por vezes, superavam, as receitas – não foi, indiciariamente, contrariada.» 24.ª - Antes de mais, uma coisa não tem a ver com a outra. Recolher ao fim do dia o dinheiro que está na registadora e depositá-lo na manhã seguinte na conta bancária da sociedade é uma prática comum às empresas geridas com honestidade, quer sejam muito lucrativas, pouco, ou mesmo nada. 25.ª - Em segundo lugar, a explicação do arguido é contrariada pelos indícios recolhidos no inquérito e na instrução. 26.ª - Designadamente, o tratamento contabilístico das despesas e receitas reportadas pelo arguido ao gabinete de contabilidade demonstra que a exploração do estabelecimento era lucrativa, com receitas de exploração sempre superiores às despesas de exploração, e indicia não apenas que o arguido se apropriou de receitas da sociedade, mas que essa apropriação é superior a 7.000 contos. 27.ª - O arguido ainda se apropriou de 587.340$00, que obteve da U....., como contrapartida da exclusividade atribuída num contrato de distribuição. 28.ª - Como gerente da G....., L.da, recebe um cheque e, em vez de o depositar em conta bancária da sociedade, deposita-o numa conta bancária dele ou levanta o valor ao balcão, nunca tendo reportado à sociedade a recepção dessa importância. Se a U..... não tivesse demandado a G....., L.da, a assistente nem teria sabido que ele tinha recebido esse cheque. E contra isto, temos a tranquila declaração do arguido, que não comprovou de modo algum, de que depois usou o dinheiro para pagar a fornecedores. Pois esta imaginativa «explicação» bastou para que o assunto nem sequer tenha merecido uma referência na decisão instrutória. 29.ª - Por último, até há indícios nos autos do destino concreto dado pelo arguido aos dinheiros que subtraiu à G....., L.da. 30.ª - São indícios de que resulta, por cada um e por acumulação, «uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança» (art. 283.º n.º 2, do CPP), «suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança» (art. 308.º n.º1, do CPP). 31.ª - Mas neste juízo deve ter-se em consideração que a instrução não é o julgamento, que o despacho de pronúncia não é o despacho de condenação. 32.ª - Há que atender à menor densidade do termo «indício» quando se formula uma decisão instrutória, e à finalidade preliminar do inquérito e da instrução. A suficiência do indício para a decisão de pronunciar não deve ser confundida, ainda que inconscientemente, com a suficiência da prova para a decisão de condenar. Quando a lei refere que é suficiente que dos «indícios» resulte uma «possibilidade razoável», está a afirmar, e nesse sentido deve ser interpretada, que não é necessário que esses «indícios» sustentem um juízo de condenação, basta que sejam suficientemente consistentes para deles resultar a possibilidade razoável de vir as ser demonstrada, fazendo prova em julgamento, a prática do crime pelo arguido. 33.ª - Deste modo, a decisão instrutória devia ter pronunciado o arguido pelo crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo art. 205.º n.º 4 b), do Código Penal, por ele repetidamente cometido. Pede a revogação da decisão instrutória e a pronúncia do arguido nos termos acusados pelo recorrente. 2. O recurso foi admitido por despacho de fls. 426. 3. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu à motivação, propugnando pela confirmação do julgado. 4. Continuados os autos a esta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu «visto». 5. Atento que o objecto do recurso é parametrizado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação (art. 412.º n.º 1, do Código de Processo Penal), importa, no caso, atenta a conformação que ao recurso vem atribuído pela Recorrente [Devendo assinalar-se que a Recorrente desconsiderou, seja no requerimento para abertura de instrução seja nas conclusões e mesmo na minuta do recurso, o crime de burla, da previsão dos arts. 217.º e 218.º n.º 2 als. a) e c), do CP, que imputara ao arguido na participação], examinar a questão de saber se resultam dos autos suficientes indícios da prática, pelo arguido, do crime de abuso de confiança, previsto e punível nos termos do disposto no art. 205.º n.º 4 al. b), do Código Penal, que aquela lhe imputa. II 6. In casu, o despacho recorrido, que decidiu não pronunciar o arguido, é, no segmento que aqui importa, do seguinte teor:« [...] Dos indícios colhidos. No decurso do inquérito: - Foram juntos a fls. 7 e ss. dos autos, pela queixosa, diversos documentos, designadamente cópia da escritura de constituição de sociedade entre a queixosa e o arguido, cartas, extractos de conta, fotocópias de diversos cheques da conta aberta no Banco A..... em nome do marido da queixosa, preenchidos e assinados pelo arguido, correspondência, recibos vários, certidão judicial, entre outros; - A fls. 55 e ss. foram juntos pela assistente documentos alusivos a processos judiciais em curso ou decorridos relacionados com a exploração do estabelecimento comercial "G....., L.da"; - Nos termos registados a fls. 84 e ss., foram tomadas declarações à queixosa que declarou ter constituído uma sociedade com o arguido para exploração de um bar de nome "G....., Lda" tendo sido por ambos acordado entrar com o capital de 7.500 contos cada que foram depositados numa conta aberta no Banco A...... em nome do marido da queixosa. O arguido movimentava os fundos da referida conta, nunca lhe apresentou contas da sociedade e devia dinheiro a fornecedores e às finanças o que a levou a comunicar-lhe, em 16.10.1997, a sua intenção de sair da sociedade. - Foi inquirida a testemunha Domingos..... que, como consta de fls. 89, disse nada saber da matéria dos autos para além do facto de, a determinada altura, o arguido ter deixado de efectuar o pagamento da renda devida pelo espaço onde funcionava o "G....., Lda", tendo sido penhorados bens móveis existentes no interior do estabelecimento. - A testemunha José....., inquirida a fls. 97 dos autos, declarou ter-se deslocado uma vez ao restaurante do arguido "P......" onde almoçou, tendo recebido um "ticket" da caixa do "G....., Lda" e a factura em nome do "P.....". Passados uns dias foi ao "G....., Lda" onde lhe passaram um "ticket" da mesma caixa que foram buscar ao "P.....". - Manuel....., cunhado da queixosa, declarou, a fls. 98, que teve conhecimento da existência de problemas na sociedade constituída pela assistente e o arguido motivados pela não prestação de contas deste e que o arguido abriu, a pouca distância do "G....., Lda", um restaurante denominado "O P....." . - Luís....., contabilista da sociedade "G....., Lda", ouvido a fls. 100, disse que as relações entre a queixosa e o arguido correram bem durante cerca de ano e meio em que o arguido geriu os destinos do bar . As coisas deixaram de correr da forma descrita a partir do momento em que a assistente passou a exigir do arguido a documentação das suas despesas o que levou o arguido a não mais entregar os respectivos documentos onde até então era feita a contabilidade do estabelecimento. - Carlos....., marido da queixosa, disse, conforme consta de fls. 102 dos autos, que a queixosa fez suprimentos para o arranque da sociedade de esc. 7.500.000$00, dos quais o arguido nunca apresentou contas à queixosa, acrescentando que o arguido terá movimentado os fundos da conta onde tal dinheiro se encontrava depositado, através de cheques, em proveito próprio. Acrescentou que o arguido não fez os pagamentos devidos ao Banco M..... para pagamento de empréstimo bancário assumido pela sociedade e que, ao mesmo tempo que geria o "G....., Lda" montou um restaurante no mesmo prédio com nome "P.....", tendo utilizado para o efeito meios do "G....., Lda". - O arguido, nos termos lavrados a fls. 109 v.º e ss., declarou ter efectivamente feito uma sociedade com a assistente para a qual ele entrou com esc.: 7.400.000$00 (dos quais esc.: 2.500.000$00 mediante empréstimo contraído junto do Banco A..... pelo marido da assistente, mas pago pelo arguido) e esta com esc.: 7.500.000$00. Depois de concluídas as obras o arguido apercebeu-se que faltavam cerca de esc.: 5.000.000$00 e reuniu com a queixosa e o marido para lhes dar conta do facto, tendo acabado por ir ao Banco M....., onde pediram um empréstimo de esc.: 3.000.000$00 para fazer face a despesas de fornecedores. O arguido passou a arcar sozinho com a gestão corrente da actividade do "G....., Lda" e, como o apuro diário fosse reduzido (havia dias em que apurava esc.: 10.000.000$00), abriu o restaurante "P.....". Este restaurante recebeu esc.: 7.800.000$00 de investimento inicial (através do recurso ao Leasing) e esc.: 2.000.000$00, emprestado por Luisa..... e esc.: 1.000.000$00, emprestado por um Sr. Guedes, de ...... Negou ter, alguma vez, desviado fundos do "G....., Lda" para o "P....." acrescentando que chegou a aplicar no primeiro proventos do segundo. Confirmou que usou a máquina registadora do "G....., Lda" no "P....." quando a do restaurante se avariou. Confirmou ainda que não tem contabilidade organizada, tendo imputado à queixosa a responsabilidade desse facto, uma vez que esta não comparecia às reuniões da sociedade. - Fátima....., conforme declarações de fls. 133 dos autos, declarou não ter qualquer conhecimento dos factos que nos presentes autos são imputados ao arguido. - Ouvida a fls. 135, Luísa..... declarou que a queixosa só se deslocou ao estabelecimento "G....., Lda" na noite da sua inauguração, alheando-se depois do seu funcionamento. Quando o "G....., Lda" começou a dar prejuízo o arguido deu imediato conhecimento ao marido da queixosa. Durante a semana o estabelecimento fazia entre 10 a 15 mil escudos de apuro diário, embora ao fim de semana tal quantia fosse superior. O arguido chegou a retirar dinheiro do seu restaurante para pagar salários e fornecedores do "G....., Lda". Que o "G....., Lda" se veio a afundar por não ter colaboração por parte da denunciante. - António..... mostrou conhecimento de qualquer facto relativo às imputações que ao arguido nos presentes autos são dirigidas. Declarou que emprestou, por diversas vezes, dinheiro ao arguido Celestino, tendo-o este pago e que, sendo frequentador do "G....., Lda" nunca por aí viu a pessoa da queixosa (cfr. fls. 137 dos autos). - Mário....., cujas declarações foram exaradas a fls. 139 dos autos, referiu ter executado para o arguido uma obra de montagem do sistema eléctrico cujo preço este pagou na totalidade. - Vítor....., declarou, a fls. 142 dos autos, que foi funcionário do arguido no estabelecimento "G....., Lda", nunca tendo visto a sócia deste. - Maria de F......, declarou, a fls. 143 dos autos que foi empregada no "G....., Lda" e, apesar de saber que este tinha uma sócia, nunca a viu no local. - Agostinho....., irmão do arguido, declarou que este constitui sociedade com a queixosa, em partes iguais, e que esta deixou de ajudar o irmão na gerência do estabelecimento e no reforço do capital necessário à sociedade, cujos rendimentos não cobriam as respectivas despesas. Apesar de informada pelo arguido desta insuficiência de rendimentos, a queixosa recusou-se a reforçar o capital. O arguido emitiu cheques pessoais para pagar dívidas da sociedade, do que deu conhecimento à denunciante em conversas a que a testemunha assistiu. Presume que a queixosa tivesse conhecimento que a sociedade não tinha contabilidade organizada. - Miquelina....., sogra do arguido, a fls. 148, apenas disse que a queixosa constitui uma sociedade com o arguido e que de vez em quando aparecia para exigir do genro contas da sociedade. - Encontram-se juntos a fls. 180 e ss. dos autos documentos carreados pela assistente -fotocópia de petição inicial, informações do registo automóvel e dos processos pendentes, neste tribunal, contra o arguido. Foram as seguintes as diligências realizadas em sede de instrução: - A fls. 231 e ss. foi reinquirido Agostinho....., irmão do arguido. Às declarações anteriores apenas acrescentou que o "G....., Lda" era bastante frequentado ao fim-de-semana, tendo bastante sucesso junto dos clientes, que o irmão abriu outro estabelecimento, denominado "O P.....", que tem tido muito sucesso. O irmão tem actualmente um Volkswagen Golf, com cerca de três anos, adquirido em leasing pelo "P.....". - Novamente ouvido a fls. 234, o arguido manteve as declarações já prestadas em inquérito complementadas nos seguintes termos: o dinheiro do investimento inicial realizado por ambos os sócios, cerca de 15.000.000$00, foi depositado numa conta conjunta, titulada pelo arguido e pelo marido da queixosa, do Banco A....., cujos respectivos cheques podiam ser assinados por qualquer um dos titulares; descreveu as obras e respectivos custos realizadas no estabelecimento para o início do seu funcionamento; quando o estabelecimento entrou em funcionamento encontravam-se em dívida cerca de 500.000$00; o "G....., Lda" não era e nunca foi lucrativo - nos dias de semana o apuro rondava os 15.000$00, à Sexta-feira 60.000$00/70.000$00, aos Sábados 120.000$00/150.000$00 e Domingos 45.000$00. Por mês, o apuro atingia em média 700.000$00 a 900.000$00; descreveu as despesas correntes do estabelecimento; nunca fez depósitos dos montantes apurados no "G....., Lda", na conta comum criada pelos sócios, porque a queixosa se desinteressou dos destinos do estabelecimento e porque, depois de instituída a conta do Banco M....., a mesma só podia ser movimentada com a assinatura de ambos os sócios; confrontado com o teor das fotocópias de cheques juntas a fls. 20 e ss., confirmou ter sido quem os preencheu e assinou tendo justificado o facto de alguns deles terem sido depositados em contas por si tituladas noutros bancos por ter feito pagamentos de despesas do estabelecimento com dinheiros próprios; não se lembra de ter passado qualquer cheque em nome da mulher ou que esta tenha efectuado algum serviço ao "G....., Lda". Efectuou alguns pagamentos, com cheques da conta do Banco A......, de um supermercado seu denominado "F.....", do que deu conhecimento à queixosa; não deu explicação para a circunstância de ter havido diminuição dos resultados do "G....., Lda", coincidentemente com a entrada em funcionamento com "O P.....". - A assistente, prestou declarações a fls. 240 e ss., nos termos aí constantes. Salienta-se, com relevo para a decisão final da presente instrução que: a assistente e o marido pediam ao arguido as facturas correspondentes às despesas efectuadas com a instalação do estabelecimento e este afiançava-lhes que tinha consigo os respectivos papéis para lhes mostrar. Quando começou a desconfiar do destino dado ao dinheiro depositado pelos sócios na conta comum, a assistente solicitou ao banco que lhe entregasse cópias dos cheques e extractos bancários para verificar o destino dado ao dinheiro. Parte dos movimentos feitos correspondia a levantamentos ou a depósitos de cheques em contas do arguido, ou de um seu estabelecimento comercial, noutros bancos tendo confrontado o arguido com tal facto, este declarou que se destinavam a pagar despesas da sociedade; a assistente não sabe se a actuação do arguido se deveu a estratégia previamente definida com vista a apoderar-se do seu dinheiro. Estima que as obras de instalação do "G....., Lda" tenham ascendido a cerca de 12.000.000$00; nunca se recusou a assinar cheques quando solicitada para o efeito pelo arguido, mas pôs como condição que a conta tivesse os fundos suficientes para o seu pagamento. - A fls. 269, 275 e ss. e 294 e ss. dos autos o arguido juntou um rol discriminativo das suas contas bancárias e identificou os respectivos números; - A fls. 344 dos autos o Banco M..... informou que a conta onde foi depositado o cheque cuja cópia se juntou a fls. 33 dos autos não é titulada pelo arguido. - A fls. 365 dos autos o Banco P..... informou que o cheque junto a fls. 27 foi depositado em conta titulada pela esposa do arguido e por Fátima...... Análise crítica dos indícios colhidos: Como resulta dos indícios obtidos verifica-se que o arguido e a queixosa constituíram uma sociedade com vista à exploração de um estabelecimento - bar - denominado "G....., Lda". Foi o arguido quem tratou de encontrar o espaço para o efeito, procedeu às obras de adaptação necessárias e geriu, de facto, os seus destinos durante a sua existência. O capital inicial da sociedade, no valor de quase 15.000.000$00 foi composto por ambos os sócios em partes iguais. 0 dinheiro foi depositado numa conta do Banco A..... cujo movimento podia ser efectuado com assinatura de um dos titulares (entre os quais o arguido). Apesar de terem estimado que as despesas de instalação e início de funcionamento do estabelecimento não superariam este montante inicial, a verdade é que o mesmo foi despendido e o arguido, comunicou à queixosa e marido que eram necessários cerca de 500.000$00 para pagamento de dívidas. 0 arguido nunca se preocupou em documentar as despesas decorrentes, quer da instalação, quer da exploração do estabelecimento, nunca tendo apresentado à queixosa comprovativo de todas as despesas por si alegadamente efectuadas. (...) No caso vertente, com relevo para o crime [de abuso de confiança] em apreço, apenas se verificou, das declarações do arguido, da queixosa e da informação bancária junta a fls. 365 que o arguido, enquanto pôde movimentar a conta titulada por si e pelo marido da assistente no Banco A...... depositou, um cheque na conta conjunta da sua mulher e de Fátima....., no montante de 20.000$00 (cfr. fls. 27) e um outro na conta de um seu estabelecimento comercial, denominado "F.....", no montante de 86.180$00 (cfr. fls. 24). Para além dos montantes do cheques em apreço serem diminutos, o que os torna irrelevantes para demonstrar a tese da assistente no que respeita ao persistente e significativo desvio de fundos da sociedade pelo arguido, verifica-se que este, nas suas declarações, esclareceu: ter efectivamente em contas tituladas por si ou por sua mulher noutros bancos por ter feito pagamentos de despesas do estabelecimento "G....., Lda" com dinheiro próprios - o que justifica a sua actuação relativamente ao primeiro cheque; efectuou alguns pagamentos, com cheques da conta do Banco A....., de um supermercado seu denominado "F.....", do que deu conhecimento à queixosa. Contra a explicação do arguido relativamente ao primeiro cheque, não há nos autos elementos que permitam concluir pela sua falsidade, pelo que, o depósito, por si só, se mostra insuficiente para determinar a sujeição do arguido a julgamento. Quanto ao pagamento por conta do estabelecimento "F....." temos a palavra do arguido, negada pela queixosa e tão só. Face à negação do arguido, à falta de quaisquer outros indícios complementares das declarações da queixosa, ao carácter pontual do cheque e ao respectivo valor, não é plausível a condenação do arguido em fase de julgamento pelo crime de abuso de confiança. Por todo o exposto, nos termos do disposto nos artigos 283, n.º 2 e 286°, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido Celestino..... pelos factos e qualificação jurídica que lhe são imputados nó requerimento de abertura de instrução.» 7. Importa começar por sublinhar que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286.º n.º 1, do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação. Ora, um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes (arts. 277.º n.º 2 e 308.º n.º 1, do CPP). A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente (arts. 283.º e 308.º n.º 1, do CPP) [Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, Verbo, 2000, pp. 182 e segs]. Na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais. Depois, cumpre ter presente o disposto nos arts. 283.º e 308.º, do CPP. Por indiciação suficiente, entende-se «a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança».... Trata-se da «...probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal... [Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2.ª edição, Verbo 1999, pp. 99 e 100]». Como refere o Prof. Figueiredo Dias [«Direito Processual Penal», 1.º vol., 1974, pág. 133], «... os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.» E adianta: «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.» No mesmo sentido, afirmava já Luís Osório [No «Comentário ao CPP Português» (IV, 441)] que «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado». Para usar a síntese impressiva do acórdão, desta Relação, de 20-10-93 [Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, tomo 4, pp. 259/260], «... indícios, no sentido em que a expressão é utilizada no art. 308.º, do CPP, são meios de prova enquanto são causas ou consequências, morais ou materiais, recordações ou sinais, do crime... Para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência... No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na DUDH e que entre nós se revestem de dignidade constitucional (art. 2.º, da DUDH e art. 27.º, da CRP)...». É por tal razão, salienta o mesmo aresto, que «... quer a doutrina quer a jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido...», isto é, «... os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.» Vale por dizer, a final e em súmula, que constitui indiciação suficiente o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado [Sobre o conceito de «indícios suficientes, vd., também, com especial interesse, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», II, 2.ª edição, Verbo, 1999, pp. 99 e 100, e os Acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.º 388/99 (DR, II, 8-11-99, pp. 16.764 e ss., e n.º 583/99, de 20-10-99 (DR, II, 22-2-2000, pp. 3.599 e ss..)]. 8. O crime de abuso de confiança, previsto e punível nos termos prevenidos no art. 205.º, do Código Penal, foi já devida e cabalmente dissecado no despacho recorrido [Sobre os elementos do crime de abuso de confiança, da previsão do art. 205.º, do CP/95, podem ver-se, por mais recentes e significativos, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-12-99 (BMJ 492-345) e de 7-10-99 (CJ STJ VII-3-167), desta Relação do Porto, de 5-1-2000 (CJ XXV-1-226) e de 24-5-95 (CJ XX-3-262) e, da Relação de Évora, de 21-3-2000 (CJ XXV-2-281)]. Sem embargo, importa ponderar o seguinte: Como assinala o Prof. Figueiredo Dias [No «Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial», tomo II, Coimbra Ed., 1999, pp. 94 e segs], a essência típica do abuso de confiança configura-se como uma apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio, trata-se de violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção. Sabido que o objecto da acção é, no caso, uma coisa móvel alheia, não pode olvidar-se que créditos e quaisquer outros direitos, não sendo coisas em sentido material, nem em sentido jurídico, não podem constituir objecto do crime de abuso de confiança. Por outro lado, tem de sublinhar-se que, quando a coisa móvel alheia é constituída por objectos fungíveis, nomeadamente por dinheiro [Cfr. Eduardo Correia, na Revista de Direito e Estudos Sociais, VII-1-62 e segs. (65)], o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não é integrado pela mera confusão ou o simples uso da coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos, ao que terá de acrescer o correspondente dolo [Figueiredo Dias, «Comentário», citado, , pág. 104, § 25]. Por fim, importa reconhecer que, nestes casos (em que o objecto da pretensão é uma soma em dinheiro, uma certa medida ou quantidade de dinheiro), a apropriação (suposta a existência de uma pretensão juridico-civilmente válida, incondicional e vencida), não pode considerar-se ilegítima e, consequentemente, o tipo objectivo de ilícito do abuso de confiança não se encontra integrado pela conduta – no dizer do mesmo Prof. Figueiredo Dias, é a apropriação qua tale que inexiste e não apenas a sua ilegitimidade [Ob. e loc. cit., pp. 105/106, § 28]. 9. No caso sub iuditio, afigura-se incontornável que falece a indiciação dos referidos elementos do tipo objectivo em referência. Com efeito, a análise exaustiva da prova indiciária operada no despacho recorrido, merece a dissidência da Recorrente, por errada análise dos indícios, nos seguintes termos: (a) dá-se como assente que o arguido entrou para a sociedade com 7.500.000$00, quando o mesmo só veio a depositar 4.950.000$00; (b) dá-se como assente que as despesas de instalação e com o início de funcionamento do estabelecimento montaram a 15.500.000$00, com base apenas na palavra do arguido, quando a assistente estima esse custo em 12.000.000$00; (c) o tratamento contabilístico das despesas e receitas reportadas pelo arguido ao gabinete de contabilidade demonstra que a exploração do estabelecimento era lucrativa, com receitas de exploração sempre superiores às despesas de exploração, e indicia não apenas que o arguido se apropriou de receitas da sociedade, mas que essa apropriação é superior a 7.000 contos; (d) o arguido ainda se apropriou de 587.340$00, que obteve da U....., como contrapartida da exclusividade atribuída num contrato de distribuição. Afigura-se, com o respeito devido pelo esforço argumentativo da Recorrente, que esta não tem razão. É que, para além do que vem de referir-se (em 8), é decisivo e incontornável que se não verificam suficientes indícios de que o arguido, que recebera o dinheiro uti alieno, tenha passado a comportar-se, a respeito, através de actos idóneos e concludentes, uti dominus, vale por dizer que não se detecta nos autos prova indiciária de que o arguido se haja apoderado do dinheiro investido pela assistente, que o tenha utilizado em seu proveito ou do «P.....». Com a verificação dos indícios da indispensável apropriação, nada têm a ver os factos de o arguido não ter preenchido a sua quota na sociedade que estabeleceu com a assistente, de se manifestar uma dissensão entre o custo estimado das despesas de instalação e com o início de funcionamento do «G....., Lda», nem resulta dos documentos contabilísticos e bancários aportados ao processo (o facto de o nível de depósitos ter minguado tanto pode ter a ver com a dissipação ou o desvio de fundos como com a diminuição das entradas), quando é certo que a própria invocada exteriorização de riqueza, por parte do arguido, se reduz, indiciariamente, à aquisição de um automóvel em «leasing». Por isso que não pode deixar de confirmar-se o juízo de prognose de não condenação formulado no despacho recorrido. 10. Improcedendo o recurso, recai sobre a recorrente assistente o ónus de pagamento da taxa de justiça, de conformidade e com os critérios dos arts. 515.º n.º 1 al. b), do CPP, e 82.º n.º 1 e 87.º n.ºs 1 al. b) e 3, estes do Código das Custas Judiciais. III 11. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso, condenando-se a assistente recorrente na taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.Porto, 22 de Maio de 2002 António Manuel Clemente Lima António Joaquim da Costa Mortágua José Manuel Baião Papão |