Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00044059 | ||
Relator: | HENRIQUE ARAÚJO | ||
Descritores: | IMPROCEDÊNCIA MANIFESTA JURISPRUDÊNCIA UNIFORMIZADA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA FORÇA VINCULATIVA | ||
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Nº do Documento: | RP201006015735/09.0TBMTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/01/2010 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO. | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I- A improcedência é manifesta quando, à vista da petição e dos factos alegados, for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais, seja por carecer de suficiente apoio legal ou por não ter quem a defenda na jurisprudência ou na doutrina. II- O pedido será manifestamente improcedente quando for evidente que, pelos fundamentos apresentados (causa de pedir) o demandante não tem o direito a que se arroga. III- Tem, por isso, de ser ostensiva, de uma evidência irrecusável, a falta de fundamento jurídico da pretensão apresentada pelo demandante. IV- Ao contrário dos extintos assentos, a jurisprudência uniformizada não é vinculativa para quaisquer tribunais, embora tenha de se lhe reconhecer força persuasiva. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | PROC. N.º 5735/09.0TBMTS.P1 REL. N.º 581 * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. RELATÓRIO B………, S.A., com sede na Avenida ….., n.º …., em Lisboa, instaurou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato contra C…………. e marido, D………., pedindo que estes sejam condenados solidariamente a pagar-lhe a quantia 7 113,09 €, acrescida de 2 348,93 € de juros vencidos e 93,96 € de imposto de selo, bem como os juros que sobre a dita quantia de 7 113,09 € se vencerem, à taxa anual de 25,921%, desde 19.09.2009 até integral pagamento, acrescidos do imposto de selo devido. Os Réus, citados regular e pessoalmente, não contestaram. Saneada a causa, o Mmº Juiz deu como provados os factos alegados na petição e condenou os Réus a pagarem ao Autor: - A quantia correspondente às 17 prestações de capital vencidas entre 10 de Junho de 2008 e a citação para a presente acção, acrescida dos respectivos juros remuneratórios à taxa de 21,921% e prémios de seguro correspondentes, em valor a apurar em execução de sentença; - A quantia correspondente às demais 31 prestações de capital vencidas e não pagas, em valor a liquidar em incidente de liquidação; - Os juros de mora, à taxa de 25,921% sobre o valor do capital e juros remuneratórios e prémios de seguro relativos às 17 prestações vencidas até à citação e que se apurarem em incidente de liquidação, desde 10 de Junho de 2008 e até integral pagamento; - Os juros de mora, à taxa de 25,921% sobre o valor das demais 31 prestações vencidas e não pagas e que se apurarem em incidente de liquidação, desde 10 de Junho de 2008 e até integral pagamento; - A quantia de 325,00 € relativa à comissão de gestão devida pela abertura de crédito e despesas de transferência de propriedade, acrescida dos juros de mora à taxa de 25,921%, desde 10 de Junho de 2008 e até integral pagamento, bem como o imposto de selo no montante de 26,83 €, acrescido de juros de mora à taxa de 25,921%, desde 10 de Junho de 2008 e até integral pagamento. O Autor recorreu desta decisão. O recurso foi admitido, ordenando-se a sua subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo – fls. 101. Nas alegações de recurso conclui do seguinte modo: 1. Atenta a natureza do processo em causa – processo especial – e o facto de os RR regularmente citados não terem contestado, deveria o Senhor Juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo assim necessidade, sequer, de se pronunciar sobre quaisquer outras questões. 2. Aliás, neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu recente acórdão da 2ª Secção, Processo 153/08.0TJLSB – L1, onde se refere que: “Não tendo o Apelado E…… contestado, apesar de citado pessoalmente, o tribunal recorrido, deveria limitar-se a conferir força executiva à petição, nos termos do art. 2º do Regime de Procedimentos a que se refere o artigo 1º do diploma preambular do DL n.º 269/98, de 01.09., e não a analisar, quanto a um dos réus, da viabilidade do pedido, uma vez que este não era manifestamente improcedente (isto é, ostensiva, indiscutível e irrefutável). Concluindo, nos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações emergentes do contrato de valor não superior a 15 000,00 €, se o réu citado pessoalmente não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, por não ser possível nenhuma outra construção jurídica. 3. Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que condene os RR, ora recorridos, na totalidade do pedido, como é de inteira justiça. Foi dado cumprimento ao disposto no art. 707º, n.º 2, do CPC. * Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente – art. 684º, n.º 3, e 685º-A do CPC – a única questão em debate é a de saber se devia o Mmº Juiz recorrido limitar-se a conferir força executiva à petição inicial, face à não contestação dos Réus. * II. FUNDAMENTAÇÃOO Tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos: a) O Autor, no exercício da sua actividade comercial, emprestou à Ré mulher a quantia de 5 366,76 €, tendo o Autor e Ré subscrito o documento denominado de contrato de mútuo n.º 855669, datado de 29 de Novembro de 2007, e junto a fls. 10 e 11 dos autos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido. b) Nos termos do referido contrato, devia a importância do empréstimo, os juros, à taxa nominal de 21,921% ao ano, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo da abertura do crédito, as despesas de transferência de propriedade e o prémio de seguro serem pagos em 48 prestações mensais e sucessivas, com vencimento, a primeira, em 10 de Janeiro de 2008, e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes, sendo o valor de cada prestação de 173,49 €, acrescida de 1,50 € por cada cobrança realizada por transferência bancária. c) Ainda de harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga mediante transferência bancária a efectuar aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações para conta bancária titulada pelo Autor. d) Nos termos da alínea b) da cláusula 8ª das Condições Gerais do referido contrato, a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes. e) Nos termos da alínea c) da mesma cláusula, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais. f) A Ré não pagou a 6ª prestação nem as seguintes. g) O segundo Réu deu o seu consentimento ao empréstimo dos autos, subscrevendo o contrato junto a fls. 10 e 11 dos mesmos. O DIREITO O DL 269/98, de 1 de Setembro[1], criou um processo declarativo especial, simplificado, no domínio do cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos. Esse novo tipo processual inspirou-se no modelo da acção sumaríssima e teve em vista a desjudicialização consensual de certo tipo de litígios, designadamente os que resultam da concessão, mais ou menos indiscriminada, do crédito ao consumo. Porque nesses litígios é frequente a não oposição do demandado, como vem reconhecido nas notas preambulares do diploma, procurou limitar-se ao mínimo a intervenção do juiz, libertando-o para as questões que verdadeiramente interessam aos cidadãos. Nesse contexto, o n.º 2 desse diploma determina o seguinte: “Se o réu, citado pessoalmente, não contestar o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente”. Temos assim que a falta de contestação do demandado, desde que citado pessoalmente, tem como efeito a aposição pelo juiz de força executiva à petição, salvo se forem evidentes excepções dilatórias ou se o pedido for manifestamente improcedente. Consagrou-se, deste modo, um efeito cominatório semi-pleno sui generis, na medida em que se faz depender o efeito da revelia operante da inexistência de duas situações, uma de natureza formal ou processual e outra de cariz substancial. Focaremos a nossa atenção na segunda, que é a que aqui se discute. A improcedência é manifesta quando, à vista da petição e dos factos alegados, for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais, seja por carecer de suficiente apoio legal ou por não ter quem a defenda na jurisprudência ou na doutrina. Dito de outro modo, o pedido será manifestamente improcedente quando for evidente que, pelos fundamentos apresentados (causa de pedir) o demandante não tem o direito a que se arroga. Tem, por isso, de ser ostensiva, de uma evidência irrecusável, a falta de fundamento jurídico da pretensão[2] apresentada pelo demandante. Nas palavras de Salvador da Costa[3], “a pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou manifestamente inviável quando a lei a não comporta ou porque os factos apurados, face ao direito, a não justificam”. Ainda segundo este autor, “a ideia de manifesta improcedência corresponde à de ostensiva inviabilidade, o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso. As razões da manifesta improcedência derivam, naturalmente, do direito substantivo, que deve, na formulação do respectivo juízo, ser confrontado pelo juiz com a causa de pedir e o pedido envolvidos na acção”. Ora, a presente acção visa a condenação dos Réus no pagamento da quantia que o Autor lhe mutuou, acrescida dos juros e demais encargos acordados no contrato outorgado por ambas as partes. A sentença recorrida, não obstante a falta de contestação dos Réus[4], considerou a acção manifestamente improcedente quanto aos juros remuneratórios peticionados pelo Autor relativos às prestações cujo vencimento se antecipou pelo incumprimento dos Réus, escorando-se no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2009, de 25 de Março[5]. A súmula conclusiva desse acórdão é a seguinte: “No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”. Esta conclusão assentou nas seguintes premissas: “1 – A obrigação de capital constitui nos contratos de mútuo oneroso, comercial ou bancário, liquidável em prestações, uma obrigação de prestação fraccionada ou repartida, efectuando-se o seu cumprimento por partes, em momentos temporais diferentes, mas sem deixar de ter por objecto uma só prestação inicialmente estipulada, a realizar em fracções; 2 – Diversamente, os juros remuneratórios enquanto rendimento de uma obrigação de capital, proporcional ao valor desse mesmo capital e ao tempo pelo qual o mutuante dele está privado, cumpre a sua função na medida em que exista e enquanto exista a obrigação de capital; 3 – A obrigação de juros remuneratórios só se vai vencendo à medida em que o tempo a faz nascer pela disponibilidade do capital; 4 – Se o mutuante, face ao não pagamento de uma prestação, encurta o período de tempo pelo qual disponibilizou o capital e pretende recuperá-lo, de imediato e na totalidade o que subsistir, só receberá o capital emprestado e a remuneração desse empréstimo através dos juros, até ao momento em que o recuperar, por via do accionamento do mecanismo previsto no art.º 781.º do C. Civil; 5 – Não pode assim, ver-se o mutuante investido no direito a receber juros remuneratórios do mutuário faltoso, porque tais juros se não venceram e, consequentemente, não existem; 6 – O mutuante, caso opte pela percepção dos juros remuneratórios convencionados, terá de aguardar pelo decurso do tempo previsto para a duração do contrato e como tal, abster-se de fazer uso da faculdade prevista no art.º 781º do Código Civil, por directa referência â lei ou a cláusula de teor idêntico inserida no contrato; 7 – Prevalecendo-se do vencimento imediato, o ressarcimento do mutuante ficará confinado aos juros moratórios, conforme as taxas acordadas e com respeito ao seu limite legal e à cláusula penal que haja sido convencionada; 8 - O art.º 781º do Código Civil e logo a cláusula que para ele remeta ou o reproduza tem apenas que ver com a capital emprestado, não com os juros remuneratórios, ainda que incorporados estes nas sucessivas prestações; 9 – A razão de ser do mencionado preceito legal prende-se com a perda de confiança que se produz no mutuante/credor quanto ao cumprimento futuro da restituição do capital, face ao incumprimento da obrigação de pagamento das respectivas prestações; 10 – As partes no âmbito da sua liberdade contratual podem convencionar, contudo, regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no art.º 781º do C. Civil. Na petição inicial o Autor, para afastar a aplicação da doutrina desse AUJ, invocou que as partes acordaram expressamente regime diferente do que resulta da mera aplicação do disposto no art. 781º do CC, no que respeita ao vencimento imediato de todas as prestações em caso de não pagamento de uma delas – cfr. arts. 5º, 6º e 7º da petição. E fundou essa alegação na existência de duas cláusulas contratuais que, no seu entender, apontam para o estabelecimento de uma convenção diversa da que resultaria da mera aplicação do regime do art. 781º do CC. Tudo de acordo com a 10º premissa desse AUJ que, como se viu, sublinha a possibilidade de as partes, no âmbito da sua liberdade contratual, poderem convencionar regime diferente do que resulta da mera aplicação do princípio definido no art. 781º do CC. O que fizeram os Réus a propósito dessa alegação? Nada, absolutamente nada. E como nada fizeram, deveria o Mmº Juiz limitar-se a conferir força executiva à petição. De facto, salvo o devido respeito, a questão nunca seria de manifesta improcedência, ainda que parcial, mas de eventual improcedência, a final, dessa parte do pedido, cumprido que fosse o caminho processual traçado nos arts. 1º, 3º e 4º do DL 269/98. Contudo, como nem contestação houve, o Mmº Juiz não tinha de proceder à qualificação jurídica dos factos não impugnados nem tinha de invocar razões doutrinárias ou jurisprudenciais – nomeadamente as do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador quanto a juros remuneratórios – que somente faria sentido trazer a concurso se houvesse lugar ao julgamento de direito e à respectiva qualificação dos factos provados[6]. Sabemos que a posição que aqui defendemos[7] é minoritária, no conjunto da mais recente jurisprudência dos tribunais da Relação. De facto, têm sido vários os acórdãos a concluir, em casos similares, que, face ao citado AUJ, o pedido de juros remuneratórios relativos a prestações cujo vencimento foi antecipado pelo incumprimento do mutuário constitui uma questão de manifesta improcedência[8]. Entendemos, porém, que esta corrente jurisprudencial, não é de seguir pelas razões enunciadas, às quais se adita uma outra, talvez desnecessária: a de que, ao contrário dos extintos assentos, a jurisprudência uniformizada não é vinculativa para quaisquer tribunais, embora tenha de se lhe reconhecer força persuasiva[9]. * III. DECISÃONesta conformidade, julga-se procedente a apelação e revoga-se a decisão da 1ª instância, conferindo-se força executiva à petição. * Sem custas.* PORTO, 1 de Junho de 2010Henrique Luís de Brito Araújo José Manuel Cabrita Vieira e Cunha ( Vencido. Entendo que a apodicticidade do AUJ, conjugado com a singeleza da análise de facto, nada opunha à confirmação do decidido) Maria das Dores Eiró de Araújo ______________ [1] Alterado pelo DL 107/2005, de 1 de Julho, que alargou o modelo processual aos contratos de valor não superior à alçada da Relação. [2] Por pretensão do autor há-de entender-se o direito material ou substancial que ele se arroga contra o réu – cfr. Alberto dos Reis, Volume II, 3ª edição, pág. 379. [3] “Processo Geral Simplificado. A Injunção e as Conexas Acção e Execução”, 5ª edição, pág. 95. Formulação idêntica à de Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 380. [4] Regular e pessoalmente citados, como já se referiu. [5] Proferido no âmbito do processo n.º 08A1992, disponível em www.dgsi.pt e publicado no DR n.º 86, Série I, de 05.05.2009. [6] Como de forma certeira se refere no acórdão desta Relação de 25.02.2010, constante da nota seguinte. [7] Cfr., no mesmo sentido, os acórdãos desta Relação do Porto de 18.03.2010 (Freitas Vieira), processo n.º 88/08.6TBVNG.P1 e 25.02.2010 (Teixeira Ribeiro), processo n.º 1372/09.7TBPFR.P1. Na Relação de Lisboa, entre outros, o acórdão de 29.10.2009 (Jorge Leal), processo n.º 3111/08.0TJLSB.L1-2, todos em www.dgsi.pt. [8] Citando apenas os mais recentes: Relação do Porto, acórdãos de 01.03.2010 (Maria Adelaide Domingos), processo n.º 349/09.7TBMDL.P1, 25.03.2010 (Mário Fernandes), processo n.º 3711/09.1TBVFR.P1, e 13.04.2010 (Henrique Antunes), processo n.º 2158/09.4TBPNF.P1, este último desta mesma secção; Relação de Lisboa, acórdãos de 15.12.2009 (Rosário Gonçalves), processo n.º 74/09.9TJLSB.L1-1 e 21.01.2010 (Luís Mendonça), processo n.º 1353/09.0TJLSB.L1-8. [9] Abrantes Geraldes, CJSTJ, Ano VII, Tomo II, págs. 5 e seguintes, e “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, pág. 425. |