Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1/09.3PTVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Nº do Documento: RP201006231/09.3PTVNG.P1
Data do Acordão: 06/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Se o agente se apresenta com uma ‘licença de velocípede’ e justifica que desconhecia que a devia ter trocado por uma licença de condução de ciclomotor: i. Incorre em erro de direito o julgador quando admite que aquela licença pudesse ser assim trocada; ii. Incorre, de sua vez, em erro sobre o regime jurídico-penal da condução de veículos, configurativo de um erro sobre a consciência da ilicitude, censurável, a convicção do agente de que com aquele título não praticava qualquer crime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 1/09.3PTVNG.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


1. Relatório
Em Processo Comum e perante Tribunal Singular, foi o arguido B………. absolvido da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.1, do Dec. Lei 2/98, de 3/01.

Inconformado com tal absolvição, o Ministério Público recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1 - O douto Tribunal a quo julgou improcedente a acusação e absolveu o arguido B………. da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal do art. 3°, n.º 1, do DL n.º 2/98, de 03.01, invocando o disposto no art. 16°, n. 1, do CP, face ao erro em que aquele incorreu (a não titularidade de habilitação legal, por falta de troca no período legal), não constando que o arguido tenha sequer representado a possibilidade de não estar habilitado com título válido para conduzir o ciclomotor em causa, o que é susceptível de excluir o dolo, qualquer que seja a sua modalidade (directo, necessário ou eventual).

2 - Entendeu-se na decisão recorrida que, uma vez que o elemento subjectivo, dolo, não se mostrava preenchido e tendo em conta que o crime em causa não é punível a título de negligência, se impunha a absolvição do arguido.

3 - Mas não se pode, no caso sujeito, resolver a questão suscitada com ponderação exclusiva do disposto no art. 16° do C. Penal, não se podendo deixar de considerar igualmente o disposto no art. 17° do mesmo diploma, compatibilizando o que dispõe o art. 16°, n.º 1 com o que vem estatuído no art. 17°, n.º 2.

4 - É que enquanto o n.º 1 do art. 16° refere que «o erro sobre (...) proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo», já o n.º 2 do art. 17° diz que se o erro sobre a ilicitude for censurável ao agente, este «será punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada».

5 - Mas, como acontece no caso, o erro sobre as circunstâncias do facto (art. 16°) e o erro sobre a ilicitude (art. 17°) surgiram, quer um quer outro, em relação à mesma situação.

6 - Assim, o erro sobre os pressupostos de um obstáculo à ilicitude (v.g. sobre causas de exclusão da ilicitude) cai sob a alçada do art. 16°, mas o erro sobre a existência ou limites do próprio obstáculo pode cair no âmbito do art. 17°.

7 - Se a falta de consciência da ilicitude se ficou a dever, directa e imediatamente, a características negativas e juridicamente relevantes da personalidade do agente, aquela falta de consciência deve considerar-se censurável.
E mesmo que assim não aconteça, a falta de consciência da ilicitude deve ser censurada, salvo se, apesar daquela falta, o agente mostra uma consciência ético-jurídica adequada.

8 - Se o erro em que o agente funda a falta de consciência da ilicitude lhe for censurável, ele é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.

9 - No caso presente, é censurável a falta de consciência da ilicitude. Com efeito, a habilitação vinha de 1962 e referia-se a velocípede, embora consentindo a condução de veículos com limite de motorização, e muitas foram as mudanças de regime jurídico, designadamente a levada a cabo pelo diploma legal incriminador, com amplas mudanças na disciplina da habilitação para conduzir, não sendo aceitável que um cidadão normal (e nada vem assente de especial quanto ao arguido) não se tenha apercebido mais de 9 anos decorridos que o seu título perdera validade.

10 - Não é aceitável que o condutor, mesmo perante as diferenças muito grandes verificadas quanto à habilitação para conduzir ciclomotores (incluindo a designação) não indague do novo regime. E a posição assumida na douta sentença recorrida leva a que por erro seja excluída, numa actividade de grande risco social, como é a condução de veículos motorizados, a punição por falta de consciência da ilicitude, p. ex. erro por desconhecimento das novas regras de prioridade ou de condução sobre o efeito do álcool.

11 - Quem conduz na via pública veículos potencialmente de grande capacidade destrutiva não pode deixar de se informar e ter uma consciência, se bem que difusa (que no caso de necessidade devem aprofundar), das mudanças que vão surgindo no domínio dessa actividade humana e mecânica.

12 - Se o não fizer e incorrer em erro, como sucedeu com o arguido, esse erro e a correspondente falta de consciência da ilicitude não pode deixar de ser censurada, nos termos do n.º 2 do art. 17º do C. Penal.

13 - E consequentemente condenado pela prática do crime pelo qual fora acusado.

Respondeu o arguido, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer concordando com o MP na 1ª instância, considerando ainda que a sentença recorrida sofre do vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, 2 al. c) do CPP).

Cumprido o disposto no artigo 417º, 2 do CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto

A sentença recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:

Factos provados:

a) No dia 30.12.2008, pelas 11h30m, o arguido conduziu o ciclomotor com a matrícula ..-DI-.., na Rua ………., ………., Vila Nova de Gaia, sem ser titular de licença de condução ou documento válido que o habilitasse a conduzir tal veículo.

b) O arguido sabia que não podia conduzir tal veículo na via pública sem estar habilitado para o fazer com a licença de condução ou documento equivalente válidos.

c) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo conduzir o veículo.

d) O arguido obteve e era portador de licença de condução de velocípedes n." ….., datada de 1985.

e) O arguido não trocou até hoje a dita licença por licença de veículos ciclomotores.

f) O arguido estava convencido que a dita licença de velocípedes de que era portador era válida e o habilitava a conduzir ciclomotores, desconhecendo que não podia conduzir o referido veículo com o título de que era portador e que o devia ter trocado por outro.

Outros factos provados

g) O arguido está desempregado, auferindo subsídio mensal de € 270,00, e faz biscates de construção civil.

h) O arguido vive em casa dos pais.

i) O arguido tem dois filhos maiores de idade.

j) O arguido tem a 4ª classe.

k) O arguido fuma cerca de 1 a 2 maços de tabaco por dia, sendo o custo do maço de € 3,10.

I) O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados.
a) O arguido sabia que não era titular de habilitação legal para conduzir o ciclomotor.

b) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Motivação de facto (transcrição).
O tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos provados, com base nas declarações do arguido (que confirmou os factos provados, confirmando o teor do auto de notícia de fls. 2), conjugada com a licença de condução de velocípedes de fls. 5.
Em concreto, o arguido confessou que conduzia o veículo identificado nos factos provados, nas circunstâncias de modo, tempo e lugar aí também descritas.
De qualquer modo, o arguido afirmou que não sabia que a licença que possuía não era válida e que desconhecia que a devia ter trocado por outra licença, sendo para si uma surpresa a proibição de conduzir com a licença de que era portador.
Ora, nesta parte, o depoimento do arguido foi credível e verosímil, tanto mais quando se constata que o arguido estava na posse da licença de velocípedes (o que indicia que nunca foi antes interceptado na posse da licença, ou pelo menos, se o foi, indicia que não foi detectava a invalidade da mesma, pois, se o tivesse sido, seria natural que a licença já tivesse sido apreendida e o arguido submetido a tribunal pela prática do crime ora sob censura, o que não consta que tenha sido, sendo que o arguido não tem antecedentes criminais), para além de que não foi contraditado por qualquer prova e a instrução e condições pessoais do arguido também não permitem infirmar a versão apresentada, antes pelo contrário.
Daí que, quanto mais não fosse em obediência ao princípio do "in dúbio pro reo", impunha-se ao tribunal que julgasse, quanto a esta matéria factual, a favor do arguido, como se julgou.
As testemunhas inquiridas – C………. (amiga do arguido) e D………. (conhecido do arguido) - não tiveram a virtualidade de contribuir para a formação da convicção do tribunal, uma vez que, apesar de dizerem que chegaram a ser transportados pelo arguido no seu veículo e mandados parar pela polícia, sem que esta nada tenha apontado à licença de que o arguido era portador, os seus depoimentos deixaram a dúvida sobre a veracidade dos seus relatos, pelo menos quanto ao facto de as fiscalizações terem ocorrido em data posterior à infra referida alteração legal quanto à validade das licenças de velocípedes, tendo em conta que dificilmente vários agentes policiais teriam ignorado a falta de validade da licença em causa. De qualquer modo, estas dúvidas não permitem abalar a versão do arguido quanto à factual idade essencial supra descrita.
Os factos provados sobre as condições pessoais e antecedentes criminais do arguido resultaram das declarações do próprio e do CRC junto aos autos.
Os factos não provados decorreram do supra exposto quanto à matéria provada.”

2.2. Matéria de direito
Na motivação do recurso, o MP junto do Tribunal “a quo” insurge-se apenas contra a matéria de direito, por entender que o arguido, ainda que tivesse agido sem consciência da ilicitude, fê-lo devido a erro censurável, o que, nos termos do art. 17º, 2 do C. Penal, implica a sua condenação.

O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação concorda a posição assumida pelo MP na 1ª instância e entende ainda que a sentença recorrida contém o vício de “erro notório na apreciação da prova” (art. 410º, 2 al. c) do CPP).

Impõe-se assim apreciar, em primeiro lugar, a existência do alegado “erro notório na apreciação da prova”, pois a sua procedência prejudica o conhecimento das demais questões.

(i) Erro notório na apreciação da prova
O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto considera ter havido erro notório na apreciação da prova, por duas razões: (i) ter havido confissão integral e sem reservas do arguido e não se ter dado como provada toda a matéria da acusação; (ii) ter havido fundamentação da matéria de facto (pontos d) e) e f)) em manifesta oposição com o documento junto aos autos, para onde remeteu (fls. 5, Licença de condução de velocípede).

Vejamos.

O erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410º, 2, c) do CPP, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Alega desde logo o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto que existe uma indevida valoração da confissão do arguido, sendo essa a causa do erro notório na apreciação da prova.

Ora, este elemento, isto é, a confissão integral e sem reservas, não consta do texto da decisão recorrida, nem do seu contexto. Pelo contrário, do texto da decisão recorrida consta que o arguido não confessou todos os factos constantes da acusação, designadamente, “saber que a licença que detinha não permitia conduzir aquele veículo”.
Na verdade, o que consta do texto da decisão recorrida, na parte relativa à motivação da matéria de facto, é que o “arguido afirmou que não sabia que a licença que possuía não era válida e que desconhecia que a devia ter trocado por outra licença, sendo para si uma surpresa a proibição de conduzir com a licença de que era portador” – fls. 99.
Deste modo, não há, no texto da decisão recorrida, qualquer indício sobre a confissão integral e sem reservas do arguido.

É verdade que, na acta de audiência de fls. 95, consta que o arguido respondeu afirmativamente quando lhe foi perguntado se pretendia fazer uma confissão integral e sem reservas. Contudo, também é verdade que, ouvida a gravação das declarações do arguido, podemos constatar que em momento algum o mesmo declarou que pretendia confessar integralmente e sem reservas e o tenha feito. Assim, e não obstante as referências feitas na acta de audiência não poderem ser utilizadas para fundamentar os vícios a que alude o art. 410º, 2 do CPP, (pois os mesmos devem resultar do “texto da decisão recorrida”), a verdade é que, neste caso, nem sequer existe correspondência entre o que consta da acta e o que consta da gravação.

Alega também o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto que o erro notório na apreciação da prova resulta ainda da articulação do documento junto a folhas 5 (licença de condução de velocípede) com as regras da experiência comum.
Aceita-se que para o recorte do vício de “erro notório na apreciação da prova” se possa atender ao texto da decisão recorrida e aos documentos (juntos aos autos) para onde a mesma remete. Na verdade, se o documento é referido na decisão recorrida e valorado enquanto tal, podemos aceitar que o mesmo é ali acolhido e faz parte integrante da decisão. Daí que seja possível confrontar o conteúdo do documento de fls. 5 com as declarações do arguido e testemunhas, tal como vêm referidas no texto da sentença (motivação de facto) e, desse modo, apreciar se existe ou não erro na apreciação da prova.

O documento junto a fls. 5 é uma fotocópia de uma “Licença de condução de velocípede”.
Consta da fundamentação (“motivação de facto”) que o arguido “afirmou que não sabia que a licença que possuía não era válida e que desconhecia que a devia ter trocado por outra licença”.

É verdade que o regime legalmente em vigor (como muito bem demonstra o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto) não permitia, nem permitiu em tempo algum, a troca daquela licença por outra que habilitasse o arguido a conduzir ciclomotores. Apenas as licenças de condução de velocípedes com motor poderiam ser trocadas por licenças de condução de ciclomotores (art. 47º do DL 209/98, de 15/07) e a licença de condução do arguido não era desse tipo.

Mas, em boa verdade, estas considerações (exactas) não se repercutem sobre a apreciação da prova, não podendo por isso ser usadas para justificar um erro notório na apreciação da prova.
Há, sem dúvida, um erro de direito na definição do quadro jurídico aplicável. Trata-se de um erro de direito (e não sobre os factos), do julgador (e não do arguido), ao admitir que a licença que habilitava o arguido a conduzir velocípedes poderia ser trocada por uma licença que o habilitava a conduzir ciclomotores.

Ora, um erro do julgador sobre o quadro jurídico aplicável só poderia implicar um erro notório na apreciação da prova se esse quadro legal dissesse respeito ao direito probatório e, portanto, se reconduzisse a um erro sobre a validade ou vinculação de determinado meio de prova. No caso em apreço, o erro sobre o quadro legal aplicável não se repercute sobre a força probatória de qualquer meio de prova, pelo que não pode ser invocado para justificar um “erro notório na apreciação da prova”.

O julgador, para dar como “provados” os factos descritos na al. f) e “não provados” os descritos nas alíneas a) e b), baseou-se exclusivamente no depoimento do arguido, que considerou “credível e verosímil, tanto mais que (…) estava na posse da licença de velocípedes (o que indicia que nunca foi antes interceptado na posse da licença, ou pelo menos, se o foi, indicia que não se detectava a invalidade da mesma, pois, se o tivesse sido, seria natural que a licença já tivesse sido apreendida e o arguido submetido a tribunal pela prática do crime ora sob censura, o que não consta que tenha sido…)”.

Assim, do texto da decisão recorrida, conjugada com o documento de folhas 5 e verso (“Licença para condução de velocípedes n.º …..”) e as regras da experiência comum, não resulta, de forma óbvia (manifesta e evidente), a existência de “erro notório na apreciação da prova”, isto é, não resulta claro que o arguido sabia que não era titular de habilitação legal para conduzir ciclomotores e que a sua conduta era proibida por lei.

Improcede, deste modo, o alegado vício de “erro notório na apreciação da prova” imputado à sentença pelo Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto nesta Relação.

(ii) Consciência da ilicitude
O MP alega que a situação de facto (tal como foi recortada na decisão recorrida) deve enquadrar-se no art. 17º do C. Penal, o qual regula o erro sobre a consciência da ilicitude. Na verdade, entende que se torna necessário “compatibilizar o que dispõe o art. 16º, n.º 1 do C. Penal com o que vem estatuído no art. 17º, n.º 2 do mesmo diploma”. É que (continua o recorrente), enquanto o n.º 1 do art. 16º refere que o “erro sobre (…) proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto exclui o dolo”, já o n.º 2 do art. 17º diz que se o erro sobre a ilicitude for censurável ao agente, “este será punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada”. E, citando FIGUEIREDO DIAS (Pressupostos da Punição, pág. 73) diz o seguinte: “No primeiro deles estamos ainda – tal como no caso de erro sobre elementos do tipo – perante uma falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura da negligência. Pelo contrário, no segundo caso, estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais, e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo”

A divergência entre a sentença recorrida e a motivação do recurso do MP radica, assim, na subsunção dos factos dados como provados.
A sentença integrou os factos na previsão do artigo 16º, 1 do C. Penal – erro sobre a proibição cujo conhecimento era razoavelmente indispensável para o agente tomar consciência da ilicitude – e o MP sustenta que tais factos devem integrar-se na previsão do art. 17º, 2 – erro (censurável) sobre a consciência da ilicitude.

A diferente subsunção numa ou outra das citadas disposições legais é aqui decisiva: se estivermos perante um erro sobre a proibição, referido no art. 16º, 1 do C.P, ainda que censurável, o mesmo afasta o dolo e, como o crime em causa não é punível a título de negligência, imporá a absolvição do arguido; pelo contrário, se estivermos perante um erro sobre a consciência da ilicitude, previsto no art. 17º, 2 do C.P, censurável, o agente será punido com a pena aplicável ao crime doloso.

Vejamos, antes de mais, como delimitar o campo de aplicação dos artigos 16º, 1 e 17º, 2 do C. Penal, pois ambos se referem ao erro sobre a falta de consciência da ilicitude.

Julgamos que o âmbito de aplicação do artigo 16º, 1 do C.P se refere a proibições equiparadas a elementos do tipo. De facto, a lei refere-se a “proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude…”. Como refere TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, II, pág. 330, “Das duas, uma: ou a conduta em causa é suficientemente grave, de modo que, para a consciência da sua ilicitude, é irrelevante o conhecimento da proibição legal, ou não é, e então o conhecimento da proibição legal é relevante para que o agente tome consciência da ilicitude do facto que pratica.”.

Dito de outro modo, existem proibições que todos devem conhecer: não matar, não roubar, não agredir, enfim, a generalidade das infracções. O conhecimento destas proibições configura a “consciência da ilicitude”, cujo erro vem regulado no art. 17º do C. Penal.

E existem, a seu lado, outras proibições, cujo conhecimento é razoavelmente indispensável para haver consciência da ilicitude e que exigem, como refere Figueiredo Dias, uma especial falta de informação ou esclarecimento, sem o qual a consciência jurídica comum não as tomará como proibições penais. Daí a sua equiparação ao regime dos demais elementos do tipo, relativamente aos quais o erro, ainda que censurável, afasta o dolo. O conhecimento destas proibições configura a “consciência da ilicitude”, cujo erro vem regulado no art. 16º, 1 do C. Penal.

A relevância do erro previsto no art. 16º, 1 e no art. 17º do C. Penal é completamente diferente:
(i) - nos casos previstos no art. 16º, 1 (erro sobre a proibição cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude), o erro afasta o dolo, mesmo que censurável;
(ii) - nos casos previstos no art. 17º, o erro não censurável afasta a culpa, tendo o efeito de uma causa de exclusão da culpa (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. pág. 329); se o erro for censurável, há culpa (culpa dolosa) e o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. pág. 329).

O caso dos autos foi subsumido na previsão do art. 16º, 1 do C. Penal, porque se entendeu que o agente não tinha a informação bastante para poder saber que o título que possuía – licença de condução de velocípedes – poderia ser trocada por um título que o habilitaria a conduzir ciclomotores. “No caso dos autos, importa ter em conta que, por força do disposto no art. 47º,n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei 209/98,de 15/7 (Regulamento de habilitação Legal para Conduzir) e art. 4º do Dec. Lei 315/99, de 11/8, o arguido deveria, para se encontrar validamente habilitado a conduzir ciclomotores, ter trocado, até 30-6-2000, na Câmara, a licença de que era portador por outra para condução de ciclomotores” (fls. 101). E, por isso, concluiu: “… os factos provados revelam que o arguido estava em erro sobre um dos elementos do tipo, mais concretamente a não titularidade de habilitação legal …” (fls. 102).
Esta subsunção apenas era legítima se efectivamente a licença que o arguido detinha pudesse ter sido trocada por outra que o habilitasse a conduzir ciclomotores. Nesse caso (mas só nesse caso), a proibição legal exigia o conhecimento ou a informação necessária à troca da licença e, portanto, ao conhecimento da proibição.
Mas, na realidade, a licença que o arguido possuía não poderia ter sido trocada por uma licença que o habilitasse a conduzir ciclomotores. Aquela licença de condução nunca habilitou o arguido a conduzir ciclomotores, nem nunca poderia ter sido trocada por outra que o habilitasse a conduzir esse tipo de veículos – cfr. art. 47º do DL 209/98, de 15/07, com a seguinte redacção:

“Artigo 47º
Troca de licença de velocípede com motor
1 — Durante o prazo de um ano a contar da entrada em vigor do presente diploma, os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estão habilitados a conduzir ciclomotores.
2 — Durante o prazo referido no número anterior, podem os titulares de licença de condução de velocípedes com motor requerer, na câmara municipal da área da sua residência, a troca daquele título por licença de condução de ciclomotor.
3 — O requerimento a que se refere o número anterior deve ser instruído com fotocópia do bilhete de identidade do requerente e o correspondente atestado médico.
4 — Os serviços competentes das câmaras municipais que procedam à troca de títulos a que se refere o n.º 2 devem ficar com a licença de condução de velocípede com motor de que o requerente era titular e arquivá-la no respectivo processo.”.

Para a condução de velocípedes (bicicletas, mas não ciclomotores), deixou de ser necessária a posse de qualquer licença de condução – cfr. arts. 112º e 122º do Código da Estrada.

Na presente situação, não podemos reconduzir o erro do arguido à falta de conhecimento das regras sobre a troca da licença de condução, pois essas regras não eram, no seu caso, aplicáveis. A licença que possuía e que o habilitava a conduzir velocípedes deixou de ter qualquer utilidade jurídica, porque esse tipo de veículos passou a poder ser conduzido sem qualquer título de habilitação legal. O caso dos autos enquadra-se, como sustenta o MP na 1ª instância, na previsão do art. 17º do C. Penal, configurando um erro sobre a consciência da ilicitude. O arguido estava convencido que, com aquele título de condução, não estava a cometer qualquer crime, mas esse convencimento resultava de um erro sobre o regime jurídico-penal da condução de veículos.

O erro sobre a ilicitude é censurável quando “for revelador de uma personalidade ou de uma atitude ético-pessoal de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo” (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. pág. 329).

No caso dos autos, o erro em que incorreu ao arguido é efectivamente censurável, como vamos ver.

A atitude de indiferença sobre as regras da condução de ciclomotores na via pública, numa sociedade como a actual, em que a circulação rodoviária é simultaneamente uma necessidade e um perigo é, sem dúvida, censurável.
Não se diga que estão em causa minudências legais sobre o âmbito das licenças de condução, ou subtilezas jurídicas apenas ao alcance de juristas, pois não é isso que aqui está em causa. O que está em causa, neste tipo de problemas sobre a consciência da ilicitude, é a percepção de valores jurídicos, ao alcance de todos os cidadãos, segundo os quais (i) uma licença de condução apenas permite conduzir os veículos aí indicados e (ii) a condução de veículos sem habilitação legal é actualmente um crime.
Existe, efectivamente, um dever geral de todos os cidadãos conduzirem a sua orientação vivencial de acordo com aqueles concretos valores jurídico/penais, ou seja, e em termos mais concretos, toda a gente sabe que só pode conduzir os veículos que o título de que são portadores expressamente permite, sob pena de cometer um crime. Podemos pois concluir com segurança que o erro (dado como provado na sentença) é censurável.

Como vimos acima, este erro sobe a consciência da ilicitude só afasta a punição a título de dolo (ainda que com possibilidade de atenuação especial da pena) se não for censurável (art. 17º, 1 e 2 do C. Penal). Dado que neste caso estamos perante um erro sobre a consciência da ilicitude censurável, o crime cometido pelo arguido é punível a título de dolo, permitindo-se todavia a atenuação especial da pena (art. 17º, 2 do CP).

(iii) Medida da pena
Impõe-se, deste modo, revogar a sentença recorrida e, consequentemente, condenar o arguido pela prática de um crime de condução de veículos sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3º, n.º 1 do Dec. Lei 2/98, de 3 de Janeiro, embora com a atenuação especial da pena permitida pela art. 17º/2 do CP (erro censurável sobre a consciência da ilicitude).

O crime cometido pelo arguido é punível, em abstracto, com uma pena até um ano de prisão ou multa até 120 dias (art. 3º, 1 do DL 2/98, de 3/1), com redução do limite máximo de um terço (art. 73º, 1, a) e c) do C. Penal).

Nos termos do art. 70º do CP, deve dar-se preferência à pena de multa em detrimento da pena de pisão alternativamente prevista, pois aquela satisfaz de forma adequada e suficiente as necessidades da punição, tanto mais que é a primeira vez que o arguido é condenado pela prático do aludido crime e estava convencido (ainda que em erro) sobre a licitude da sua acção.

O ilícito não reveste uma especial gravidade, pois sendo embora um crime de perigo, no caso em apreço não foi concretamente posto em perigo qualquer dos bens jurídicos que o tipo pretende salvaguardar (segurança do tráfego, vida e integridade física). De relevar ainda o facto de o arguido ser primário e ter confessado os factos, na versão dada como provada.
Justifica-se, assim, uma pena de multa abaixo do termo médio.
Deste modo, e tendo em conta que o limite máximo da multa é de 80 dias (face à atenuação especial), consideramos adequada e justa a pena de 30 dias de multa.

O arguido está desempregado, vive com os pais, tem a 4ª classe, auferindo um subsídio mensal de € 270,00. Sé verdade que o arguido apresenta uma evidente debilidade económica, também é verdade que a pena de multa deve ser encarada como um constrangimento de ordem financeira para que, desse modo, sejam alcançadas as finalidades da punição. Perante este quadro, consideramos adequada uma taxa diária da multa de 5 Euros (art. 47º, 2 do C.P.).

3. Decisão
Face ao exposto os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam:
a) Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a sentença recorrida;
b) Condenar o arguido B………. como autor de um crime de condução de veículos sem habilitação legal, previsto no art. 3º, n.º 1 do Dec. Lei 2/98, de 3/1, e punido nos termos dos artigos 17, n.º 2; 73º, 1, a), c); 70º e 47º, 2 do Código Penal, na pena de 30 (TRINTA) dias de multa, à taxa diária de € 5,00, isto é, na multa global de € 150,00 (CENTO E CINQUENTA EUROS).
c) Ordenar a remessa de boletins ao registo criminal.

Custas pelo arguido, fixando a taxa de justiça no mínimo.

Porto, 23/06/2010
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando