Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0425933
Nº Convencional: JTRP00037421
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: EMBARGOS
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Nº do Documento: RP200411230425933
Data do Acordão: 11/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: I - Para que o requerente de uma providência cautelar considerada injustificada seja responsabilizada pelos eventuais danos causados ao requerido exige-se que aquele não tenha agido com a prudência normal, que tenha assumido uma conduta culposa quando tomou a iniciativa de a requerer.
II - Tal ocorre quando se vem discutir a propriedade de um muro, que se adquiriu recentemente (a propriedade contígua) e se avança para juízo sem tentar averiguar o histórico do muro da discórdia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

- B....., residente na Quinta....., em.....; e
- C..... e mulher D....., residentes na Rua....., em ....., intentaram acção declarativa, com processo ordinário, contra

E.... e mulher F....., residentes no Luxemburgo,

pedindo que sejam condenados a pagarem:
- à autora B....., quantia de 3 900 000$00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento;
- aos autores C..... e mulher, a quantia de 3 000 000$00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento, como compensação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhes causaram com a instauração de um procedimento cautelar de embargo de obra nova, providência essa infundada e na qual invocaram factos que sabiam não serem verdadeiros.

Contestaram os réus invocando a excepção de caso julgado relativamente à autora B..... e alegando, no essencial, que suportaram o embargo em factos que consideravam e ainda consideram verdadeiros. E que os autores não sofreram os prejuízos invocados.
Terminam pedindo a improcedência da acção.

Replicaram os autores pronunciando-se pela improcedência da excepção de caso julgado.

Logo no despacho saneador, o Mmº Juiz julgou improcedente a invocada excepção de caso julgado, após o que fixou os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, tendo lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada parcialmente procedente e os réus condenados a pagarem aos autores C..... e mulher a quantia de 14.963,94 €, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

Inconformados com o assim decidido, recorreram os réus entendendo que a sentença enferma de uma nulidade e defendem ainda a alteração da decisão sobre a matéria de facto e que os factos provados não fundamentam a condenação indemnizatória arbitrada.

Não foram apresentadas contra-alegações.
***
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo dos recorrente radica no seguinte:

1- A sentença do tribunal a quo condenou os R.R. em objecto diferente do que tinha sido pedido pelos A.A.. e servido de causa de pedir, pois que tendo estes alegado que o imóvel onde se efectuaram as obras pertencia à A. B....., sendo esta a exclusiva dona da obra e sendo esta, e só esta, que pagou ao empreiteiro o alegado sobrecusto da mesma, não poderia o tribunal ter condenado os R.R.. a pagarem aos A.A.. D..... e C..... os alegados prejuízos, importando assim a nulidade da sentença por violação ao preceituado no art.° 668.°, n.° l, al. c) e e) do Código de Processo Civil;

2- Na mesma violação incorreu o tribunal de que se recorre dado que numa primeira fase considerou procedente que os alegados prejuízos patrimoniais teriam sido pagos em exclusivo pela A. D....., depois condenando os R.R. a pagar tal montante aos A.A. D..... e C.....;

3- O tribunal considerou provado que o empreiteiro G.....testemunha dos A.A. exigiu a mais pela conclusão da obra o quantia de 2.000.000$00 que lhe foi pago pelos A.A. C..... e D..... quando em firme convicção não o poderia ter feito, por ausência de prova documental que seria exigível nesse sentido e contradição evidente da prova testemunhal produzida com o alegado pelos A.A., desde a petição inicial até às alegações orais finais, que, inclusivamente servira de causa de pedir no processo, pois que são os próprios A.A. que alegam que a A. B..... teria pago 3.900.000$00 ao empreiteiro, sendo que este, enquanto testemunha referiu que a A. D..... lhes tinha pago esse montante, o que seria completamente impossível em razão da qualidade desta última, devendo assim os quesitos 11 a 15 da base instrutória obter resposta negativa;

4- Os depoimentos gravados das testemunhas dos A.A., H..... e I....., mereciam resposta diferente relativa aos alegados danos padecidos pelos A.A. comodatários da casa, tanto que seria, pelas circunstancias produzidas pelas mesmas, praticamente impossível terem aqueles A.A. residido na casa enquanto a obra esteve paralisada, o que aconteceu durante três anos, sem casa de banho ou cozinha, pois que não apresentam qualquer prova adicional documental do que dizem ter acontecido, e poderiam tê-lo feito, assim devendo os quesitos 19 a 25 da base instrutória obter resposta negativa;

5- Não foi tido em conta na sua decisão os depoimentos das testemunhas dos A.A. e R.R. (anteriormente designadas) e das que foram peritos nos autos subsequentes aos embargos, pois que, com maior veemência, o eng. L....., confirmou com clareza e convicção a existência de indícios de facto no local aquando do embargo da obra capazes de sustentar a propriedade do muro para os R.R., referindo mesmo que, no caso de ser um dos R.R., teria providenciado pelo embargo, devendo por isso a matéria da base instrutória ínsita nas alíneas 27) 29) e 30) ser declarada não provada;

6- No encalço do que foi desde sempre alegado pelos R.R., todas as suas testemunhas alegaram factos desculpabilizantes para os mesmos, que, não obstante a sua qualidade e quantidade, não foram valorizados pelo tribunal, em contradição absoluta com o plasmado no artigo 516° do Código de Processo Civil;

7- Para haver direito a qualquer indemnização por parte do A. a providencia cautelar de embargo de obra teria de ser julgada injustificada, o que não foi o caso, pois que foi decidida a sua pertinência por decisão judicial transitada em julgado, aliás, não impugnada por parte da A. B....., sendo que esta se arroga agora credora de parte dos danos patrimoniais, violando assim o tribunal a quo a norma plasmada no artigo 390°, n.° l do c. P. Civil (anteriormente art. 387°);

8- Acresce que, para os A.A. terem direito a indemnização com base na caducidade da providencia, teriam de ter articulado e provado factos que levassem à conclusão de prudência anormal (e fizeram-no) mas, para alem disso, da culpa dos R.R. Ora, os factos articulados e ínsitos na base instrutória, não poderia o tribunal concluir pela culpa dos R.R., violando-se assim o art.° 390° do diploma acima citado e art.° 487.° n.° l do Código Civil;

9- Por fim, a decisão em crise, contradiz tudo o que tinha sido julgado pelo tribunal de 1ª instância e já por este mesmo tribunal, pois que na acção em que se pedia a declaração da propriedade do muro, subsequente aos embargos, a A. B..... (naqueles autos ré-reconvinte), pediu em reconvenção, para além da declaração da propriedade do muro, precisamente a mesma indemnização pela injustificação do embargo da obra em razão do aumento de custo da mesma, sendo a decisão de total improcedência da reconvenção, mantida, posteriormente, por este Venerando Tribunal;

10- Assim, pelo menos parte dos factos respeitantes ao pedido da A. B..... foram já julgados, assim não se admitindo solução diversa da pugnada pelo tribunal de..... e por este tribunal, pois que, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, sendo assim violado o art.°671.° do C.P.Civil.

B- Face à posição dos recorrentes vertida nas conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, as questões a dilucidar são as seguintes:

- alteração da matéria de facto
- nulidade da sentença
- excepção de caso julgado
- ausência de fundamento do direito a indemnização

III. Fundamentação

A- Os factos

Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

1. A A.. B..... é dona do prédio urbano destinado a habitação e comércio, com garagem, sito na Praça....., em ....., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 13169 e inscrito na matriz no art°. 1417;

2. A A. D..... é filha da A. B.....;

3. O prédio da A. B....., pelo lado Norte, confronta cora o prédio dos RR. Nas extremas Norte e Nascente do prédio da A. encontra-se implantado um muro em alvenaria, com a largura de 50 cms e cuja altura oscila entre 2 e 4,5 metros;

4. O dito muro desenvolvia-se, até 1995, ao longo de toda a confrontação com o prédio dos RR. situado a Norte, prolongando-se, ainda, para Nascente na confrontação com outros prédios até à Rua..... mantendo, nesse prolongamento, as mesmas características de construção e o mesmo aspecto exterior. O muro em causa, está implantado na confrontação com o prédio dos RR. e no prolongamento {enfiamento} da habitação da A.;

5. Há cerca de 15 anos a A. mandou construir uns anexos em betão que ficaram apoiados sobre o dito muro numa extensão de cerca de 8 metros, o que a A. fez sem qualquer oposição dos anteriores proprietários do prédio, anexos que se mantiveram inalterados desde a sua construção e sem oposição dos RR. ou dos anteriores proprietários do prédio;

6. Pelo mês de Março de 1995, a autora, a pedido de sua filha, deu início a obras no seu prédio, obras que consistiam na sua ampliação e na modificação de todas as divisões situadas a Nascente. Para o efeito a A. mandou demolir uma cozinha e uma casa de banho ao nível do 1º andar Nascente e uma casa de banho ao nível do 2º andar Nascente. Foi ainda demolida toda a fachada Nascente ao nível do andar, bem como uma varanda ao nível do 2º andar. As divisões demolidas seriam substituídas por outras, com outras medidas e outra disposição e integradas na ampliação do prédio. Para a execução de tais obras a A. teve necessidade de demolir parte do muro referido em 6, numa extensão de 6,5 mts, bem como de proceder a uma pequena escavação no logradouro do seu prédio. Quando tais obras estavam em curso, estando já, então, demolida a parte do muro mencionada em 6, bem como a cozinha, as duas casas de banho, a fachada Nascente ao nível do l º andar e a varanda ao nível do 2º andar, os RR, procederam ao embargo da obra;

7. O Embargo referido no número anterior foi ratificado judicialmente em 09/05/95 (proc. ../95 do 1° Juízo Cível), tendo tal decisão sido notificada à A. em 12 de Maio de 1995. Os aqui RR, intentaram a acção respectiva (proc. ../95 do 3° Juízo Cível) na qual peticionavam: Que o muro acima referido fosse considerado parte integrante do seu prédio (deles RR); Que a aqui A. fosse condenada a retirar as construções que havia erigido sobre o muro (os anexos referidos em 18); Que a aqui A. fosse condenada a pagar-lhes uma indemnização pelos prejuízos sofridos. Para o efeito os RR. alegaram o seguinte: Que o muro em causa lhes pertencia; Que tal muro integrava a estrutura do seu prédio; Que o muro em causa nascia ao nível dos alicerces do seu prédio; Que o muro em causa servia de suporte às terras do seu prédio; Que o muro em causa havia sido construído pelos antepossuidores do seu prédio, que eles RR. era quem procedia à conservação do muro; Que com a demolição de parte do muro a aqui A. havia destruído duas vigas estruturais do seu prédio; Que com a destruição do muro teriam ficado abertos rasgos nas paredes estruturais do seu prédio;

8. A referida acção veio a ser julgada totalmente improcedente, tendo transitado em julgado em 27/11/1997. Na referida decisão a aqui A. foi declarada proprietária do prédio identificado em l desta petição. Mais tendo sido declarado que o muro divisório entre os dois prédios é parte integrante do prédio da A. Com o trânsito em julgado da decisão, caducou a providência de embargo que havia sido decretada. Desde o embargo, em Maio de 1995, até 27/11/1997, a A. manteve as obras completamente paradas. Durante dois anos e meio a A. esteve impedida judicialmente de as continuar;

9. Desde o seu casamento com o A. C....., em 02/09/90, a Autora D..... tem a sua residência instalada no prédio referido sob o nº 1;

10. O que acontece em virtude de contrato de comodato celebrado com a A. B.....;

11. O muro referido sob o nº 3 encontra-se implantado em terreno que é parte integrante do prédio da A, tendo sido construído pelos anteriores proprietários do prédio daquela, seus familiares;

12. Todas as construções que os RR. mantêm no seu prédio sempre se situaram, desde o tempo do anterior proprietário do mesmo, para Norte do dito muro;

13. No seu prédio os RR. mantém uns anexos em tijolo e cimento que se seguiam, imediatamente, ao muro do prédio da A. e que encontravam encostados a esse muro, mas para Norte dele;

14. Os Réus adquiriram o seu prédio em 4/1/1989, não lhes tendo sido comunicado pelo anterior proprietário do mesmo prédio que o muro referido sob o nº 7 lhes pertencia;

15. Foi satisfazendo um pedido do anterior proprietário do prédio dos RR., a solicitação de um seu inquilino, que a A. havia deixado, por mero favor, que uma chaminé do r/ch. do prédio dos RR. (arrendada para restaurante), se apoiasse numa profundidade de 15 cms. e numa extensão de 40 cmts. no muro em causa;

16. Após o trânsito da decisão de que resultou a caducidade do embargo, a A. ainda teve que esperar, por mais 6 meses, que o construtor que havia contratado e que começara a obra a pudesse retomar;

17. Como consequência directa e necessária do embargo a A. teve a obra parada durante 3 anos;

18. Quando retomou a obra o construtor exigiu à autora F..... um acréscimo de 2.000.000 de escudos pelo preço total da obra, alegando acréscimo nominal dos preços e prejuízos inerentes à própria interrupção da obra, verba que a autora lhe pagou;

19. O acréscimo de 2.000.000 de escudos correspondia efectivamente ao acréscimo nominal dos preços de material e mão de obra nos três anos de paralisação e ao prejuízo do construtor com a interrupção da obra;

20. Toda a parte Nascente do prédio ficou desprotegida e sujeita a infiltrações de humidades e entrada de frio;

21. Para minorar tais infiltrações os A.A. C..... e mulher viram-se obrigados a colocar plásticos de protecção nas paredes interiores;

22. Durante três anos os A.A. C..... e mulher estiveram privados de cozinha, vendo-se obrigados a fazer as refeições fora de casa, normalmente em casa da A. B..... que se situa à distância de mais de 1 Km;

23. Durante três anos os A.A. C..... e mulher estiveram privados de casa de banho, sendo forçados a tomar banho em casa da A. B..... a mais de l Km. de distância;

24. No referido período o prédio apresentava um aspecto desolador;

25. No exterior (logradouro) acumulavam-se materiais resultantes da demolição e materiais destinados à nova construção, no interior, os A.A. mantinham os móveis amontoados em poucas divisões;

26. Durante três anos os A.A. não puderam receber familiares e amigos na sua casa, já que para o efeito não tinham condições mínimas de habitabilidade;

27. A filha dos A.A., com 2 anos (em 1995), não tinha qualquer espaço para poder brincar, quer no interior da habitação, quer no seu logradouro e a sua higiene era feita em bacias com água previamente aquecida;

28. Tudo o que causou aos A.A. C..... e mulher grande transtorno, incómodos e sofrimento;

29. Toda a descrita situação é consequência directa e necessária do embargo, que os R.R. requereram sem o mínimo de prudência, de forma mesmo leviana;

30. Nenhum elemento objectivo indiciava que o muro pudesse ser parte integrante do seu prédio, nem o anterior proprietário nem qualquer vizinho lhes indicou que o muro pertencia ao seu prédio, sendo certo que disso os RR. também não procuraram informar-se;

31. Os RR. são emigrantes no Luxemburgo, não são originários de....., nem nunca aqui tiveram residência permanente, não conheciam a história da construção dos dois prédios (do seu e do da A.);

32. Nada lhes podia indiciar que o muro fazia parte do seu prédio, bastando olhar para o modo como o muro se encontrava implantado para se concluir que não lhes pertencia;

33. Quer na providência de embargo, quer na acção, os RR. alegaram factos, que não se provaram e que sabiam não corresponder à verdade;

34. A continuação das obras em nada prejudicava, o seu prédio que, bem pelo contrário, poderia ser prejudicado pela paralisação.

B- O direito

1. alteração da matéria de facto

A prova produzida oralmente foi gravada e os recorrentes cumpriram o estatuído no art. 690º-A C.Pr.Civil, de modo que este Tribunal da Relação tem o caminho aberto para proceder, se for o caso, à alteração factual requerida.
Refira-se, todavia, que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente sempre terá o ónus de apresentar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

As razões das críticas apontadas pelos réus vão essencialmente no sentido de que houve erro na apreciação da prova, impondo os meios probatórios produzidos uma resposta aos pontos nºs 11 a 15, 19 a 25 e 27 a 30 da base instrutória diversa daquela que lhes foi dada .
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente – art. 655º C.Pr.Civil, sendo que a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária nem com a simples impressão gerada no espírito do julgador; a prova livre tem de obedecer a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Já A. dos Reis ensinava que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” [C.Pr.Civil Anotado, IV, pág. 570].
Mas para a apreciação da prova tem que se dar a necessária relevância à percepção que a oralidade e a mediação conferem ao julgador. Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, e outras atitudes que transpareçam dos depoimentos prestados em audiência.
Os Juízes, ao apreciarem a prova, não podem (não devem) assumir uma atitude de meros espectadores, não se podem remeter ao papel de caixa receptora de depoimentos.
O julgamento da matéria de facto há-de assentar numa análise crítica, numa valoração racional e integrada dos depoimentos com todos os outros meios de prova produzidos.
É na observância de todos os parâmetros referidos que se chegará à fixação da matéria de facto, não se olvidando que a convicção do julgador em princípio não está sujeita a censura, a menos que haja erro de percepção da prova produzida, como, por exemplo, o documento ou a testemunha dizer uma coisa e o juiz perceber e decidir o contrário.
Por isso se tem entendido que a alteração da decisão sobre a matéria de facto pela Relação deve ser feita de modo muito cauteloso, nos casos de evidente desconformidade entre os elementos de prova produzidos e a decisão ou na falta clara de suporte probatório [Cfr, neste sentido, ac. R.P., de 00/9/19, in C.J.,XXV-4º,186].

Explanados estes princípios, vejamos se têm ou não razão de ser as críticas tecidas pela apelante.

1.1- Nos pontos 11º a 15º da base instrutória questionava-se essencialmente se houve um agravamento dos custos de ultimação da obra provocado pela sua paralisação e se esses custos, na ordem de 3.900.000$00, foram suportados pela autora B......
Deu-se como provado o agravamento dos custos da obra, no montante de 2.000.000$00 e que os mesmos foram suportados pela autora F......
Para fundamentar o sentido da sua opção quanto ao teor da resposta a estes pontos, refere o Mmº Juiz que formou a sua convicção no depoimento da testemunha G....., empreiteiro da obra, que afirmou que em virtude da paralisação acabou por pedir mais 3.900 contos, valor que foi aceite e que lhe foi pago, fundando o aumento do preço no encarecimento de materiais e mão de obra no período da paralisação e nos prejuízos que para ele próprio decorreram dessa paralisação e rearranque dos trabalhos.
Embora seja inequívoco que a obra foi embargada em período muito incipiente dos trabalhos, o que agrava o acréscimo de custos por força da paragem, não se afigurou como razoável agravamento superior a 2.000.000 de escudos, fundado em prejuízo do empreiteiro e em agravamento dos custos por mera decorrência da desvalorização da moeda.
Esta é a única prova objectiva produzida sobre os mencionados pontos controvertidos.
Mas o certo é que este depoimento se apresentou com credibilidade ao julgador. Por outro lado, fixou-se o valor da agravamento dos custos através de um critério de razoabilidade a partir dos dados fornecidos por esta mesma testemunha.
Ora, além de se percepcionar um suporte probatório suficiente, não se descortina, por outro lado, qualquer desconformidade evidente entre os elementos de prova e a decisão sobre a fixação da matéria de facto.
Nenhuma censura nos merece, por isso, a decisão sobre estes concretos pontos da base instrutória.

1.2- Defendem também os recorrentes que os pontos nºs 19º a 25º da base instrutória deveriam merecer resposta negativa e essencialmente pela razão de que se afigura pouco lógico que os autores, sendo pessoas de bom nível económico, se sujeitassem a viver em condições tão adversas como as dadas como provadas nestes pontos.
Através da matéria de facto levada a estes pontos controvertidos procurava-se indagar se os autores C..... e mulher D..... viveram em condições precárias na casa por as obras terem sido embargadas e se essa situação lhes acarretou enormes incómodos e sofrimentos.
Tendo os factos aí vertidos merecido resposta positiva.
O Mmº juiz, para justificar a motivação da sua convicção, afirma que os depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores demonstraram em termos credíveis que os autores D..... e marido ... já estavam a viver no prédio enquanto a obra decorreu sem incidente e que aí continuaram a viver em situação de grande desconforto e com elementos essenciais do prédio demolidos, como sejam todas as casas de banho e a cozinha, nos três anos em que a obra esteve parada.
Ouvindo atentamente o depoimento das testemunhas arroladas, conclui-se, não obstante algumas imprecisões e incertezas, que tinham conhecimento de factos que suportam claramente a decisão que foi tomada sobre os aludidos pontos controvertidos. Afirmam que os autores viveram na casa quando alguns compartimentos estavam demolidos e em condições de desconforto.
E estes depoimentos foram valorados com credibilidade pelo julgador.
Foi esta sua íntima convicção que o levou a valorar positivamente estes factos.
Por isso, também nenhuma censura nos merece a resposta dada a estes pontos controvertidos, desde logo porque o modo como a convicção se forma é insindicável.

1.3- Defendem finalmente os recorrentes que também os pontos nºs 27º a 30º da base instrutória deveriam ter merecido resposta diferente da que lhes foi dada. E fundamentam esta sua afirmação no facto de as testemunhas por si arroladas terem contrariado a versão dada como provada e não terem sido valorizados os seus depoimentos.
Com os factos levados a estes pontos controvertidos procurava-se indagar se os réus, ao requerer o procedimento cautelar, actuaram de modo imprudente.
Consideraram-se provados os factos vertidos em todos estes pontos controvertidos, justificando o Mmº juiz que formou a sua convicção para assim responder na inspecção ao local e nos elementos objectivos que aí colheu e no depoimento, que apelidou de importante, da testemunha M......
Efectivamente esta testemunha transmite claramente a ideia de que o muro da discórdia é e sempre foi pertença da autora B..... e assim o consideravam os anteriores proprietários do prédio hoje dos réus.
Não obstante do depoimento das testemunhas arroladas pelos réus se depreender que este muro poderia ser de meação, o certo é que o Mmº juiz não considerou estes depoimentos, valorando mais o da testemunha M...... É a sua íntima convicção que assim o levou a valorar mais este depoimento em detrimento dos demais. Mas, como referido já se deixou, esta convicção é insindicável.
Também não é passível de alteração a resposta que mereceram estes pontos controvertidos da matéria de facto.

Tem-se, por isso, como definitivamente assente toda a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.

2- nulidade da sentença

Na sentença recorrida condenaram-se os réus a pagarem aos autores C..... e D..... a quantia correspondente ao sobrecusto da obra ocasionado pela sua paragem em consequência do embargo, por se ter dado como provado que foi à autora mulher a quem o empreiteiro exigiu essa importância e ter sido ela que a satisfez.
Mas na petição é a autora B..... quem reclama dos réus o pagamento desse quantitativo, alegando ter sido a ela que o empreiteiro exigiu a actualização do custo da obra e ter sido ela que efectivamente pagou esse excesso. E foi esta a versão levada à base instrutória –cfr. arts. 11º a 14º.
O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; e, na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites do pedido formulado [Cfr. Alberto dos Réis, C.Pr.Civil, Anotado, V, pág. 67/68].
Embora o tribunal seja livre na qualificação jurídica dos factos – art.664º C.Pr.Civil, essa liberdade não lhe permite alterar qualitativa ou quantitativamente nem a causa de pedir, nem o pedido.
A estabilidade da instância determina que esta se mantenha inalterada quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, salvas as modificações que a própria lei contempla – art. 268º C.Pr.Civil.
No caso em apreço, alterou-se na sentença a qualidade do próprio pedido, concedendo-se a tutela jurídica a quem a não tinha solicitado. Não se tratou de alterar juridicamente os factos que suportavam o pedido, antes declarou-se o que não tinha sido pedido.
Deste modo, e por violação do estatuído no nº 1 do art. 661º C.Pr.Civil, cometeu-se a nulidade prevista na al. e) do nº 1 do art. 668º do mesmo diploma.
Aliás, já as respostas aos pontos controvertidos da matéria de facto que contemplavam esta situação exorbitaram claramente da matéria neles vertida, sendo excessivas as respostas ao precisarem que foi uma outra pessoa, que não a aí referida, que suportou os encargos com o sobrecusto das obras. Só que esta questão não foi colocada em sede de recurso.

Não obstante a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art. 715º C.Pr.Civil impõe-se o seu suprimento.
Está provado que, devido ao embargo, a obra esteve parada durante 3 anos, tendo o empreiteiro exigido um acréscimo de 2.000.000$00 pela sua ultimação, como contrapartida pelo acréscimo nominal dos preços de material e mão de obra nos três anos de paralisação e ao prejuízo sofrido com a interrupção.
Independentemente de se averiguar se ocorrem ou não os requisitos exigidos para responsabilizar os réus pelo pagamento deste sobrecusto da obra, o certo é que a autora B..... não suportou estes encargos acrescidos, o que equivale por dizer que a paralisação da obra não lhe acarretou os prejuízos reclamados, não tendo, por isso, direito a haver a indemnização peticionada.
É que constitui condição sine qua non do arbitramento de indemnização desde logo e em primeiro lugar a existência de um prejuízo.
Na ausência desse prejuízo, é evidente que acção, nesta parte, tem que improceder.

3- excepção de caso julgado

Porque a autora B..... já pedira, em sede reconvencional, numa outra acção a mesma indemnização pelo aumento do custo da obra com base na injustificação do embargo, pretensão que naufragou, está impedida de renovar agora o mesmo pedido, que já foi definitivamente decidido.
Esta excepção de caso julgado foi invocada pelos réus em sua contestação.
E o Mmº juiz logo dela conheceu no despacho saneador, tendo-a julgado improcedente.
Esta decisão não foi atacada pelos réus. Logo, transitou em julgado, ou seja, está assente que esta causa não é repetição da anterior.
Está, por isso, vedada agora a apreciação da invocada excepção de caso julgado.

4 - ausência de fundamento do direito a indemnização

Se a providência for considerada injustificada ou caducar, o requerente é responsável pelos danos causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal – nº 1 do art. 387º C.Pr.Civil (antes da reforma de 1995, normativo que prevê a relação litigiosa propriamente dita e, como tal, é o aplicável, mas que corresponde, nesta parte, ao actual art. 390º).
Para responsabilizar o requerente da providência de embargo de obra nova pelos danos eventualmente causados ao requerido e constituí-lo na obrigação de os ressarcir, não basta que a providência venha a ser considerada injustificada ou que caduque. Exige-se que o requerente não tenha agido com a prudência normal, que tenha assumido uma conduta culposa quando tomou a iniciativa de a requerer.
Mas também não se pode extrair a conclusão de que, pelo facto de a providência ter sido decretada ou ratificada judicialmente, afastada está a imprudência do requerente; de que a intervenção judicial acaba por desculpabilizar a sua actuação. É que, além de ao decretamento da providência bastar a mera probabilidade da aparência do direito, não se exigindo aquele juízo de certeza que a sentença terá de exprimir, a alegação factual suporte da providência é da iniciativa do requerente.
Para a procedência do pedido de indemnização, em consequência da injustificação ou caducidade de uma providência cautelar, exige-se a prova cumulativa da existência de prejuízos e a culpa do requerente, traduzida em uma anormal imprudência, prova esta que incumbe ao lesado –art. 487º C.Civil.
E não age com normal prudência aquele que não toma as precauções devidas para evitar o resultado danoso; que omite os cuidados que uma pessoa normalmente cuidadosa tomaria.

Ficou provado que os réus, antes de o terem comprado, não conheciam o seu prédio, nem o da autora. E apesar de nada indiciar que o muro, que originou o embargo, lhes pudesse por qualquer modo pertencer, também não procuraram nem se preocuparam em se informar se tinham algum direito sobre ele. Em contrapartida, a sua implantação até sugeria que ele apenas pertenceria à autora. Por outro lado, a continuação das obras no prédio da autora em nada prejudicaria o prédio dos réus.
Perante este factualismo é legítimo concluir que os réus não tomaram os cuidados que uma pessoa medianamente prudente tomaria. Na verdade, apesar de não conhecerem o histórico do muro da discórdia não procuraram informar-se se tinham ou não algum direito sobre ele. Além da normal prudência sugerir essa informação previamente à actuação que assumiram, a implantação do muro até desaconselhava um comportamento de sentido contrário, porquanto fazia presumir que não tinham sobre ele qualquer direito. Por outro lado, perante estas dúvidas objectivas e porque a continuação das obras nenhum prejuízo lhes acarretava, determinaria o bom senso que a questão fosse discutida na acção própria, já que a situação podia ser perfeitamente reposta no statu quo ante.
Apesar disso, preferiram os réus avançar imprudentemente para o embargo da obra.
Estão, pois, preenchidos os requisitos para responsabilizar os réus pelos prejuízos causados com o embargo mal decretado.

Entre os prejuízos causados incluem-se os de natureza não patrimonial reclamados pelos autores C..... e mulher, danos cuja ressarcibilidade não foi sequer impugnada, nem tão pouco no seu montante.

IV. Decisão
Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se nos seguintes termos:
a- anular a sentença recorrida enquanto condenou os réus a pagar aos autores C..... e mulher D..... a quantia de 2.000.000$00 (correspondente a 9.975,96 €) e em absolver os réus desse pedido;
b- julgar improcedente a apelação quanto ao mais e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida;
c- condenar nas custas apelantes e apelados, na proporção do respectivo decaimento.
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Porto, 23 de Novembro de 2004
Alberto de Jesus Sobrinho
Durval dos Anjos Morais
Mário de Sousa Cruz