Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANTÓNIO JOSÉ RAMOS | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA CONTRAORDENAÇÃO GRAVE | ||
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Nº do Documento: | RP201206212/10.9TTVNG.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/18/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. II - A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo. III – O facto da conduta do sinistrado integrar uma infracção estradal classificada por lei como contra-ordenação grave ou muito grave não basta só por si para se dar por preenchido o requisito da culpa grosseira, para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho. É que os fins visados na legislação rodoviária são diferentes dos visados na lei dos acidentes de trabalho. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação: nº 212/10.9TTVNG.P1 Reg. Nº 197 Relator: António José Ascensão Ramos 1º Adjunto: Des. Eduardo Petersen Silva 2º Adjunto: Des. José Carlos Machado da Silva Recorrente: B… – Companhia de Seguros, S.A. Recorrido: C… Acordam os juízes que compõem a Secção Social deste Tribunal da Relação do Porto: ___________________ 1. Frustrada a tentativa de conciliação, C…, casado, empresário, C. F. nº ………, com residência profissional no …, …, …, instaurou no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia, a presente acção emergente de acidente de trabalho, contra B… – Companhia de Seguros, S.A., com sede na …, …, …. - … Lisboa, pedindo que a Ré seja condenada.a) A reconhecer o acidente como acidente de trabalho; b) A reconhecer as incapacidades já reconhecidas e fixadas pela Junta Médica na base conciliatória; c) A pensão anual e vitalícia de 9.676,62 € obrigatoriamente remível; d) A quantia de 34.193,52 € correspondente à indemnização devida pelos períodos de incapacidades temporárias; e) O montante de 20.639,65 € que é o cálculo de todas as despesas supra referidas. f) A soma das alíneas c), d) e e). Para o efeito alegou, em síntese, que o a Autor é sócio gerente da D…, Lda., cuja transferiu a sua responsabilidade civil emergente de trabalho para a B… – Companhia de Seguros, S.A., NIPC ………. No dia 16 de Abril de 2009, ao regressar de uma reunião com um cliente ao serviço da D…, o A. sofreu um acidente de viação. O acidente ocorreu quando conduzia o veículo de matrícula ….DMB e no entroncamento que se situa logo a seguir à portagem de …, olhou para a sua esquerda e viu que podia avançar, o que fez. Inesperadamente surgiu o veículo NO-..-.. que embateu no veículo por si conduzido. Do acidente resultaram indirecta e necessariamente várias lesões, tendo estado internado desde no Hospital … até 16/05/2009. Ficou com sequelas que lhe determinam uma incapacidade permanente parcial de 17,53 %. À data do acidente o A. auferia o vencimento anual de 78.857,66 €. Despendeu em deslocações ao Tribunal e INML 20,00 €. O A. gastou no internamento do Hospital de Penafiel no dia do acidente 85,00 €. Gastou no transporte de ambulância do Hospital … 91,40 €. Teve que pagar o montante de 11.700,00 € devido ao trabalho de enfermagem a que esteve sujeito. Pagou 13 sessões de terapia, que custaram 520,00 €. Teve 14 deslocações entre o domicílio (Parede – …) e a …, o que corresponde a 60 Kms x 14, o que perfaz 336,00 €, a 0,40 €/Km. Os tratamentos de fisioterapia implicaram o custo de 314,00 €, na E…. Gastou em 105 deslocações entre o domicílio e a F… (ida e volta 90 Kms) um total de 9.450 Kms x 0,40 €/Km, o que perfaz 3.780,00 €. Teve 18 consultas de psicologia, as quais custaram 1.120,00 €. Nas deslocações para a … (psicólogo), gastou 432,00 €. Teve 5 consultas de ortopedia nas quais gastou 150,00 €. Teve 2 consultas de pneumologia nas quais gastou 120,00 €. Gastou 20,00 € numa ecografia. Gastou em 2 electromiografias 15,00 €. Gastou em análises 25,75 €. Gastou um serviço num TAC 25,00 €. Gastou em 3 ressonâncias magnéticas 187,50 €. Para as deslocações à cidade do Porto para a realização dos exames acima expostos o A. percorreu 420 Kms, o que perfaz 168,00 €. Teve despesas de fisioterapia na F…, no montante de 1.380,00 €. Gastou em 2 consultas de psiquiatria 170,00 €. ___________________ 2. Citada a Ré contestou alegando que o acidente se encontra descaracterizado, uma vez o mesmo se deveu exclusivamente a negligência grosseira do Autor, o qual, não parou ao sinal STOP que se lhe deparava e atravessou a EN ….___________________ 3. Proferiu-se despacho saneador, no qual foram considerados válidos e regulares os pressupostos objectivos e subjectivos da instância; procedeu-se à selecção da matéria fáctica admitida por acordo e controvertida (base instrutória), da qual não houve reclamação.___________________ 4. Procedeu-se a julgamento, com gravação da prova pessoal, após a que o Tribunal respondeu à matéria de facto, não tendo ocorrido qualquer reclamação.___________________ 5. Foi proferida sentença, cuja parte decisória tem o seguinte conteúdo:Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção procedente por provada, condenando-se a Ré C… – Companhia de Seguros, S.A., a reconhecer que o Autor C… foi vítima de um acidente de trabalho e a pagar-lhe: - a quantia de 16 063,65 euros por despesas médicas, de enfermagem e afins; - a quantia conjunta de 34 193,49 euros pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho; - o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 11.823,91 euros pela I.P.P. de 21,42% desde 17/12/2009; - e juros de mora, sobre as quantias anteriores, desde a citação (12/11/2010) até integral pagamento. Custas pela R. Registe e notifique.» ___________________ 6. Inconformada com esta decisão a Ré interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da mesma e a sua absolvição, tendo formulado as seguintes conclusões:1ª-Tendo em conta a matéria de facto dada como assente e aceite como tal pelo douto Tribunal “a quo” considera a ora recorrente que fez incorrecta aplicação do direito; 2ª- Tendo-se concluído, sem margem para duvidas de que a contra-ordenação do sinistrado foi qualificada de muito grave, causal e exclusiva para a produção do acidente, considera a ora recorrente encontrar-se preenchido o conceito de negligencia grosseira; tanto mais que; 3ª- No caso em apreço todas as circunstancias apuradas (cruzamento com boa visibilidade; etc) permitem censurar em elevado grau a conduta do sinistrado, pelo que nada mais será exigível para a descaracterização; 4ª- O sinistrado praticou uma contra-ordenação muito grave e não vindo provado qualquer circunstancialismo que permita entender a infracção perpetrada – ao menos no sentido de minimizar a gravidade objectiva de que se reveste, - a conduta do sinistrado assume-se como temerária em alto e relevante grau, configurando negligencia grosseira. 5ª Foi impossível ao condutor do veículo pesado ter actuado de forma a evitar o acidente, atenta a proximidade entre os dois veículos quando o A. corta a via de trânsito por onde circulava o pesado. Pelo que se deverá concluir que a actuação do sinistrado dói a causa exclusiva do acidente descrito nos autos. 6º- A recorrente atenta a matéria assente cumpriu o seu ónus probatório, pelo que; 7ª- Considera assim que se encontram preenchidos todos os requisitos legais para se considerar o acidente de viação em causa nos autos descaracterizado em virtude da negligência grosseira do recorrido sinistrado, nos termos legalmente estatuídos (artº7º nº 1, al.b) da LAT aplicável á data dos factos). ___________________ 7. O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida e pela improcedência do recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:1 – Face ao facto de ter sido dado como provado que o recorrido parou face ao Stop, o recorrido nunca poderia ter agido com negligência grosseira. 2 – As infracções estradais graves ou muito graves previstas no C.E. não se traduzem com a mesma intensidade e natureza para os acidentes de trabalho, isto é: não se vertem do mesmo modo para o direito do trabalho. 3 – Era à recorrente que cabia provar que o recorrido praticou factos que consubstanciavam a negligência grosseira sendo o facto que supostamente poderia provar era o não ter parado face ao sinal Stop e a recorrente não logrou provar que o recorrido não parou; antes ficou provado na Motivação que o recorrido parou. ___________________ 8. O Ex.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação, emitiu douto parecer no sentido de que a apelação não merece provimento.___________________ 9. Foram colhidos os vistos legais.___________________ II – Delimitação do Objecto do RecursoComo é sabido o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do Código de Processo Civil (na redacção introduzida pelo DL 303/2007, de 24.08), aplicáveis ex vi do disposto nos artigos 1º, nº 2, al. a), e 87º do Código de Processo do Trabalho, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2). Assim, dentro desse âmbito, deve o tribunal resolver todas as questões que as partes submetam à sua apreciação, exceptuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outras (art. 660.º, n.º 2, do CPC), com a ressalva de que o dever de resolver todas as questões suscitadas pelas partes, este normativo, não se confunde nem compreende o dever de responder a todos os “argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes”, os quais, independentemente da sua respeitabilidade, nenhum vínculo comportam para o tribunal, como resulta do disposto no art. 664.º do Código de Processo Civil[1]. De modo que, tendo em conta os princípios antes enunciados e o teor das conclusões formuladas pela apelante, a questão a decidir consiste em saber se o acidente de que foi vitima o Autor deve ser descaracterizado, pelo facto de o mesmo ter ocorrido única e exclusivamente por negligência grosseira do Autor. ___________________ 1-Factos que a decisão recorrida considerou como provados:III – FUNDAMENTOS A) O A. C… é gerente da sociedade D…, Lda., com sede em Vila Nova de Gaia, mediante uma remuneração anual de 5 632,69 euros x 14 = 78 857,66 euros. B) Tal entidade empregadora do A. transferiu a sua responsabilidade por acidentes de trabalho para a R. B… – Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ………. C) No dia 16 de Abril de 2009, ao regressar de uma reunião a Paredes com um cliente, ao serviço da D…, o A. sofreu um acidente de viação por embate entre o veículo que conduzia ….DMB e o veículo NO-..-… junto ao entroncamento que se situa a seguir à portagem de …, entre a saída da ... e a E.N. …. D) Por causa do acidente e das lesões sofridas, o A. teve de despender: b) 85 euros no internamento no Hospital de Penafiel, c) 91,40 euros em ambulância ao hospital …, d) 11,700 euros por trabalho de enfermagem, e) 520 euros em 13 sessões de fisioterapia, g) 314 euro em tratamentos de fisioterapia na E…, i) 1 120 euros em 18 consultas de psicologia, j) 230 euros nas deslocações ao psicólogo, na …, k) 60 euros em 5 consultas de ortopedia, l) 120 euros em 2 consultas de pneumologia, m) 20 euros numa ecografia, n) 15 euros em 2 electromiografias, o) 25,75 euros em análises, p) 25 euros num TAC, q) 187,50 euros em 3 ressonâncias magnéticas, s) 1 380 euros em despesas de fisioterapia na F…, t) 170 euros em 2 consultas de psiquiatria. E) O A. esteve com I.T.A. desde 17/04/09 a 16/11/09 (214 dias). F) E com I.T.P. de 30% de 17/11/09 a 16/12/09 (30 dias). G) O A. atravessou a E.N. …, cortando a linha de marcha do veículo NO, que circulava nessa E.N. no sentido …-…. H) Com tal manobra e dada a proximidade entre ambos os veículos, o embate foi inevitável. I) A visibilidade no local era boa. J) Por virtude do acidente, o A. ficou afectado de uma I.P.P. de 21,42%, conforme foi fixado no apenso A. ___________________ 2.1. Cabe, então, resolver a questão que nos é trazida pelo recurso: saber se o acidente de que foi vitima o Autor deve ser descaracterizado, pelo facto de o mesmo ter ocorrido única e exclusivamente por negligência grosseira do Autor.2.2.1. Regime legal aplicável. Antes de mais, cumpre decidir qual o regime jurídico/legal aplicável ao caso em apreço. O acidente dos autos ocorreu em 16 de Abril de 2009, por isso, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro. Note-se que, embora o acidente dos autos se tenha verificado após a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, o que se verificou em 1 de Dezembro de 2003 (n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003), não se aplica o correspondente regime jurídico, cuja aplicação carecia de regulamentação (artigos 3.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 99/2003). O mesmo sucede com a Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, cuja entrou em vigor em 01 de Janeiro de 2010 e apenas se aplica aos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor (artigos 187º, nº 1 e 188º). 2.2.2. Vejamos então o caso concreto. Decorre do disposto no artigo 1º, nº1 da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro que «os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei e demais legislação regulamentar». Por sua vez, o nº 1 do artigo 2º, da citada lei refere que «têm direito à reparação os trabalhadores por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos», esclarecendo o nº 3 que «é aplicável aos administradores, directores, gerentes ou equiparados, quando remunerados, o regime previsto na presente lei para os trabalhadores por conta de outrem.» Assim, sendo o sinistrado gerente da sociedade D…, Lda. e tendo esta celebrado com a Ré um contrato de seguro, mediante o qual transferiu para esta a responsabilidade pela reparação de acidentes de trabalho com aquele ocorridos, está responderá, caso se verifiquem os respectivos pressupostos, pela respectiva reparação dos danos emergentes de tais acidentes de trabalho. Dispõe o n.º 1 do artigo 6º da lei nº 100/97, de 13/09 que «É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e tempo e trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte». Ninguém questionou e, por isso, é incontroverso que o sinistrado sofreu no aludido (na matéria de facto provada) contexto espácio-temporal um acidente de viação simultaneamente de trabalho. No entanto, a ré Companhia de Seguros defende que o acidente, apesar de trabalho, está descaracterizado por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 7º da lei n.º 100/97, de 13.9, que determina: «Não dá direito à reparação o acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.» Para se poder “descaracterizar o acidente” e consequentemente a exclusão de responsabilidade na reparação é necessário que, cumulativamente, se verifiquem dois pressupostos: ● Culpa grave e indesculpável da vítima. ● Exclusividade dessa culpa. A negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado ou, por outras palavras, na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível e, segundo a terminologia clássica, pode revestir várias formas: culpa levíssima, culpa leve e culpa grave. A primeira (culpa levíssima) ocorre quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado. A segunda (culpa leve) acontece quando o agente tiver deixado de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria observado. A terceira (culpa grave) existirá quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado. A negligência grosseira corresponde à culpa grave ou lata, que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que, segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt. A utilização pelo legislador daquele conceito doutrinário veio simplificar os problemas que se colocavam na anterior lei de acidentes de trabalho, a Lei n.º 2.127, de 3/8/65, em sede de interpretação de disposição similar à do art. 7.º, n.º 1, al. d), da actual lei. Referimo-nos à Base VI, n.º 1, al. b), da Lei n.º 2.127, nos termos da qual não dava direito a reparação o acidente "[q]ue provier exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima" e que, consensualmente, a doutrina e jurisprudência faziam equivaler a "um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária embora não intencional", o que valia por dizer que o acidente só era descaracterizável, com aquele fundamento, quando fosse imputável exclusivamente a negligência grosseira da vítima. Constata-se, assim, que o legislador da Lei n.º 100/97 veio a adoptar o entendimento doutrinal e jurisprudencial já firmado na vigência da anterior lei. Mas fez mais do que isso. Como que para tirar dúvidas, no decreto-lei que veio regulamentar aquela lei (o D.L. n.º 143/99, de 30/4), o legislador deixou-nos o conceito de negligência grosseira, limitando-se praticamente a reproduzir a terminologia que a jurisprudência e a doutrina já utilizavam na vigência da anterior lei, para caracterizar a falta grave e indesculpável. Na verdade, segundo o disposto no n.º 2 do art. 8.º do referido Decreto-Lei n.º 143/99 "[e]ntende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão". Neste contexto, dúvidas não há de que para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta (por acção ou omissão) atentou contra o mais elementar sentido de prudência e que a sua falta de cuidado não resultou da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão. É preciso, em suma, que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo[2]. A jurisprudência tem vindo a associar o comportamento temerário em alto e relevante grau a um comportamento inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência[3]. Por outro lado, a falta grave e indesculpável deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta. Acresce que a descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito que o autor se arroga e, como tal, de acordo com os critérios gerais de repartição do ónus da prova, a sua prova compete ao réu na acção, ou seja, à entidade patronal ou à respectiva seguradora (artigo 342º, n.º 2, do Código Civil). Isto é, aquele que invoca o direito de reparação pelo acidente de trabalho tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito invocado[4]. O diferente posicionamento das partes relativamente ao ónus da prova dos factos que relevam para a decisão da causa está em sintonia com o benefício que poderão retirar da respectiva alegação. Como escreve Manuel de Andrade[5] (, a ideia fundamental que impera no domínio da repartição do ónus da prova "é não poder o juiz aplicar uma norma de direito sem estarem provados os diversos momentos de facto que integram a sua hipótese, e condicionam portanto a subsequente estatuição. Por isso o ónus da prova (e da afirmação) quanto a cada facto incumbe à parte cuja pretensão processual só pode obter êxito mediante a aplicação da norma de que ele é pressuposto; de onde que cada parte terá aquele ónus quanto a todos os pressupostos das normas que lhe são favoráveis. E assim, se na lei há uma regra e uma excepção (ou várias) a parte cuja pretensão se baseia na norma-regra só tem a provar os factos que constituem a hipótese dessa norma, e não já a existência dos que constituem a hipótese da norma--excepção." E também importa referir que o facto da conduta do sinistrado integrar uma infracção estradal classificada por lei como contra-ordenação grave ou muito grave não basta só por si, como tem vindo a ser decidido pelo Supremo Tribunal, para se dar por preenchido o requisito da culpa grosseira, para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho. É que os fins visados na legislação rodoviária são diferentes dos visados na lei dos acidentes de trabalho[6]. Com efeito, sendo o interesse da prevenção geral mais premente na legislação estradal, o que leva à punição de meras situações de perigo e a um maior recurso a presunções de culpa, não pode o critério da gravidade das infracções naquele domínio servir para qualificar como "grosseira" a culpa do sinistrado num acidente de trabalho, por não se justificar que no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho se utilizem os mecanismos usados no âmbito da legislação rodoviária. Vejamos, então, como ocorreu o acidente: Como provado, o sinistrado, no dia 16 de Abril de 2009 sofreu um acidente de viação por embate entre o veículo que conduzia ….DMB e o veículo NO-..-.. junto ao entroncamento que se situa a seguir à portagem de …, entre a saída da … e a E.N. …. O A. atravessou a E.N. …, cortando a linha de marcha do veículo NO, que circulava nessa E.N. no sentido …-…. Com tal manobra e dada a proximidade entre ambos os veículos, o embate foi inevitável. A visibilidade no local era boa. Na sentença recorrida perfilhou-se o entendimento de que o acidente não se deveu a negligência grosseira e exclusiva do Autor, tendo-se referido, sobre a questão, o seguinte: «É certo que, tendo o A. entrado num entroncamento, tal facto, por si só, implicava abrandamento e cautelas, como resulta das regras do Código da Estrada, designadamente o seu art. 29º. Mas nada demonstra que o A. não tenha abrandado ou até parado, não podendo tais factos extrair-se da mera ocorrência do embate ou de não ter ficado provado que ele olhou para a esquerda antes de avançar (cfr. resposta negativa ao quesito 1º). É certo, por outro lado, que a existência de um stop à entrada da E.N. … (para quem, como o A., vinha da saída da …) não foi posta em causa pelo A.. Mas a R. alegava que o A. não tinha parado em tal sinal e a verdade é que tal versão dos factos não obteve adesão da prova produzida (cfr. resposta negativa ao quesito 6º). Ora, o que poderia revelar negligência grosseira do A. era, face aos factos alegados e quesitados, a ausência de paragem do A. ao dito sinal STOP, posto que tal sinal de trânsito obriga a paragem total, constituindo a infracção ao mesmo uma contra-ordenação grave, segundo o Código da Estrada (Dec.-Lei nº 114/94, de 3/05). E, a prova de tal facto era algo cujo ónus era da R., já que se tratava de facto impeditivo ou extintivo do(s) direito(s) de indemnização reclamado(s) pelo A. – cfr. art. 342º, nº 2, do Cód. Civil. Havendo dúvida, sempre a mesma se teria de resolver contra a parte onerada com a prova – art. 346º do Cód. Civil – ou seja, contra a R. Não ficou pois demonstrado que o sinistrado tenha violado deveres elementares de cuidado ou diligência: desde logo, o de não parar ao sinal STOP, que obrigava a paragem total; mas também o de não abrandar, olhar para os lados ou de alguma forma reparar se havia, no cruzamento, trânsito com que pudesse colidir. Naturalmente que se o acidente ocorreu e se o A. estava a entrar numa estrada em que não tinha prioridade de passagem, a ele se terá de atribuir alguma culpa no sinistro, posto que poderia ter evitado o embate se, como se lhe impunha, tivesse olhado com atenção para o sentido de onde vinha o veículo NO e não tivesse tentado atravessar a via antes de este passar ou sem se certificar de ter distância suficiente para atravessar a estrada (E.N. …) antes da colisão com o veículo NO. Contudo, seja por erro de cálculo (quanto à distância ou velocidade do veículo com que se ia cruzar), seja por outra menor cautela ou distracção, a verdade é que a negligência do sinistrado não se pode reputar de grosseira, dadas as particulares exigências de que o legislador rodeou, como vimos, a descaracterização do acidente (algo, só por si, já excepcional em relação ao principio da responsabilidade da entidade empregadora ou seguradora em matéria de acidentes de trabalho).» Diremos desde já que genericamente concordamos com o decidido. Se é certo que o Autor se deparava com um sinal STOP – que o obrigava a parar e a ceder passagem[7] – a verdade é que não se provou se o mesmo parou ou não no mesmo. É certo que se provou que o sinistrado atravessou a E.N. …, cortando a linha de marcha do veículo NO, que circulava nessa E.N. no sentido …-… e que, com tal manobra, e dada a proximidade entre ambos os veículos, o embate foi inevitável. Mas nada mais se sabe das circunstâncias do acidente. Ora, não se tendo apurado que o sinistrado não parou no sinal Stop, nem se terem apurada as demais circunstâncias inerentes ao atravessamento da via, não se pode concluir, salvo o devido respeito, pela negligência grosseira do Autor. Múltiplas razões poderiam ter concorrido para que esse facto ocorresse, desconhecendo-se, no entanto, o verdadeiro motivo. Assim sendo, não se pode dizer que o sinistrado agiu com negligência grosseira. Embora a conduta do Autor seja patentemente infraccional e negligente, não pode, apesar disso, ser havida como gratuitamente temerária e reprovada pelo mais elementar sentido de prudência. Mas mesmo que tivéssemos chegado a essa conclusão, necessário, para a descaracterização do acidente, era que a ré provasse que o acidente se deu por exclusiva culpa do Autor. Falta, assim, saber se o acidente resultou em exclusivo da conduta infraccional/causal do sinistrado, ou se, na sua eclosão, concorreu também a actuação do outro condutor (concausalidade). Ora, da factualidade apurada, conforme já deixamos exarado, não resulta qualquer circunstancialismo quanto ao comportamento do outro condutor interveniente no acidente. Inexistem factos que nos permitam aferir se tal condutor adequou a sua condução, de algum modo e em que possível medida, observando a cautela mínima exigível naquelas circunstâncias. Ante a boa visibilidade do local – e sabido que o condutor com prioridade não está dispensado de observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito, como se dispõe no n.º2 do art. 29.º do C.E. – não há nenhum indicador de facto que permita aceitar que, podendo fazê-lo, o condutor do veículo NO-..-.., tenha assumido, no contexto, (aproximação de um entroncamento), alguma qualquer cautela tendente a, se não evitar o acidente, ao menos tentar atenuar os seus efeitos, nomeadamente, a velocidade a que circulava; da redução da velocidade face á aproximação de um entroncamento; da existência e de travagem; da possibilidade ou tentativa de desvio de forma a evitar ou atenuar o embate dos veículos; da inexistência de desatenção, imprevidência, displicência e inconsideração do respectivo condutor, pois que, apesar de gozar de prioridade de passagem, tinha de assumir/adoptar um comportamento de prudência, cautela e cuidado. Em síntese, podemos assentar, que a factualidade não é suficiente no sentido de se poder concluir que o acidente se tenha ficado a dever exclusivamente à negligência grosseira do sinistrado, para os pretendidos efeitos da sua descaracterização enquanto acidente de trabalho. Improcede, pois, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida. ___________________ 3. Vencido, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 2 e 2, do Código de Processo Civil).___________________ III. Decisão.Em face do exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso e consequentemente confirmar a sentença recorrida. ___________________ Condenam a recorrente no pagamento das custas [artigo 446º, nº 1 e 2 do CPC]. ___________________ Anexa-se o sumário do Acórdão – artigo 713º, nº 7 do CPC.___________________ (Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artº 138º nº 5 do Código de Processo Civil).Porto, 18 de Junho de 2012 António José da Ascensão Ramos Eduardo Petersen Silva José Carlos Dinis Machado da Silva _______________ [1] Cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 677-688; e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 371/2008, consultável no respectivo sítio, bem como Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/10/2001 e 10/04/2008, respectivamente n.º 01A2507 e 08B877, in www.dgsi.pt e Acórdão da Relação do Porto de de 15/12/2005, processo n.º 0535648, in www.dgsi.pt. [2] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal, de 29.11.2005, proferido no processo n.º 1924/05, da 4.ª Secção, www.dgsi.pt. [3] Acórdão dos STJ de 7 de Novembro de 2001, Revista 1314/01, processo 01S1314, www.dgsi.pt, [4] Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, 1967, pág. 222 [5] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, págs. 199-200. [6] Cfr. Acórdãos do STJ de 14/02/2007 e de 13/12/2007, respectivamente, Processos 06S3545 e 07S3655,in www.dgsi.pt [7] A obrigação contida no sinal – tal como expresso pelo artigo 21º B2 do Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro – não é apenas a de obrigação de paragem, como obriga à cedência de passagem: B2 – paragem obrigatória no cruzamento ou entroncamento: indicação de que o condutor é obrigado a parar antes de entrar no cruzamento ou entroncamento junto do qual o sinal se encontra colocado e ceder a passagem a todos os veículos que transitem na via em que vai entrar. _________________ SUMÁRIO – a que alude o artigo 713º, nº 7 do CPC. I - Para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. II - A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo. III – O facto da conduta do sinistrado integrar uma infracção estradal classificada por lei como contra-ordenação grave ou muito grave não basta só por si para se dar por preenchido o requisito da culpa grosseira, para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho. É que os fins visados na legislação rodoviária são diferentes dos visados na lei dos acidentes de trabalho. II - Não é de descaracterizar o acidente de trabalho ocorrido com um gerente de uma sociedade que sofreu um acidente de viação por embate entre o veículo que conduzia e outro veículo junto ao entroncamento que se situa a seguir à portagem de …, entre a saída da … e a E.N. …, tendo atravessado a E.N. …, cortando a linha de marcha do outro veículo, que circulava nessa E.N., sendo o embate inevitável. António José da Ascensão Ramos |