Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
462/10.8TBVFR-W.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS
RECUSA LEGÍTIMA
Nº do Documento: RP20111121462/10.8TBVFR-W.P1
Data do Acordão: 11/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: 1 – A pertinência da junção ou apresentação de um documento em poder da partes contrária, ao abrigo do artigo 528.º do Código de Processo Civil decorre da circunstância de os factos a provar com esse documento interessarem à decisão da causa, ou seja, constarem da base instrutória ou estarem em condições de nela poderem ser compreendidos.
2 – A recusa da parte em apresentar ou juntar determinado documento em seu poder só é legítima nas situações excepcionais previstas no n.º 3 do artigo 519.º do CPC e o segredo comercial não está aí contemplado. E se não está em causa a sua exibição por inteiro, nada impede – nem a lei processual cível nem o Código Comercial - a exibição, para exame ou junção de cópia de (parciais e pertinentes) elementos da escrituração comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 462/10.8TBVFR-W.P1

Recorrente/Autor – B…, Lda.
Ré/ recorrida - Massa Insolvente da C…, Lda.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

1 – Relatório
1.1 – O processo na 1.ª instância
A sociedade B…, SA veio propor contra a Massa Insolvente da C…, Lda. a presente acção de impugnação de resoluções (cumulando os pedidos, nos termos do artigo 470.º do CPC) ao abrigo do disposto no artigo 125.º do CIRE e pretendendo que se declare a ilegalidade das mesmas, “anulando-se a resolução do contrato de cessão da posição contratual e reconhecendo-se a nulidade da resolução do contrato de compra e venda ou, subsidiariamente, declarando-se a respectiva anulação, em função das invocadas nulidades.”

A autora, depois de identificar os contratos em causa (cessação da posição contratual outorgado em 15.04.2008 entre a devedora e a autora e contrato de compra e venda outorgado em 9.06.2009 por D…, em representação de E… e marido F… e a sociedade G…, SA, agora B…, SA) fundamenta a sua pretensão dizendo, em síntese e em relação ao contrato de cessão da posição contratual, que não estão reunidos os requisitos, desde logo temporais, da resolução incondicional, porque a declaração de resolução, fundando-se em convicções pessoais, limita-se a impugnar a data aposta no título, nada alegando quanto à necessária desproporcionalidade das obrigações. Por outro lado, refere que a invocação alternativa da resolução condicional se limita a considerações genéricas. No que respeita à “resolução do contrato de compra e venda”, a autora entende que, nem sequer em abstracto e ao contrário do contrato de cessão este pode entender-se resolúvel, pois nele a insolvente não é parte nem tem qualquer intervenção, não existindo competência da Administradora da Insolvência para resolver negócios jurídicos celebrados entre terceiros, nem cabe invocar o disposto no artigo 124.º do CIRE, justamente porque a insolvente nunca foi proprietária do objecto da compra e venda (nunca o comprou ou vendeu) e se é certo que celebrou um contrato promessa de compra e venda, acabou por não celebrar o contrato definitivo.

A ré, representada pela Administradora da Insolvência, contestou e deduziu reconvenção. Por excepção veio dizer que o contrato de cessão da posição contratual serviu os interesses da família H…, pela mão desta sociedade do Grupo, por modo a obter-se uma aparente normalidade na dissipação de mais um bem da devedora e que a venda ocorreu na fase em que a devedora se encontrava numa situação de insolvência, no mínimo iminente: a cedente/insolvente bem conhecia o estado em que se encontrava e a prejudicialidade do acto, tal como a autora conhecia a situação insolvente da cedente. Considera que o contrato de cessão, tal como o de compra e venda, apenas teve o objectivo de dissipar o património da insolvente. Impugnando, considera falsos vários factos alegados pela autora e acrescenta que, a ter sido outorgado o contrato de cessão da posição contratual aquando do alegado pagamento, em meados de 2009, já a devedora se encontrava no estado de insolvência iminente. Sobre a invocada ilegalidade da resolução da compra e venda a ré entende que seria absurda a possibilidade de resolução do acto inicial e posteriormente impossível o ataque aos terceiros a favor de quem foram constituídos direitos sobre os bens transmitidos.

A ré, em reconvenção – caso a acção seja procedente – pretende a condenação da autora no pagamento de 200.000,00€, referentes ao valor inicialmente pago pela insolvente aquando da outorga do contrato promessa de compra e venda, datado de 5.03.2001. Fundamenta a pretensão no facto de não ter sido pago qualquer preço pelo imóvel ou, a tê-lo sido, o alegado montante ter voltado imediatamente a sair, sob a forma de dividendos pagos aos próprios (Irmãos e Mão H…) e a favor de pelo menos uma sociedade controlada pelos mesmos (I…), existindo, por isso, um prejuízo naquele montante, referente ao valor inicialmente pago pela devedora, tendo a autora, com claríssima má fé, auxiliado a devedora a suprimir o bem imóvel aos credores da massa.

A autora respondeu à contestação, mantendo genericamente a sua posição inicial. No que à reconvenção respeita, a autora afirma que não comprou nenhum imóvel, pelo que não tinha obrigação de o pagar e desconhece se ocorreu o prejuízo invocado pela reconvinte.

O processo prosseguiu e, em despacho saneador, foi expressamente admitida a reconvenção, fixado o valor da causa, fixados os factos assentes e elaborada base instrutória. Posteriormente, ambas as partes vieram apresentar os seus requerimentos probatórios. A autora requereu a notificação da ré para juntar aos autos diversos documentos (extractos bancários da insolvente; recibos dos montantes pagos aos trabalhadores, cópia de cheques ou recibos relativos a valores pagos ao estado, a fornecedores e à Segurança Social; cópia da acta da Assembleia Geral da Insolvente, cópia do aviso de recepção da carta registada referida em D) da matéria assente) e a ré/reconvinte requereu, além do mais, ao abrigo do artigo 528.º do CPC e para prova dos factos constantes dos quesitos, 2.º, 4.º, 7.º, 11.º e 13.º a junção pela autora de “1. Declarações de rendimentos apresentadas pela sociedade desde o ano 2007; 2. Livro/s de actas da Autora com o registo de presenças nas deliberações e registo de acções; 3. Extractos bancários, com uma declaração complementar, do/s Banco/s onde se ateste (comprove) os lançamentos a crédito e débito referentes ao alegado pagamento e posteriores transacções ocorridas entre a Insolvente e a Autora”.

Os requerimentos probatórios foram objecto de despacho proferido a 10.08.2011, aí se tendo decidido notificar a ré como requerido (a fls. 75/76) pela autora e “…a A. como vem requerido a fls. 71 uma vez que se entende que a junção dos documentos aí indicados serão elementos importantes para a boa decisão da causa.”

1.2 – Do recurso
Inconformada com o despacho acabado de referir, precisamente na parte em que se ordena a sua notificação, a autora veio apelar para esta Relação. Identificando com precisão o objecto do recurso (Em sede de requerimento de prova, peticionou a Ré, ora Recorrida, em 04/07/2011, que «de acordo com o princípio da cooperação e nos termos do disposto no art. 528.º do Cód. Proc. Civil, para prova, além do mais dos factos constantes nos quesitos 2.º, 4.º, 7.º, 11.º, 13.º da BI» fosse ordenada a junção pela A., aqui Recorrente, dos seguintes elementos: 1. Declarações de rendimentos apresentadas pela sociedade desde o ano 2007; 2. Livro/s de actas da Autora com o registo de presenças nas deliberações e registo de acções; 3. Extractos bancários, com uma declaração complementar, do/s Banco/s onde se ateste (comprove) os lançamentos a crédito e débito referentes ao alegado pagamento e posteriores transacções ocorridas entre a Insolvente e a Autora) pretende a revogação do despacho e formula as seguintes conclusões:
A - É objecto do presente recurso a decisão da Meritíssima Juiz a quo datada de 10 de Agosto de 2011, na parte em que determinou o seguinte: «Notifique (...) a A. como vem requerido a fls. 71 uma vez que se entende que a junção dos documentos aí indicados serão elementos importantes para a boa decisão da causa.».
B - A decisão ora recorrida é um despacho de admissão de meios de prova, nos termos e para os efeitos do artigo 691.º, n.º 2, alínea i) do CPC, porquanto admite a produção de prova in casu por documentos em poder da parte contrária, nos termos do disposto no artigo 528.º do CPC, nos precisos termos em que foi requerido pela Ré/Recorrida em sede de requerimento probatório.
C - Não se conformando a Recorrente com a referida decisão, pretende demonstrar, com o devido respeito, que a decisão recorrida viola as seguintes normas jurídicas aplicáveis no caso concreto: artigos 158.º e 528.º, ambos do CPC e artigos 41.º, 42.º e 43.º, todos do Código Comercial.
D - O objecto da acção no âmbito da qual foi proferido o despacho recorrido prende-se com a resolução do contrato de cessão da posição contratual realizado entre a Insolvente e a Autora, ora Recorrente, pelo preço de €100.000,00 (cem mil euros), relativamente à posição contratual assumida pela primeira no contrato promessa de compra e venda de prédio rústico, celebrado em 05/03/2011 com F… e esposa, E…, assim como a consequente resolução do contrato de compra e venda do referido imóvel.
E - Em sede de requerimento de prova, peticionou a Ré, ora Recorrida, que «de acordo com o princípio da cooperação e nos termos do disposto no art. 528.º do Cód. Proc. Civil, para prova, além do mais dos factos constantes nos quesitos 2.º, 4.º, 7.º, 11.º, 13.º da BI» fosse ordenada a junção pela A., aqui Recorrente, dos seguintes elementos:
i) Declarações de rendimentos apresentadas pela sociedade desde o ano 2007 (até presente data);
ii) Livro/s (por inteiro) de actas da Autora com o registo de presenças nas deliberações e registo de acções;
iii) Extractos bancários, com uma declaração complementar, do/s Banco/s onde se ateste (comprove) os lançamentos a crédito e débito referentes ao alegado pagamento e posteriores transacções ocorridas entre a Insolvente e a Autora.
F - Ora, o pedido de junção de documentos acima descrito, - em particular, no que se refere aos elementos destacados com sublinhado nosso -, é demasiadamente genérico, e, nessa medida, excessivo, porquanto a documentação solicitada não se encontra circunscrita à data dos factos em discussão no processo.
G - A documentação em apreço não só contende inequivocamente com princípio geral do carácter secreto da escrituração mercantil consagrado no artigo 41.º do Código Comercial, como não é adequada à produção de prova da factualidade vertida nos quesitos 2.º, 4.º, 7.º, 11.º, 13.º da B.I.
H - Relativamente à apresentação em juízo das declarações de rendimentos (IRC) apresentadas desde o ano de 2007, - e não obstante a Recorrente não se oponha à junção aos autos desses documentos - cumpre referir que as declarações de rendimentos respeitantes ao Modelo 22 e demais documentos de prestação de contas da sociedade são documentos públicos, disponíveis a qualquer pessoa na Conservatória do Registo Comercial, mediante pedido de certidão.
I - Assim, injustificada a indisponibilidade dos documentos em questão (pressuposto da faculdade prescrita no art.º 528.º do CPC), não consubstanciam documentos em poder da parte contrária, não podem ser pedidos nos termos e ao abrigo do art.º 528.º do CPC, que se traduz num apelo ao princípio da cooperação.
J - Mais se refira que as declarações de IRC não são adequadas à produção de prova dos factos respeitantes aos quesitos enunciados pela Recorrida, dado que os valores constantes/declarados no Modelo 22 respeitam a valores globais transaccionados pela sociedade, não sendo possível fazer uma apreciação concreta relativamente à declaração fiscal do(s) valore(s) transaccionado(s) sub judice – sendo que apenas este facto/aspecto será relevante para o mérito da causa.
K - Acresce que, quanto aos quesitos 2.º e 4.º da B.I., referentes a factos alegados nos autos pela Recorrente, já foi efectuada prova documental por parte da mesma em sede de petição inicial.
L - Relativamente aos quesitos 7.º e 11.º da B.I., respeitantes a factos alegados pela Ré e cabendo àquela o ónus de prova, cumpre dizer que a factualidade aí vertida terá ser sustentada através de qualquer outro tipo de documentação que não elementos financeiros e/ou fiscais da Recorrente.
M - Por último, quanto ao quesito 13.º da B.I., respeitante à entrada de valores na insolvente e que, conforme vem alegado pela Ré, voltaram imediatamente a sair sob a forma de dividendos pagos aos próprios (Irmãos e Mãe H…) ou a favor de sociedades controladas pelos mesmos (onde se integra a sociedade I…), as declarações de rendimentos da Recorrente - que tão-pouco vem enunciada no referido quesito -, não são aptas a produzir prova dos movimentos financeiros relativos à insolvente, visto que não se tratam de sociedades participadas entre si e que a Sra. Administradora tem acesso pleno aos elementos financeiros e contabilísticos da insolvente.
N - Pelo exposto, não deverá a Recorrente ser condenada à junção aos autos das declarações de rendimentos desde o ano 2007 até à presente data.
O - No que respeita à requerida junção aos autos dos livros de actas da A., com o registo de presenças nas deliberações e de registo de acções, importa salientar que os referidos documentos fazem parte da escrituração mercantil da Recorrente, encontrando-se, por isso, abrangidos pelo sigilo comercial consagrado no artigo 41.º do C. Com.
P - Nos termos do artigo 534.º do CPC, a exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos relativos àquela rege-se pelo disposto na legislação comercial, ou seja, é aplicável o disposto nos artigos 42.º e 43.º do C.Com. que regulam o acesso à escrituração mercantil de uma sociedade.
Q - Ora, no caso concreto não é aplicável o regime prescrito no artigo 42.º do C.Com., uma vez que a ratio subjacente a este preceito refere-se à escrituração do insolvente – o que não é o caso da aqui Recorrente –, a qual, nos termos do art. 36.º, al. f) e 24.º, n.º 1 do CIRE, deve ser entregue ao administrador de insolvência (cf. COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 5.ª ed., Almedina, p. 177 e PINTO FURTADO, Disposições Gerais do Código Comercial, Almedina, 1984, p.116).
R - Fora dos casos previstos no art. 42.º do C. Com., só pode proceder-se a exame da escrituração e dos documentos dos comerciantes, a instâncias da parte ou oficiosamente quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
S - Ora, atendendo ao teor dos quesitos da B.I. implicados no requerimento probatório da Ré, é forçoso concluir que a factualidade aí vertida não é passível de prova com base nos livros de actas e registo de acções da Recorrente.
T - Para além disso, a ter lugar uma análise da escrituração comercial solicitada pela Ré, teria de ser por via de exame parcial ao abrigo do art. 43.º do C.Com. e limitado/circunscrito aos lançamentos que interessam à prova de determinado(s) facto(s) concreto(s) intrinsecamente relacionado(s) com o objecto da acção, não podendo – ao contrário do que pretende a Ré – abranger todos os livros de actas com o registo de presenças nas deliberações e registo de acções, e que comportaria uma devassa da actividade comercial da Recorrente.
U - Cumpre, ainda, referir que as normas do Código Comercial supracitadas não podem ser derrogadas em nome do princípio da cooperação, o qual foi invocado pela Ré, uma vez que, conforme defende o STJ, os artigos 42.º e 43.º do Código Comercial são normas de direito substantivo e de garantia do crédito dos comerciantes, prevalecendo as suas disposições especiais sobre as estatuições gerais do CPC, nomeadamente sobre o artigo 519.º desse diploma.
V - Concluindo, a apresentação em juízo dos elementos dos livros, por inteiro, de actas da Recorrente com o registo de presenças nas deliberações e de registo de acções, viola o sigilo comercial nos termos regulados no artigo 42.º do C.Com., porquanto não estamos perante nenhuma das situações em que tal exibição é permitida.
W - Salienta-se, a este respeito, que apesar de os presentes autos constituírem um apenso de processo de insolvência, a previsão legal - “no caso de insolvência” - visa a exibição judicial por parte do próprio Insolvente a favor dos interessados (credores).
X - Não tendo sido requerido o exame parcial da escrituração comercial, nos termos do art.º 43.º do C.Com., delimitado à data dos factos/negócios sub judice e tratando-se de estatuições especiais que, de acordo com o que tem vindo a ser defendido pelo STJ, não devem ceder perante o dever geral de cooperação para a descoberta da verdade, é manifesta a ilegalidade da decisão ora recorrida.
Y - Quanto ao pedido de junção aos autos de extractos bancários referentes a posteriores transacções ocorridas entre a Insolvente e a Autora, este é manifestamente abusivo, porquanto tais elementos/informações extravasam, em absoluto, o objecto da presente acção.
Z - Pelo que não assiste à Ré/Recorrida a faculdade de peticionar a referida junção no âmbito dos presentes autos, por violação do princípio do pedido.
AA - Mais se refira que, compreendendo-se a documentação bancária solicitada na escrituração comercial da Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 534.º do CPC e art.º 41.º e ss. do C.Com. e estando, desse modo, abrangida pelo segredo comercial, a respectiva junção aos autos permitiria tornar do domínio público inúmera informação comercial sensível, incluindo identificação de clientes e fornecedores, que poderá nomeadamente ser usada pelos seus concorrentes com óbvios e sérios prejuízos para a Recorrente.
BB - Além de impertinente e desnecessária, a exigência de extractos bancários, atenta a prova documental já constante dos autos – em particular no âmbito dos lançamentos a crédito e débito referentes ao alegado pagamento sub judice -, constitui uma tentativa de a Ré obter documentação confidencial da Autora visando outros fins que não os do presente processo.
CC - Em suma, o pedido de junção aos autos dos extractos bancários da A./Recorrente não pode lograr provimento nos termos requeridos pela Ré, aqui Recorrida.
DD - Por último, atendendo a que para efeitos de ponderação do (in)deferimento do pedido de notificação da parte contrária para junção de documentos formulado ao abrigo do art.º 528.º do CPC, o que releva é o reconhecimento do interesse para a decisão de causa dos factos que o requerente especificou como se propondo provar com esses documentos, cumpre referir que, por tudo o exposto supra, a decisão recorrida carece de fundamentação idónea, nos termos conjugados dos artigos 158.º e 528.º, n.º 2, ambos do CPC.
A recorrida Massa Insolvente, representada pela Administradora veio responder ao recurso. Entende que o recurso deve improceder, porquanto, “a coberto de um alegado direito, pretende a Recorrente, na verdade, sonegar prova relevantíssima para a justa decisão da causa e descoberta da verdade”, quando está em causa, nestes autos “a dissipação de mais um bem a favor de uma sociedade relacionada e controlada de facto pelas mesmas pessoas singulares. A recorrida conclui a sua resposta às alegações da recorrente do seguinte modo:
A - ESTE NÃO É O MEIO PRÓPRIO DE REACÇÃO DA RECORRENTE, QUE DEVERIA, PREVIAMENTE, TER REQUERIDO ESCUSA, PARA A JUNÇÃO DOS DOCUMENTOS ORDENADOS JUNTAR, DE ACORDO COM O DISPOSTO NO N.º 3 E 4 DO ARTIGO 519.º DO CÓD. PROC. CIVIL. E O NÃO FEZ;
B - PROSSEGUINDO, NA DOUTA DECISÃO RECORRIDA NÃO FORAM VIOLADOS OS INVOCADOS ARTIGOS DO CÓD. COMERCIAL;
C - A COBERTO DE UM ALEGADO DIREITO, PRETENDE A RECORRENTE, NA VERDADE SONEGAR PROVA RELEVANTÍSSIMA PARA A JUSTA DECISÃO DA CAUSA E DESCOBERTA DA VERDADE;
D - COM A JUNÇÃO DOS ORDENADOS DOCUMENTOS PODER-SE-IA AFERIR, COM ALGUM RIGOR, QUER OS FUNDAMENTOS DA ACÇÃO QUER DA OPOSIÇÃO / RECONVENÇÃO.
E - TODAVIA A RECORRENTE, POR TODAS AS FORMAS (MESMO CONTRADITÓRIAS) PRETENDE IMPEDIR. EM CLARO, CLARÍSSIMO MESMO, DESRESPEITO COM O PRINCÍPIO DE COLABORAÇÃO E IGUALDADE;
F - DEVENDO, ISSO SIM, SER-LHE APLICADAS AS CONSEQUÊNCIAS PREVISTAS NO DISPOSTO NO N.º 2 DO ARTIGO 519.º DO CÓD. PROC. CIVIL;
G - ORA, OS DOCUMENTOS DE PROVA REQUERIDOS E ORDENADOS JUNTAR, NÃO CONFIGURAM VAREJO OU INSPECÇÃO. SENDO, NO CONCRETO CASO, INFUNDADA A ALEGADA E INVOCADA PROIBIÇÃO;
H - ATÉ PORQUE NÃO PRETENDE A RECORRIDA, NEM O TRIBUNAL A QUO, EXAMINAR SE O COMERCIANTE ARRUMA OU NÃO DEVIDAMENTE OS SEUS LIVROS DE ESCRITURAÇÃO MERCANTIL” (ITÁLICO NOSSO);
I - ACRESCE AINDA QUE, É OBVIO QUE A RECORRENTE TEM INTERESSE NA QUESTÃO EM QUE OS REQUERIDOS DOCUMENTOS FORAM EXIGIDOS; PELO QUE NOS ENCONTRAMOS NO ÂMBITO DA EXCEPÇÃO PREVISTA NO DISPOSTO NO ARTIGO 42.º DO CÓD. COMERCIAL;
J - ASSIM, O DOUTO DESPACHO RECORRIDO NÃO VIOLOU QUALQUER UMA DAS DISPOSIÇÕES LEGAIS INVOCADAS, SENDO, PELO CONTRÁRIO, UM PARADIGMÁTICO EXEMPLO DE BEM JULGAR E APLICAR O DIREITO.

O recurso foi admitido (“Por se tratar de decisão recorrível, ter legitimidade e estar em tempo, admito o recurso interposto pela B…, Lda., do despacho proferido a fls. 83 do apenso K, para o Tribunal da Relação do Porto, o qual é de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo (artigos 14º, nº 5 do CIRE e 678°, 680°, 685°, 691º, n.º 2, al. i) e nº 5, e 691º-A, nº 2 e 692º, nº 1, estes do Código de Processo Civil). Notifique. Subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação do Porto”), subindo em separado e com efeito devolutivo.

Nesta Relação, atenta a natureza dos autos, foram dispensados os Vistos. Nada constatamos que obste ao conhecimento da apelação.

1.3 – Objecto do recurso:
Definido pelas conclusões da apelante, o objecto deste recurso consiste em saber se a recorrente não tem o dever de apresentar os documentos para cuja junção foi notificada, porquanto a pretensão formulada pela recorrida é demasiado genérica (F), contende com o carácter secreto da escrituração comercial e não é idónea à prova dos factos quesitados (G) ou refere-se a documentos público, não em poder da parte contrária (H e I) e o despacho sob censura, além do mais, carece de fundamentação idónea (DD).

2 - Fundamentação
2.1 – Fundamentação de facto:
O relatório deixou transcritos os passos principais dos presentes autos e fez expressa referência à petição, à oposição/reconvenção e à resposta a esta, bem como idêntica claramente o objecto da apelação. Assim, sem embargo da referência aos factos quesitados, se e quando pertinente, remetemos integralmente para o aludido relatório.

2.2 – Aplicação do direito
Definido (1.3) o objecto do recurso nas suas várias questões, importa enquadrá-lo no âmbito desta concreta acção, salientando o propósito do artigo 528.º do CPC, as pretensões deduzidas pelas partes e os factos que se pretendem provar, levados à base instrutória.

Dispõe o artigo 528.º n.º 1 do CPC que “quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requererá que ela seja notificada para a presentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento a parte identificará quanto possível o documento e especificará os factos que com ele quer provar”. E, acrescenta o n.º 2 daquele preceito, “se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, será ordenada a notificação”. Por fim, nos termos do artigo 529.º, “se o notificado não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 519.º”, ou seja, ressalvando os casos em que a recusa é legítima, “… se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus de prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil”.

Concluiríamos, mormente pela interligação dos dois números do artigo 528.º, com as palavras de Fernando Pereira Rodrigues (A Prova em Direito Civil, Coimbra Editora, 2001, pág. 89). “A pertinência, ou não, da junção do documento decorrerá da circunstância de os factos a provar com o documento estarem, ou não, articulados na Base Instrutória ou em condições de nela poderem ser compreendidos”.

Com interesse, importa recordar o que já consta do relatório: a autora (recorrente) impugna a resolução de dois contratos (cessão e compra e venda) e a ré (recorrida) pretende a improcedência da causa mas, admitindo o contrário, deduz reconvenção que sustenta, além do mais, na dissipação de bens pela devedora com o auxílio, em manifesta má fé, da autora. A reconvenção foi expressamente admitida, sem censura da ora recorrente.

Finalmente, vejamos quais os factos quesitados que a recorrida pretende ver provados com a junção de documentos. São eles os seguintes:
2 - No dia 15 de Abril de 2008, através de documento de fls. 13/15, a Insolvente declarou ceder a sua posição contratual de promitente compradora do prédio id. em B) à aqui A., pelo valor de €100.000,00?
4 - E foi pago através de transferência bancária ocorrida em 17-06-2009?
7 - O contrato de compra e venda referido em B) foi outorgado no e para o interesse de sociedades do mesmo grupo de empresas da FOC, uma vez que os sócios (pelo menos até 8 de Junho de 2008) eram comuns e familiares?
11 - Através do documento referido em 2º fingiram os aí outorgantes a celebração de um negócio já que o que se pretendeu foi manter a posse e a propriedade do imóvel, como ainda hoje acontece?
13 - Os valores que deram contabilisticamente entrada na insolvente voltaram imediatamente a sair, sob a forma de dividendos pagos aos próprios (Irmãos e Mãe H…) ou a favor de sociedades controladas pelos mesmos (onde se integra a sociedade I…)?

Feita a introdução anterior, uma outra nota. Entende a recorrente que o recurso não é admissível, porquanto a recusa de junção, seja justificada seja imotivada, tem um mecanismo processual próprio que a recorrente não seguiu. Ora, salvo o devido respeito, o que se pretende com a apelação é precisamente ser deferida – por efeito da revogação do despacho sob censura – a pretensão de recusa motivada à junção do documento, ou seja, evitar o efeito previsto no artigo 529.º do CPC. E, por outro lado, parece-nos claro que a discordância da recorrente cabe na previsão do artigo 691.º, n.º 2, alínea i) do CPC.

Depois das considerações precedentes, entremos no objecto do recurso, propriamente dito.

Começa a recorrente a recorrente por censurar a pretensão formulada pela recorrida por a mesma ser, em seu entender, demasiado genérica. Salvo o devido respeito, não vemos como assim seja: a requerente (recorrida) identifica os factos a provar e especifica os documentos que pretende.

Acrescenta a recorrente que a pretensão contende com o carácter secreto da escrituração comercial e não é adequado à prova dos factos. Começando pela inadequação, admitimos que, olhando os quesitos 2.º e 4.º, a pretensão probatória deles decorrentes e a oneração da autora possa dizer-se que custa a ver em que medida os documentos pretendidos são necessários ou úteis à prova que cabe à recorrida. Ainda assim, só á primeira vista se pode ter essa percepção duvidosa, mormente quanto ao facto quesitado em 4.º, porquanto a prova abrange igualmente a contraprova. Mas, para além disso, o alegado pela recorrida e levado à base instrutória com os números 7, 11 e 13, além de manifestamente interessar à boa decisão da causa pode ser provado (directamente, parcialmente e/ou em conjugação com outras provas) com os documentos pretendidos: volta a lembrar-se que a recorrida deduziu reconvenção, alegou relações – mesmo informais - de Grupo e coincidência de sócios, alguns beneficiados pelo que disse ser a conluiada dissipação patrimonial da insolvente. Os quesitos ultimamente referidos reflectem essas alegações da recorrida e documentos como declarações de rendimentos, actas da sociedade com registo de acções e presença nas deliberações (afinal, alega-se uma interligação societária, parecendo-nos relevante apurar como e quem formou a vontade social que veio a determinar a intervenção contratual da autora) e extractos bancários que reflictam os pagamentos (créditos, débitos e transacções) entre a insolvente a recorrente estão muito longe de nos parecerem inúteis ou impertinentes.

Quanto ao carácter secreto da escrituração comercial, invocada como legítima recusa pela recorrente, importa dizer que não está aqui em causa a “exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro” (artigo 42.º do C. Comercial) que só pode ser ordenada em casos contados e específicos (a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra). Ora, não estando em causa essa exibição por inteiro, nada impede a exibição, para exame ou junção de cópia de (parciais e pertinentes) elementos da escrituração comercial. Com efeito, a lei do processo não admite a recusa de tais elementos e até o artigo 43.º do C. Comercial a prevê, no interesse da sociedade mas também nos casos em que a sociedade tenha “responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”.

No fundo, importa acentuar que a recusa da parte em apresentar ou juntar o documento, da parte ou de qualquer outra pessoa só é legítima nas situações excepcionais previstas no n.º 3 do artigo 519.º do CPC e “o segredo comercial, no seu todo, não está contemplado nas excepções à regra” (Fernando Pereira Rodrigues, Elucidário de Temas de Direito (Civil e Processual), Coimbra Editora, 2010, pág. 307) e, “como bem se entendeu no douto acórdão do STJ de 25-11-97, a escrituração comercial não é mais secreta que quaisquer outros assentos ou escritos particulares, pelo contrário, e precisamente porque é imposta por lei para permitir conhecer em cada momento o estado do negócio e fortuna do comerciante, isto é, porque se destina a constituir essencialmente um meio de prova, a escrita pode ser objecto de exame, até contra a vontade e os interesses daquele a quem pertence” – Fernando Pereira Rodrigues, A Prova…, cit, pág. 95.

Em suma, constatamos que o factos cuja prova pretende a recorrida têm manifesto interesse para a decisão da causa, que os documentos pretendidos são, necessariamente num juízo de prognose que antecede o julgamento, pertinentes a essa mesma prova e que, por fim, não está em causa qualquer violação do segredo comercial, justamente por não estar em causa a exibição ou junção da escrituração comercial, por inteiro.

Por fim, entende a recorrente que os documentos respeitantes às declarações de IRC, atenta a sua natureza pública, não justificam a junção pela parte contrária e que a despacho sob censura não se encontra idoneamente fundamentado. Sobre a última das enunciadas questões importará dizer que a decisão judicial de notificação da parte contrária é naturalmente um juízo de prognose de pertinência dos documentos cuja junção é requerida e se afere, legal e essencialmente, pela vinculação ao interesse dos factos probandos. Por assim ser, e por não poder antecipar-se o julgamento à decisão de junção, parece-nos fundado o despacho que, analisando o requerimento da recorrida conclui, deferindo, que os documentos pretendidos são “elementos importantes para a boa decisão da causa”.

Derradeiramente, cumpre dizer que a eventual disponibilidade pública de determinado documento não altera a sua natureza, o facto de continuar a ser um documento na posse da parte e, salvo melhor saber, atento o princípio da cooperação inerente ao artigo 528.º do CPC, justiça, ainda assim que a parte seja notificada para o apresentar. No caso presente, acresce que a recorrente expressamente refere que nada tem a opor a essa junção, revelando-se a sua recusa, por isso, apenas um modo dilatório e injustificado de retardar o andamento do processo.

Por tudo quanto se deixou dito, entendemos que o despacho sob censura, não violando o disposto no artigo 528.º do CPC e, inerentemente, o invocado segredo comercial, deve ser mantido, improcedendo o recurso.

3 – Sumário:
1 – A pertinência da junção ou apresentação de um documento em poder da partes contrária, ao abrigo do artigo 528.º do Código de Processo Civil decorre da circunstância de os factos a provar com esse documento interessarem à decisão da causa, ou seja, constarem da base instrutória ou estarem em condições de nela poderem ser compreendidos.
2 – A recusa da parte em apresentar ou juntar determinado documento em seu poder só é legítima nas situações excepcionais previstas no n.º 3 do artigo 519.º do CPC e o segredo comercial não está aí contemplado. E se não está em causa a sua exibição por inteiro, nada impede – nem a lei processual cível nem o Código Comercial - a exibição, para exame ou junção de cópia de (parciais e pertinentes) elementos da escrituração comercial.

4 – Decisão:
Por tudo quanto ficou dito, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação, instaurada pela autora – B…, Lda. contra a ré Massa Insolvente da C…, Lda. e, em conformidade, manter a decisão (despacho de admissão de prova) sob censura.

Custas pela recorrente.

Porto, 21.11.2011
José Eusébio dos Santos Soeiro de Almeida
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Ana Paula Pereira Amorim