Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0614686
Nº Convencional: JTRP00039584
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: PENA
PESSOALIDADE DA RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RP200610180614686
Data do Acordão: 10/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 460 - FLS 09.
Área Temática: .
Sumário: O pagamento da multa por um terceiro não representa uma transmissão da responsabilidade criminal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
O Ministério Público recorreu para esta Relação do despacho proferido no processo comum n.º …/02.67TAVRL (tribunal singular), do .º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Real, que julgou extinta a pena aplicada ao arguido B………., em face do pagamento da multa, formulando (em síntese) as seguintes conclusões:
- As penas criminais são pessoalíssimas;
- Caso a irmã (ou outra pessoa qualquer) se apresente a pagar a multa, dizendo que o vai fazer com dinheiro do seu próprio bolso e que depois o condenado lhe pagará, o que o Tribunal deve fazer “é aceitar inicialmente o pagamento mas depois não declarar extinta a pena, sem se certificar primeiro de que o condenado cumpriu a obrigação que assumiu para com a irmã ou outra pessoa;
- Ao decretar extinta, pelo cumprimento, a pena de multa em que o arguido foi condenado, sem antes se ter assegurado disso, o Tribunal violou o disposto no art. 30º, n.º 3 da CRP.

O Ex.º Procurador-geral Adjunto nesta Relação apôs “visto”.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferencia.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
Com interesse para o julgamento do recurso, consideramos assentes os seguintes factos e ocorrências processuais:

a) Por sentença proferida em 27 de Abril de 2004, transitada em julgado, o arguido B………. foi condenado (além das custas do processo) como autor de um crime de falsidade de declaração, p. e p. no art. 359º, 1 e 2 do C. Penal, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, no total de setecentos euros, a que corresponde a pena subsidiária de 93 dias de prisão.

b) Em 6-04-2006 foram emitidos mandados de detenção do arguido, para cumprimento da pena subsidiária de 93 dias de prisão em que fora condenado, com a advertência de que “se proceder ao pagamento da referida multa, será imediatamente libertado”;

c) Em 7 de Abril de 2006 foram cumpridos os referidos mandados, tendo o arguido sido detido, conforme consta da certidão junta a fls. 8 destes autos.

d) Em 7 de Abril de 2006, foi aberta “Vista” nos autos, com a seguinte informação:
“(…) Compareceram nesta secretaria C………. (…) e D………. (…) irmãos do arguido, apresentando um depósito autónomo no valor de € 700,00 para liquidação da multa em que o arguido foi condenado. Presentes ao Sr. Procurador-adjunto, que os quis ouvir pessoalmente, ali afirmaram na minha presença, de que o dinheiro pertence metade a C………., sendo a outra metade do próprio arguido, entretanto detido, fruto de alguns biscates que o mesmo realiza esporadicamente nas obras. Inquirida C………, por ela foi dito que combinou que ele lhe pagaria a sua metade do dinheiro quando pudesse”.

e) Perante tal informação, o MP proveu a libertação do arguido

f) Na sequência desse pagamento, foi proferido o seguinte despacho: “Face ao pagamento do montante da multa em que o arguido foi condenado ordeno a libertação imediata do arguido (…)”.

f) O arguido foi imediatamente libertado e, em 19-04-06, foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
“Em face do pagamento da multa, julgo extinta a pena que foi aplicada nestes autos ao arguido B………. . Notifique e remeta boletim”

2.2. Matéria de direito
A questão objecto do presente recurso é apenas a de saber se está ou não correcto o entendimento defendido pelo MP (recorrente), de que ocorreu um pagamento da multa por terceiro, insusceptível de extinguir a pena.

No essencial, o MP junto do tribunal “a quo” argumenta com o facto de que “as penas são pessoalíssimas” e, por isso, só podem ser cumpridas pelo arguido. Afasta, na sua argumentação, a ideia segundo a qual o arguido ficaria na posição de devedor de sua irmã e, portanto, já com o encargo equivalente ao do pagamento que esta fez, pois tal “seria algo perfeitamente mirabolante” (fls. 18). Entende assim violado o artigo 30º, n.º 3 da Constituição, na medida em que aí se estabelece que as “penas criminais são pessoalíssimas e, portanto, não admitem o pagamento por terceiro”.

Que dizer?

O artigo 30º, n.º 3 da CRP diz-nos efectivamente que “a responsabilidade criminal é insusceptível de transmissão”. E também é verdade que este preceito consagra o princípio da pessoalidade das penas, no sentido de que só o autor do crime pode ser responsabilizado criminalmente. Corolário deste princípio é a proibição de transmissão para os herdeiros do condenado da dívida emergente de uma multa criminal.

Contudo, a questão que se coloca neste processo não é essa.

Não se transmitiu para a irmã do arguido a obrigação de pagar a multa. Na verdade, o pagamento voluntário de uma multa, por terceiro, não é uma transmissão da responsabilidade criminal. Só haveria transmissão da responsabilidade criminal para um terceiro, se este ficasse adstrito (vinculado juridicamente) a essa responsabilidade. Como tal não ocorreu, não pode ter havido também violação do art. 30º, n.º 3 da CRP.

Note-se ainda que, no caso dos autos, a multa foi paga em parte pelo arguido (1/2) e em parte pela sua irmã, que afirmou ter feito um acordo com o arguido, segundo o qual este lhe pagaria a quantia em causa “quando pudesse”.

Resulta assim dos factos apurados ter havido um mútuo de ½ do quantitativo da multa que, a partir de então, passou para a esfera jurídica do arguido, assim como a adstrição ao respectivo pagamento, quando pudesse.

Ora, este quadro não pode reconduzir-se ao pagamento da multa por terceiro. A multa foi paga com dinheiro que, devido a um contrato de mútuo, era do arguido (cfr. art. 1142º do C. Civil). O arguido ficou sim, por força de tal contrato, obrigado a restituir “outro tanto do mesmo género e qualidade”, nos termos acordados.

O MP – ciente da fragilidade da sua tese, perante a existência de um contrato que transfere para o arguido a titularidade da quantia usada no pagamento da multa - põe em dúvida a validade de um negócio jurídico em que alguém empresta dinheiro a um condenado para este pagar uma multa e, assim, evitar a prisão, face ao disposto no art. 281º do C. Civil.

Contudo, esta sua posição não tem a menor consistência, pois não foi prosseguido qualquer fim “contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”, como iremos ver.
Desde logo, porque é perfeitamente legal contrair um empréstimo para pagar dívidas, designadamente quando as mesmas têm associadas consequências tão nefastas como as multas criminais.
Depois, porque nem a ordem pública, nem os bons costumes foram atingidos.
Finalmente, porque os fins da pena foram alcançados de igual modo, pois o arguido (apesar de ter pago a multa e evitado a prisão) ficou adstrito a uma obrigação perante a irmã, obrigação essa que tem precisamente o mesmo peso (dada a sua fungibilidade) que a anterior. Aquilo que o arguido teve que fazer para obter o dinheiro, com vista a pagar a multa, traduziu o constrangimento a que a pena de multa o sujeitou e, por isso e nesta medida, foi plenamente cumprida a sua finalidade “punitiva”. Daí que também não se possa falar em “fraude à lei”.

Não tem assim suporte jurídico a tese do MP, pois quem pagou a multa foi o arguido.
Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Sem custas.

Porto, 18 de Outubro de 2006
Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Eleutério Brandão Valente de Almeida
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves