Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0826371
Nº Convencional: JTRP00041992
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: ACÇÕES DE SIMPLES APRECIAÇÃO
INTERESSE PROCESSUAL
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DOCUMENTO APRESENTADO ANTES DO TEMPO
Nº do Documento: RP200812090826371
Data do Acordão: 12/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 291 - FLS 214.
Área Temática: .
Sumário: I - As acções de simples apreciação têm a finalidade única de pôr termo a uma situação de incerteza quanto à existência ou inexistência de um direito ou de um facto (com relevância jurídica) e, por isso, só é legítimo recorrer a este tipo de acções quando se estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, de que possa resultar da o.
II - Quem propõe uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, isto é, que está necessitado de obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
III - Não existe necessidade dessa declaração judicial quando nenhuma dúvida se suscita acerca do conteúdo do direito real de habitação da demandada, constituído por escritura de doação e aí descrito e já anteriormente delimitado por sentença transitada em julgado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 6371/08-2
NUIP …./07.6TJVNF

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.
I

1. Nos autos de acção declarativa de simples apreciação com processo comum sumário que corre termos no ..º Juízo Cível da comarca de Vila Nova de Famalicão com o n.º …./07.6TJVNF, proposta por B………. contra C………., ambas residentes em ………., Vila Nova de Famalicão, a autora formulou a seguinte pretensão:
«Termos em que … deve proceder a acção julgando-se que a ré não é titular dum direito de habitação, constituído pela dita escritura pública de 06-01-1995, que abranja e se estenda, tendo por objecto, a sala sita no topo norte/nascente do 1.º andar do prédio urbano identificado no art. 1.º da p.i., sala essa referida nos artigos 9.º, 10.º e 11.º da p.i..»
Como fundamentos desta sua pretensão, a autora alegou, além do mais:
- que é proprietária do prédio urbano, de rés-do-chão, andar e quintal, sito no ………., freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial como parte do n.º 47.035 e inscrito na matriz urbana da dita freguesia sob o artigo n.º 86, sendo titular da nua-propriedade quanto a metade indivisa do prédio e titular da propriedade plena quanto à outra metade;
- que a ré é titular do direito de uso e habitação “em parte do prédio urbano atrás referido, do lado nascente, ocupando um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa-de-banho”, que lhe foi doado pelos pais da autora, anteriores donos do dito prédio;
- que a parte do prédio que corresponde ao direito de uso e habitação da ré é constituída pelas divisões assinaladas no croquis que apresentou como documento n.º 4, a fls. 27, mas, desde há uns meses a esta parte, a ré começou a propalar perante terceiros e familiares da autora, incluindo a sua mãe, que a parte do prédio que lhe cabe habitar é constituída pelas divisões assinaladas no croquis que juntou como documento n.º 5, a fls. 28, assim alargando a área do seu direito de habitação a mais uma divisão (sala), situada no topo norte/nascente do 1.º andar;
- e para demarcar e isolar essa área da parte restante do prédio, em 2006 fechou com tijolos uma porta existente na parede interior daquela sala, que passou a ocupar, apesar de não estar incluída no seu direito de habitação.
A ré contestou por excepção e por impugnação, tendo, por excepção, invocado a impropriedade do tipo de acção de simples apreciação negativa, a ineptidão da petição por contradição do pedido com a causa de pedir, a falta de interesse processual da autora e a existência de decisão judicial transitada em julgado que já definiu o âmbito do direito de habitação da ré, sobre o qual diz inexistir qualquer incerteza, indefinição ou divergência entre a autora e a ré.
Pronunciando-se sobre as referidas excepções no despacho saneador, o Sr. Juiz julgou verificadas a ineptidão da petição e a falta de interesse processual da autora e absolveu a ré da instância.

2. Não se conformando com essa decisão, a autora recorreu para esta Relação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1.º - Vem o presente recurso do despacho saneador-sentença em que, numa acção de simples apreciação negativa, a M.ma Juiz a quo, considerando inepta a petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, absolveu a ré da instância (arts. 193.º, n.ºs 1 e 2, 288.º, n.º 1, als. b) e e), e 199.º, todos do C. P. Civil).
2.º - Salvo o devido respeito, entende-se, todavia, que a decisão recorrida enferma do vício de violação das leis processuais citadas, por sua indevida interpretação e aplicação ao caso concreto.
3.º - Na verdade, a acção em causa é, obviamente, uma acção declarativa de simples apreciação negativa (art. 4.º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil), na qual se peticiona unicamente a declaração de inexistência de um direito, ou seja, que o tribunal decida que a Ré não é titular do direito de habitação da "sala" sita no topo norte/nascente do 1.º andar do prédio urbano identificado no art. 1.º da p.i., sala essa definida nos arts. 9.º, 10.º e 11.º da p.i. (e assinalada no croquis, doc. 5, junto com a p.i.).
4.º - Ora, a contradição entre pedido e causa de pedir é uma mera questão de lógica, de harmonização intrínseca de raciocínio, ou seja, é mera questão formal, de, no campo da lógica formal, se adequar (ou não) o que se pede (conclusão), ao que antes se descreve como premissa (causa de pedir). (…).
5.º - No caso dos autos, só há que averiguar se o pedido da autora tem, com a respectiva causa de pedir, a referida conexão racional e lógica de, no plano formal, da mera lógica, harmonização de premissa/conclusão.
6.º - Ora, é manifesto, que entre o referido pedido (declaração da inexistência dum direito de habitação da Ré da referida "sala") e a referida causa de pedir, não existe qualquer vício lógico-formal. Que, aliás, a douta decisão recorrida não concretiza, não especifica e de que apenas se limita a qualificar como existindo contradição.
7.º - Assim, a douta decisão, salvo o devido respeito, faz errada interpretação ou aplicação dos citados preceitos legais (nomeadamente o art. 193.º, n.º 2, al. b), do C. P. Civil) ao, qualificar a p.i. como enfermando de vício formal de contradição entre pedido e causa de pedir.
8.º - A possibilidade de contradição de causa de pedir/pedido, no caso dos autos e sem conceder – dada a estruturação da acção como de simples apreciação negativa – só existiria, se pedindo a autora que se declare que a ré não tem um direito de habitação da referida "sala" (…) todavia, da causa de pedir não resultasse qualquer conflito, qualquer discrepância entre autora e ré quanto à existência (ou inexistência) desse direito.
9.º - Mas, tal não sucede, como, também, pela parte da Ré esse "conflito", essa discrepância é reiterada na contestação (conforme nomeadamente o que a ré alega nos respectivos arts. 29.º, 31.º, 36.º, 37.º, 39.º e 41.º).
10.º - Além da referida conflitualidade/incerteza, assinalam a Jurisprudência e a Doutrina que ela deve ser objectiva. Isto é, "será objectiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor" (cit. A. Varela, p. 186). E tais circunstâncias exteriores podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o acto material da contestação dum direito, a existência dum documento falso, até um acto jurídico (de requerimento de assistência judiciária ou de procuração a um advogado para a proposição de uma acção), etc. (cit. A. Varela, págs. 186/187).
11.º - Por sua vez, em todos esses casos também entendem os referidos Autores e Jurisprudência que a incerteza consubstanciada nessas afirmações sobre a existência ou inexistência dum direito também é suficientemente grave, para justificar o interesse em agir do demandante no recurso aos Tribunais. E, assim bastará um ''prejuízo material ou moral que a situação de incerteza possa criar ao autor" (A. Varela, ob. cit., p. 181).
12.º - Ou seja, em todos os ditos casos a doutrina e jurisprudência face á referida incerteza objectiva quanto á existência dum direito, daí também assume, como curial, que essa incerteza é grave e se fosse negado o acesso ao direito para a definição judicial da relação versada, o autor "sofreria um dano injusto" (Chiovenda, cito por M. Andrade, ob. cit., p. 80, nota 3). Quer moral, (como até a A., no caso dos autos autonomamente alegou nos arts. 17.º e sgts. da p.i.). Quer patrimonial (inerente á própria incerteza objectiva do direito versado em todas os citados casos).
13.º - E realce-se que o caso específico dos autos é, até, pela sua peculiaridade, duma incidência mais grave (em termos dos referidos danos morais e patrimoniais) do que a normalidade dos casos antes citados.
14.º - Realce-se que, quando o art. 4.º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil fala em obter-se unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, essa hipótese é abrangente dos elementos constitutivos e definidores do respectivo direito.
15.º - A admissibilidade da acção de simples declaração, não depende de o interessado não poder recorrer a outra acção de efeitos mais radicais (Ac. R.L. de 22-03-1990, C.J., 1990, 2.º, 134). Tal tema podia ser antigamente objecto de discussão lege ferenda. Mas, à face do direito constituído, o cit. art. 4.º do C. P. Civil não estabelece tal limitação. Daí que A. Varela (ob. cit., p. 20, nota 2) também afirme que "no direito vigente, são amplamente admitidas tanto as acções de mera declaração positiva, como as de simples apreciação negativa, desde que tenham por objecto a declaração de existência ou inexistência dum direito ou de um facto".
16.º - E bem se compreende tal postura da lei. Pois, se aos legítimos interesses do A. lhe bastar tão só acção de simples apreciação, poupar-se-á ao Estado (em serviço e celeridade) ter ainda que apreciar se o direito foi, ou não violado; e, se foi, qual a prestação que o réu deva realizar para o reintegrar.
17.º - Realce-se, no entanto, que no caso especifico dos autos a possibilidade de instaurar uma acção de reivindicação até não existirá.
18.º - Afirma-se na douta decisão recorrida que "compulsados os autos, nomeadamente os documentos que aos mesmos se encontram juntos, constata-se que a Autora e Ré, conhecem os direitos que possuem e extensão dos mesmos, bem patenteados, aliás, pelos referidos documentos". Ora, salvo o devido respeito, não se pode concordar com tal juízo conclusivo.
19.º - De qualquer modo, se porventura dos documentos juntos, ou da referida Sentença e Acórdão, resultasse, bem patenteada, a extensão dos direitos de A. e R., ou um acordo recíproco entre eles sobre o objecto especifico da acção, então, tal constatação também nunca poderia ser fundamento para que a M.ma Juíza a quo absolvesse a Ré da instância por contradição entre pedido e causa de pedir. Pois então só havia que julgar a acção no saneador e procedente ou improcedente, condenando a Ré no pedido ou absolvendo a ré do mesmo, conforme o sentido dos referidos documentos ou decisões judiciais (art. 510.º, n.º 1, al. b), do C. P. Civil. E cito ac. S.T.J., supra 2).
Termos em que deve proceder o recurso, se o agravo não for reparado, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-se por outro proferido ao abrigo dos arts. 508.º e sgts. do C. P. Civil, incluindo o conhecimento imediato do mérito da causa, se assim se entender.
A ré contra-alegou, concluindo pelo não provimento do agravo.

3. Ao presente recurso é ainda aplicável o regime processual anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, porquanto respeita a acção instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008 (foi instaurada em 03-10-2007). E por força do disposto no n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, o regime introduzido por este diploma legal não se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, que ocorreu em 1 de Janeiro de 2008 (art. 12.º do mesmo decreto-lei).
De harmonia com as disposições contidas nos arts 684.º, n.ºs 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação que delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de que, por lei, o tribunal pode conhecer oficiosamente (art. 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Tendo em conta as conclusões formuladas pela agravante acerca do teor do despacho agravado, o objecto do presente recurso suscita a questão única de saber se a petição é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir.
Cumpridos os vistos legais, cabe decidir.
II

4. Para a apreciação da questão enunciada, releva considerar a seguinte factualidade:
1) O teor da petição inicial, designadamente a transcrição do pedido e dos fundamentos feita supra em 1;
2) Da escritura de doação de 06-01-1995, certificada a fls. 23-26, consta, além do mais, que D………. e E………. (pais da ora autora) declararam doar à segunda outorgante, C………. (ora ré) “o direito de habitação em parte do prédio urbano atrás referido, do lado nascente, ou seja, ocupando um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho, contíguos ao terreno doado”.
3) Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-03-2002, a fls. 38-58, transitado em julgado e proferido nos autos de recurso de apelação n.º 49/2001 — recurso interposto da sentença proferida nos autos de acção especial de suprimento que correram termos no ..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão com o n.º …/99 — foi regulado o uso do prédio da autora nos seguintes termos:
a) O rés-do-chão do prédio passará a ser usado pela requerente B………. (a aqui autora/apelante), exclusivamente para sua habitação e do seu agregado familiar.
b) A co-requerida E………. (mãe da ora autora/apelante) passará a ocupar exclusivamente, para habitação própria, no 1.º andar do mencionado prédio, todos os seus cómodos, excluindo aqueles que constituem objecto do direito de habitação da co-requerida C………. (a ora ré), ou seja, a co-requerida E………. passará a ocupar, no dito primeiro andar, 4 quartos, 1 sala, 1 quarto de banho e uma sala pequena, onde, querendo, poderá instalar uma cozinha.

5. Tendo em conta esta factualidade, designadamente o teor da p.i. que para aqui releva, importa aferir se a petição é inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir.
O tribunal recorrido sustentou a tese da ineptidão na seguinte argumentação:
«… as acções de simples apreciação (positiva ou negativa) têm como finalidade acabar com uma situação de incerteza ou indefinição jurídica objectivamente graves, não sendo por isso relevante o interesse em agir traduzido na mera incerteza subjectiva, por isso independente da ocorrência de factos que possam afectar o interesse material do Autor. (…).
Como se diz no Ac. do STJ, de 08-03-2001, in CJ 2001, TI, pag.150 e segts – “o interesse em agir constitui um pressuposto processual que não se identifica com qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, exigindo-se que seja objectiva e grave a incerteza relativamente á qual o autor pretende reagir e que, a proceder, a acção se revista de utilidade prática”.
Compulsados os autos, nomeadamente os documentos que aos mesmos se encontram juntos, constata-se que Autora e Ré conhecem os direitos que possuem e a extensão dos mesmos, bem patenteada, aliás, pelos referidos documentos; no caso, o direito de habitação da Ré, nos termos e com os contornos que lhe são dados e conformados pelo teor da escritura junta a fls. 23 a 26 e pela sentença junta a fls.38 a 45 e pelo Ac. da RP junto a fls. 46 a 58; e o direito da Autora, a plena propriedade quanto a metade e de nua propriedade quanto a outra metade do prédio em causa (…).
Assim sendo e tendo em consideração o modo como a petição inicial se mostra configurada — que na versão da Autora a Ré ocupa uma “sala” indevidamente, sem para tal ter direito ou título que a legitime — era da acção de reivindicação que a Autora deveria ter lançado mão, encontrando-se a causa de pedir em contradição com o pedido, implicando ineptidão da petição inicial – art.193º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.».
Em abstracto, a recorrente não diverge desta caracterização da acção de simples apreciação adoptada na decisão recorrida, antes manifesta concordar com ela. Mas, em concreto, diverge que exista a apontada contradição entre o pedido que formulou e os fundamentos que alegou como causa de pedir.
Neste aspecto, devemos começar por dizer que, em abstracto, aceitamos e subscrevemos a globalidade das considerações teóricas que a recorrente desenvolve nas suas alegações, tanto no que respeita à definição e caracterização das acções de simples apreciação, a que alude o art. 4.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, como no que respeita ao conceito de “contradição do pedido com a causa de pedir”, a que alude a al. b) do n.º 2 do art. 193.º do mesmo código, como causa de ineptidão da petição inicial. As quais correspondem, no essencial, a citações e transcrições da doutrina e da jurisprudência relativas àquela espécie de acções e ao referido segmento normativo da al. b) do n.º 2 do art. 193.º do Código de Processo Civil. E, por isso, dispensamo-nos de aqui repetir tais considerações, por redundância.
É em concreto que a questão da ineptidão da petição inicial se põe e, relacionada com ela, a questão da falta de interesse processual na declaração que integra o pedido formulado pela autora, também referida na decisão recorrida.
A este respeito, escreve J. P. REMÉDIO MARQUES (em Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, p. 87) que as acções de simples apreciação “apresentam uma notória dificuldade: a determinação da necessidade ou de carência de tutela judiciária por parte do autor, em suma o interesse processual”. E justifica, acrescentado: “De facto, a necessidade de subordinar a admissibilidade das acções de simples apreciação à existência de interesse processual de quem a elas recorre justifica-se à luz de dois postulados:
a) A existência de protecção do réu contra acções vexatórias propostas pelo autor, no sentido de permitir o uso do processo para provocar danos ao réu ou limitar o direito fundamental de defesa; e
b) A necessidade de lograr a economia processual e a efectividade da tutela jurisdicional dos direitos e das demais posições jurídicas, o que importa impedir que as acções de simples apreciação se transformem num peso injustificado para o aparelho jurisdicional estadual, mais precisamente nas situações em que a carência de tutela judiciária é meramente fictícia, nas eventualidades em que não se está na presença de uma ameaça efectiva à violação de direitos ou posições jurídicas, ou nos casos em que o autor tem ao seu dispor uma forma de tutela jurisdicional mais efectiva, vigorosa ou consistente (v.g., podendo propor uma acção de condenação, uma acção constitutiva ou, inclusivamente, uma acção executiva)”.
Ora, esta justificação confere total razão à decisão recorrida.
Primeiro, porque a alegada carência de tutela judiciária pela autora, no que respeita à pretensão aqui formulada, é meramente fictícia. Objectivamente, essa carência de tutela judiciária não existe, porquanto, como é dito na petição inicial e o respectivo documento confirma, o conteúdo do direito de habitação da ré está delimitado e descrito com precisão na escritura de doação e, acrescentamos nós, também está delimitado, ainda que por exclusão, na sentença proferida no processo n.º …/99 do ..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, nesta parte confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de 11-03-2002, proferido no recurso de apelação n.º 49/2001. E do teor da petição inicial nenhuma divergência concreta se revela existir entre autora e ré no tocante à existência e ao conteúdo do direito de habitação desta. A divergência que a autora aponta não se coloca ao nível da existência do direito, mas ao nível da concretização do direito, ou seja, em determinar quais as divisões ou partes da casa que a ré pode usar no exercício do seu direito real de habitação.
Segundo, porque a situação concreta que a autora alega no articulado da petição inicial como susceptível de configurar violação de direitos — a ocupação ilícita pela ré de uma divisão da casa designada de «sala» que autora diz não estar abrangida no direito de habitação da ré — não pode ser resolvida com a mera declaração da inexistência do direito da ré em relação a essa divisão; exige, para a resolução efectiva do conflito e para pôr termo à alegada violação do direito da autora, no caso de se vir a provar, uma decisão condenatória da ré a desocupar e a abster-se de usar a divisão ilicitamente ocupada. E esta decisão condenatória só pode ser alcançada com uma acção desse tipo (acção declarativa condenatória), a que alude a al. b) do n.º 2 do art. 4.º do Código de Processo Civil, e não através de uma acção de simples apreciação.
Foi neste contexto que a ré invocou a contradição do pedido com a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial (art. 193.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil), e que a decisão recorrida considerou verificada. Querendo significar que o pedido formulado pela autora, de mera declaração de que o direito de habitação da ré não abrange a sala sita no topo norte/nascente do 1.º andar do prédio urbano identificado no art. 1.º da p.i., para além de ser processualmente inadequado e inútil, não constitui consequência lógica da causa de pedir configurada pelo conjunto dos factos concretos alegados, mormente os factos relativos à ocupação ilícita da sala pela ré.
São expressão mais evidente dessa desconformidade lógica entre o pedido e a causa de pedir os dois croquis que a autora elaborou e juntou aos autos como documentos n.º 4 e 5, a fls. 27 e 28, respectivamente, para, através deles, melhor concretizar a divergência que mantém com a ré e que constitui o objecto deste litigio. Resulta dos referidos croquis que tal divergência não está no número de divisões que a ré pode usar (um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa-de-banho), nem está, tão pouco, na localização dessas divisões (no lado nascente do 1.º andar do prédio). Está, sim, em determinar qual a divisão concreta da casa que corresponde à «sala» que a ré tem o direito de usar. Se é a divisão assinalada no croquis do doc. n.º 4 ou se é a divisão assinalada no croquis do doc. n.º 5.
Ora, é quanto à resolução desta divergência que o pedido formulado pela autora está em desconformidade processual com a causa de pedir e se revela inadequado e inútil, já que a sentença que declare a procedência deste pedido ficaria sempre destituída de força executiva para impedir que a ré continuasse a usar indevidamente a dita divisão da casa (cfr. MANUEL DE ANDRADE, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, p. 57).
Deste modo, não merece qualquer censura a decisão recorrida, quer quanto à ineptidão da petição inicial, quer quanto à falta de interesse processual da autora.

6. Sumariando:
1) As acções de simples apreciação têm a finalidade única de pôr termo a uma situação de incerteza quanto à existência ou inexistência de um direito ou de um facto (com relevância jurídica) e, por isso, só é legítimo recorrer a este tipo de acções quando se estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, de que possa resultar dano.
2) Quem propõe uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, isto é, que está necessitado de obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
3) Não existe necessidade dessa declaração judicial quando nenhuma dúvida se suscita acerca do conteúdo do direito real de habitação da demandada, constituído por escritura de doação e aí descrito, e já anteriormente delimitado por sentença transitada em julgado.
4) Existe falta de interesse processual e inadequação do pedido com a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, se a demandante alega que a demandada, no exercício do direito real de habitação que reconhece existir, ocupou e usa uma divisão da casa que não está abrangida por aquele direito e se limita a pedir a declaração de inexistência do direito da demandante.
III

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo.
Custas pela recorrente (art. 446.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*

Relação do Porto, 09-12-2008
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues