Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
773/08.2TAVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
PRAZO
REMESSA PELO CORREIO
Nº do Documento: RP20110713773/08.2TAVRL.P1
Data do Acordão: 07/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – O prazo para o exercício do direito de queixa [art. 115.º, do CP] é um prazo de caducidade, de natureza substantiva, uma vez que ainda não existe um processo.
II – Tal prazo está sujeito à contagem do art. 279.º, do CC, pelo que se o seu termo ocorrer em domingo ou feriado, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte [al. e)].
III – O mesmo acontece se o termo do prazo ocorrer em sábado.
IV – A forma de contagem de um prazo, ainda que de natureza substantiva, em nada contende com a forma de entrega ou remessa a juízo de peças processuais [art. 150.º, do CPC].
V – Se a queixosa optou por praticar o acto [apresentação da queixa] em juízo e por escrito, através da remessa pelo correio, sob registo, vale como data da prática do acto a da efectivação do respectivo registo postal [art. 150.º, n.º 2, al. b)].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 773/08.2TAVRL.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Real com o nº 773/08.2TAVRL foi submetido a julgamento o arguido B………., tendo a final sido proferida sentença, depositada em 12.05.2010, que condenou o arguido:
- como autor material de um crime de importunação sexual p. e p. no artº 170º do Cód. Penal na ena de € 60 (sessenta) dias de multa;
- como autor material de um crime de injúria p. e p. no artº 181º do Cód. Penal na pena de 60 (sessenta) dias de multa;
- em cúmulo jurídico das supra referidas penas parcelares, na pena única de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,50.
- a pagar à demandante C………. a quantia de € 350,00 a título de indemnização, absolvendo-o do demais pedido.
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes conclusões:
1. Embora relatado na queixa, o comportamento do arguido susceptível de integrar o crime de importunação sexual, uma vez que a queixosa-assistente nada referiu quanto às respectivas consequências manifestando-se ofendida apenas pelas injúrias, devia considerar-se tal omissão como falta de queixa quanto a essa matérialidade;
2. Não pode considerar-se colmatar essa lacuna o facto de ser referido esse crime no âmbito do “enquadramento jurídico-penal” feito na mesma queixa;
3. Ainda que assim não se entenda, nunca poderia dar-se como provada a materialidade do crime de importunação sexual, pois nenhuma prova se fez em julgamento (nem a própria assistente o disse) ter visto os órgãos sexuais do arguido;
4. O mesmo se dizendo em relação a qualquer “importunação, embaraço ou vergonha” já que também a assistente se limitou a dizer ter sido mais um de muitos episódios semelhantes, nestes aludindo apenas a injúrias, não referindo qualquer consequência específica correspondente a importunação sexual;
5. Perante todas as contradições, divergências e situações anómalas, tanto as já existentes no processo (a principal das quais consistiu no facto de, na queixa, a assistente ter referido que a ocorrência tinha sido presenciado apenas por uma pessoa e só muito mais tarde ter indicado outra, apesar de, segundo vieram a dizer em julgamento, terem estado todas juntas) como as que se evidenciaram nas declarações da própria assistente e nos depoimentos das duas testemunhas, o Sr. Juiz a quo não podia furtar-se a muitas e fortes dúvidas e, com base nelas, não dar como provados os factos da acusação.
6. Assim não tendo sido entendido e decidido, pensamos que a sentença recorrida traduz violação dos artºs. 170º do C.Civil[1] e incorrecta análise e valoração da prova, com violação também do princípio “in dubio pro reo”.
Conclui pedindo a revogação da sentença recorrida e pela sua substituição por outra que absolva o recorrente ou, se assim se não entender, se julgue improcedente a acusação quanto ao crime de importunação sexual por falta de queixa ou por falta de prova da respectiva factualidade.
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Na 1ª instância, o Ministério Público e a assistente C……… respondeu às motivações de recurso, pugnando pela sua improcedência e pela confirmação da decisão recorrida.
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O arguido/recorrente manifestou ainda interesse na apreciação do recurso interlocutório que interpusera a fls. 110 a 112, com as seguintes conclusões:
a) O prazo para o exercício do direito de queixa, sendo de caducidade, é de natureza substantiva e não processual;
b) Por isso, o seu cumprimento exige que o referido direito seja exercido mediante a apresentação efectiva da queixa no prazo legal de seis meses, apresentação essa que tem de ser perante os Serviços do Ministério Público ou um órgão de polícia criminal para o efeito;
c) Uma vez que a queixa que deu origem ao presente processo foi enviada pelo correio precisamente no último dia do referido prazo (conforme carimbo aposto no sobrescrito utilizado para o efeito), pelo que, na melhor das hipóteses, não obstante a data do carimbo nela aposta (terceiro dia posterior) só podia ter chegado ao Tribunal no dia seguinte e portanto já depois do termo daquele prazo, razão pela qual se impunha considerar e decidir que o respectivo direito foi exercido extemporaneamente;
d) Assim é porque, tratando-se de um prazo de caducidade e, portanto, de natureza substantiva, ao mesmo não é aplicável, ao contrário do entendido e decidido no despacho recorrido, o disposto no nº 2 do artº 150º do C.P.Civil, tanto mais que tal norma apenas se aplica a “actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes” (v. nº 1 do mesmo réceito legal), não sendo a apresentação da queixa um acto processual, nem sequer se exigindo que seja praticado por escrito;
e) Com entendimento subjacente ao despacho recorrido com base no qual se decidiu pela tempestividade do exercício do direito de queixa, pensamos ter sido feita errada interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente dos artºs. 115º nº 1 do C.Penal e 150º nº 2 do C.P.Civil.
Requer assim a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que julgue extemporaneamente exercido o direito de apresentação da queixa e, atenta a natureza particular e semi-pública dos crimes que os factos dela objecto são susceptíveis de integrar, decrete a extinção por caducidade do respectivo procedimento criminal.
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Relativamente ao recurso interlocutório, responderam o Sr. Procurador-Adjunto e a assistente, pugnando ambos pela tempestividade do direito de queixa, embora com fundamentação diversa.
Na perspectiva do Mº Público, quer se entenda que o prazo de apresentação da queixa tem natureza processual, quer se defenda que tem natureza substantiva, sempre aquela teria de considerar-se tempestiva. Enquanto relativamente ao primeiro entende não haver dúvidas quanto à solução, relativamente à natureza substantiva do prazo em causa, face ao disposto no artº 279º als. b), c) e e) do Cód. Civil, a queixa deu entrada nos Serviços do Mº Pº no último dia do prazo legalmente previsto, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso.
Entende, por outro lado, a assistente que, aplicando-se ao processo penal o disposto no artº 150º nº 2 do C.P.C., é irrelevante a data do carimbo aposto pela secretaria do Mº Público, devendo antes atender-se à data do registo postal, que vale como data da apresentação da queixa, concluindo assim pela tempestividade da queixa apresentada.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer quer quanto ao recurso interlocutório, quer quanto ao recurso principal.
Relativamente ao primeiro, sustenta que o mesmo não tem fundamento legal, sendo manifestamente improcedente, uma vez que op artº 104º nº 1 do C.P.P. manda aplicar à contagem dos prazos para a prática dos actos processuais, as disposições da lei de processo civil, pelo que, deverá aplicar-se ao caso em apreço, o disposto no artº 150º nº 2 al. b) do CPC.
No que respeita ao recurso da sentença condenatória, adere à argumentação vertida nas respostas do Mº Pº e da assistente, concluindo que o recurso não deve proceder.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Para mais fácil apreensão do objecto do recurso interlocutório, transcreve-se de seguida o requerimento formulado em acta (cfr. fls. 96) pelo arguido, sobre o qual recaiu o despacho recorrido:
«Como se verifica no carimbo aposto na parte superior direita da 1ª página da participação – queixa –, que deu origem ao presente processo, a mesma só foi distribuída nos serviços do Mº Público no dia 24 de Novembro de 2008.
Junto à mesma encontra-se também um rosto de um subscrito que se supõe e admite ter sido utilizado para expedição da mesma queixa pelo correio, dele constando o carimbo como data da sua expedição no dia 21 do mesmo mês de Novembro.
Em nosso modesto entender, tendo em conta as referidas datas, o direito de queixa da Assistente foi exercido fora de tempo.
Isto porque entendemos que a queixa devia ter sido apresentada, considerando nós que tal requisito apenas se preenche com efectiva entrega nos serviços do Mº Público, dentro do prazo de 6 meses.
Não relevando para o efeito a circunstância da sua expedição, por via postal, ter decorrido exactamente no último dia desse mesmo prazo, pelo que requer que seja decretada a extinção da respectiva queixa, com as consequências legais.»
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho:
“Não só pelos motivos aduzidos pela Digna Magistrada do Mº Público presente, mas também por aplicação analógica do disposto no artº 150º nº 2 al. b) do C.P.C., por força do previsto no artº 4º do C.P.P., vale como prática do acto a do registo postal.
Esta posição é geralmente aceite, vendo-se por exemplo anotação ao mencionado artº 4º constante do CPP anotado do Prof. Pinto de Albuquerque (Católica Editora 2ª Edição, pág. 43).
Pelo exposto, valendo como prática do acto a do registo, considera-se a queixa tempestivamente apresentada.
Mais se admite a requerida junção[2] para melhor demonstração do aqui decidido.
Notifique.”
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Do recurso da sentença:
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
«1. No dia 21 de Maio de 2008, pela manhã, cerca das 7 horas, na Rua ….., o arguido saiu de uma carrinha que estava estacionada em frente à casa da assistente C…….., que se encontrava dentro de casa com a janela aberta, e dirigindo-se a esta proferiu as seguintes expressões: “tens um nariz que parece um telheiro”, “foda-se”, “oh, seu canhão, queres que ponha a gaita de fora?”, “sua puta, és uma puta, canhão, és solteira precisas é de gaita”.
2. O arguido baixou ainda as calças e as cuecas que trazia vestidas e, virando-se para a ofendida, que estava à janela, enquanto proferia em voz alta as palavras atrás escritas, levou as mãos aos seus órgãos sexuais completamente expostos, dizendo que o que ela precisava era de gaita.
3. A ofendida, embaraçada e envergonhada pelo comportamento do arguido, deixou a janela e foi para dentro de casa.
4. Com as palavras e actuação descritas causou constrangimento, humilhação, vexame e sofrimento à ofendida, médica de profissão.
5. Desde então tem receio de que o episódio se repita, sofrendo ansiedade.
6. O arguido agiu consciente e livremente, com intenção de ofender e embaraçar a ofendida, sem o acordo desta, bem sabendo que as suas condutas eram adequadas a afectar a liberdade sexual da ofendida e a ofender a sua honra e consideração, o que conseguiu, sabendo que as suas palavras eram objectivamente injuriosas e os sem actos censuráveis.
7. Sabiam também o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
8. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
9. O arguido recebe €752,00 de vencimento, auferindo a sua mulher aproximadamente €100,00 do seu trabalho. Têm um filho de 13 anos a cargo.
10. É bem estimado e considerado no seu seio familiar e no seu trabalho.
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Não resultaram provados outros factos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente:
a. Que a ofendida não consegue repousar durante a noite, sofre de insónias e acorda frequentemente com a imagem do arguido exibindo os seus órgãos genitais.
b. Que nos dias que se seguiram não conseguiu concentrar-se para zelosamente exercer a sua profissão, recordando-se constantemente do sucedido.»
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A matéria de facto provada e não provada encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
«O Tribunal fundou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida, concretamente:
• Nas declarações do arguido no que respeita à sua situação pessoal, porquanto negou a prática dos factos. Segundo o arguido, esteve ocupado no exercício da sua profissão de vendedor da firma D……, tendo ido esperar o camião de transporte de mercadoria entre as 6h30min e as 7h00min à entrada do hipermercado ….., tendo depois acompanhado este camião a sua casa, onde por sua vez se procedeu à descarga de mercadoria. Às 7h10min estaria assim a trabalhar. No que respeita às suas relações com a ofendida, sua vizinha, admitiu terem relações “difíceis”, mesmo de má vizinhança, atribuindo à ofendida a sua causa.
• Por seu lado a ofendida C……. fez a sua descrição dos eventos, afirmando ter visto e ouvido o arguido da janela do seu quarto, dirigindo-lhe as expressões e os gestos que acima se descrevem. Explicou também o efeito que esses actos surtiram na sua pessoa.
A ofendida teria acolhido e sua casa as testemunhas E……… e F…… pouco antes da actuação do arguido, explicando que F…….. pretendia internar o seu filho para tratamento psiquiátrico, tendo sido encaminhada por E…… ao encontro da ofendida, sua médica de família, que as acompanharia ao Hospital de Vila Real a fim de ajudar a providenciar pelo internamento.
Foi o testemunho destas duas pessoas que se revelou preponderante para a decisão agora proferida.
• E…… foi muito clara na sua exposição, não se afastando do fio lógico da sua narrativa, mesmo quando instada a tal, elucidando o tribunal com clareza sobre o circunstancialismo vivido. Com efeito, acompanhava a sua cunhada F……. a casa da ofendida, sua médica de família, para depois irem todas ao hospital para tratarem do internamento do seu sobrinho e filho de E…... Foram para lá “cedinho”, a pedido da ofendida, que depois iria trabalhar — seriam cerca das 7 horas da manhã. A companhia da ofendida serviria para facilitar o processo, pois esta falaria com um colega, explicando a situação vivida.
Era esta testemunha quem estava mais familiarizada com a ofendida. Foi quem se aproximou da casa da ofendida em primeiro lugar e quem aí bateu, tendo-lhe sido franqueada a entrada. Nesta altura viu o arguido num primeiro momento cá fora, em movimentações e gesticulando. Encontrava-se então um camião junto à casa, branco, “voltado para baixo”, sem que se lembrasse de qualquer inscrição no exterior do camião ou dos seus ocupantes, que logo a seguir partiu. Pouco depois a sua cunhada juntou-se-lhe na sala da casa da ofendida, aguardando ambas que esta se arranjasse no seu quarto, no 1.° andar da casa. Foi durante esta espera que puderam assistir à actuação do arguido, da varanda da casa, onde se acede por essa sala. Ao ouvir os impropérios aproximaram-se da varanda, de onde viram e ouviram o sucedido, e recolheram-se sobressaltadas quando o arguido baixou as calças e exibiu os órgãos genitais. Quando a ofendida regressou, estava alterada, nervosa e constrangida, discutindo com as testemunhas o sucedido. Face a tal alteração da ofendida, esta testemunha e a sua cunhada não foram capazes de exigir da ofendida o cumprimento do combinado, a dita deslocação ao hospital (pois a ofendida trabalha noutro local, no Centro de Saúde ……), e deixaram-na, sem que depois tivessem mais visto o arguido. O testemunho assim produzido foi muito convincente pela coerência interna que revelou. Em nenhum momento do seu depoimento esta testemunha entrou em contradição, sendo os momentos de dúvida suscitados consentâneos com as usuais insuficiências de memória.
• A testemunha seguinte, F…….., confirmou em pleno o depoimento da testemunha anterior (acrescentando lembrar-se que o camião estacionado era da “D…..”), revelando as suas palavras, como elemento fortalecedor da sua genuinidade, a influência do seu próprio estado de espírito na visão que reteve dos factos. Esta testemunha era quem pretendia obter a ajuda da ofendida na resolução do problema de saúde do seu filho, tendo visto, na ocasião, a sua pretensão gorada pelo episódio em análise. Por tal motivo, como a própria testemunha explicou, não tomou tanta atenção como a testemunha anterior ao que foi conversado, depois, com a ofendida (que chegou a chorar) em casa desta, preocupada que estava com mais uma ocasião em que o problema do seu filho não seria resolvido. Foi outro elemento importante para solidificar ainda mais a convicção do tribunal. A consonância destes dois depoimentos revelou-se preponderante para a decisão ora tomada.
• As restantes testemunhas ouvidas pouco acrescentaram de útil. G….., colega de trabalho do arguido, além de atestar pela boa índole do arguido, era um dos ocupantes do camião “D…..” e, deslocando-se frequentemente a casa do arguido, afirmou que na ocasião não viu lá ninguém. Paralelamente H….., motorista do camião, confirmou a boa consideração que dispensa ao arguido, e igualmente afirmou não ter visto ninguém. Ora, o sucedido deu-se depois do camião partir, o que bem se compreenderia, porquanto certamente não seria desejável pelo arguido a presença de assistência à sua actuação, e muito menos a de colegas de trabalho.
• I……., mulher do arguido, veio pugnar pela falsidade do imputado, acrescentando que do local onde as testemunhas se encontravam não seria possível visualizar o ocorrido.
• Deslocou-se depois o tribunal ao local, conforme auto de fls. 171, sem que se extraísse da inspecção então efectuada essa alegada impossibilidade, conforme melhor se pode retirar das fotos de fls. 166 a 168 e 173 e 175. Quanto ao facto de aparentemente a ofendida ter procedido ao corte de vegetação no seu jardim na altura do julgamento, como descreveu a testemunha J……, não retirou daí o tribunal a impossibilidade de visualização.
• Foram ainda analisados a fotografia de fls. 137, CRC de fls. 85. e documentos de fls. 95 e 102, provindos da empresa de distribuição da “D…..”, indicando a qualidade laboral do arguido.
• Os factos não provados mereceram tal consideração pela ausência de prova que os afirmasse.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente na respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[4].
Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir consistem em saber:
- da tempestividade da queixa apresentada;
- não contendo a queixa todos os elementos do crime de importunação sexual, se impunha a improcedência da acusação por inexistência de queixa quanto ao mesmo;
- se houve incorrecta valoração da prova produzida em julgamento.
No caso em apreço, atenta a natureza semi-pública e particular dos crimes de importunação sexual e de injúrias (respectivamente) pelo qual o arguido/recorrente foi condenado, importa apreciar em primeiro lugar o recurso interlocutório interposto pelo arguido, na medida em que a sua eventual procedência, tornará inútil a apreciação das restantes questões suscitadas.
O processo penal tem por função a averiguação da existência de ilícitos, na perspectiva da protecção de bens jurídico-penais, visando punir os comportamentos violadores desses mesmos bens. Embora na generalidade das legislações a promoção processual dos crimes seja tarefa estatual, os legisladores reconhecem que certas infracções contendem com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo não tão intenso como outros e que quanto àqueles deve ser deixada alguma margem ao ofendido para fazer valer ou não a aplicação de sanções ao infractor. A coordenação do interesse do Estado e do indivíduo, na promoção processual, leva à existência de crimes públicos, de crimes semi-públicos e crimes particulares, consoante a iniciativa processual caiba ao Ministério Público, dependa de queixa do interessado para que o Ministério Público promova a abertura do processo, ou que o titular do direito violado se queixe e ainda se constitua assistente e deduza acusação particular.
Relativamente aos crimes semi-públicos, dispõe o nº 1 do artº 49º do C.P.P. que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
Por sua vez, o art.50.º do C.P.P., sob o título “Legitimidade em procedimento dependente de acusação particular”, estabelece uma segunda restrição à promoção do processo penal por parte do Mº.Pº., ao consignar, designadamente, o seguinte: «1. - Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular».
A queixa, relativamente aos crimes semi-públicos e particulares traduz a vontade do ofendido de instauração do procedimento criminal pela prática de determinado facto, contra o seu autor.
No dizer do Prof. Figueiredo Dias «Queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art.111º e C.P.P, art.49)»[5].
Como se refere no Ac. do STJ de 29.01.2007[6], citando ainda o Prof. Figueiredo Dias[7] “a queixa, exterior à acção típica, funciona nos crimes de natureza semi-pública (ou particular) como condição objectiva de procedibilidade, do exercício da perseguição penal, de natureza processual, embora regulamentada no âmbito do direito penal substantivo, assim sendo concebida pela jurisprudência e pela doutrina mais autorizada”.
Na verdade, a punição efectiva de um facto depende não apenas do preenchimento de exigências substantivas, mas também da verificação de condições de procedimento. Salvo em casos excepcionais, sem queixa o procedimento não pode iniciar-se e, caso se tenha iniciado, não pode prosseguir.
A qualquer momento, se podem e devem retirar as consequências do facto de a queixa não existir ou não ser juridicamente relevante. Quando esta situação ocorre, falta, portanto, um pressuposto do procedimento, logo da condenação.
No que respeita ao prazo, dispõe o artº 115º nº 1 do C.P.P. que “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.”
O período de tempo decisivo para a contagem deste prazo é aquele que medeia entre a tomada de conhecimento do facto por parte do ofendido e a deposição da queixa.
No caso em apreço não se suscitam dúvidas quanto ao início do prazo (ou seja, quanto ao dies a quo), discutindo-se apenas o dies ad quem (o termo do prazo). Com efeito, tratando-se de crime que, como resulta da própria queixa, foi praticado na presença da ofendida, será despiciendo afirmar que foi nessa mesma data (21.05.2008), que aquela teve conhecimento dos factos, iniciando-se então o decurso do prazo de seis meses para apresentação da queixa.
Por outro lado, tratando-se de um crime de natureza semi-pública (importunação sexual p. e p. no artº 170º do C.P.) e de um crime particular (crime de injúrias p. e p. no artº 181º do C.P.), o procedimento criminal não poderia iniciar-se ou prosseguir sem a queixa da ofendida.
Atenta a divergência entre os intervenientes processuais quanto à forma de contagem do prazo a que alude o artº 115º do Cód. Penal, importa antes de mais esclarecer a natureza de tal prazo, de modo a daí extrair as consequências quanto ao respectivo termo.
Sustentou-se na decisão recorrida (posição sufragada pela assistente) que, “por aplicação analógica do disposto no artº 150º nº 2 al. b) do C.P.C., por força do previsto no artº 4º do C.P.P., vale como prática do acto a do registo postal”, concluindo assim que a queixa foi tempestivamente apresentada, uma vez que o respectivo registo postal foi efectuado no dia 21.11.2008 (cfr. fls. 7).
Por seu lado, o Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, entende que ao caso é aplicável o disposto no artº 150º nº 2 al. b) do C.P.C., não por aplicação analógica ou sequer subsidiária, mas por força do artº 104º nº 1 do C.P.P., que manda aplicar à contagem dos prazos para a prática de actos processuais as disposições da lei processual civil.
Salvo o devido respeito, a questão suscitada apresenta duas abordagens: uma respeita à forma de contagem do prazo previsto no artº 115º nº 1 do C.Penal. Outra, diferente, prende-se com a forma de apresentação do próprio acto.
Como vêm afirmando a doutrina e jurisprudência absolutamente dominantes, o prazo previsto no artº 115º nº 1 do C.Penal é um prazo de caducidade e de natureza substantiva e não um prazo processual ou judicial[8].
São-lhe, por isso, inaplicáveis as regras de contagem dos prazos processuais dos arts. 103.º e 104º do Código de Processo Penal e/ou as dos arts. 144.º nºs 1 a 3, 145.º a 148º do Código de Processo Civil[9].
Como refere o Prof. José Aberto dos Reis[10] “Segundo Carnelutti, a função do prazo judicial consiste em regular a distância entre os actos do processo” (…), “o período de tempo fixado para se produzir um determinado efeito processual” (…) pressupõe necessariamente que já está proposta a acção, que já existe um determinado processo, e destina-se a marcar o período de tempo dentro do qual há-de praticar-se um determinado acto processual”. Ora, “só tem natureza adjectiva o prazo a que está sujeito qualquer acto a praticar dentro do processo, que não fora dele; quando o prazo não se destina a marcar o período de tempo durante o qual há-de praticar-se, nesse processo, determinado acto, o prazo é de direito substantivo”[11].
No caso sub judice, antes da apresentação da queixa, não existe ainda processo, pelo que estamos perante um prazo substantivo, de caducidade, contínuo e sujeito à contagem do artº 279º do Cód. Civil.
Importa, por isso, averiguar se, pela aplicação das regras deste preceito da lei substantiva, a queixa foi ou não tempestivamente apresentada.
Tendo os factos ocorrido no dia 21.05.2008 (data em que foram igualmente do conhecimento da queixosa), o termo inicial do prazo de seis meses ocorreu no dia seguinte – 22.05.2008 (artº 279º al. b) do Cód. Civil.
Assim, em conformidade com a al. c) do mesmo preceito, o respectivo termo final ocorreria às 24 horas do dia 22.11.2008.
Considerando, porém, que o dia 22.11.2008 correspondeu a um sábado, coloca-se a questão de saber se aquele termo se esgota nesse mesmo dia ou se se transfere para o primeiro dia útil seguinte, nos termos do disposto na al. e) do Cód. Civil.
O citado art. 279º não prevê regra especial quando o termo do prazo ocorre num sábado, contrariamente ao que acontece aos domingos e dias feriados. Tal circunstância ficou a dever-se ao facto de, aquando da aprovação do Código Civil, as secretarias judiciais estarem abertas aos sábados.
Porém, tal veio a ser alterado pela Lei nº 35/80, de 29 de Julho.
Contudo, a jurisprudência tem considerado que a aplicação do preceito aos sábados é evidente, pois a razão de ser da lei é a mesma dos feriados e domingos, não só porque, também nesse dia, estão fechadas as secretarias judiciais, como ainda porque o artº 144º veio equiparar os sábados aos domingos e feriados.
Aliás, mesmo quando as secretarias judiciais estavam abertas aos sábados, só no período da manhã[12], se entendeu que os prazos que findassem nesse dia passariam para o primeiro dia útil seguinte, pois se assim não fosse, limitar-se-ia injustificadamente o período de que o interessado dispunha para a prática do acto, face ao disposto na al. c) do artº 279º do C.Civil. Foi o caso do assento de 16 de Março de 1971[13], e a posição do Professor Vaz Serra, na RLJ, Ano 105, pág. 345[14].
Porém, nas situações a que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que o prazo cujo termo ocorra ao sábado se transfere para o primeiro dia útil seguinte (assim equiparando o sábado aos domingos e feriados), trata-se naturalmente de prazos respeitantes a actos que devam ser praticados em juízo.
No que respeita à apresentação da queixa (condição de procedibilidade nos crimes semi-públicos e particulares) a lei atribui ao ofendido a faculdade de a efectuar verbalmente ou por escrito, quer perante o Ministério Público, quer perante um órgão de polícia criminal.
Há que atender, porém, que enquanto os órgãos de polícia criminal, designadamente as entidades policiais, têm condições objectivas para receber uma queixa a qualquer hora e em qualquer dia da semana, uma vez que os postos policiais se encontram permanentemente de serviço, já nos serviços do Ministério Público, sujeitos ao horário de funcionamento das secretarias judiciais, os interessados estão naturalmente impedidos de apresentar queixa aos sábados, domingos e feriados e após as 16 horas nos dias úteis.
Se o ofendido optar por apresentar queixa nos serviços do Mº Público, caso o termo do prazo de seis meses previsto no artº 115º nº 1 do C.Penal ocorra num sábado, ninguém questionará que esse dies ad quem se transfere para o primeiro dia útil seguinte.
Ora, tal solução não se altera pelo facto de o ofendido ter a possibilidade de apresentar a queixa num posto policial no último dia do prazo, ou seja, no sábado. Principalmente, se atendermos a que o Ministério Público é o titular da acção penal e a quem a denúncia efectuada àquele órgão de polícia criminal deverá ser transmitida no mais curto prazo, não superior a dez dias (artº 245º do C.P.P.).
Mal se compreenderia, por isso, que o termo do prazo se transferisse para o primeiro dia útil seguinte se a queixa fosse apresentada nos serviços do Mº Público e o mesmo não ocorresse se tivesse lugar num posto policial.
Conclui-se, assim, que independentemente do local onde o ofendido venha a apresentar a queixa, se o termo do prazo para esse efeito ocorrer num sábado, domingo ou feriado, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte.
No caso sub judice, como vimos, o termo do prazo de seis meses de que a assistente dispunha para apresentar a queixa ocorreu no dia 22.11.2008, que coincidiu com um sábado. Assim, aquele termo transferiu-se para o dia 24.11.2008 (2ª feira), data que corresponde aos carimbos apostos no requerimento de fls. 2 pelos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Vila Real, daí a tempestividade da queixa.
Refira-se ainda que, mesmo que se não considerasse transferido para o primeiro dia útil seguinte o termo do prazo para apresentação da queixa, sempre a mesma teria de se considerar tempestiva.
Com efeito, como atrás se disse, a forma de contagem de um prazo, ainda que de natureza substantiva, em nada contende com a forma de apresentação do acto processual para o exercício do respectivo direito.
Entendeu-se na decisão recorrida que por aplicação analógica do disposto no artº 150º nº 2 al. b) do C.P.C., por força do previsto no artº 4º do C.P.P., vale como prática do acto a do registo postal.
Sustenta, por outro lado, o Sr. PGA que “ao caso é aplicável o disposto no artº 150º nº 2 al. b) do C.P.C., não por aplicação analógica ou sequer subsidiária, mas por força do artº 104º nº 1 do C.P.P., que manda aplicar à contagem dos prazos para a prática de actos processuais as disposições da lei processual civil”.
Ora, o disposto no artº 150º do C.P.C., nada tem que ver com as regras de contagem de prazos (ainda que processuais), mas sim com a forma de apresentação dos actos processuais a juízo, como resulta da sua epígrafe, ao contrário do artº 104º do C.P.P., que alude à contagem dos prazos de actos processuais.
Aliás, como se referiu no Ac. Fixação de Jurisprudência nº 2/2000[15], “Como é bom de ver, o artigo 150º do Código de Processo Civil — que está integrado na subsecção relativa aos «actos das partes» — não disciplina os prazos judiciais e a sua contagem. O prazo para a remessa a juízo de peças processuais continua a ser sempre o mesmo e sem que se verifique qualquer alteração nas regras que estabelecem como esse prazo se conta. O nº 1 do citado artigo limita-se a regular, no essencial, no caso de as peças processuais serem remetidas pelo correio, sob registo, a data em que o acto processual se tem por praticado, que é a da efectivação do respectivo registo postal, verificando-se, depois, com referência a ela, se o mesmo acto foi praticado no prazo judicial (previamente) fixado pela lei”.
Quanto ao formalismo a observar, quando o interessado opte por apresentar a queixa por escrito[16] e em juízo, dispõe o artº 150º nºs 1 e 2 que:
- o acto pode ser praticado por transmissão electrónica de dados, valendo como data da prática do acto processual a da respectiva expedição.
- pode ser apresentado a juízo através de entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do acto processual a da respectiva entrega;
- pode ser remetido pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal;
- e, finalmente, através de telecópia, valendo como data da prática do acto processual a da respectiva expedição.
Tendo a queixosa optado por praticar o acto processual (apresentação da queixa) em juízo e por escrito, através da remessa por correio registado enviado em 21.11.2008, vale como data da prática do acto a da efectivação do respectivo registo postal, como se decidira na decisão recorrida.
Sobre a aplicação ao processo penal das regras contidas no artº 150º do C.P.P., o Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 2/2000, atrás citado, reconhecendo que o Código de Processo Penal contém omissão quanto à possibilidade de os actos processuais referidos no artº 150º nº 1, do Código de Processo Civil serem praticados por remessa para as secretarias judiciais, pelo correio, sob registo, valendo, nesse caso, como data do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal, fixou a seguinte jurisprudência: “O nº1 do artigo 150º do Código de Processo Civil é aplicável em processo penal, por força do artigo 4º do Código de Processo Penal”.
A doutrina fixada pelo citado acórdão não é afastada pelo facto de o acto processual em causa (apresentação da queixa), constituir afinal o primeiro acto que vai dar origem ao processo (inquérito) e respeitar a um prazo de natureza substantiva.
Também o prazo de impugnação judicial das decisões administrativas proferidas em processo contra-ordenacional não tem natureza judicial, e o Ac. de Fixação Jurisprudência nº 1/2001[17] entendeu que “vale como data da apresentação da impugnação judicial a da efectivação do registo postal da remessa do respectivo requerimento à autoridade administrativa que tiver aplicado a coima”, sendo-lhe aplicável o disposto no artº 150º do C.P.Civil e o Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2000 de 7 de Fevereiro de 2000.
Conclui-se assim pela tempestividade da queixa apresentada pela assistente, improcedendo o recurso interlocutório interposto pelo arguido.
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Sustenta o recorrente que a acusação deveria ter sido julgada improcedente uma vez que a queixa não contém todos os elementos que integram o tipo de crime de importunação sexual, designadamente as consequências do comportamento do arguido que se traduziu no imputado acto de “baixar completamente as calças à frente da queixosa, expondo totalmente os seus órgãos sexuais”, não referindo a queixosa ter-se sentido ofendida e importunada pelo facto de o arguido ter exibido os seus órgãos sexuais.
Vejamos:
A queixa, como manifestação de vontade, nos crimes semi-públicos, para que o Ministério Público promova a abertura do processo, baliza o objecto da investigação criminal.
O substrato fáctico que se descreve ou menciona na queixa é o ponto de partida no processo criminal; já a respectiva qualificação jurídico-penal efectuada na queixa é irrelevante[18].
O facto descrito na queixa, numa perspectiva naturalístico-normativa, pode ser restringido ou ampliado durante a investigação, desde que neste último caso se mantenha no âmbito da situação denunciada e de protecção do mesmo bem jurídico.
A acusação deve conter os factos relevantes relativos ao substrato fáctico que foi objecto de queixa e que resultaram suficientemente indiciados da investigação.
Contudo, contrariamente ao defendido pelo recorrente, não é a queixa que delimita o objecto do processo. Os poderes de cognição do tribunal são delimitados pelo objecto da acusação (sem prejuízo do disposto nos artºs. 358º e 359º do C.P.P.), sendo a vinculação temática do tribunal à acusação fundamental para o exercício efectivo do direito de defesa do arguido.
Como esclarecedoramente se referiu no Ac. do STJ de 16.05.1996[19] “Para que a queixa, quando o procedimento depende da sua apresentação, seja válida, pouco importa o sentido meramente literal dos termos empregues ou que o queixoso refira ter sido vítima de tentativa de certo crime, desde que manifeste, de forma inequívoca, a sua vontade de que, sendo vítima de uma agressão, pretenda que em relação a ela a acção penal seja exercida; por isso, apesar de os factos relatados na queixa serem insuficientes para integrar o crime, nada impede o exercício da acção penal, já que os factos a atender são os que forem objecto de averiguação e que forem qualificados pelo MP como integrando o crime”.
Na queixa que apresentou, referiu a assistente C……, no ponto 8 que “Ao mesmo tempo que proferia os insultos, o participado foi baixando as calças, entrando de seguida no quintal da participante até que, quando ficou mesmo à frente desta desceu as calças completamente, expondo totalmente os seus órgãos sexuais”.
Por outro lado, sob o ponto 14 da queixa, refere “a conduta do participado, supra descrita, integra matéria criminal, e preenche o tipo legal de crime de importunação sexual, previsto e punido pelo artigo 170º do Código Penal em vigor”.
Na acusação deduzida pelo Mº Público a fls. 42 imputa-se ao arguido a prática dos seguintes factos: “No dia 21 de Maio de 2008, cerca das 07:00, em frente da casa da C……, sua vizinha, o arguido baixou as calças e as cuecas que trazia vestidas e, virando-se para a dita C….., que na circunstância estava à janela, em voz alta e entre insultos vários levou as mãos aos seus órgãos sexuais completamente expostos e disse-lhe que o que ela precisava era de gaita. C….., embaraçada e envergonhada com o comportamento do arguido, deixou a janela e foi para dentro de casa. O arguido procedeu consciente, livre e deliberadamente, com intenção de embaraçar C……, bem sabendo que o fazia sem o acordo dela, que com isso lhe afectava a liberdade de autodeterminação sexual e que por isso a sua conduta é punida e censurada por lei”.
Foram estes factos, alegados na acusação, que o tribunal considerou provados, para além dos factos que integram a prática do crime de injúrias, objecto da acusação particular.
Do confronto do teor da queixa e da acusação pública deduzida e supra transcrita, não se vislumbra em que medida a acusação tenha extravasado a descrição factual constante da queixa, na apontada perspectiva naturalístico-normativa.
A versão da acusação corresponde à situação denunciada e visa a protecção do mesmo bem jurídico.
Defender-se que o Mº Público ou o Juiz de Instrução se encontram definitivamente “presos” ao substrato fáctico constante da queixa, constituiria manifesto absurdo. Basta pensarmos nos casos em que o queixoso apresenta queixa contra desconhecidos ou, no âmbito dos crimes contra a propriedade, em que o queixoso descreve apenas os objectos e o local de onde aqueles foram subtraídos e, no decurso da investigação, o Mº Pº vem a apurar a autoria dos factos ou a forma como estes ocorreram, reflectindo a acusação precisamente o resultado dessa investigação.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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O recorrente questiona ainda a valoração da prova efectuada pelo tribunal recorrido, que considera incorrecta.
Ora, a impugnação da matéria de facto impõe o cumprimento do formalismo consignado no Código de Processo Penal e, no caso em apreço, esse formalismo mostra-se totalmente ausente, não só nas conclusões, mas também nas motivações “stricto sensu”, o que conduz à impossibilidade desta Relação apreciar a decisão recorrida nesta vertente.
Com efeito, atento o disposto nos art.ºs 410.º, n.º 2, 428.º e 431.º, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação apenas pode ser abordada por duas formas:
1) Através da aferição de vícios que decorram do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência “…vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto — insuficiência ou contradição dos factos e razões que suportam a própria decisão —, ou de erros ostensivos ou patentes na valoração da prova, que pela sua natureza e gravidade constituem verdadeira nulidade da sentença”[20] (sem apoio de quaisquer outros elementos externos, ainda que constantes do processo), e
2) Através da reavaliação da prova produzida (sempre ressalvando qualquer intromissão no princípio da livre apreciação da prova consignado no art.º 127º).
Assim:
Embora o art.º 428.º diga que “as relações conhecem de facto e de direito”, exceptuando os casos abrangidos pelo n.º 2 do art.º 410.º — situação que não é sequer invocada no recurso —, a modificabilidade da decisão de facto da 1ª instância só pode ter lugar quando se verifiquem os requisitos estabelecidos no art.º 431.º do mesmo diploma e que são:
a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base,
b) se a prova tiver sido impugnada, nos termos do art.º 412.º n.º 3 ou
c) se tiver havido renovação da prova.

Conjugado com este normativo há que tomar em consideração que o referido n.º 3 do art.º 412.º impõe ao recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Dispõe, ainda o n.º 4 que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Temos assim que a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto é susceptível de modificação se tiver sido impugnada nos termos do art.º 412.º n° 3 e 4 do C.P.P.. Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Julho de 2006[21], com este normativo “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Impõe-se, por isso uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos”. O facto de a alínea b) do art.º 431.º remeter para o n.º 3 do art.º 412.º não exclui o n.º 4 uma vez que este se limita a regular o modo de, em sede de recurso, apresentar as provas especificadas nas als. b) e c) do n.º 3 daquele preceito, que hajam sido gravadas, ou seja, o n.º 4 nada mais é do que uma extensão do n.º 3.
Como se constata da leitura quer da motivação, quer das conclusões do recurso, o recorrente não observou minimamente o regime prescrito nos n°s 3 e 4 do citado preceito legal.
Com efeito, limitou-se a manifestar a sua discordância sobre a matéria de facto dada como provada, sem apresentar razões válidas de tal discordância e sem indicar as provas que não só demonstram a possível incorrecção decisória, mas que permitam configurar uma alternativa decisória.
Acresce que a motivação é completamente omissa quanto ao estabelecido no n° 4 do citado artigo 412°.
Ora, tendo a audiência de julgamento sido objecto de gravação áudio, impunha-se que o recorrente especificasse os pontos que tem como incorrectamente julgados e indicasse as provas que justificam a decisão que preconiza, diversa da recorrida, fazendo, para tanto, referência aos respectivos suportes técnicos. Neste aspecto, aliás, verifica-se que o recorrente se limitou a discordar da valoração que o tribunal recorrido atribuiu ao conjunto da prova produzida, apontando situações anómalas decorrentes do facto de a recorrente apenas ter indicado na queixa uma testemunha que terá presenciado os factos e, só muito mais tarde, vir indicar outra, alegando terem estado todas juntas.
Ora, como anotava Maria Gonçalves[22], no art° 412° na versão anterior à introduzida pela Lei n° 48/07, estabelecem-se os requisitos da motivação, sendo patente que a lei é aqui particularmente exigente quanto à estruturação das alegações. E esta tomada de posição da lei através deste artigo é secundada por outras disposições, determinando a não admissão ou a rejeição do recurso, não só quando falte a motivação mas ainda quando esta for manifestamente improcedente ou quando, versando o recurso matéria de facto não contenha as indicações das als. a), b) e c) do n° 3. É, portanto, matéria a que haverá que prestar particular cuidado, pois o Código denota o intuito de não deixar prosseguir recursos inviáveis ou em que os recorrentes não exponham com clareza o sentido das suas pretensões. O sentido da exigência da lei, esse, é manifesto, pois sanciona o seu incumprimento com a rejeição do recurso, como claramente resulta da sua letra e como uniformemente tem entendido a jurisprudência[23].
No caso em apreço, as insuficiências das motivações do recurso não possibilitam desencadear qualquer convite para aperfeiçoamento.
Por outro lado, da simples leitura das motivações de recurso, conclui-se que a discordância do recorrente se prende apenas com a valoração atribuída pelo tribunal recorrido ao conjunto da prova produzida.
Impõe-se, por isso, a rejeição do recurso nessa parte.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento quer ao recurso interlocutório, quer ao recurso da decisão final interpostos pelo arguido, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s.
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Porto, 13 de Julho de 2011
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinho e Lobo
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
__________________
[1] Trata-se, por certo, de lapso, pois se pretenderia fazer referência ao Cód. Penal e não ao Cód. Civil
[2] Referindo-se ao talão de registo postal, cuja junção foi requerida pela assistente, em acta.
[3] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[4] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[5] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, pág. 665.
[6] Proferido no Proc. nº 4458/06-3
[7] Direito Processual Penal, I, pág. 117.
[8] Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 674; Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado, 1º Vol, pág. 812; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, anotação 10ª ao artº 115º; Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, pág. 307; Ac. do STJ de 15.12.94; Ac. TRP de 15.09.1999, in CJ, Ano XXIV, Tomo 4, pág. 239; Ac.R.Évora de 08.11.2005, relatado por Alberto Mira, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Não concordamos, por isso, com a referência feita no Ac.R.Évora de 08.11.2005 à inaplicabilidade do artº 150º do C.P.C., uma vez que esta disposição apenas respeita à expedição e entrega de actos processuais em juízo, não contendendo com a forma de contagem do prazo para o exercício do acto.
[10] In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol 2º, pág. 57.
[11] Ibidem.
[12] Já que, actualmente, a abertura excepcional aos sábados de manhã, se destina a salvaguardar a situação de arguidos detidos para primeiro interrogatório.
[13] BMJ 295/115.
[14] Esta solução foi também seguida nos Acs. do STJ de 09.06.1988, no Ac.R. Coimbra de 17.03.1981, CJ, Ano VI, Tomo 2, pág. 106 e no Ac.R.Lx. de 12.02.82, CJ, VII, Tomo 1, pág.182.
[15] Publicado no DR I Série-A de 07.02.2000
[16] Do artº 246º nº 1 do C.P.P. resulta que o denunciante pode optar por apresentar a queixa verbalmente ou por escrito, sem observância de formalidades especiais.
[17] Publicado no DR I Série-A de 20.04.2001
[18] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 675.
[19] Proferido no Proc. nº 136/94 e referido por Simas Santos e Leal Henriques in Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª edª., pág. 357.
[20] V., neste sentido, Ac.TC nº 399/03.
[21] Disponível no site www.dgsi.pt.
[22] Cfr. Código de Processo Penal Anotado, 9ª edª., pág. 729.
[23] Neste sentido, v., por todos, Ac. R. de Évora de 05.06.2001, in C.J., 2001, III-292; e Ac. R.C. de 07.12.1999, in C.J., 1999, V-55.