Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP00033859 | ||
| Relator: | FERNANDES DO VALE | ||
| Descritores: | EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA PENHORA EXPECTATIVA JURÍDICA AQUISIÇÃO AUTOMÓVEL POSSE LEASING | ||
| Nº do Documento: | RP200201280151536 | ||
| Data do Acordão: | 01/28/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recorrido: | T J ESTARREJA 1J | ||
| Processo no Tribunal Recorrido: | 131-C/97 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | PROVIDO. | ||
| Área Temática: | DIR PROC CIV - PROC EXEC. | ||
| Legislação Nacional: | CPC95 ART848 N1 N5 ART860-A N1 N2 N3. | ||
| Sumário: | Não deve ser ordenado o levantamento da apreensão do automóvel cuja expectativa de aquisição foi penhorada, com o fundamento de que, tendo entrado na posse do executado por contrato de locação financeira onde foi locatário, o impedimento do uso do veículo motivado pela apreensão poderia levar o executado ao desinteresse no pagamento das prestações contratuais cujo cumprimento condiciona a aquisição da propriedade do veículo a qual, assim, não se consumaria. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação do Porto 1- Nos autos de execução ordinária nº../.. (para pagamento de quantia certa), instaurados, na comarca de....., por “M....., Lda” contra Augusto....., foi efectuada, em 28.03.01, a penhora do veículo matrícula ..-..-PR, tendo-se procedido à respectiva apreensão e subsequente entrega ao indicado e nomeado depositário, António....., legal representante da exequente. Tendo a exequente informado, após a referida apreensão do veículo, que este estava registado em nome de “R....., S.A.”, encontrando-se, porém, na posse do executado, em consequência de um contrato de “leasing” entre aquela e este celebrado, requereu a exequente que a sobredita penhora fosse convertida em penhora da expectativa de aquisição do mesmo veículo, por parte do executado- locatário, no termo do aludido contrato de locação financeira, o que veio a ser objecto de deferimento, por douto despacho de 17.04.01. No entanto, por douto despacho de 04.05.01, foi ordenado o levantamento da apreensão do veículo, “atentas as especificidades decorrentes de se estar perante um contrato de locação financeira” e uma vez que, “só continuando a viatura em poder do executado, poderá o mesmo continuar a usufruir do bem locado e ir cumprindo com o pagamento das prestações até final do contrato, de modo a que se possa vir a consumar a aquisição”. Acrescentando-se que “só então a penhora passará a incidir sobre o próprio bem transmitido”, nos termos previstos no art. 860º-A, nº3, do CPC. Inconformada com tal decisão, da mesma interpôs a exequente o presente recurso de agravo, visando a revogação da decisão recorrida, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões: / 1ª- Nenhuma especificidade existe no caso de locação financeira de veículos automóveis, por forma a afastar a apreensão do próprio veículo automóvel e a sua entrega a um fiel depositário, como sucede na penhora de bens móveis;2ª- Não é condição para o cumprimento do contrato de locação financeira, como seja o pagamento das prestações contratualizadas, o facto do mesmo poder continuar a ser usufruído pelo devedor. Não foram apresentadas contra-alegações, tendo a decisão agravada sido objecto de sustentação. Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir, para o que releva a factualidade emergente do antecedente relatório, aqui tida por reproduzida, para o efeito. * 2- Perante as conclusões formuladas pela agravante (as quais, a par das razões de Direito e das questões de oficioso conhecimento, delimitam o âmbito e objecto do respectivo recurso –arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC, como os demais que, sem menção de origem, vierem a ser invocados), a única questão suscitada e colocada à apreciação e decisão deste Tribunal de recurso é a de saber se a penhora da expectativa de aquisição de um veículo automóvel, por parte do executado-locatário e findo o respectivo contrato de locação financeira, implica e impõe a apreensão do mesmo veículo, sustentando a agravante, contra o decidido, a tese afirmativa.Vejamos: * 3- I- Conforme art. 860º-A: “À penhora de direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados pelo executado aplica-se, com as adaptações necessárias, o preceituado nos artigos antecedentes acerca da penhora de créditos” (nº1). “Quando o objecto a adquirir for uma coisa que esteja na posse ou detenção do executado, cumprir-se-á ainda o previsto nos artigos referentes à penhora de imóveis ou de móveis, conforme o caso” (nº2). “Consumada a aquisição, a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido” (nº3).Paralelamente, nos termos do disposto no art. 848º, nº1 (integrado na Subsecção subordinada à epígrafe “Penhora de bens móveis” ), “A penhora de móveis é feita com efectiva apreensão dos bens, que são entregues a um depositário idóneo, salvo se puderem ser removidos, sem prejuízo, para a secretaria judicial ou para qualquer depósito público” (Sublinhámos). Acrescentando-se, no respectivo nº5, que “A penhora de veículos automóveis faz-se com a apreensão do veículo e dos seus documentos, podendo a apreensão ser efectuada por qualquer autoridade administrativa ou policial, nos termos prescritos na lei para a apreensão de veículos automóveis requerida por credores hipotecários” (Sublinhámos). II- No caso dos autos, é pacífico que, por via da sua qualidade de locatário no correspondente contrato de locação financeira celebrado com a proprietária do veículo apreendido (a “R....., S.A.”), dispõe o executado de uma expectativa (jurídica) de aquisição do veículo locado, findo o contrato e nas demais condições no mesmo estipuladas. Dissertando sobre aquela figura jurídica, escreveu, magistralmente, o Prof. Inocêncio Galvão Telles (in “Direito das Sucessões”, Ed. de 1971, pags. 98):...”A esperança tem mero conteúdo psicológico ou quando muito económico: é um simples esperar, um simples prever ou admitir certo acontecimento futuro como mais ou menos provável. Não possui conteúdo jurídico porque a lei não a rodeia de tutela especial não adoptando providências tendentes a assegurar a sua efectivação. A expectativa ao contrário é uma esperança fortalecida pela intervenção do legislador que procura abrir-lhe caminho criando condições para que se torne realidade... Existem direitos cuja constituição ou aquisição é de gestação demorada. Essa gestação começa com um facto e finda com outro, porventura muito mais tarde. Há um processo de formação sucessiva, gradual. Só terminado o processo, percorrido o ciclo, o direito nasce ou é adquirido. Ora pode acontecer que a lei proteja no intervalo o interesse da pessoa a quem o direito se destina. Durante o estado de pendência o interessado goza de uma expectativa no significado jurídico próprio da palavra”. E, remetendo para as reflexões constantes do seu trabalho “Expectativa Jurídica” ( in “O Direito”, Ano 90, pags 3-4): “A expectativa é mais do que a esperança e menos do que o direito. Mais do que a esperança porque beneficia de uma protecção legal traduzida em providências tendentes a defender o interesse do titular e a assegurar-lhe quanto possível a aquisição futura do direito. Menos do que o direito porque ainda não é este: é o seu germe, o seu prenúncio ou guarda avançada, como que o direito em estado embrionário”....Finalizando, nesta temática: “A expectativa representa uma situação jurídica imperfeita ou prodrómica, germe de futura situação jurídica perfeita. Enquanto o direito está a formar-se a posição do interessado é esta, vista no seu conjunto. Mas a expectativa é acompanhada ou seguida de direitos menores, instrumentais, que precisamente permitem ao interessado agir concretamente neste ou naquele sentido em defesa do seu interesse. Não há um direito global, há direitos parcelares orientados em várias direcções e que são as vias de realização prática da tutela legal que eleva a esperança a expectativa como realidade jurídica”. / III- “Municiados” com as considerações doutrinais tecidas à volta da sobredita figura jurídica por tão insigne Mestre, torna-se mais fácil a abordagem da questão suscitada pela agravante e que —reconheça-se—, de tão nova (como o preceito da lei adjectiva donde dimana), poderia, numa primeira e mais ligeira análise, fazer “abraçar” a posição perfilhada pelo Mmo Juiz “a quo”, certo como é que o objecto da questionada penhora não é o veículo, mas, antes e tão só, a expectativa (jurídica) da respectiva aquisição pelo executado e seu actual detentor, findo que seja o correspondente contrato de locação financeira e nas demais condições estipuladas no mesmo contrato. Posição aquela a que a redacção do nº3 do aludido art. 860º-A poderia conferir mais força, com a perturbadora previsão de que “Consumada a aquisição, a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido”...Cremos, no entanto, que só a tese adversa (e coincidente com a posição perfilhada pela agravante) é compatibilizável, quer com o correcto e já exposto entendimento doutrinal da questionada figura jurídica, quer com o expressamente preceituado no nº2 daquele art. 860º-A, no ponto em que, sem ressalvar “as adaptações necessárias” (como ocorre no antecedente nº1), impõe, sem mais, que, na penhora das expectativas de aquisição em que o objecto a adquirir seja —como sucede, no caso dos autos— uma coisa que esteja na posse ou detenção do executado, deverá ser cumprido (ainda) o previsto nos arts. referentes à penhora de (no nosso caso) móveis. Certo sendo que, por via desta remissão e do disposto no já transcrito art. 848º, nº/s 1 e 5, não se divisa como a penhora da expectativa de aquisição de veículo automóvel de que o executado seja possuidor ou detentor possa ser efectuada sem que ocorra a efectiva apreensão daquele e dos respectivos documentos. Aliás, e em sintonia com o transcrito entendimento doutrinal do insigne Prof. I. Galvão Telles, refere J. P. Remédio Marques (in “A Penhora e a Reforma do Processo Civil”, pags.53-54) que, “precisamente porque as expectativas de aquisição de bens desfrutam de valor patrimonial —o qual repousa na solidez e probabilidade de aquisição do direito subjectivo de que são as primícias—, podem elas ser objecto de penhora, contanto que a coisa (ou o direito) a adquirir possa ser alienada (...)...Se o executado tiver a posse ou a mera detenção da coisa a adquirir, faz-se a apreensão dela e a entrega a um depositário... Não se trata de uma penhora —com os efeitos dela decorrentes, maxime os efeitos substantivos— posto que a coisa, à data da efectivação da diligência, pertence a um terceiro...Cura-se, sim, de acautelar a perda, deterioração, perecimento ou extravio da coisa”. Em reforço do expendido, anotar-se-á que idênticas posições (quanto à questão suscitada pela agravante e que prende a nossa atenção) são sustentadas, designadamente, pelo Dr. Lopes do Rego (in “Comentários ao Código de Processo Civil”, anotação II ao art. 860º-A) e pelo Prof. Lebre de Freitas (in “A Acção Executiva”, 2ª Ed. À luz do Código Revisto, págs. 205/206). Diga-se, finalmente, que, ante o que ficou exposto, não se nos afigura pertinente ou relevante —ressalvado o inerente e sempre devido respeito— quer a invocada “especificidade decorrente de se estar perante um contrato de locação financeira”, quer o risco de, ocorrendo a apreensão do veículo, o locatário não poder “continuar a usufruir do bem locado e ir cumprindo com o pagamento das prestações até final do contrato, de modo a que se possa vir a consumar a aquisição”. É que, não só o legislador não deu sinais de levar em conta tal pretensa especificidade, como a privação da fruição do veículo ocorre, também, no caso de a penhora incidir sobre o próprio direito (de conteúdo muito mais rico e vasto) de propriedade do veículo, como, finalmente, não poderia ter-se como certo que, no caso de ser efectuada a ordenada penhora, desacompanhada da apreensão do veículo, o locatário- executado pagaria à locadora as prestações contratuais ainda em falta: como bem nota a agravante, tal falta de pagamento poderia ocorrer, indiferentemente, em qualquer das situações. Além de que —acrescentamos nós— tal possibilidade foi, pelas expostas razões, indiferente para o legislador. Procedem, assim, as conclusões formuladas pela agravante. * 4- Em face do exposto, acorda-se em, concedendo provimento ao agravo, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que, mantendo a efectuada apreensão do veículo, dê sem efeito o decretado levantamento da mesma apreensão.Sem custas (art. 2º, nº1, al. o), do C. C. Jud.). / Porto, 28 de Janeiro de 2002José Augusto Fernandes do Vale Narciso Marques Machado Rui de Sousa Pinto Ferreira |