Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
765/09.4PRPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
FALTA DO ARGUIDO
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
Nº do Documento: RP20120704765/09.4PRPRT-A.P1
Data do Acordão: 07/04/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A dispensa de presença do arguido à audiência de julgamento tem sempre um carácter excepcional e visa essencialmente estabelecer uma concordância prática entre as garantias de defesa, no caso a comparência do arguido na audiência de julgamento, com a realização da justiça penal através dos Tribunais.
II – A prestação de TIR regula um específico processo comunicacional entre arguido e tribunal, como seja a possibilidade de notificação por via postal simples [196°, n.º 3, al. c)], cabendo ao arguido indicar uma residência para essa notificações e o dever de comunicar a subsequente mudança de residência, ficando o mesmo em auto, descrevendo-se aí as operações praticadas, fazendo este fé em juízo [99°, n.º l, n.º 3, al. a), c) e d)].
III - Do estatuto jurídico do arguido e tomando como referência os seus deveres específicos e complementares, sobressai um seu dever geral de diligência, não na perspectiva de um dever de colaboração, mas antes de dar funcionalidade àquele seu estatuto, que não é compatível com um posicionamento de alheamento processual e muito menos de violação dos seus deveres processuais.
IV - A realização de audiência de julgamento sem a presença do arguido regulamentada no art.º 333° cinge-se apenas a duas situações: i) uma por iniciativa do tribunal, em virtude de ausência voluntária do arguido, que tanto pode ser injustificada como justificada, por estar impossibilitado de comparecer (n.º 1); ii) outra por iniciativa e com o consentimento do arguido (n.º 4).
V - O mesmo já não se passa se se tratar de uma ausência forçada do arguido, não lhe sendo imputável qualquer falta relevante de diligência, a qual configura nulidade insanável, ainda que o arguido tenha prestado TIR e tenha sido expedida notificação para a sua residência [119°, al. c)].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 765/09.4PRPRT-A.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Carlos Espírito Santo

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No PC n.º 765/09.4PRPRT do 1.º Juízo Criminal do Porto, em que são:

Recorrente: Ministério Público

Recorrido: B…

foi proferida decisão em 2012/Fev./09, a fls. 32-34 (220-222 do original), que, considerando que o arguido já não reside, comprovadamente e por informação da GNR, na morada constante no TIR e que a notificação em causa tem forçosamente de ser pessoal – artigo 113.º, n.º 9 do C. P. Penal – indefere a promoção do Ministério Público no sentido de ser designada datas para julgamento e que o arguido fosse para o efeito notificado por via postal simples.
Mais se determinou que a autoridade policial informasse se o arguido residia nas moradas constantes a fls. 177 e 178 e, em caso afirmativo, a imediata notificação do arguido da acusação, do despacho de fls. 152-153, bem como da sua sujeição a TIR.
2. O Ministério Público interpôs recurso em 2012/Mar./02 a fls. 36-43, em que pede a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que designe dia para julgamento e determine a notificação do arguido por via postal simples da morada constante no TIR prestado nos autos, concluindo do seguinte modo:
1.ª) O arguido prestou TIR nos autos nos termos do actualmente disposto no art. 196°., do CPP, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n°. 320-C/00, de 15/Fev. e indicou uma morada para efeito de futuras notificações;
2.ª) Nos termos do estatuído no citado art. 196.º o arguido fica obrigado a não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de 5 dias sem comunicar ao processo a nova morada ou o local onde pode ser encontrado, e de que o arguido tomou conhecimento;
3.ª) Posteriormente, o arguido não comunicou nos autos qualquer alteração de morada;
4.ª) O arguido, com TIR prestado nos autos, é notificado do despacho que designa datas para julgamento por via postal simples na morada constante daquele, mesmo que, comprovadamente, tenha deixado de residir na referida morada;
5.ª) Entender de outro modo viola o disposto nos artigos 113.º, n.º 1, al. c) e 3, 196., n.º 2 e 3 e 313.º, n.º 3, todos do CPP.
3. Recebidos os autos nesta Relação, onde foram autuados em 2011/Mai./04, foram os mesmos com vista ao Ministério Público em 2012/Mai./09 a fls. 73-76 emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
4. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2 e colheram-se os vistos legais, nada obstando que se conheça do mérito deste recurso.
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O objecto do presente recurso incide na validade do TIR quando se sabe que o arguido já não reside na morada aí indicada.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A Constituição da República estabelece no seu artigo 32.º, n.º 1 uma cláusula geral de garantias de defesa ao instituir que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso” (i), especificando-se depois em que consistem as mesmas, encontrando-se aqui o quadro constitucional nuclear do processo penal.
Uma delas é o direito de presença do arguido na audiência de julgamento (ii), tal como passou a constar no n.º 6 deste artigo 32.º[1], ao estabelecer-se que “A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento”.
O direito de presença do arguido na audiência de julgamento está, de resto, consagrado no artigo 14.º, n.º 3, al d) do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP)[2] e muito embora não o esteja expressamente na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), tem vindo a ser reconhecido esse “direito mínimo de defesa” a partir do seu artigo 6.º, n.º 3, al. c), d) e), como uma das dimensões essenciais da existência de um processo justo e equitativo [Ac.TEDH Colozza v. Itália, de 1985/Fev./12; Belziuk v. Polónia, de 1998/Mar./25][3].
Esse processo justo e equitativo, tal como está veiculado na C.E.D.H e através do citado 6.º, compreende que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial …” (n.º 1), salvaguardando-se que “Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada” (n.º 2).
Na densificação desse processo justo e equitativo o n.º 3 deste artigo 6.º, expressou um “catálogo mínimo de direitos”, ao estipular, entre outras circunstâncias, que “O acusado, tem no mínimo, os seguintes direitos: Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa;” (b), “Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha” (c), “Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas da acusação …” (d) e “Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo” (e).
Assim, a jurisprudência do TEDH muito embora não considere que esse direito de presença do arguido na audiência tenha um carácter absoluto, o certo é que os julgamentos in absentia devem ter um carácter excepcional [Ac. TEDH Sejdovic v. Itália, de 2004/Nov./10 e em Plenário em 2006/Mar./01], só sendo de admitir essas situações desde que, entre outras, venha posteriormente a ser assegurado um novo julgamento com a sua audição [Ac.TEDH Colozza v. Itália, de 1985/Fev./12; Poitrimol v. França de 1993/Nov/23] ou quando o acusado, tendo conhecimento do respectivo processo, tenha de livre vontade renunciado a esse direito, de forma expressa ou implícita, designadamente quando se pretende subtrair ao mesmo [Ac. TEDH Pfeifer e Plank v. Áustria de 1992/Fev/25; Kwiatkowska v. Itália, de 2000/Nov./30; Sejdovic v. Itália, de 2006/Mar./01]. Mas essa renúncia tem que ser inequívoca, devendo ficar razoavelmente demonstrado os propósitos contumazes do acusado, bem como que este estava ciente, o que implica estar informado, das consequências cominatórias e procedimentais dessa sua conduta relapsa de não comparecer na audiência de julgamento [Ac. TEDH Jones v. Reino Unido, 2003/Set./09; Ziliberberg v. Moldávia, 2005/Fev./01].
Estes posicionamentos levaram a que algumas legislações nacionais procedessem, no seguimento da Recomendação n.º R (2000) 2 do Comité de Ministros dirigida aos Estados membros relativa ao reexame e reabertura de determinados processos ao nível interno na sequência de acórdãos do TEDH, a “acertos” nos seus procedimentos, como sucedeu com o Código de Processo Penal Italiano.[4]
Aliás, este carácter excepcional dos julgamentos in absentia já tinha sido afirmado pela Resolução (75) 11, de 1975/Mai./21 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, posteriormente enfatizado pela Convenção Europeia para a Validação Internacional dos Julgamentos Criminais, aprovada em Haia em 28 de Maio de 1970, subscrita por Portugal em 1979/Mai./10, mas que até agora ainda não foi ratificada e reafirmado pela Comissão de Peritos do Comité Europeu para os Problemas Criminais, através do seu Relatório de 1998/Mar./03.
Neste relatório afirmava-se que o direito a um julgamento leal (“fair trail”) deve ser sempre assegurado mesmo que o acusado não esteja presente, impondo-se para o efeito a verificação que ao mesmo tenha sido comunicado pessoal e atempadamente a realização da respectiva audiência de julgamento (i’) ou então que o mesmo se tenha furtado a essa comunicação (i’’) e, tanto naquela como nesta circunstância, seja manifestamente notório que o mesmo não pretende comparecer nessa audiência (ii).
Nesta conformidade, podemos assentar que a dispensa de presença do arguido tem sempre um carácter excepcional e visa essencialmente estabelecer uma concordância prática entre as garantias de defesa, no caso a comparência do arguido na audiência de julgamento, com a realização da justiça penal através dos Tribunais, que são facetas essenciais de um Estado de Direito Democrático (2.º, 32.º e 202.º da Constituição), mas assegurando-se sempre as suas garantias de defesa.
Os outros direitos nucleares constitucionais de defesa que para aqui podem ser convocados são a presunção de inocência do acusado até ao trânsito em julgado da sentença (iii), a realização do julgamento no mais curto prazo possível (iv) e o direito de assistência por advogado (v) (32.º, n.º 2 e 3 Constituição).
Por sua vez, no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição também se assegura que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham sejam objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, sendo também uma referência da CDFUE a exigência de que “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa” (artigo 47.º, § 2.º).
O Código de Processo Penal[5] até consagra expressamente um autêntico estatuto processual ao arguido (61.º, n.º 1), reconhecendo-lhe certos e precisos direitos de defesa, destacando-se, para o caso aqui em apreço, o direito a estar presente nos actos processuais que lhe dizem respeito (al. a), em ser ouvido pelo tribunal sempre que se possa tomar uma decisão que pessoalmente o afecte (al. b) e ser assistido por defensor, com a qualidade de advogado, em todos os actos processuais em que participar (al. f), mormente na audiência de julgamento (332.º, n.º 1)[6].
De resto cabe ao defensor exercer os direitos que a lei reconhece ao arguido (61.º a 67.º). Daqui podemos certamente assentar que o acusado tem o direito a estar presente nas fases em que se suscite o exercício da sua defesa, mormente para contradizer a prova que sustenta a acusação, seja questionando as mesmas, seja mediante a apresentação de outras provas, o que tanto pode acontecer no decurso do debate instrutório, como no âmbito da audiência de julgamento.
E quando nos reportamos à sua assistência por advogado, está também em causa a eficácia da mesma, o que passa por uma defesa efectiva, tanto na preparação, como na sua realização, e não por uma defesa apenas aparente ou fictícia [Ac. TEDH Artico v. Itália, 1980Mai./13; Goddi v. Itália 1984/Abr./ 09, Daud v. Portugal, 1998/Abr./21; Bogumil v. Portugal de 2008/Out./07; Proposta de Decisão-Quadro do Conselho, de 28 de Abril de 2004, relativa a certos direitos processuais penais na União Europeia, Com (2004) 328 final, § 57 a 59], como de resto é dever legal do defensor enquanto advogado (92.º, 93.º, 95.º, n.º 1, al. b) do E. O. A.[7]). Tal implica que o arguido contacte com o seu defensor e vice-versa, sabendo aquele que tem defensor e este é advogado.
Tratando-se o arguido de um cidadão estrangeiro que não conheça ou domine a língua portuguesa deve-lhe ser nomeado intérprete para qualquer acto processual em que o mesmo esteja presente, designadamente quando lhe são comunicado os seus direitos, como decorre do artigo 92.º, n.º 2 Código de Processo Penal – aí se estipula que “Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada”.
No caso de falta de nomeação de intérprete, a lei comina essa desconformidade como sendo uma nulidade sanável, que deverá ser suscitada pelo interessado e no caso do mesmo estar presente no próprio acto antes deste estar encerrado, sob pena da mesma ficar sanada, como decorre da conjugação do disposto no artigo 120.º, n.º 2, al. c), n.º 3, al. a) e 121.º, n.º 1, este por interpretação extensiva, do Código de Processo Penal.
Porém, temos de relembrar que, mormente no âmbito do processo penal, ao acusado devem ser asseguradas e de modo efectivo as suas garantias de defesa, bem como os instrumentos que as acautelam, dispondo de um processo justo e equitativo, o que só é possível se lhe forem conferidas as devidas oportunidades para o mesmo se poder defender, não o colocando, de forma directa ou indirecta, numa posição de desvantagem face aos seus oponentes, designadamente à parte acusatória.
Este direito a um processo equitativo, implica um tratamento leal (“fair treatment”) de todos os sujeitos processuais, mormente do acusado, por parte do tribunal, conferindo-se a este a possibilidade de proceder a um efectivo controlo dos procedimentos que lhe dizem respeito, de modo a assegurar-lhe todas as garantias de defesa.
Por isso e tendo presente as suas garantias constitucionais de defesa, as mesmas surgem como autênticos direitos fundamentais (16.º, 17.º e 18.º Constituição), que muito embora tenham uma conotação essencialmente subjectiva (i), cabendo aos seus titulares o seu exercício, também não deixam de exprimir, de modo objectivo, uma ordem de valores vinculativa (ii), que podem conduzir a uma interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung).
Por sua vez, aos tribunais compete, no exercício da sua função jurisdicional, assegurar a essência dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, conferindo-lhes conteúdo (202.º, n.º 2 Constituição).
Do que fica exposto, temos de concluir que a tradução para a língua nativa do arguido, sem que haja a necessidade de se exigir a entrega ao mesmo de um documento traduzido [Ac.TEDH Kamasinski v. Austria, de 1989/Dez./19; AcTC 547/98[8]], possibilitaria àquele estar em condições de conhecer as suas obrigações e das consequências das suas inobservâncias, bem como de preparar condignamente a sua defesa.
Assim e só se assegurando a essência daquele direito constitucional à defesa, “pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento” (32.º, n.º 6 Constituição). Nesta conformidade e salvaguardando-se o conteúdo útil e necessário do direito à defesa, assim como preservado o direito a um processo equitativo, passou-se a regular a dispensa da presença do arguido, naquilo que vulgarmente se designa, como já referimos anteriormente, por julgamento “in absentia”.
Tendo presente o mesmo estatuto jurídico-processual do arguido consagrado no Código de Processo Penal, podemos também constatar que o mesmo não tem apenas direitos (61.º, n.º 1), mas também específicos deveres processuais (61.º, n.º 3), estes, naturalmente, mais relacionados com a realização da justiça penal. No que concerne aos deveres sobressai, também para a situação “sub judice”, o “dever de comparência” perante as autoridades judiciárias (al. a)) e a obrigação de “Prestar termo de identidade e residência” (TIR) (al. c)). Mas a prestação de TIR gera igualmente um conjunto de deveres, alguns coincidentes com os assinalados no art. 61.º, n.º 3, como o dever de comparência (61.º, n.º 3, al. a); 196.º, n.º 3, al. a)) e outros com carácter complementar daqueles, como os deveres de não mudar de residência e de comunicar essa nova residência ou lugar onde possa ser encontrado (196.º, n.º 3, al. b)).
Por sua vez, a prestação de TIR regula ainda um específico processo comunicacional entre arguido e tribunal, como seja a possibilidade de notificação por via postal simples (196.º, n.º 3, al. c)), cabendo ao arguido indicar uma residência para essa notificações e o dever de comunicar a subsequente mudança de residência, ficando o mesmo em auto, descrevendo-se aí as operações praticadas, fazendo este fé em juízo (99.º, n.º 1, n.º 3, al. a), c) e d)).
Essa indicação de residência é, de resto, seguida noutros ordenamentos jurídicos, designadamente aqueles que influenciaram, a nível do direito comparado, o actual Código de Processo Penal, como sucede com o “Codice de Procedura Penale” italiano, que prevê e regulamenta no seu artigo 161.º e ss. o instituto do “Domicilio dichiarato, eletto o determinato per le notificazioni”.[9] Trata-se de um acto pessoalíssimo, representando uma declaração vinculada, que possibilita uma via segura de comunicação dos actos do processo, que gera a eficácia nas notificações efectuadas pelo tribunal para a residência indicada, salvo casos fortuitos ou de força maior.
Assim, do estatuto jurídico do arguido e tomando como referência os seus deveres específicos e complementares, sobressai um seu dever geral de diligência [Ac. TC 545/2006; 378/2003; 111/2007][10], não na perspectiva de um dever de colaboração, mas antes de dar funcionalidade àquele seu estatuto, que não é compatível com um posicionamento de alheamento processual e muito menos de violação dos seus deveres processuais [Ac. R. P. de 2012/Mai./16][11]. Por isso é que o incumprimento de tais deveres por parte do arguido, legitima que este passe a estar representado pelo seu defensor em todos os actos processuais a que deva ou tenha o direito de estar presente e a realização dos mesmos na sua ausência (196.º, n.º 3, al. d)), como seja a audiência de julgamento, mas neste caso nos termos do art. 333.º.
A realização de audiência de julgamento sem a presença do arguido regulamentada no art. 333.º cinge-se apenas a duas situações: i) uma por iniciativa do tribunal, em virtude de ausência voluntária do arguido, que tanto pode ser injustificada como justificada, por estar impossibilitado de comparecer (n.º 1); ii) outra por iniciativa e com o consentimento do arguido (n.º 4). O mesmo já não se passa se se tratar de uma ausência forçada do arguido, não lhe sendo imputável qualquer falta relevante de diligência, que conforme posicionamento desta Relação corresponde a uma nulidade insanável, ainda que o arguido tenha prestado TIR e sido expedida notificação para a sua residência (119.º, al. c). Tal sucede “No caso de o arguido se encontrar preso e sendo essa situação do conhecimento do Tribunal, …, sendo irregular qualquer comunicação efectuada para uma das residências indicadas no TIR, enquanto perdurar essa prisão” [Ac. TRP 2007/Jan./01] ou então se “…. o arguido se encontrar preso, depois de ter sido notificado da data da audiência de julgamento, sendo por essa razão que não comparece a esta” [Ac. TRP de 2009/Out./21].[12]
No caso em apreço podemos constatar, a partir do Termo de Identidade e Residência prestado pelo arguido em 2009/Jun./14, a fls. 1 deste apenso recursivo (fls. 11 do original), que o mesmo é um cidadão marroquino, que se encontra no nosso país mediante uma autorização de residência, encontrando-se esse mesmo TIR redigido em língua portuguesa, sendo através do mesmo que lhe foram dados a conhecer as respectivas obrigações, designadamente de “não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias, sem comunicar a nova residência” e que o seu incumprimento poderia conduzir ao seu julgamento na sua ausência. Mas não consta desse TIR que o seu conteúdo tenha sido traduzido para a sua língua nativa ou então que o arguido conhecia ou dominava a língua portuguesa.
Assim, numa perspectiva meramente formal e uma vez que o arguido, ainda que seja de nacionalidade marroquina, assinou esse mesmo TIR, estando presente no acto e não tendo suscitado a sua nulidade, podíamos certamente dizer que essa desconformidade estava sanada e o mesmo passava a estar obrigado às obrigações que aí lhe foram impostas.
Mas numa leitura jusfundamental dos seus direitos não podemos ter a certeza que o mesmo tenha compreendido o significado dessas obrigações e muito menos que estivesse em condições de suscitar a correspondente nulidade da falta de nomeação de um intérprete, mormente por se encontrar desacompanhado de advogado.
Isto significa que o referido TIR prestado pelo arguido não pode ter qualquer relevância processual, atentos os seus direitos fundamentais de defesa e do direito a um processo equitativo, tanto mais que no futuro poderia até conduzir a uma nulidade insanável, como seria a realização da audiência de julgamento na sua ausência, pois esta seria uma ausência forçada que não seria motivada pela vontade do arguido, mas por inabilidade na comunicação dos seus deveres processuais.
Daí que no caso presente, o bloco legal decorrente da conjugação do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, al. c), n.º 3, al. a) e 121.º, n.º 1, este por interpretação extensiva, 196.º, n.º 3 e 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ao considerar como nulidade sanável, que deve ser suscitada no próprio acto, sob pena de se considerar válida a falta de nomeação de intérprete ao arguido, que é desconhecedor ou não domina a língua portuguesa e está desacompanhado de advogado, vindo a possibilitar no futuro o seu julgamento na sua ausência, viola de modo flagrante e ostensivo os seus mais elementares direitos de defesa e o seu direito a um processo equitativo, respectivamente consagrados nos artigos 32.º, n.º 1, n.º 6 e 20.º, n.º 4 da Constituição, 14.º, n.º 3, al d) do PIDCP, bem como o artigo 6.º, n.º 3, al. b), c), d) e e) da CEDH.
Assim e muito embora por outras razões será de manter o despacho recorrido.
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.

Não é devida tributação. Notifique.

Porto, 04 de Julho de 2012
Joaquim Arménio Correia Gomes
Carlos Manuel Paiva do Espírito Santo
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[1] Redacção dada pela Lei Constitucional n.º 1/97, mais precisamente através do seu artigo 15.º.
[2] “3. Qualquer pessoa acusada de uma infracção penal terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias: d) A estar presente no processo e a defender-se a si própria ou a ter a assistência de um defensor da sua escolha; se não tiver defensor, a ser informada do seu direito de ter um e, sempre que o interesse da justiça o exigir, a ser-lhe atribuído um defensor oficioso, a título gratuito no caso de não ter meios para o remunerar”.
[3] Acessíveis, assim como os demais acórdãos do TEDH, em www.echr.coe.int/echr/.
[4] No seguimento do D.L. 21 febbraio 2005, convertido em Legge n.º 22 aprille 2005, n. 60, o artigo 175, n.º 2 deste Código passou a ter a seguinte redacção “Se è stata pronunciata sentenza contumaciale o decreto di condanna, l'imputato è restituito, a sua richiesta, nel termine per proporre impugnazione od opposizione, salvo che lo stesso abbia avuto effettiva conoscenza del procedimento o del provvedimento e abbia volontariamente rinunciato a comparire ovvero a proporre impugnazione od opposizione. A tale fine l'autorità giudiziaria compie ogni necessaria verifica.”, em TRAMONTANO, Luigi, Il Códice de Procedura Penale Spiegato, Piacenza, CELT, 2006, p. 364.
[5] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[6] Redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 320-C/2000, de 15/Dez.
[7] Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro de 2005, alterada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro e pela Lei n.º 12/2010, de 25 de Junho.
[8] Este último acessível, assim como os demais do Tribunal Constitucional, em www.tribunalconstitucional.pt.
[9] TRAMONTANO, Luigi, Il Códice de Procedura Penale Spiegato, Piacenza, CELT, 2006, pp. 344 e ss.
[10] Acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[11] Acessível em www.dgsi.pt e que, ultimamente, temos vindo a seguir de perto.
[12] Ambos acessíveis em www.dgsi.pt e o segundo também em www.colectaneadejurisprudencia.com, de que fomos relator.