Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1201/09.1TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP00042717
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: PERSONALIDADE JURÍDICA
SOCIEDADE
DESCONSIDERAÇÃO
Nº do Documento: RP200906221201/09.1TBMAI.P1
Data do Acordão: 06/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO - LIVRO 383 - FLS 33.
Área Temática: .
Sumário: I - A desconsideração da personalidade colectiva foi originada para ocorrer a situações abusivas de actuação que ponham em causa a boa fé negocial, pondo em risco a harmonia e credibilidade do sistema.
II - O seu fundamento jurídico encontra-se no art. 334º do CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1201/09

Agravante: B………., SA
Agravados: C………., Lda

(..º Juízo do Tribunal Judicial da Maia)



Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I- RELATÓRIO


“B………., S.A.”, instaurou o presente procedimento cautelar contra C………., Lda., D………., Lda, E………., Lda., F………., G………., H………., I………. E J………., pedindo o arresto dos bens que identifica, a fls. 19 e 20.
O arresto foi decretado só relativamente aos bens da C………., Lda, tendo sido julgado improcedente o pedido quanto aos demais requeridos.

Inconformada com a decisão na parte que lhe foi desfavorável, a B………., S.A interpôs o presente recurso, o qual é de apelação.

A Apelante formulou as seguintes conclusões:

A) O Tribunal a quo não decidiu no melhor interesse do Direito ao decretar parcialmente procedente o procedimento cautelar subjacente ao presente recurso e consequentemente, indeferindo o pedido de arresto do património dos restantes Requeridos, ordenando que fosse unicamente arrestado o recheio existente na sede da Requerida C………., Lda., bem como o arresto dos saldos bancários titulados pela mesma.
B) O Tribunal a quo incorreu numa apreciação desconforme ao Direito, ao decidir que não podia ser decretado o arresto do património dos restantes Requeridos, na medida em que a Requerente apenas demonstrou a existência de um crédito sobre a C………., Lda e não sobre os demais credores; bem como ao decidir que não existe matéria suficiente nos presentes autos que justifique uma aplicação do instituto comummente conhecido como “Desconsideração da Pessoa Colectiva”. C) Na verdade, o Tribunal a quo não atentou que para um procedimento cautelar de arresto ser decretado, devem ser preenchidos os requisitos específicos do mesmo (arts. 406.° n.° 1 e 407.°, n.° 1 do CPC) o que aconteceu - bem como os requisitos genéricos constantes do art. 387.°, n.° 1 do CPC, e que exigem uma mera probabilidade séria da existência do direito da Requerente, o que também aconteceu..
D) Conforme se poderá melhor observar da súmula efectuada no art. 12.° do presente articulado, é manifesto que da aplicação do Direito à matéria de facto supra descrita, resulta suficientemente indiciada uma situação de abuso do direito da personalidade colectiva que gera uma situação de confusão e/ou promiscuidade entre as esferas jurídicas das sociedades e que desvirtua por completo a essência e os pressupostos da constituição e existência das mesmas, permitindo à C………., Lda evitar o cumprimento das mais diversas obrigações, como o pacto de não concorrência, bem como a obrigação de pagamento do crédito que assiste à Requerente e aos demais credores.
E) Razão pela qual, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, existe matéria factual indiciariamente provada suficiente para justificar o direito da Requerente ver aplicado o instituto da “Desconsideração da Pessoa Colectiva”, com os inerentes efeitos práticos do mesmo.
F) O Tribunal a quo não realizou uma valoração racional, objectiva e crítica dos factos provados, nem de acordo com o Direito, nem tão pouco de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.
G) Sendo que, em sede de procedimento cautelar, ao contrário do que acontece em sede de acção principal, não se exige uma prova aprofundada e definitiva dos elementos constitutivos do direito invocado pelo Requerente, bastando a verificação da probabilidade séria da existência do direito a que o Requerente se arroga.
H) Com efeito, nesta sede, não se exige uma prova strictu sensu, incompatível com a celeridade própria das providências, mas sim bastando a prova de que a situação jurídica alegada é provável ou verosímil
1) A evidência dos factos provados é de tal forma óbvia, que mesmo em sede de acção declarativa, tal factualidade seria eventualmente suficiente para o Tribunal poder considerar como adequada a aplicação do Instituto da Desconsideração da Pessoa Colectiva.
J) Resumindo, da factualidade considerada como assente na sentença proferida pelo Tribunal a quo resulta - no mínimo - como suficientemente indiciado - a existência dos pressupostos que justificam a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade colectiva, devendo os respectivos sócios serem responsabilizados pelas dívidas e obrigações da C………., Lda, com o respectivo decretamento do arresto do património pessoal dos mesmos.
K) Aliás, os sócios das sociedades Requeridas deverão ser também pessoalmente responsabilizados também à luz de outro instituto, designadamente, à luz do disposto no art. 78.°, n.° 1 do Código das Sociedades Comerciais que prevê que “Os gerentes administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos”, uma vez que a sua actuação, claramente indicia, no mínimo, a ocorrência de uma utilização ilícita e abusiva da personalidade jurídica colectiva.
L) Na linha do raciocínio do Prof. Menezes Cordeiro exposto no art. 34.° das presentes alegações, o Instituto da Desconsideração da Pessoa Colectiva deve igualmente permitir o levantamento e a consequente responsabilização e arresto do património das sociedades que foram“artificialmente” constituídas.
M) Porquanto não fará sentido deixar esta “lacuna” aquando da aplicação do instituto, que facilmente permitiria aos sócios deslocar o seu património pessoal para as sociedades artificialmente constituídas, escudando-se dessa forma às suas obrigações e deixando os credores completamente desprotegidos.
N) O Tribunal a quo deveria assim ter-se abstraído da estrita separação existente entre os membros societários e as diferentes sociedades, e consequentemente, decretado desde já o arresto dos bens dos restantes Requeridos e assim proteger as garantias patrimoniais da Requerente.
O) A decisão proferida pelo Tribunal a quo coloca os credores da totalmente delapidada C………., Lda numa situação em que nada podem fazer quanto ao esgotamento do património que serve de garantia aos seus direitos creditícios.
P) Caso o Douto Tribunal “ad quem” não entenda no sentido supra aduzido, designadamente no que diz respeito à possibilidade de arresto dos bens das Requeridas D………., Lda. e E………., Lda. - o que aqui não se aceita e apenas se conjectura por estrito dever de patrocínio — sempre se dirá que existem outras disposições legais que permitem o arresto de património de terceiros.
Q) Nos termos do art. 619.°, n.° 2 do Código Civil o “O Credor tem o direito de requerer o arresto contra o adquirente dos bens do devedor, se tiver sido judicialmente impugnada a transmissão”.
R) O arresto pode ser decretado não apenas contra o devedor, mas também contra aquele(s) que adquiriu(ram) os bens do devedor, designadamente quando relativamente a esse devedor estejam reunidos os pressupostos de procedência do arresto e sejam alegados factos que permitam concluir pela probabilidade séria de, por via de acção intentada ou a intentar, se impugnar transmissão desses bens a favor desse terceiro adquirente, seja por via de arguição de nulidade, seja por via de impugnação pauliana (conforme plasmado na descrição de jurisprudência constante do art. 48.° das presentes alegações).
S) O art. 407.°, n.° 2 do CPC prevê expressamente que “Sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o Requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduzirá ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação”.
T) No caso concreto, os factos alegados e provados permitem concluir pela probabilidade de procedência duma impugnação da transmissão dos bens efectuada pela C………., Lda para as Requeridas D………., Lda. e E………., Lda., nomeadamente através de impugnação pauliana.
U) Isto considerando que o crédito da Requerente é anterior à transmissão de património ocorrida, sendo que dessa mesma transmissão resulta a impossibilidade, ou pelo menos o agravamento da impossibilidade da Requerente conseguir obter pagamento do seu crédito, uma vez que todo o património da devedora C………., Lda terá sido alienado às Requeridas D………., Lda. e E………., Lda..
V) Estando assim preenchidos os requisitos previstos no art. 610.º do Código Civil para uma eventual procedência de uma acção de impugnação pauliana, e consequentemente, também para o decretamento do arresto dos bens das Requeridas D………., Lda. e E………., Lda..

Não foram proferidas contra – alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II- OS FACTOS

Na 1.ª Instância foram dados como provados os seguintes factos:

1) A Requerente, em 22 de Dezembro de 2006, incorporou por fusão a sociedade K………., Lda., a qual teve como denominação social inicial “K1………., Lda.”.
2) Consequentemente, os direitos sobre as marcas nacionais “K2……….” e “K3……….” registadas sob os números ….42, ….02, ….28, o nome de estabelecimento “K3……….” registado sob o número …15 e logótipo registado sob o n….09, transferiram-se para a ora Requerente
3) A Requerente, explorando as marcas “K2……….” e “K3……….”, com o nome de estabelecimento “K3……….”, dedica-se à actividade de exploração comercial de espaços destinados a consultórios, comercialização de produtos dietéticos e cosméticos, equipamento médico, de estética e de fisioterapia e à prestação de serviços no âmbito da nutrição, estética e fisioterapia.
4) Nesse âmbito, a Requerente criou e implementou no mercado a imagem de marca “K2……….”, respeitada e reconhecida pelos consumidores.
5) A Requerente celebrou dois contratos de franquia (franchising) com a Requerida C………., Lda (doravante designada por C1……….).
6) O primeiro contrato foi celebrado, em 31 de Outubro de 2002, entre a Requerente e o Requerido F………., futuro sócio-gerente da Requerida C1………., e destinava-se ao estabelecimento denominado “K4……….”.
7) O segundo contrato foi celebrado, em 1 de Abril de 2005, entre a Requerente e a Requerida C1………., e destinava-se ao estabelecimento denominado “K5……….”.
8) A C1………. é uma sociedade por quotas que se dedica à prestação de serviços no âmbito da nutrição, estética e fisioterapia e à comercialização de produtos dietéticos.
9) Através dos referidos contratos, a Requerente concedeu à C1………. a exploração e comercialização de serviços e produtos sob as marcas “K2……….” e “K3……….” e sob o nome dos estabelecimentos “K4……….” e “K5……….” de que a Requerente é proprietária e legítima possuidora.
10) Nos termos do acordado entre as partes, a zona territorial a explorar pela C1………., em regime de exclusividade, compreendia, para o primeiro contrato, foram os concelhos de Amarante, Baião, Felgueiras, Lousada, Marco de Canavezes, Paços de Ferreira, Paredes e Penafiel e, para o segundo contrato, o concelho da Maia.
11) A sociedade C………., Lda, tinha, inicialmente, a sua sede registada na Rua ………., ………., ………., …, ……, ….-…, Penafiel, tendo alterado, em 7 de Novembro de 2008, para a Rua ………., n. …, cave, fracção “…”, ….-…, Alfena.
12) O estabelecimento franquiado e explorado pela C1………., denominado “K4……….”, foi instalado na supra mencionada sede, ou seja, na Rua ………., ………., ………., …, ……, ….-…, Penafiel.
13) Por sua vez, o estabelecimento franquiado e explorado pela C1………., denominado “K5……….”, foi instalado na Rua ………., ………., .., ….-…, freguesia e concelho da Maia.
14) O contrato referente à “K4………” iniciou a sua vigência em 31 de Outubro de 2002, tendo sido acordado pelas partes que o mesmo teria a duração de 5 (cinco) anos a contar da data da respectiva assinatura - Cláusula Décima Terceira do contrato de franquia de fis. 69 e seguintes.
15) O contrato referente à “K5……….” iniciou a sua vigência em 1 de Abril de 2005, tendo sido acordado pelas partes que o mesmo teria a duração de 6 (seis) anos a contar da data da respectiva assinatura - Cláusula Décima Terceira do contrato de franquia de fis. 84 e seguintes.16) Nos termos dos mencionados contratos de franquia e como contrapartida pela concessão em regime de franchising, a qual engloba a utilização dos direitos concedidos da marca, insígnia e nome de estabelecimento, os serviços da rede, estrutura de suporte de funcionamento, a centralização de compras e serviços de apoio, a Requerida C1………. obrigou-se, em ambos os casos, a pagar royalties correspondentes uma quantia mensal, variável em função das vendas líquidas realizadas no mês anterior nos seguintes termos:
- Relativamente à K4……….:
Royalties variáveis - 7,5% sobre o volume das vendas líquidas realizadas no mês anterior, sendo que o limite mínimo a pagar seria de € 2.493,99 (dois mil quatrocentos e noventa e três euros e noventa e nove cêntimos) - cfr n.23. 1. da Cláusula Oitava do contrato de franquia de fis. 69 e seguintes.
- Relativamente à K5……….:
Royaltíes variáveis - 7,5% sobre o volume das vendas líquidas realizadas no mês anterior, sendo que o limite mínimo a pagar seria de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) - cfr. n.22 1. da Cláusula Oitava do contrato de franquia de fis. 84 e seguintes.
17) A Requerida C1………. obrigou-se, ainda, a pagar, a título de taxa de publicidade, as seguintes quantias mensais:
Relativamente à K4………. - € 748,20 (setecentos e quarenta e oito euros e vinte cêntimos), acrescido de IVA à taxa legal em vigor- cfr. n.2 3. da Cláusula Oitava e Cláusula Nona do contrato de franquia junto como Doc.12;
Relativamente à K5………. - € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor- cfr. n.2 3. da Cláusula Oitava e Cláusula Nona do contrato de franquia junto como Doc. 13.
18) A par dos contratos de franquia e dependente destes, as partes celebraram dois contratos de prestação de serviços através do qual a C1………. contratou com a Requerente a prestação de consultas de nutrição aos utentes das denominadas “K5……….” e “K4……….”, conforme contratos de fis. 98/99 e 100-102 cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais.
19) No âmbito dos referidos contratos de prestação de serviços, a Requerente contratou profissionais devidamente habilitados, os quais alocou à “K5……….” e à “K4……….”, exploradas pela Requerida C1………., para a prestação de consultas de nutrição.
20) Como contrapartida da prestação de tais serviços, a Requerida C1………. obrigou-se a pagar à Requerente uma retribuição mensal variável, apurada de acordo com os seguintes critérios:
a) 50% (cinquenta por cento) do valor liquidado pela C1………., segundo as tabelas em vigor nos estabelecimentos, em todas as consultas e exames prestados pelos profissionais disponibilizados pela Requerente; e
a) 5% (cinco por cento) do valor de todos os tratamento efectuados pela C1………. nas “K5………. e de K4……….”, designadamente, de endermologia, também designada por drenagem linfática mecânica, de corpo e rosto, Trim 1, ou campos magnéticos, Trim II, ou correntes de Kotz, pressoterapia, laser, corpo li, ou outros que viessem a ser implementados.
21) Sucede que a C1………. deixou de cumprir as obrigações financeiras decorrentes dos contratos celebrados entre as partes, encontrando-se vencidas e não pagas facturas, no valor global de € 52.662,02.
K5……….
FACTURA
DATA
DESCRIÇÃO
VALOR EM
DÉBITO
A08/497
01-10-2007
Equipamento Apoio III
€ 5.445,00
R08/809
26-10-2007
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.557,50
R08/887
26-11-2007
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€3.557,50
R08/958
26-12-2007
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€3.557,50
R08/236
26-03-2008
Prestação Serviços Clínicos
€ 3.557,50
R08/321
28-04-2008
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.557,50
R08/496
26-06-2008
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.557,50
K4……….
FACTURA
DATA
DESCRIÇÃO
VALOR EM
DÉBITO
R08/81 1
26-10-2007
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.548,95
R08/889
26-11-2007
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€3.548,95
R08/960
26-12-2007
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.548,95
R08/237
26-03-2008
Prestação Serviços Clínicos
€ 3.548,95
R08/322
28-04-2008
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.548,95
R08/41 5
28-05-2008
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 3.548,95
R08/497
26-06-2008
Royalties Fixos/Taxa Pubiicidade
€ 3.548,95
A08/25
06-08-2008
Assistência Técnica
€ 1.020,00
R08/621
11-09-2008
Royalties Fixos/Taxa Publicidade
€ 9,37
TOTAL € 52.662,02
22) A Requerente interpelou a Requerida C1………. com vista à regularização da dívida, tendo efectuado inúmeras tentativas de negociação da mesma, sem qualquer sucesso.
23) A par dos valores acima mencionados, titulados pelas facturas juntas aos autos, encontravam-se ainda em dívida os royalties e a taxa de publicidade, referentes aos meses de Julho e Agosto de 2008, devidos nos termos dos citados n.2 3 da Cláusula Oitava e Cláusula Nona dos contratos de franquia juntos como Docs. 12 e 13, nos respectivos valores de € 7.050,00 (K5……….) e € 7.033,06 (K4……….).
24) Face ao incumprimento dos contratos, a Requerente resolveu, através de cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 16 de Setembro de 2008, os contratos de franquia e os contratos de prestação de serviços identificados supra – cfr. Docs. de fls. 119 e 123 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
25) Através da mencionada carta, a Requerente comunicou à Requerida C1………. que a mesma dispunha de 60 (sessenta) dias para proceder ao pagamento da quantia em dívida e à descaracterização dos estabelecimentos, deles retirando todos os sinais distintivos de uma K3………. .
26) Contudo, decorrido o referido prazo de 60 (sessenta) dias, a Requerida C1………. não procedeu ao pagamento das quantias em dívida para com a Requerente, nem tão pouco manifestou qualquer vontade de o efectuar.
27) No âmbito do contrato de franquia celebrado entre a Requerente e a C1………., relativo à “K4……….” foi acordado que “A Franchisada não poderá desenvolver actividade concorrente, nem poderá divulgar o Know-How adquirido e outras informações relativas à operação, durante o período de dois anos após o termo do presente contrato’ - vd. n.2. 2 da Cláusula Décima Segunda do Doc. 12.
28) Igualmente, no âmbito do contrato de franquia celebrado entre a Requerente e a C1………., relativo à “K5……….” foi acordado que “A Franchisada não poderá desenvolver actividade concorrente, nem poderá divulgar o Know-How adquirido e outras informações relativas à operação, durante o período de um ano após o termo do presente contrato, seja qual for o motivo ou a forma de cessação.” - vd. n .22 da Cláusula Décima Segunda do Doc. 13.
29) No entanto, decorrido o prazo fixado na carta de resolução contratual melhor identificada no ponto 24) supra, a Requerida C1………. continuou a desenvolver a actividade de prestação de serviços no âmbito da nutrição, estética e fisioterapia e à comercialização de produtos dietéticos e cosméticos.
30) Actividades que levava a cabo nos estabelecimentos onde anteriormente explorava as K4………. e da K5………. .
31) Tais actividades são manifestamente concorrentes com a actividade desenvolvida pela Requerente
32) Consequentemente, a Requerente notificou a Requerida C1……….., através de carta registada com aviso de recepção, datada de 5 de Dezembro de 2008, para, em obediência ao acordado pacto de não concorrência e no prazo de 5 (cinco) dias, proceder à cessação da actividade desenvolvida pelo prazo previsto no pacto de não concorrência e, consequentemente, ao encerramento da clínica explorada - documento de fls. 127 que se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
33) Após a carta de resolução supra mencionada, datada de 16 de Setembro, a Requerente apurou que a C1………. cedeu os seus estabelecimentos às recém constituídas “D………., Lda.”, aqui Segunda Requerida e “E………., Lda” aqui terceira requerida.
34) a C1………. encontra-se actualmente sem exercer qualquer tipo de actividade comercial efectiva, estando todo o seu imobilizado corpóreo a ser utilizado pelas Requeridas D……….., Lda e E……….., Lda.
35) São, igualmente, desconhecidos quaisquer bens propriedade da C1………. .
36) São as Requeridas D………., Lda e E………., Lda que auferem actualmente das receitas da exploração dos estabelecimentos anteriormente explorados pela C1………. .
37) No âmbito da Petição Inicial da Providência Cautelar apresentada contra a ora Requerente e que corre termos na . Secção da . Vara Cível do Porto, sob o número de processo …./08.9.TVPRT, a aqui requerida C1………. afirma ter cedido os seus estabelecimentos, mais precisamente as K5………. e de K4………., às requeridas “D………., Lda” e “E………., Lda” - documento de fls. 128 e ss. que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
38) A Requerida D………., Lda foi constituída no pretérito dia 31 de Outubro de 2008 na 2.ª Conservatória do Registo Predial/Comercial da Maia - documento de fls. 137/138.
39) A Requerida E………., Lda foi constituída exactamente no mesmo dia 31 de Outubro de 2008 na Conservatória do Registo Comercial de Penafiel - documento de fis.163 a 16.
40) O objecto social de ambas as sociedades consiste na gestão de espaços destinados a consultórios, consultas de nutrição, intervindo ainda através de pessoal qualificado em outras áreas de saúde, como medicina, fisioterapia e estética, comercialização de produtos dietéticos e de estética.
41) As sócias de ambas as Requeridas D………., Lda e E………., Lda são G………. e L………., casadas, respectivamente, com os sócios da Requerida C1………., F………. e H………. .
42) As supra referidas Requeridas têm uma actividade social idêntica àquela que a C1………. prossegue, angariando a mesma clientela, explorando a mesma zona territorial e inclusivamente praticando preços mais baixos.
43) H………. é gerente de ambas as sociedades.
44) Os equipamentos, materiais e utensílios de trabalho que são actualmente utilizados pelos trabalhadores das Requeridas pertenciam à C1………. .

III-O DIREITO

De acordo com as conclusões do recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição, as questões que importa apreciar são as seguintes:

1- Existência dos pressupostos que justificam a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade colectiva, de modo a que as requeridas D………., Lda e E………., Lda possam a ser responsabilizadas pelas dívidas da C1……….;

2-Existência dos pressupostos que permitam a impugnação pauliana;

3-Responsabilização dos sócios ao abrigo do disposto no art.º 78.º n.º1 do Código das Sociedades Comerciais;

4- Requisitos para decretar o arresto.

1-Quanto à primeira questão:

A problemática da desconsideração da personalidade jurídica desabrochou na Jurisprudência norte-americana do princípio do séc. XX. Mas foi, sem dúvida, na doutrina alemã pós - 2.ª guerra mundial que ela ganhou consistência teorética[1]. E cada vez mais a questão revela o seu interesse, em relação com o fenómeno do peso dos grupos de sociedades nas economias nacionais e internacional[2].
A personalidade colectiva e o recurso a formas societárias têm vindo a popularizar-se no nosso espaço jurídico. Ora, as sociedades que surgem podem ser usadas fora dos objectivos próprios da personalidade colectiva, de tal modo que, contra os valores fundamentais do sistema - portanto: contra a boa fé - venham a causar danos ou promover actuações pelos quais não possam, depois, responder. O Direito deve estar devidamente apetrechado para responder a estas situações. A abertura das fronteiras e a facilidade com que se constituem sociedades permitem abusos de personalidade, contra os quais a moderna instrumentação deve reagir. Não se trata de pôr em crise o instituto da personalidade colectiva, importante factor de cooperação e de progresso dentro do Direito: apenas de cercear formas abusivas de actuação que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema[3].
E é com este objectivo que surge o levantamento da personalidade jurídica como “instituto de enquadramento”[4] que traduz uma delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema.
Importa portanto sublinhar que não prescinde o instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade, do uso abusivo daquela, para iludir/ prejudicar terceiros[5].
A questão está em saber se, no caso concreto, se poderá concluir que as sociedades D………., Lda e E………., Lda foram constituídas com o objectivo de iludir e prejudicar terceiros.
Vejamos os factos:
Face ao incumprimento dos contratos de franquia que foram celebrados entre a Requerente e a C1………., a primeira resolveu os contratos, por cartas registadas com aviso de recepção, datadas de 16 de Setembro de 2008, concedendo-lhe o prazo de 60 dias para proceder ao pagamento da quantia em dívida (pontos 24) e 25) da matéria provada).
Decorrido esse prazo, a Requerida C1………. não procedeu ao pagamento das quantias em dívida (Ponto 26.º da matéria de facto provada).

Ao invés, que fez a C1……….?

Cedeu os estabelecimentos onde exercia a sua actividade, sitos em Penafiel e Maia a duas sociedades, ambas constituídas em 31 de Outubro de 2008, cujas sócias são as aqui requeridas, G………. e L……….., casadas, respectivamente, com os sócios da Requerida C1………., F………. e H………. (pontos 38.º, 39.º e 41.º dos factos provados).
H………. é o gerente de ambas as sociedades, ou seja, um dos sócios da C1………. .
Por sua vez, a C1………. encontra-se actualmente sem exercer qualquer tipo de actividade comercial efectiva, estando todo o seu imobilizado corpóreo a ser utilizado pelas Requeridas D………., Lda e E………., Lda. São estas que auferem actualmente as receitas dos estabelecimentos anteriormente explorados pela C1………. .
Perante esta factualidade, não podemos deixar de concluir pela evidência: a constituição da sociedades D………., Lda e E………., Lda, ocorrida após a resolução dos contratos de franquia entre a Requerente e a C1………. e a constituição de dívidas desta para com a primeira, teve como única finalidade frustrar a possibilidade de a requerente obter o pagamento do seu crédito e exigir o cumprimento das demais obrigações contratuais.
Tal situação é claramente violadora das regras da boa fé, incluindo a ética dos negócios, pelo que se estamos perante um caso em que se justifica inteiramente admitir a “desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva”[6].
O fundamento da desconsideração encontra-se no art.º 334.º do Código Civil, o que permite a sua imediata aplicação de jure condito. É o intuito de salvaguarda das próprias pessoas colectivas em geral (e das sociedades comerciais em particular), da manutenção do crédito e da limpidez que deve presidir à vida jurídica que assim o justifica e impõe[7].
Conclui-se, assim, que existe fundamento jurídico para a Requerente exigir das Requeridas D………., Lda e E………., Lda o pagamento do seu crédito.

2- Mas ainda que se entendesse que estas sociedades nunca poderiam ser chamadas a pagar uma dívida constituída na esfera jurídica da C………., Lda, por via da aplicação ao caso da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva, sempre os seus bens poderiam ser arrestados ao abrigo do disposto no art.º 407.º n.º 2 do Código de Processo Civil que prevê expressamente que “sendo o arresto requerido contra o adquirente de bens do devedor, o requerente, se não mostrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, deduzirá ainda os factos que tornem provável a procedência da impugnação”.
Ora, ficou demonstrada a cedência dos bens da C1………. a favor das requeridas D………. e E………., Lda[8] e foram alegados os factos que tornam provável a procedência da impugnação da transmissão dos bens, factos que ficaram indiciariamente provados.
Nos termos do art.º 610.º do Código Civil “ os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a)Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b)Resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
Dos factos provados, resulta claramente que o crédito da Requerente é anterior ao acto da transmissão dos bens da C………. para as sociedades D………., Lda e E………., Lda que se pretende impugnar.
Resultou do acto praticado a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito, visto que a C1………. ficou esvaziada de todo o seu imobilizado corpóreo que passou a ser utilizado pelas referidas sociedades que actualmente auferem as receitas da exploração dos estabelecimentos anteriormente explorados pela C1………. .
Ainda que se trate de acto oneroso, o que não está provado, exigiria a lei o requisito da má-fé, como estabelece o art.º 612.º do Código Civil. Entende a lei por má-fé “ a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.
Também este requisito não pode deixar de se considerar provado, dado que sendo um dos sócios da C………., Lda, o sócio gerente das sociedades cessionárias e ocorrendo a particularidade de os sócios da primeira serem os maridos das sócias das sociedades cessionárias, não podiam ignorar que o negócio em causa inviabilizava o pagamento do crédito da requerente.
Não podemos perder de vista que “o preenchimento deste requisito depende da prova de factos do foro subjectivo, muito raramente exteriorizáveis ou exteriorizados, o que evidencia quão difícil se torna o cumprimento do ónus da prova que a lei faz recair sobre o credor impugnante. Mais ainda se, na valoração dos meios de prova, os Tribunais se pautarem por um critério excessivamente rigorista, sobrecarregando, até limites insuportáveis, o encargo que recai sobre o Autor ou resistindo a projectar na decisão da matéria de facto a convicção formada, de acordo com as regras da experiência, a partir dos factos essenciais ou instrumentais que estejam disponíveis[9].”
Estariam, assim, preenchidos todos os requisitos legalmente exigidos para a procedência da acção de impugnação pauliana.
Logo, também, por esta via, procedendo inteiramente as conclusões da Apelante, não haveria impedimento legal a que fosse decretado o arresto dos bens das requeridas D………., Lda e E………. .
3-Cabe apreciar seguidamente a questão de saber se deveria igualmente ter sido decretado o arresto dos bens pessoais dos requeridos, pessoas singulares e que são os sócios das sociedade C1………. .
Nos termos do art.º 78.º do Código das Sociedades Comerciais, “os gerentes, administradores ou directores respondem para com os credores da sociedade quando pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos”.
A responsabilidade dos gerentes administradores ou directores é, neste quadro, subsidiária, no caso em que o património social se torne insuficiente para garantir a satisfação do credor. Ora, no caso presente, o património da devedora transitou para as duas sociedades que foram constituídas em 31 de Outubro de 2008, e já vimos nos dois pontos anteriores, que o credor pode contar com esse património para garantia do seu crédito, não obstante a transferência realizada. Deste modo, não se verifica o pressuposto de que depende a responsabilização dos gerentes.
De qualquer modo, ao abrigo desta disposição legal, o que está em causa é a responsabilidade dos gerentes e não de todos os sócios, tal como é pretendido pela Requerente.
Pela razão referida, não há fundamento legal para decretar o arresto dos bens dos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º Requeridos, pelo que nesta parte, nenhum reparo merece a decisão recorrida.
4- Por fim, perante a conclusão de que, nas condições que ficaram provadas, as sociedades D………., Lda e E………., Lda, podem ser responsabilizadas pelo crédito da Requerente, originado nas relações contratuais entre esta e a C1………., importa analisar se estão verificados todos os requisitos para que possa ser decretado o arresto, relativamente àquelas duas sociedades.
Na verdade, de acordo como disposto no art.º 406.º do CPC, são dois os requisitos para que possa ser decretado o arresto:
Em primeiro lugar, a probabilidade da existência de um crédito.
Em segundo lugar, o justificado receio de perda da garantia patrimonial.
Quanto ao primeiro, já vimos que, por via dos mecanismos legais supra explanados, é efectiva a probabilidade do crédito da requerente, em relação às requeridas D………., Lda e E………., Lda, ou se preferirmos, a possibilidade de a requerente se fazer pagar através dos bens existentes no património destas, pelo crédito que detém em relação à C1………..
Quanto ao segundo, verificar-se-á um justificado receio de perda da garantia patrimonial em relação às 2.ª e 3.ª Requeridas?
Parece-nos que sim. Na verdade, valorando a factualidade provada, de acordo com as regras da lógica e baseando-nos nas regras de experiência comum, analisando o comportamento dos agentes em causa, que consubstancia um artifício com vista a frustrar os direitos da Requerente, e por seu turno a eximir-se ao cumprimento das suas obrigações, tudo leva a crer que também as requeridas ao ver-se confrontadas com a possibilidade de responder por essas obrigações, o tentem evitar, salvaguardando o seu património em desfavor da Requerente.
Cremos assim, verificados todos os requisitos para que deva ser decretado o arresto, relativamente a D………., Lda e E………., Lda.

IV- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em revogar parcialmente a decisão recorrida, ordenando o arresto dos bens de D……….., Lda e E………., Lda.
Custas por Apelante e Apelados na proporção de ½.

Porto, 22 de Junho de 2009
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia
Maria Adelaide de Jesus Domingos
Baltazar Marques Peixoto

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[1] Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Da empresarialidade (As empresas no Direito), Colecção Teses, Almedina, 1999, p.206.
[2] Na doutrina portuguesa, não pode deixar de ser realçado o papel pioneiro desempenhado por FERRER CORREIA. Já em 1948, in Sociedades Fictícias e Unipessoais, p. 300, o Autor mostrava que a “ideia de separação” sócio/sociedade não pode ser levada às últimas consequências. Dada a “identidade efectiva entre sociedade e sócio” (nas sociedades unipessoais), aquela ideia “não pode ser invocada para legitimar soluções que sejam contrárias quer ao fim de uma disposição concreta da lei, quer a uma vontade contratual expressa ou tácita, quer ainda aos princípios gerais de boa-fé, do abuso de direito de da fraude”.
[3] António Menezes Cordeiro, in Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9-01-2003, www.oa.pt.
[4] António Menezes Cordeiro, idem.
[5] Acórdão do STJ, 29-11-2001, www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-07-2000, www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-01-2004, www.dgsi.pt.
[8] Pontos 33.º e 44.º da matéria de facto provada.
[9] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-03-2003, in www.dgsi.pt.